Literatura e Medicina, uma experiência de ensino

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Literatura e Medicina | Uma experiĂŞncia de ensino


Literatura e Medicina Uma experiĂŞncia de ensino


Aos nossos pacientes, raz達o primeira de tudo.


Prefácio

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Prefácio Medicina e humanidades juntas não me parecem redundância, mas sim insistência que pretende superar tempos em que tecnologias e mercado apresentam-se como regentes de tudo. Ou quase tudo, porque médicos, pesquisadores, estudantes, amigos de artes e literatura, reuniram-se na duração de uma experiência que chega à qualidade do presente livro, escapando das exclusivas abordagens padrão do texto científico, ao mesmo tempo tratando de assuntos muito sérios para a saúde das pessoas que cuidamos. Esse registro já seria suficiente, no espaço gentilmente cedido para esse prefácio; além de congratulações e elogios aos autores e organizadores pelo ótimo trabalho que fizeram. Entretanto, toda história pode ser contada um pouco diferente. E uma história lembra outra, e uma memória, mais outras histórias. Frequentemente, em diferentes oportunidades, alguém me traz o interesse em discutir a inclusão de disciplinas relacionadas à língua portuguesa no currículo médico. Como justificativas, não necessariamente corretas, impressões sobre o fato de que os estudantes atuais não escreveriam muito bem, talvez porque, muito jovens, não leiam o suficiente, tendo com isso poucos ganhos em habilidades de expressão na nossa linguagem formal, somando-se às especulações sobre as consequências da prevalência e perfil da comunica-

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Literatura e Medicina

ção digital contemporânea. Certo dia, creio que num início de noite, trabalhando em minha sala na faculdade e conversando com a professora Ana Mallet, médica da área de clínica e com titulação e paixão complementares em literatura, ela também comentou sobre o seu interesse em incluir alguma atividade de leitura para os nossos estudantes de medicina. Ficamos embaladas no entusiasmo da possibilidade de uma atividade regular, que oferecesse a relação da medicina com as artes enquanto facilitadora de ganhos pessoais, em sensibilidade e empatia, entre outros, tão importantes na formação médica que desejamos. Na conversa com Ana, acabei contando o encontro que tivera com o médico gaúcho e grande escritor, Moacyr Scliar. Ele estava como conferencista em evento da área de saúde, alguns anos antes de morrer, quando falou aos participantes sobre uma época em que trabalhou como professor numa universidade dos EUA, em disciplina que reunia temas sobre medicina e humanidades. Ele escolhera alguns títulos de livros, grandes referências para ele, as quais entendia que seriam livros que todos os estudantes de medicina, ou mesmo médicos, em geral, deveriam ler. Peguei um pedaço de papel e anotei aquelas sugestões, imperdíveis, imaginando quando as colocaria em prática, no curso médico. Algumas me pareceram óbvias, como minha adoração por O Alienista, de Machado de Assis, assim como pelo romance A Peste, de Camus. Registrei A Montanha Mágica, de Thomas Mann e surpreendi-me um pouco com a indicação de Tenda dos Milagres, de Jorge Amado, achando que deveria reler o livro. No projeto “Medicina e arte: literatura e narrativas médicas”, um encontro excepcional de professores e estudantes, numa escola médica do Rio de Janeiro do século XXI, permitiu-me pensar que estava conseguindo assistir, embora não dentro do grupo, ao que sonhara quando ouvi a história do mestre Scliar. De algum modo, busco homenageá-lo aqui, nesta citação. Agora temos na lista dos imperdíveis para médicos, estudantes de medicina e outros interes-


Prefácio

sados em vida, saúde e humanidades, este Literatura e medicina: uma experiência de ensino. Sugiro fortemente o garantido prazer e o doce aprendizado com a sua leitura. Maria Tereza Costa

Coordenadora do Curso de Medicina da Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro

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1º PARTE

Apresentação


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Literatura e Medicina Apresentação

|Por que literatura e medicina? Ana Luisa Rocha Mallet

Parece haver um abismo de mútua incompreensão entre os médicos e seus pacientes. Essa distância parece aumentar. Apesar da grande maioria dos diagnósticos (70-90%) ser feita com base na história do paciente, a escuta médica é sem dúvida o ponto de maior fragilidade na medicina atual. Os médicos geralmente querem saber apenas dos fatos, interrompendo os pacientes antes da história completa. O registro técnico, resumido, com linguagem técnica e supostamente neutra, é insuficiente para uma inter-relação que possa auxiliar a criação de narrativas que facilitem a realização de hipóteses diagnósticas e a escolha de intervenções terapêuticas que levem em conta a perspectiva do próprio paciente. No processo de criação de anamneses médicas objetivas acabamos, muitas vezes, por desumanizar e suprimir delas aspectos que podem ser decisivos para a abordagem diagnóstica e terapêutica, além de dificultarmos a criação de uma narrativa por parte do paciente que dê sentido ao seu processo de adoecimento. O declínio das doenças infecciosas, o envelhecimento da população e o concomitante aumento da prevalência das doenças crônicas determina a necessidade de um novo papel do profissional de saúde, em especial do médico, na condução dos conflitos ine-


Por que literatura e medicina?

rentes ao acompanhamento de pessoas com doenças que não têm cura, mas que muitas vezes levam a incapacidades permanentes e de longa duração. Em relação à incompreensão médico-paciente, uma das dificuldades, é sem dúvida, a barreira de linguagem criada pela terminologia técnica entre os profissionais e os pacientes. A condição clínica do paciente é interpretada e referida a ele em uma linguagem que muitas vezes ele não entende. Na alta hospitalar, menos de 1/3 entendem de que doença eles foram tratados e menos de 1/4 que tipo de terapia receberam. A entrevista médica é organizada de uma forma em que o paciente responde às perguntas feitas pelo médico, ressaltando que a pergunta inicial básica foi se transformando ao longo do tempo. Antes: “O que o senhor (ou a senhora) sente?”. Hoje: “Onde dói?”. O médico controla firmemente a organização básica da interação, abrindo e fechando cada ciclo e reconhecendo/aceitando a resposta do paciente. Outro dado significativo: os médicos, durante uma anamnese, escutam os pacientes em média 16 segundos antes de interromper seu relato. Sendo esse contato baseado em perguntas, conseguimos apenas respostas, mas não a história do paciente. História essa que poderia nos esclarecer acerca não apenas do nosso objeto, mas também do “porquê” e do “como” as demandas e sintomas do nosso interlocutor se organizam. Não é por acaso que a medicina narrativa vem tentando se desenvolver como ferramenta da prática clínica e para a reaproximação médico-paciente. Quando os médicos colhem uma boa história, tendem a pedir menos exames e encaminham menos os pacientes para outros especialistas. Não é incomum encontrarmos um paciente que tem um cardiologista, um neurologista, um gastrenterologista, etc. E existe a possibilidade muito provável desse paciente na verdade não ter seu médico, aquele que realmente sabe o que está acontecendo. E muitas vezes, é ainda pior; dentro de uma mesma especialidade, por exemplo, ele

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tem o cardiologista que trata da pressão, o cardiologista que trata da arritmia, o cardiologista que trata da anticoagulação, o cardiologista que trata do problema coronariano, e pode acontecer de ninguém tratar do paciente. Parece absurdo, mas não é. O que faz com que a anamnese não seja um conjunto de dados – e que poderia muito bem ser mais bem recolhida por um jornalista, por exemplo – não é apenas o conhecimento médico teórico para melhor realizar os questionamentos acerca dos sintomas do paciente, mas uma disponibilidade de escuta que permite a compreensão de outro ser humano que abriga uma entidade clínica. Por exemplo, o relato de “LMD, 49 anos, com queixa de dor torácica há três dias”, tentando eliminar as irrelevâncias e iluminar os conceitos clínicos e fisiopatológicos, cria uma narrativa econômica e traduz uma experiência de adoecimento subjetiva e privada em um evento objetivo e supostamente científico, muitas vezes suprimindo dessa narrativa todo o seu brilho e mesmo possibilidades potenciais de intervenção diagnóstica e terapêutica. Os médicos parecem ter diminuído sensivelmente sua disponibilidade de escuta. Em um mundo globalizado, de complexidade e incertezas crescentes, o profissional médico parece estar direcionando sua energia cada vez mais para o processo de especialização e diminuindo progressivamente sua disponibilidade para esse momento precioso e definidor de sua atuação. O avanço tecnológico não foi acompanhado de uma evolução do discurso médico. A necessidade de uma mudança no resultado do encontro médico-paciente faz com que se repense em que pontos essa relação possa ser rediscutida. A escuta médica é sem dúvida ponto fundamental nessa transformação. O médico escuta três discursos diferentes: o discurso do paciente, o discurso do professor na universidade e o da ciência. O discurso da “ciência médica” é atualmente o dominante na prática da assistência médica e isso posiciona os espaços de médicos e pacien-


Por que literatura e medicina?

tes nesse discurso. O interesse médico se desviou do doente para a doença. O hospital, como um museu de doenças, deu origem a uma nova linguagem que falasse das doenças à beira do leito. A condição do paciente é traduzida em uma linguagem que ele não consegue entender. O paciente é colocado em seu lugar como um objeto que não fala a linguagem do seu mestre. A escuta desse paciente é então precária em várias dimensões: é curta, é interrompida, não há espaço para que o discurso desse paciente crie uma identidade e consequentemente uma narrativa própria. Se as dificuldades de tradução existem inevitavelmente diante da terminologia técnica, das diferenças sociais, culturais, econômicas, o que acontece hoje no espaço de relação médico-paciente só tem feito exacerbar essas dificuldades. Para muitos a medicina não é uma ciência, ela é mais que isso: ela é interpretativa e não apenas baseada em fatos. Na medicina, a incerteza está presente todo o tempo. Mesmo na era da medicina baseada em evidências (lembrando que essas evidências existem para menos de 20% das situações clínicas e que mesmo nesses 20% essas evidências não são tão conclusivas) a capacidade de identificar-se com algo e intuir pode ser tão importante quanto a dedução lógica e o conhecimento científico. A força da ficção aparece como uma ferramenta para criar sentido e entendimento da doença em sua dimensão mais ampla e investe na ética da compreensão como uma alternativa para tentar enfrentar o mundo da incerteza: compreensão do mundo e do outro. A arte aparece como uma possibilidade concreta no processo de sensibilização do profissional médico. Através da expansão da experiência humana, da ampliação do imaginário, da capacidade de impressão e expressão, da emoção estética, a arte permite a imaginação de outras realidades e outras histórias, vivências novas que possibilitam a aproximação com o outro, o encontro com o outro. Assim como na tradução de um poema, de um livro, esse tex-

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to renasce, ganha nova vida, o encontro médico-paciente pode ser renovado e ganhar nova vida com uma escuta médica menos autoritária, com mais disponibilidade, de forma menos científica e mais gentil. Gentilezas que favoreceriam a comunicação interpessoal e que sugeririam uma orientação para o paciente como pessoa e não como caso. É de Roland Barthes a frase: “A ciência é grosseira, a vida sutil. E para corrigir essa distância é que a literatura nos importa”. É nesse contexto que estamos apresentando o projeto “Medicina e arte: literatura e narrativas médicas”, tentando religar áreas que não deveriam nunca estar distanciadas. Trata-se, portanto, de uma tentativa de corrigir a distância entre a ciência, muitas vezes grosseira, e a vida com toda sua complexidade, incerteza e sutileza. Assim, pretendemos criar, dentro do curso de medicina, um espaço do estudo entre literatura e medicina, na tentativa de ampliar o imaginário dos alunos e seu universo de compreensão. O estudo de textos literários e das narrativas médicas permitiu a edição desse Literatura e medicina: uma experiência de ensino, realizado em sua quase totalidade com textos dos alunos.


2º PARTE

Sobre os livros

Foram lidos vários textos durante o desenvolvimento do livro Literatura e medicina: uma experiência de ensino. Os alunos criaram textos sobre os livros O alienista, de Machado de Assis; Enfermaria nº 6, de Anton Tchekhov; A morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstoi; e o conto Desgraça alheia, também de Tchekhov. Como o tema da loucura esteve presente nos dois primeiros títulos, é apresentada uma introdução pela professora Aurora Barros sendo todos os demais textos de autoria dos alunos.


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Literatura e Medicina Sobre os livros

|Sobre a loucura Aurora Barros

Escrever sobre a loucura nos remete a um enigma não decifrado. Por vários séculos a loucura ocupou o centro de uma discussão até hoje presente em nossa contemporaneidade. O que é a loucura? Por se tratar de um campo não totalmente desvendado, decifrá-la passou a ser estudo de pensadores de diversas áreas do conhecimento. Delegamos à ciência, filosofia, literatura e às artes a tarefa de nos oferecerem respostas que contribuam para nos aproximar do entendimento da loucura. Assim, o tema da loucura foi adquirindo numerosas páginas escritas, formando um panorama na história de nossa civilização. Ao longo do tempo, ela foi sendo observada: Homero via os loucos como possuídos pelos deuses, à mercê de moiras, que fabricavam, teciam e cortavam o fio da vida; Sócrates, Platão e Aristóteles, através da filosofia, também se preocuparam com a loucura, ora do ponto de vista da alma ora presa ao oráculo. Mais recentemente, Hegel pensou-a com uma lógica própria da subjetividade humana. Entre deuses e demônios, mais de mil anos transcorreram. Enquanto os deuses governavam, a sociedade se compadecia da loucura, mas, sob o domínio do demônio, a loucura é possessão e como tal, deve ser destruída, queimada, açoitada e afastada do convívio.


Sobre a loucura

A Nau é posta ao mar, os loucos são viajantes, retirantes, excluídos. Exclusão que se dá sob muitas formas. Por vários séculos, encontramos os loucos misturados aos miseráveis, aos assassinos, sofrendo punições nas mãos de carrascos, encerrados em “hospitais prisão”, esquecidos e abandonados. A nomenclatura – doente mental – só chegará muito tempo depois. Enquanto esperam, os loucos são denominados de insanos, furiosos, lunáticos, frenéticos, débeis, imbecis, parvos, estúpidos. A loucura assusta, perturba o espaço social, o louco deve ser internado por mais 150 anos. O fato é que, na longa trajetória temporal, o saber sobre a loucura pouco evoluiu e, somente no século XIX, dela, efetivamente a medicina se apropria, dando-lhe “status” de “doença”. É no internamento, no século XIX, que o médico Philippe Pinel vai encontrá-los e reconhecê-los como loucos e incapazes. Sob o olhar do médico, a loucura começa a se revelar em suas diferenças. É possível iniciar uma classificação. Está instituída a psiquiatria científica. Mas onde procurar a doença? Qual a causa? Como curar? O louco não fala de sua doença, não tem domínio sobre ela, não sabe transformá-la em linguagem. Mais cem anos serão necessários para não mais mergulhá-los com violência em água quente e fria, sangrar seus corpos, colocá-los em máquinas de movimento ou em aparelhos movidos à eletricidade. A literatura mostra a loucura. Sebastian Brant escreve seu poema satírico A nau dos insensatos em 1494. Erasmo de Rotterdam em 1509 atribui causa à loucura, e escreve em Elogio da loucura: “A natureza, esta mãe produtora do gênero humano, dispôs que em coisa alguma faltasse o condimento da loucura. Segundo a definição dos estoicos o sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão prescrita, e o louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões. Eis porque Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz, achou conveniente aumentar muito mais a dose das paixões do que a da razão... Além disso, relegou a razão para um estreito cantinho da cabeça, deixando todo o resto do corpo presa das desordens e da confusão”.

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Literatura e Medicina Sobre os livros

Na arte, através da percepção e do olhar atento do artista, figuras familiares da idade média são retratadas. Hieronymus Bosch, crítico do contexto político e social de sua época e interessado nos mistérios da loucura, pinta A nave dos loucos. A loucura é percebida e denunciada. O louco aparece integrado ao conjunto de outros personagens, porém à margem, marcado pela não razão. Louco era quem perdeu a razão e o juízo. Continuava a espera do sábio, possuidor da razão, que chegaria para oferecer-lhe um lugar fora da institucionalização. A loucura apresentava causas: ficava-se louco pelo excesso de liberdade, pela sexualidade livre, pelo clima que afetava seus humores, pela religião que castigava os maus católicos e pela civilização contrária à sensibilidade. A literatura também foi acusada de ter participação na loucura. Romances, poesia e teatro despertavam sensibilidade desregrada, confundia os sentimentos, conferia à alma tudo o que havia de ruim, arrastando-a para o mundo imaginário, levando o indivíduo à perda da razão, à perda de si mesmo. Um olhar diferenciado posto na loucura chega com Pinel no novo século. Finalmente é possível a liberdade para os acorrentados, inicia-se uma consciência dos abusos cometidos nos séculos anteriores. Um novo questionamento faz pensar: até que ponto o internamento leva à loucura? O louco deve ser devolvido à sociedade, avanço que só ganhará discussão efetiva no século seguinte. Por enquanto a psiquiatria vai adquirindo um estilo médico particular, tentando investigar ora as causas orgânicas, ora a hereditariedade. De concreto, o médico se dá conta de que há muito pouco a ser feito como operador da cura e passa a escutar mais, a condenar menos, ganhando assim a confiança do doente e da sociedade. O médico passa a ser necessário. Ganha autoridade. Freud traz a novidade da escuta, percebe a importância da linguagem e investiga sobre o funcionamento da mente. Estuda os sonhos, chega ao inconsciente e revela o delírio como discurso a ser


Sobre a loucura

decifrado. Separa a neurose das outras doenças, retira as histéricas dos hospitais, estuda a perda da realidade na neurose e na psicose. Freud e Pinel marcam profundamente suas passagens pelo século XIX. Pinel na ciência médica, Freud também nas humanas, uma vez que nos demonstra o homem como um sujeito preso e torturado pela linguagem. Ambos revelaram caminhos, no entanto não puderam explicar a loucura, muitos ainda se apresentarão ao cenário médico trazendo essa resposta. Quantos mais cem anos ainda serão necessários? Não sabemos. De algum livro que li, faz tempo, retirei e guardei uma citação atribuída à Friedrich Nietzsche: “Aqueles que foram vistos dançando foram julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música”. Esse pensamento representa a nossa dificuldade em entender e decifrar a loucura. Vemos a loucura, mas algo escapa a nossa compreensão, algo está fora de nosso conhecimento. A loucura já foi definida como doença da alma, do espírito, dos humores, dos nervos e doença que não aparece no corpo. Hoje, mudamos o nome. Não mais a chamamos doença por não apresentar as características de uma doença, conforme é costume empregar essa palavra. Atualmente, usamos a palavra transtorno para denominá-la. Com a chegada dos fármacos em meio ao século XIX, a loucura pode ser contida. Um movimento antimanicomial se inicia no século seguinte. A Reforma Psiquiátrica é hoje realidade. A loucura ocupa novas discussões, novas pesquisas, o louco volta para casa sob o olhar de vários profissionais, que dele se ocupa com humanidade. A medicina aprendeu que a humanização só poderá acontecer quando houver a compreensão de que em saúde mental, não se trata apenas em combater a doença. Inicia-se uma nova trajetória de atendimento e enquanto as causas de seus transtornos não são conhecidas, o louco contido espera. O tema da loucura pede um olhar diferenciado. Através do projeto “Medicina e arte: literatura e narrativas médicas” foi possí-

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vel incluir farta discussão, com base nas diversas linguagens da literatura, cinema e teatro. Muitas são as obras que abordam a loucura. Em 1605 Cervantes escreve Dom Quixote de La Mancha retratando personagem que lê romances de cavalaria, tal leitura leva-o a perder a razão ao acreditar ser, ele próprio, um cavaleiro andante. Shakespeare, na mesma época, apresenta sua obra Rei Lear na qual o rei enlouquece. Já no século XIX, Anton Tchekhov nos oferece como personagem principal de Enfermaria nº 6 o médico Dr. Ranguin e seu destino final, internado em um hospital, na condição de doente mental. Exemplos de obras que contemplam a loucura não se esgotam seja nos clássicos ou mesmo na atualidade com Moacyr Scliar, que nos anos 1970, lança seu livro O exército de um homem só, criando um personagem louco, cuja função é construir um mundo melhor. Discutir a fronteira entre normalidade e insanidade, perceber a sociedade, na qual grande parcela de indivíduos apresenta algum transtorno mental e debater a proposta de atendimento mais humana incluída na reforma psiquiátrica, foram assuntos que a leitura focada em duas obras destacadas neste projeto – Enfermaria nº 6 de Anton Tchekhov e O alienista de Machado de Assis – puderam oferecer aos alunos desta Universidade. O escritor constrói ficção, inventa histórias e personagens com temáticas da realidade social em que vive. A loucura faz parte da civilização. Sempre haverá mal estar à espera que o escritor, em seu ofício, o apreenda e o denuncie para aqueles que se fizerem leitores. Com distanciamento, podemos ultrapassar as fronteiras da linguagem e vivenciar em uma obra literária o mal estar de uma época. Escritor e leitor são cúmplices. Um demanda o outro. Porém é necessário que o leitor esteja aberto para esse instrumento fantástico que é a leitura e faça dela, à semelhança do escritor, seu ofício. Decifrar a loucura não podemos, mas ao nos aproximarmos da literatura deciframos os mistérios da sensibilidade humana desnudados a cada obra.


Copyright © 2014 by Ana Luisa Rocha Mallet Copyright desta edição © 2014 by Livros Ilimitados COORDENAÇÃO DO PROJETO Ana Luisa Rocha Mallet COORDENAÇÃO EDITORIAL Bernardo Costa John Lee Murray EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Livros Ilimitados REVISÃO Luciana Bastos Figueiredo – A Florista Editorial PROJETO GRÁFICO Maria Carmen Ferreira CAPA Joilvo Ludolf Peixoto Maria Carmen Ferreira FOTO DA CAPA Mary Azevedo FOTO INTERNAS Luiz Vaz ISBN: 978-8566464313

DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) L776 Literatura e medicina : uma experiência de ensino / [autores Ana Luisa Rocha Mallet, Aurora Barros, Luciana Andrade, Luiz Vaz, Silvana Ferreira, Sylvia Maria Porto Pereira ... et al.]. – Rio de Janeiro : Livros Ilimitados, 2014. Primeira edição 180 p. ; 21 cm. ISBN 978-8566464313 1. Literatura e medicina. 2. Medicina na literatura. I. Alves Júnior, Alcenir Caverzan CDD- 809.93356 CRB7 5587


| O que conta o paciente ao médico? Sua dores? Seus temores? Seus rancores? Seus amores? O que o médico escuta do paciente? Seus amores? Seus rancores? Seus temores? Suas dores? Um grupo de professores levados pelo apelo da arte estimularam alunos de medicina a escrever histórias de pacientes com suas dores, amores, rancores, temores, esperanças. Talvez com isso, quando médicos forem, prestem mais atenção ao que uma história traz por trás de si; talvez se tornem médicos de boa escuta. Excelentes médicos. Esse livro é o resultado da aproximação da literatura com alunos de medicina. Luciana Andrade

ISBN: 978-8566464313

www.livrosilimitados.com.br

9 788566 464313


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