Maracanazo, a história secreta

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MARACANAZO A história secreta Da euforia ao silêncio de uma nação

1950 Atilio Garrido




Copyright © 2014 by Atilio Garrido Copyright desta edição © 2014 by Livros Ilimitados LIVROS ILIMITADOS Bernardo Costa John Lee Murray ISBN: 978-8566464320 Preparação de originais: A Florista editorial Tradução: Ana Luisa Bailac Capa, projeto gráfico e diagramação: John Lee Murray Direitos desta edição reservados à Livros Ilimitados Editora e Assessoria LTDA. Rua República do Líbano n.º 61, sala 902 – Centro Rio de Janeiro – RJ – CEP: 20061-030 Tel.: (21) 3717-4666 contato@livrosilimitados.com.br www.livrosilimitados.com.br

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APRESENTAÇÃO

Que curioso ! Historiadores brasileiros analisam com esforço, paixão e de forma dolorida esse episódio que ocorreu no dia 16 de julho de 1950, no então chamado Estádio Municipal do Rio de Janeiro. O evento foi marcado como indelével na história do futebol mundial com uma palavra: “ Maracanazo” ! Pesquisadores deste país fascinante, já escreveram uns vinte livros sobre o assunto , sempre buscando uma explicação, uma justificativa para o acontecido. Cineastas brasileiros também criaram alguns “curtas” sobre o evento, vários deles muito engenhosos como o do torcedor que quer chegar ao estádio para avisar o goleiro Barbosa que Ghiggia fará o inesquecível “gol do século”. A excelente e abrangente bibliografia que os pesquisadores brasileiros produziram sobre a Copa do Mundo de 1950 tem como o foco de estudo apenas e particularmente a última partida, muito devido ao resultado final. O aprofundamento até os mínimos detalhes fica nos 90 minutos do confronto entre Uruguai e Brasil, numa busca das causas que geraram o tremendo contraste esportivo, com atenção em determinadas ações e incidentes do jogo. Assim apareceu o goleiro Barbosa como o grande transformador, o “bode expiatório”, o principal culpado do imenso fracasso. Injusto, na minha opinião. Um episódio casual, típico do futebol, estrelado por Bigode e Obdulio Varela e principalmente Ghiggia , este responsável pela demonização da zaga do scratch, outra atitude também injusta na minha opinião. Os acontecimentos chocantes que ocorreram na vida das sociedades e dos seres-humanos, e do “ Maracanazo”, não têm origem numa única causa . Sempre há, inevitavelmente , uma convergência de fatores , circunstâncias e mesmo a influência do destino ou da sorte, para gerá-los . Neste caso específico e particular, nenhum dos textos dos qualificados autores brasileiros mencionou, nem por alto, um importante episódio que condicionou qualquer análise prévia do resultado da final. Apenas 72 dias antes de 16 de julho de 1950, o Uruguai venceu o Brasil pelo placar de 4 X 3, em São Paulo, no primeiro jogo da Copa Barão do Rio Branco, um torneio importante nessas décadas, anual, em que as seleções sempre se enfrentavam. “Aquele” Uruguai que se apresentou no Pacaembu se apresentou nas piores condições. Sem treinador,


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em meio a uma profunda crise causada por uma disputa de poder na Asociación Uruguaya de Fútbol (Associação de Futebol do Uruguai - AFA), com vários jogadores sem condição física necessária e com um novato - Alcides Edgardo Ghiggia, que nunca havia vestido a camisa azul celeste anteriormente de forma oficial. Será que não é válido refletir sobre este episódio que os escritores brasileiros completamente esqueceram? Não era esta uma amostra de que o Brasil não era invencível, muito menos jogando contra o Uruguai ? No meu ponto de vista, é surpreendente que nenhum jornal no Rio de Janeiro e de São Paulo, nos dias de véspera do Maracanazo, quando a onda imparável de euforia inicial do “Já Ganhou ! “ sequer mencionara este episódio, nem para alertar sobre uma interrogação sobre o poder da equipe que iria se opor ao Brasil. Precisamente por esta razão, é que me fica clara a atitude dos historiadores brasileiros de não mencionarem em seus escritos este marco inevitável. Como fruto de uma pesquisa que realizei sobre o assunto por mais de 15 anos, identifico outros eventos, como o acima citado, que deixam claro que a equipe do Brasil de modo algum poderia ser considerada um “super time”. Que o destino , essa força oculta feita de névoa e sonhos, cuja a ordenação dos assuntos humanos são sinalizadas, também não jogou junto com o Brasil . Só assim se explica a fragilização da saúde do todo-poderoso Presidente da CBD, Dr. Rivadavia Correa Meyer, cujas costas, que desde 1943, carregavam todo o peso da responsabilidade de organizar uma Copa do Mundo e da performance da seleção, estando sempre em contato com o técnico Flavio Costa. Sua ausência no episódio causada por sua frágil saúde, sem dúvida, foi outra causa importante para o fracasso. O barco ficou sem capitão e sem rumo... Finalmente, referindo-se ao futebol brasileiro daquela época, à organização da Copa do Mundo de 1950 e a construção do Estádio Municipal, este livro que você, amigo Leitor tem em suas mãos, começa a narrar a “ verdade histórica “ muito pouco conhecida e difundida sobre a tentativa de transformação do futebol brasileiro, que na época era a terceira força na América do Sul. Como sabemos, num futuro próximo, o Brasil se transformaria na potência quase invencível. Nesse sentido, copiando as práticas fascistas de Benito Mussolini na Itália, Getúlio Vargas investiu grande esforço nesta transformação desde que chegou ao poder como a primeira figura no cenário político do Brasil desde 1930. Deve-se a ele e aos generais tenham depositado no governo e a inteligência suprema do Dr. Osvaldo Aranha e seus irmãos, inclusive um deles foi Presidente da CBD entre 1936 e 1943, e outro Diretor do Vasco da Gama, equipe base da seleção. A partir do governo de Getúlio Vargas, todos os esportes e principalmente o futebol, foram conduzidos pelo Estado. O esporte foi utili-


Maracanazo, A História Secreta | 11 zado como veículo de popularização política de Getúlio. Conforme você lerá em maiores detalhes no livro, aqueles políticos que governaram o Brasil a partir dos anos 30 buscaram copiar Mussolini na utilização do esporte para popularização política. Colocaram em ação um plano para tornar a seleção campeã da Copa de 1938 e logo em seguida organizar a Copa de mundo de 1942. O nascimento do Brasil como uma grande potência futebolística de primeiro nível seria uma grande mérito do regime. O destino novamente pregou uma peça. A Segunda Guerra Mundial foi a grande “estraga-prazeres”. Entretanto, quando o fogo dos canhões se apagaram, o sonho renasceu. Getúlio não estava no poder, substituído por aqueles que com ele formavam um estreito círculo militar, mas que o traíram, além de outros que chegaram com a ascenção ao poder do Marechal Gaspar Dutra, principalmente o General Angelo de Moraes. A ideia de um Brasil forte nos esportes continuou e a marcha teve sua força redobrada. Neste caso o objetivo estava muito claro. O Brasil como Campeão do Mundo em 1950 se converteria como uma grande bandeira do governo para triunfar nas eleições de outubro deste mesmo ano. Ao contrário do que aconteceu no Brasil, onde a história ficou registrada de maneira muito forte, no Uruguai, o Maracanazo apenas contava com dois livros escritos por colegas de grande prestígio, ambos com uma particularidade em comum. Ambas as obras vieram à luz no século XXI, o primeiro em 2000 (“Maracaná – Los labirintos del carácter”, de Franklin Morales). O seguinte lançado em 2013 (“Em la cumbre de las hazanas”, de José Eduardo Picerno). O cinquentenário da conquista foi celebrada sem textos que abordassem de forma profunda o episódio. O fato ocorrido naquela tarde de sol carioca foi tratado como uma lenda, um acontecimento milagroso e heroico. A ausência de um rigor “desapaixonado” na investigação dos fatos e que foram publicados ao longo do tempo no Uruguai transformou a realidade em fantasia, e deixou de lado o que era evidente. Arquivaram um feito transcendente, que foi expressamente omitido. Reconhecê-lo significava deixar a trama sem um roteiro guia. Desse modo deram vida à lenda, na tentativa de enterrar definitivamente uma “verdade histórica”. Qual ? Uma única muito simples, a mãe de todas as vitórias futebolísticas do passado, presente e futuro. Nesse preciso momento, o futebol uruguaio era superior ao brasileiro ! Sempre se mantinha nas primeiras colocações das competições internacionais, junto com a Argentina ! Em meio um cenário que tinha a Europa iniciando a reconstrução depois da devastação ocasionada pela Segunda Guerra Mundial, aqui perto, no Rio da Prata, se praticava o melhor futebol no planeta.


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Justamente, ao chegar na metade exata do século XX, novamente por obra da mãe natureza, Uruguai tinha uma quantidade numerosa de jogadores com características notáveis, ainda jovens com uma particularidade difícil de se encontrar... Todos eram atacantes. Essa juventude chegava ao primeiro plano num momento justo, para compor uma mescla perfeita com os veteranos, também com grande qualidade, que atuavam na defesa, já com experiência nos campos da América do Sul, competindo em alto nível nos campeonatos sul-americanos. Por obra da casualidade, o Uruguai gozaria do benefício de contar com a reunião da melhor equipe do mundo, no momento, repetindo o grande acontecimento da década de 20, com invencível geração capitaneada por José Nasazzi. No entanto, este simples valor intrínseco, que se relaciona com o essencial de uma partida de futebol – ser melhor do que o adversário – se ocultou no Uruguai por aqueles que construíram uma narração maravilhosa que confunde e mistura os fatos sob o rótulo de “o feito”. Claro que conquistar a Copa do Mundo foi um episódio ilustre e heroico, ainda mais nas entranhas do Maracanã, quando absolutamente tudo estava preparado pra a grande festa do Brasil regada ao lema petulante e antecipado de “Já ganhamos”! As circunstâncias em que o Uruguai alcançou o objetivo agrega elementos de enorme valor a esta realização e aumenta o mérito dos ‘celestes”. Atuando frente a uma multidão de 200 mil espectadores, nunca registrada em nenhum estádio de futebol do planeta e aplicando uma virada após sair em desvantagem no placar. Essas características demonstram que aquele “punhado” de uruguaios estava garrido com um alto grau de valentia, elevada moral, enorme espírito de luta, rebeldia interior para superar os contratempos, além da consciência de que sacrifício era necessária para realizar que “quando aconteceu o gol de Ghiggia, se instalara o silêncio no Maracanã, o silêncio mais retumbante da história”, parafraseando a mais que adequada definição do escritor Eduardo Galeano. Mas, sejamos sinceros, essas qualidades inerentes à personalidade dos seres humanos não eram patrimônio exclusivo dos orientais. Nem o simples fato de expor essas qualidades dentro de campo de jogo significam a vitória numa partida decisiva. É necessário saber jogar futebol melhor que o rival e contar com uma formação dentro de campo que os valores que formam a capacidade individual do jogador sejam respaldados por uma sólida, vitoriosa e gloriosa trajetória desportiva da camisa que se defende ! Neste caso, a “Celeste’ também superava amplamente os donos da casa. A seleção uruguaia chegou com uma lista de títulos importantes conquistados em um passado recente. Três títulos de Campeão do Mundo e oito títulos e Campeão Sul-americano, com a metade


Maracanazo, A História Secreta | 13 deles conquistados na qualidade de visitante. Superava amplamente seu rival neste aspecto. Brasil tinha apenas três títulos de Campeão Sul-americano, com os três obtidos na qualidade de visitante, sendo que dois deles (1922 e 1949) em condições questionáveis, que desmereciam o mérito das conquistas. No Uruguai, a imensa maioria qualificou mais a qualidade pessoal e individual dos jogadores, como feitos individuais, ao invés de agregar a essa crítica um olhar também voltado para o valor do time, do conjunto, que foi o maior componente para a equipe conseguir uma vitória épica. O Uruguai apresentou o Maracanã a melhor equipe de futebol do mundo naquele momento. Grande, genial, com um grupo de jogadores notáveis, que conseguiram conquistar a Copa mesmo com vários erros de organização cometidos pela AFU (Asociación Uruguaya de Fútbol). Muitos criticaram a vitória uruguaia, cometendo o pecado de depreciar a realidade desportiva em que o país vivia. Sem precisar ir mais longe, nesse mesmo momento da Copa do Mundo de 1950 e na própria terra onde se colocava em jogo o troféu chamado Jules Rimet, o esporte uruguaio impôs uma grande superioridade frente ao Brasil, em diversas modalidades. O atleta uruguaio Oscar Moreira ganhou no Rio de Janeiro a tradicional “Corrida das Fogueiras”, sobre 8.800 participantes. O mesmo atleta disputou sete dias depois também na cidade carioca, e ganhou a prova “Rocha Miranda”, de sete quilômetros com 2 mil atletas participantes. Muito premiado na América, em 1947 foi o primeiro estrangeiro a ganhar a famosa “Corrida de São Silvestre” em São Paulo. Oito dias antes do Maracanazo, o uruguaio José Gómez Tacconi conquistou a prova internacional de ciclismo chamada “9 e Julho”, em São Paulo. Participaram 630 ciclistas que também não foram páreos para equipe celeste, que também nesta categoria (equipe) obteve triunfo. Fizeram parte da equipe: Roberto Piotto, Luis Ángel de los Santos, Virgilio Pereyra e Sergio Frausin. Este ciclistas pertenceram ao núcleo dos principais ciclistas do mundo naquela época. Outro também, Atilio François alcançou em 1947, em Paris, a consagração ao sagrar-se vice-campeão mundial nas provas de “perseguição individual”. Esta conquista se agregou a uma década de protagonismo indiscutível, com o título de Campeão Pan-americano e ganhado das Mil Milhas Argentinas. Em Londres, no ano de 1948, Leonel Rocca perdeu a medalha de bronze, ficando em quarto lugar na categoria de velocidade pura, enquanto o quarteto de velocidade (perseguição individual) com o mesmo Atilio François, Juan de Armas, Luis A. de los Santos e Waldemar Bernastzky não alcançou o bronze por pouco, contra a Grã Bretanha, ficando em quarto lugar na prova a França ganhou ouro e Itália, a prata.


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O Maracanazo não foi um acontecimento desportivo isolado para aquele Uruguai pujante e democrático, que contava com os menores índices de pobreza de todo o continente. Com certeza não foi um fato isolado. Não foi um oásis de triunfo em meio a um deserto de fracassos desportivos. Aquele futebol uruguaio montado m cima de glória, foi uma expressão mais de um país que pensava e agia grande. Somente assim conseguimos entender a trajetória do tacuaremboense (quem nasce em Tacuarembó, interior do Uruguai) Juan Jacinto López testa, no Torneio Internacional da Argentina de 1947. Nessa ocasião igualou o recorde mundial dos 100 metros rasos com10´2/10, com a mesma marca estabelecida pelo norte-americano Jesse Owens, em 1936. Apesar de não ter sido homologado, no ano seguinte, nos Jogos Olímpicos de Londres, “El Gamo” – como o chamavam – chegou às semifinais com uma marca de 10´4/10, somente um décimo e segundo a mais que o norte-americano Harrison Dillard, ganhador do ouro. Nesses mesmos jogos, Hércules Ascune, com um salto de 1,90 metros, ficou a 8 centímetros da medalha de ouro. Ainda nos jogos londrinos, o remador Eduardo Risso “voou” sobre as águas do Rio Tamisa para voltar para casa com a medalha de prata no individual. A dupla formada por Juan Antonio Rodriguez e William Jones conquistaram o bronze no duplo sem timoneiro. No basquete, naquele tempo o Uruguai também liderava na América do Sul. Numa equipe que também tinha seu “Obdulio”, personificado pela imponente figura de Roberto Lovera. Alcançou o que hoje seria um sonho. Quinta colocação em Londres, 1948, despois de vencer o dono da casa (Grã Bretanha) por 69 a 17; a Itália por 46 a 34 e a Hungria por 49 a 31. Caindo por dois pontos frente ao Brasil, que ficou com o terceiro lugar. Com esta mesma equipe mais alguns jovens, quatro anos mais tarde, nos jogos de Helsinki, conseguiu uma grande conquista, o bronze, ficando atrás somente de Estados Unidos e União Soviética. Nos jogos de 1956 em Melbourne, conseguiu a consagração de Oscar Moglia, como maior pontuador dos jogos. Neste período, o basquetebol uruguaio alcançou o título de Campeão Sul-americano em quatro ocasiões. Na minha opinião, a melhor reflexão sobre o Maracanazo foi feita Prof. Lincoln Maiztegui Casas, no livro “Orientales” (Uma historia politica del Uruguay, tomo 3). Não cometo equívocos se afirmo que a tarefa de investigação que realizei e hoje público neste livro, se apoia no pensamento do proeminente pensador. “Sua conversão em lenda épica terminou se convertendo em um fato culturalmente negativo. Entendeu-se entre os jovens que o Uruguai venceu a partida porque os uruguaios são mais valentes, mais másculos, mais vivos que


Maracanazo, A História Secreta | 15 os demais, que os outros se encolhem nos momentos decisivos enquanto os uruguaios se engrandecem. Desta forma, se transforma o mais esplendoroso dos êxitos desportivo em um acontecimento xenofóbico e autocomplacente. Daí, entre muitos outros vícios, a tendência a esperar sempre um milagre; os outros trabalham, aprendem, se sacrificam, enquanto nós confiamos no improviso e na abundância de testosterona do nossos jogadores. E, no momento chave, pensamos que o Uruguai é a equipe dos milagres. Mesmo a inundação de derrotas sofridas ao longo de décadas , a notória decadência do futebol praticado no país, ou na imagem de péssimos desportistas que essa política nos há gerado internacionalmente, tem sido bastante para espalhar essa mitologia absurda (...) Maracanã tem um papel curioso e contraditório na consciência do país, Uruguai. Por um lado, nos lembra o que fomos, o que ouvimos conquistar, conforme dizia a canção. Por outro lado, nos castiga com a evidência de que já não somos o que desejamos, que permitimos cair o que tínhamos no bolso quando nos furaram as calças. Por isso tem o sabor agridoce das memórias queridas, que iluminam a alma e a espremem ao expressá-las em lágrimas. Maracanã é ainda mais doloroso do que a consciência da juventude perdida, porque o murchar desta flor é inevitável, enquanto a outra – laurel de um dia – marca nossa falha de caráter ardente e nossa estupidez. Significa então muito mais que uma partida de futebol (embora só signifique isso mesmo); significa o fio gelado da ponta de um punhal de prata cravado no coração, uma corrente de água clara que um dia se transformou em sangue, uma bússola invertida. Uma lição tremenda da história, de forma definitiva. Por isso é sempre gratificante reviver aquele plácido dia de inverno, como as tarde encantadas que evocamos da época da infância. O Uruguai venceu aquela memorável final porque tinha um time magnífico, sem dúvida. E claro, sorte também ajuda. Mas porque especialmente porque seus jogadores expressavam a mentalidade de um país otimista e confiante em suas próprias possibilidades, que ainda acreditava no valor do trabalho e do esforço pessoal. Um país que era conhecido na América e estava orgulhoso desta excepcionalidade, antes de um suicídio pan-americanista suicida que foi criando uma ideia de que era melhor parecermos com uma republiqueta sul-americana da França. Não se conhece melhor forma de se conseguir algo que não seja se cometer. Alguém pensará que se o chute de Ghiggia tivesse batido na trave ao invés de entrar, não estaríamos dizendo isto. Maracanã foi a mais esplendorosa das conquistas desportivas, mas não a única. (...) Este nível alcançava todos os planos de uma sociedade pobre, cheia de problemas não resolvidos, mas integrados e cheios de fé em que se podia cons-


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truir um futuro melhor. Um dia qualquer de um ano qualquer, erramos o caminho. O culto ao esforço se converteu em “esperteza”, a garra entendida como meio de transpor adversidades se transformou em malandragem, e começamos a admirar a ditadura cubana ante ao parlamentarismo britânico. E fomos para o diabo. Todo o resto veio junto e foi além. Por isso Maracanã resulta hoje numa memória ambígua, que nos orgulha e nos machucamos igualmente. Ainda que aquele chute do Ghiggia não tivesse entrado , teríamos razões para confiar em nós mesmos e no nosso futuro”. Esta obra que você, amigo leitor, começa a ler é fruto de quinze anos de investigações, entrevistas e pesquisas documentais que respaldam tudo que por aqui expresso. Por isso, na minha opinião, constitui-se uma cronologia dos fatos ocorridos antes e durante a Copa do Mundo de 1950, que se mostram tal como são. Com suas luzes, sombras e contrastes. Como resultado de sua leitura e análise, serão absolvidos de culpa os jogadores do Brasil, especialmente Barbosa e Bigode, tão injustamente condenados. Mesmo assim, se a experiência é a somados erros cometidos, o meu principal desejo é que este livro contribua para que a atual seleção do Brasil, seus dirigentes, técnicos e jogadores, tirem concussões positivas para não repetirem os erros que em 1950 causaram o fracasso. Meu desejo é de coração porque este grande país que é o Brasil me presenteou com um irmão espiritual. Este é Kleber Leite, um ser humano excepcional, a quem dedico este livro com toda a emoção e com a esperança de que o próximo 13 de julho de 2014, no mesmo Maracanã, nos confundamos num apertado abraço, festejando o título de Brasil Campão do Mundo. O mesmo que foi negado 64 anos atrás...

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CAPÍTULO 9 A final que o Brasil não pensou As goleadas na Suécia e na Espanha sepultaram a realidade. As vaias que o scratch recebeu nas partidas nas partidas de junho, contra times fracos de gaúchos e paulistas, foram arquivadas. As críticas da imprensa sobre a falta de uma defesa sólida foram esquecidas. O bom time do Brasil passou a ser “uma máquina imbatível”. Os uruguaios mantinham a serena confiança, baseada na estatística favorável, na experiência pessoal colhida durante uma década de enfrentar os brasileiros e, especialmente, na lembrança recente das três partidas jogadas em maio daquele mesmo ano de 1950. A defesa celeste conhecia os atacantes do Brasil de cor. E o Uruguai, com a entrada de alguns jovens atrevidos e recém-chegados na primeira divisão (Ghiggia, Julio Perez, Míguez e, em parte, Schiaffino), voltava a ter o melhor time de futebol do mundo. No Uruguai, não alertaram para esse fato! Só o punhado de jogadores conhecia a realidade.

Gambetta ficou dormindo no vestiário Milhares de pessoas dormiram nas ruas das imediações do Estádio Municipal do bairro Maracanã, na madrugada daquele domingo 16 de julho de 1950. Às seis da manhã, milhares de torcedores formavam longas filas em frente aos portões de acesso, cuja hora de abertura estava prevista para as onze. Um batalhão de 5 mil policiais, reforçado com ajuda especial das forças navais, militares e aéreas, encontrava-se alerta para impedir qualquer distúrbio que pudesse repetir as cenas vividas na partida contra a Espanha. Naquele dia, 260 pessoas saíram feridas. Inúmeras ambulâncias estacionadas junto ao estádio aguardavam para auxiliar aos possíveis feridos. Às 9h30 da manhã, os agentes entraram em ação. Não mediram esforços a fim de evitar que as grandes avalanches de espectadores forçassem as enormes portas de acesso. Por disposição dos dirigentes, para evitar qualquer surpresa, tais como as aglomerações de trânsito, a delegação do Uruguai saiu cedo do Hotel Paissandu rumo ao Estádio Municipal. Às 11h30, comeram um almoço leve: carne com salada, caldo e fruta. Ao meio-dia e meia, a delegação saiu sem patrulhamento, agentes da segurança, ou motos da policía, que poderiam abrir caminho para a


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Kombi. Essas ações de prevenção, tão comuns hoje em dia, naquela época não eram necessárias. O deslocamento se deu na mais absoluta tranquilidade. Ao chegar ao cenário, rodeado por uma multidão que tentava entrar, os jogadores observaram o panorama sem sobressaltos. Quase todos tinham tido experiências daquele tipo. Sem ir muito longe, cada partida entre Nacional e Peñarol, nos tempos em que transmissão “ao vivo na TV” não existia, gerava uma situação bastante parecida à que agora tinham diante de seus olhos. Os torcedores não reconheceram os uruguaios. A Kombi na qual se deslocavam era similar a muitas outras que chegavam com excursões contratadas por fãs do interior do país e do exterior. O brasileiro que dirigia aquele típico veículo da época chegou em frente a um portão, tocou a buzina, se identificou, abriram-lhe as portas e ele se dirigiu à entrada dos vestiários. A multidão continuou sem “descobrir” quem eram aqueles garotos... Apenas duas horas separavam-nos do começo da partida. O eterno “Matucho” Fígoli (21/08/1988-26/07/1951), o homem faz-tudo que acompanhava os uruguaios desde 1924, e o amigo dos jogadores – o jovem Mario Álvarez –, que se inscrevera como ajudante, jogaram no chão uns colchonetes utilizados para realizar exercícios, deitando sobre elas para descansar. O “Mono” Gambetta caiu no sono. Foi acordado quando o alemão Juan Kirschberg (Hamburgo, 26/04/1985-Montevidéu, 27/04/1984) e Carlos Abate iniciaram as tarefas de massagear os jogadores sobre a mesa de madeira, com aquele óleo fedorento, utilizado pelas mãos que esquentavam os músculos.

Julio Perez com camisa diferente do resto do time Naquela época, as chuteiras de futebol não tinham marca. Os roupeiros ainda não eram uma das figuras obrigatórias de uma delegação de futebol. O jogador se encarregava de conservar e cuidar de sua própria roupa de jogo e também da chuteira. Alguns passavam gordura no couro e graxa preta, tirando o brilho com a escova. Todos utilizavam o tripé – um apoio de ferro, onde se colocava a chuteira com a sola virada para cima – e cravavam três tampas na sola e as agarradeiras (barras horizontais de lado a lado) na parte dianteira. Houve um incidente que revelou como era o caráter imprevisível de Obdulio Varela. O fotógrafo Alfredo Testoni, enviado especial pelo El Debate, encontrou o capitão com o martelo em mãos, acomodando suas chuteiras no tripé. Ele não hesitou e fotografou aquele instante. Obdulio reagiu violentamente. Tomou em suas mãos o pesado elemento de ferro e atirou em cima do fotógrafo. As águas depois se acalmaram.


Maracanazo, A História Secreta | 303 Com as roupas (camisa, short e meias) que cada jogador usava, acontecia a mesma coisa. Depois de recebê-las, eles eram os responsáveis por cuidar delas, o que incluía, obviamente, a lavagem. Nos anos finais do século XX, observando detalhadamente as filmagens disponíveis da partida contra o Brasil, nas fotos das comemorações dos jogadores, uma vez terminado o encontro, percebi algo que me surpreendeu. Tirei a fita de trás, ativei a câmera lenta e o que descobri foi insólito. Naquela tarde inesquecível, Julio Perez apareceu com uma camisa diferente à de seus companheiros! Todos, menos ele, utilizaram a camisa celeste com o número grande de cor vermelha estampado nas costas. A de Julio tinha o nº 8 sobre um retângulo branco grudado no tecido. Peguei o telefone, liguei e comentei sobre o episódio com ele. “Eu joguei com uma camisa diferente? Não sei. Nos deram dois jogos de roupas. Tínhamos de lavá-las e cuidar delas. Eu peguei a que estava seca...” Vai saber o que aconteceu! A filmagem não deixa lugar para dúvida. A camisa que Julio usou no Maracanã é a mesma que os uruguaios usaram no primeiro jogo da VII Copa Rio Branco, disputada contra o Brasil em São Paulo, em 6 de maio desse mesmo ano de 1950. Julio Perez levou a gloriosa camisa celeste de 16 de julho a San Cono, em Florida, cumprindo uma promessa. A fotografia em primeiro plano desse troféu, que está conservado na igreja, também não deixa margem a erros. Com a primeira edição deste livro posta em circulação, a esposa de Julio Perez explicou o ocorrido. “Acontece que ‘Matucho’ Fígoli, que estava nessas coisas da roupa, se deu conta de que faltava uma camiseta”, contou Glady. “A nº 8. Então ele pegou o nº 18 de uma camisa que tinha, cortou o 1 fora, costurou sobre um pedaço de pano branco sobre uma camisa que tinha o nº 15 em vermelho, estampado como as demais. Agora, em 1951, veio a Montevidéu o ator mexicano Mario Moreno, ‘Cantinflas’, e ao ser entrevistado por Novel Valentini na rádio, ele disse que um dos Campeõs do Mundo lhe havia dado a camisa de presente. E ‘Cantinflas’ disse: ‘Me deu a nº 8’. Julio estava escutando e ficou com muita raiva. Olha quem tinha levado a camiseta!”

“Um ovo em cada sapato e… vamos em frente!” Aqueles também não eram tempos em que o treinador fazia longas “conversas técnicas” com os jogadores, que escutavam as indicações sobre como jogar e a forma de destruir as virtudes do adversário. “Depois das massagens, vestimos as camisas e, quando estávamos prontos para ir para o campo, tudo o que Juancito nos disse foi isto: ‘Bom, meninos, agora um ovo em cada sapato e vamos em frente’. Depois, no túnel antes de subir


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as escadas para entrar em campo, Obdulio nos juntou e disse: ‘Os lá de fora são de madeira; se ganharmos, seremos Campeões’. Em seguida, todos juntos começamos a cantar ‘Comecem a descascar as vagens’, que era a música que todos mundo sabia e, de vez em quando, a gente cantava essa música. Quem cantava melhor era Juan Carlos González.” Declaração de Alcides Edgardo Ghiggia (in: O Gol do Século. 2000, pp. 73). Com os dois times “velando as armas” nos vestiários, lá fora a multidão aumentava a cada minuto que se passava. Apesar da presença de policiais, os muros foram insuficientes para conter a massa de torcedores, tendo sido registrada uma invasão em todos os setores, o que fez com que, segundo estimativas, fosse registrada a maior plateia da história numa partida de futebol: 200 mil espectadores. A informação oficial sobre os pagantes, distribuída pela CBD, foi de 173.850 entradas vendidas, com 6.242.950 de cruzeiros arrecadados. Naquela época, não existia a desconfiança que hoje em dia rodeia o futebol em todo o mundo, se antes olharmos detalhadamente para a trajetória dos homens encarregados da justiça. Produto desta realidade, ao observar todos os jornais que eu pesquisei nas Bibliotecas de Montevidéu e Rio de Janeiro, não encontrei nenhuma menção em destaque sobre o responsável por arbitrar o transcendental encontro. Nem mesmo um quadradinho sobre suas atuações anteriores da arbitragem durante o evento. Nada. Apenas a informação mencionada com os detalhes prévios ao jogo: “Juiz: George Reader (Inglaterra)”. Em outros periódicos, a notícia se completava falando sobre os “auxiliares”, como então eram chamados os juízes de linha: “Mr. Arthur Ellis (Inglaterra) e George Mitchell (Escócia)”.

Offside no gol do Brasil e um pênalti não marcado em cima de Morán Na imprensa, não houve destaque para uma curiosidade relacionada aos condutores dos jogos nos quais o Brasil atuou. Em todas as ocasiões, com exceção do confronto perante a Suíça, arbitrado pelo espanhol Ramón B. Azon, a administração da justiça caiu nas mãos de juízes ingleses. Agora, para a final e pela única vez durante o evento, os três homens responsáveis pela arbitragem seriam britânicos. É muito possível que a escolha de George Reader para a partida onde se definiria o título de campeão tenha se baseado no fato de que ele conhecia os dois rivais. Havia apitado na partida inaugural da Copa, Brasil x México no Maracanã, e foi o juiz da estreia do Uruguai no jogo contra a Bolívia, no Parque Independência, de Belo Horizonte. As goleadas dos vencedores facilitaram a sua tarefa.


Maracanazo, A História Secreta | 305 Sem ter o registro da filmagem total da partida, os elementos para julgar seu desempenho surgem de situações questionadas durante o jogo. Neste sentido, sua actuação foi favorável ao Brasil. No gol do Brasil, marcado no começo do segundo tempo, Friaça estava em posição de impedimento (offside). No ano 2001, sob as mesmas traves onde tinha tomado o gol, Máspoli me explicou sobre o incidente com luxo de detalhes, reiterando permanentemente que o autor da conquista estaria em posição adiantada. A infração deveria ter sido assinalada pelo auxiliar escocês Mitchell? É possível, mas, naqueles tempos, os juízes de linha não contavam com a autoridade que eles têm hoje em dia. À margem desta questionada jogada, Reader se distanciou do regulamento em outra ocasião descrita nas crônicas sobre a partida, não só nos jornais uruguaios, como também nos escritórios das agências internacionais de notícias, tradicionalmente imparciais. Poucos minutos depois do gol do Brasil, um pênalti claro de Augusto em cima de Morán não foi marcado pelo árbitro inglês.

“Ei! Não sejam tolos! Tirem uma foto aqui dos Campeões do Mundo!” Vou recorrer à crônica do Acción, publicada na edição vespertina daquele domingo, para narrar a festa prévia que se viveu no Maracanã desde o momento em que os torcedores puderam entrar no estádio. Foi a mais completa e detalhada que eu encontrei, e descrevia cronologicamente cada sucesso. Nos aspectos que entendo como oportunos, vou incluir a ampliação dos mesmos, com o resultado obtido de minha investigação em determinados sucessos narrados na reportagem. “No Maracanã, aquele ar cinzento desapareceu completamente e suas instalações foram tomadas por milhares e milhares de espectadores que trajavam cores alegres, com destaque para as cores fortes das roupas das mulheres que, também em grande número, ocupavam as arquibancadas. A música e a alegria, assim como as grandes caixas de som, não cessavam um minuto sequer, e distraíam o público, fazendo o tempo correr mais rápido. Numerosas bandas de instrumentos musicais desciam até o campo, que era de um verde magnífico, e nele se destacavam as linhas retas e brancas, muito brancas de cal, que demarcavam o terreno, as áreas e o centro. No intervalo, lá no espaço azul, subiam balões e bolas maravilhosas, que traziam enormes cartazes com dizeres e elogios ao prefeito do Rio pela obra do estádio, assim como aos jogadores pelo esforço que teriam de fazer para vencer, e outros ainda que já cantavam vitória. Enquanto as bandas permaneceram em campo, o público fez silêncio para ouvir a música, mas assim que elas se retiraram, brotou na multidão uma enorme algazarra, que ecoava e se elevava, formada por vozes humanas e


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estranhos instrumentos de ruídos e explosões cada vez mais violentos, que pareciam comover até as bases do imenso estádio. Às 14h38 em ponto, a seleção brasileira fez sua aparição no magnífico cenário da luta, e foram recebidos por uma estrondosa ovação incessante, que se prolongava e voltava a ressurgir com novo ímpeto quando parecia que o esforço da plateia já havia chegado ao máximo. As explosões de bombas e foguetes se multiplicaram quando milhares e milhares de vozes entoavam o hino pátrio, executado pela Banda Municipal do Rio de Janeiro, provocando a mais profunda emoção na enorme massa de espectadores. Minutos depois, foi a vez dos integrantes do combinando uruguaio fazerem a sua aparição. Eles também foram recebidos com carinho pelo público em algumas instalações e pequenos setores. E pudemos observar que, por seu entusiasmo e emoção, os jogadores do Uruguai haviam chegado com a garra de sempre e a demonstração inesgotável de otimismo e entusiasmo que lhes era peculiar.” A quase simultaneidade com que as duas seleções emergiram dos túneis – insisto, em tempos de organização precária ou quase nula – fez com que cada um, por sua vez, pudesse pousar para os fotógrafos. Obviamente, quase todos correram ansiosamente na tentativa de eternizar a imagem dos brasileiros. A poucos metros, o time uruguaio se alinhava como costumavam pousar. Os atacantes agachados e a defesa de pé. Foi nesse momento que “Cato” Tejera, tradicionalmente contido e de poucas palavras, deu um grito con seu vozeirão, olhando a cena que, em tempos modernos do jornalismo, seria definida como “uma nuvem de fotógrafos” que corriam apressados para registrar a imagem da seleção brasileira: “Ei! Não sejam tolos! Tirem uma foto aqui dos Campeões do Mundo...”. Isso gerou uma risada de alguns quem estavam perto de Tejera e assim ficou para sempre o registro da foto de “Cato” com um sorriso de orelha a orelha após a piada que ele mesmo tinha feito, e Julio Perez também. De pé, Carlos Abate e Matías González estão apenas sorrindo. O registro gráfico anunciado do Campeão do Mundo ficou apenas naquelas enormes máquinas de parcos cinco ou seis profissionais da câmera que captaram a imagem. Os fotógrafos dos jornais uruguaios (El País e El Plata da mesma empresa, El Día, El Debate, La Tribuna Popular, El Diario e La Mañana também de uma mesma empresa, e Acción) e dois ou três das agências de notícias. Mais ninguém. Apenas uma mão cheia.

O prefeito do Rio cumprimenta os “vencedores da Copa do Mundo” “Momentos antes de iniciar a disputa, os componentes de uma empresa de fusileiros navais entraram no field com seu uniforme de gala – paletó verme-


Maracanazo, A História Secreta | 307 lho, com calças e polainas brancas – e, portando, com seus fusis em punho. Esses militares formaram a guarda de honra quando as bandeiras do Uruguai e Brasil foram içadas ao executarem os hinos dos dois países participantes, escutados com profundo respeito. O prefeito do Rio, General Angelo Mendes de Morais, se dirigiu aos integrantes de ambos os lados, expressando que eles deveriam se empenhar ao juntar todas as energias na luta, que refletiria a honra dos países ali representados, e que aguardassem o resultado da disputa para festejá-la com o entusiasmo digno dos povos que prestam seu apoio a estas magníficas demostrações da cultura física. Em seguida, ele fez um discurso para os jogadores brasileiros, exaltando para o fato de que teriam de colocar todos os seus esforços na busca da vitória.” Sendo o principal responsável pelo “já ganhamos!” que invadiu as ruas de todo o país, chegando a tal grau que o adversário do Brasil na final não importaria, o prefeito tinha claras expectativas políticas para o futuro do Brasil. Era um militar do núcleo do presidente da República, que se encontrava a seu lado. Ele aproveitou o momento para iniciar um discurso, vestindo o traje de líder e comandante. Imperativamente, ele depositou toda a responsabilidade sobre as costas dos 11 jogadores... “Vós, brasileiros, a quem eu considero os vencedores da Copa do Mundo... Vós jogadores, que em menos de poucos minutos sereis aclamados campeões por milhões de compatriotas... Vós, que não possuís rivais em todo o hemisfério... Vós, que superais qualquer outro competidor... Vós, que eu já saúdo como vencedores!” Com o passar do tempo, no final do século XX, vários dos jogadores brasileiros que estavam em campo naquela tarde, escutando as palavras da autoridade do governo, apontaram que o discurso serviu para colocar toda a responsabilidade nos futebolistas, que também achavam que já tinham conquistado o título antes mesmo de jogar a final. “De repente, a melodia dos hinos nos eletrizou, também executados pela Banda Municipal do Rio de Janeiro, e lá no campo avistávamos o Sr. Américo Gil, que ia elevando vagarosamente a bandeira que, quando chegava ao extremo do mastro, se estendia com sucesso pelo espaço com os impulsos das brisas suaves.” Depois do jogo, nos vestiários, Míguez contou ao Acción que o instante mais emotivo para ele foi quando tocaram o hino, pois, acabada a execução, Juancito Lopez pôs-se em frente a todos e disse: “Saberemos cumprir!”, ao que todos os rapazes responderam com verdadeira emoção: “Saberemos cumprir!”. Este, sim, é um detalhe importante sepultado pela lenda e o mito.


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“Agora lá embaixo, sobre o grande tapete verde, os times se alinham, aparecendo os de camisas brancas e os de camisas celestes, erguidos, atléticos. Eles mal conseguem conter a afobação de iniciar a luta, assim como a atenção nervosa e o desejo de pôr os músculos poderosos em ação.”

A partida minuto a minuto É necessário insistir sobre as enormes diferenças daquele tempo com os atuais. Não exista televisão! Por este motivo, o jornalismo escrito também era outro. Uma partida de futebol só poderia ser observada se fosse assistida no lugar onde era disputada. Ou então existia a alternativa de acompanhar os relatos das rádios. Portanto, todos os jornais estavam destinados a ter reportagens íntegras, que refletiam – depois dos detalhes completos do encontro – cada uma das alternativas destacadas em forma cronológica, de acordo com os minutos que se passavam. Vários dias depois do confronto, no caso do jogo ser realmente importante, nos noticiários que eram passados nos cinemas, antes do filme começar, apareciam algumas incidências sobre os grandes eventos. Foi comprovado que todos os jogos do Brasil na Copa do Mundo de 1950 foram filmados por completo para serem veiculados no cinema. No entanto, nunca se soube qual foi o destino dos 90 minutos daquele 16 de julho. As imagens que então chegaram ao Uruguai eram um pequeno compacto da partida, com os gols e pouca coisa além disso. Foram conseguidas e trazidas por Nobel Valentini, que estava com 34 anos e havia tido uma extensa trajetória esportiva e empresarial, até então, como realizador de eventos. Nascido em Salto, ele se estabeleceu em Aduana. Nadador, waterpolista (duas vezes Campeão Sul-americano com Uruguai e Olímpico com a celeste, em 1936), jogador de futebol primeiro e depois árbitro, se iniciou no radialismo com o programa Glosas Deportivas, transmitido pela CX28 Rádio Imparcial, com participação especial de José Nasazzi. Sua iniciativa comercial o levou a editar álbuns de figurinhas, desenvolver o futebol infantil, organizar excursões para os grandes jogos do Uruguai que fossem disputados no exterior e ser o criador do baby football. Dotado de um positivismo natural, ele se vinculou intensamente com tudo o que estivesse relacionado com a celeste, tendo sido testemunha da vitória do Uruguai no Maracanã, de um lugar privilegiado: atrás do gol de Barbosa. Assim ficou eternizado também através do registro fotográfico do gol de Ghiggia, captado da arquibancada. Dá para vê-lo tentando levantar, com seu enorme porte, para festejar ao lado do notável fotógrafo uruguaio, Alfredo Testoni, de bigode grosso, com sua câmera na mão.


Maracanazo, A História Secreta | 309 Graças a esta iniciativa, o feito histórico no Maracanã entrou para a posteridade com as imagens que todos nós conhecemos de cor. Entendi que, como contém revelações inéditas, este livro tornou-se uma prova, o mais fiel possível, do desenvolvimento cronológico das incidências de maior relevância da partida. Para isso, além de escutar o relato dos 90 minutos na voz de Carlos Solé, li todas as crônicas que apareceram na imprensa do Uruguai e em vários jornais do Rio, para poder recompor, com a cópia exata da terminologia utilizada neles, os momentos chaves do enfrentamento. A continuação segue o documento, com o acréscimo do fruto da investigação que levei adiante, nas incidências que, por diversos motivos, ficaram na história. URUGUAI (2). Máspoli, Matías González e Tejera; Gambetta, Obdulio Varela e Victor Rodriguez Andrade; Ghiggia, Julio Perez, Míguez, Schiaffino e Morán. BRASIL (1): Moacir Barbosa, Augusto da Costa e Juvenal Amarijo; José Bauer, Danilo Alvim e João Ferreira (Bigode); Albino Friaça, Thomas Soares (Zizinho), Ademir de Menezes, Jair Rosa Pinto e Francisco Aramburu (Chico). PRIMEIRO TEMPO Por ter ganhado o sorteio, o capitão do Uruguai escolheu o lado do campo e o Brasil iniciou o jogo exatamente às 14 horas e 55 minutos, com o centre forward Ademir saindo com a bola. Desde o princípio, o jogo se deu de forma violenta e difícil. A disputa do primeiro tempo daquele sensacional match final da Copa do Mundo foi pura emoção. Foram 45 minutos de jogadas repletas de técnica e destreza, além de muita tensão de ambos os lados. Talvez o Brasil tenha atacado com maior insistência durante esses 45 minutos. Porém, a cada tentativa, a seleção uruguaia chegava com verdadeiro perigo ao gol de Barbosa. E as duas situações mais propícias ao gol foram criadas pelos uruguaios. Falta violenta de Bigode: Com apenas três minutos de jogo, o half esquerdo do Brasil entrou de forma violenta em Julio Perez e o juiz marcou falta. Obdulio Varela tirou a bola de Ademir para dar a Rodriguez Andrade. Míguez cobrou a falta e passou para Julio Perez. O insider direito partiu com velocidade, deixando Bigode para trás. Entretanto, o half brasileiro se recuperou e foi atrás de Julio Perez. Ao se aproximar dele, Bigode colocou a perna e provocou a queda do player celeste. O árbitro censurou a atitude do jogador brasileiro com uma observação.


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Este episódio deu muito o que falar devido à atitude de Obdulio Varela, que correu até o lugar do incidente e foi tirar satisfações com Bigode por sua deslealdade. Para os principais jornalistas brasileiros, que formavam opinião, o lance foi decisivo para amedrontar e diminuir psicologicamente a defesa do Brasil, cujo jogo se caracterizava pela força e veemência física que imprimia a seus adversários. Os comunicadores afirmaram que “Obdulio deu um tapa na cara de Bigode e ele não reagiu”. “Não houve nenhuma agressão por parte de Obdulio Varela. A injustiça maior contra mim foi essa. Até hoje eu sofro por causa disso. O que fizeram contra mim foi covardia. Alguns disseram que Obdulio Varela tinha cuspido em mim. Outros disseram que ele havia dado um tapa na mina cara e eu não respondi. Foi calúnia. Não houve reação porque não houve agressão. Obdulio Varela me deu umas palmadinhas nas costas para me pedir calma. Eu tinha dado um chute em Julio Perez, jogador que tinha uma habilidade desgraçada. Para dizer a verdade, a máquina do Uruguai era Julio Perez. Não era Obdulio Varela. Entrei violentamente contra ele. Se minha perna tivesse pego na canela dele, Julio Perez teria saído de campo e nós teríamos vencido o jogo com facilidade, porque o Uruguai se desarticularia totalmente. No momento em que entrei com tudo, Obdulio viu e me disse: ‘Muchacho, calma!’. Fiquei olhando para o juiz com medo de ser expulso.” Declaração de Bigode para o Dossiê 50 (pp. 91). Grande defesa de Máspoli: O goleiro Máspoli deu destaque a suas brilhantes atitudes ao agarrar um shot perigoso de Ademir. Friaça avançou pela direita, enganando Rodriguez Andrade, e cruzou a bola, tentando tirar Tejera do lance. Porém, o back esquerdo falhou e Ademir ficou com a bola na cara do gol e chutou violentamente, mas Máspoli voou no ar e conseguiu pegar a bola. Máspoli volta a salvar a seleção uruguaia: Matías González cobrou o goal kik (tiro de meta) e a bola ficou com Jair. O insider driblou Gambetta e deu o passe para Zizinho, que rapidamente alcançou Friaça. O atacante não demorou a lançar novamente para o centro, e o chute passou pela frente da área e chegou até Chico na extrema esquerda. Primeiro, ele driblou Matías González e, quando estava prestes a chutar, milagrosamente surgiu Máspoli e se jogou aos pés de Chico para salvar a situação. Jogada perigosa dos brasileiros: Os atacantes brasileiros estavam dominando o jogo naquele instante, criando situações de perigo real de gol, mas Máspoli e toda a zaga estavam se defendendo de forma impecável. Num momento oportuno, Bigode passou a bola para Chico que, de primeira, desviou da marcação de Gambetta e lançou a bola para Zizinho que estava de frente para o goleiro uruguaio e, quando todo mundo já estava prevendo o shot, o ágil


Maracanazo, A História Secreta | 311 jogador brasileiro passou para Ademir, mas ele estava adiantado e o juiz marcou impedimento. Outra intervenção de Máspoli: Mais uma vez, a eficiência do goleiro Máspoli foi comprovada diante da situação perigosa criada pelos habilidosos brasileiros. Após receber passe de Danilo, Jair avançou pelo centro do campo e, quando Obdulio Varela veio para cima dele, Jair apoiou Chico. O chute do wing esquerdo não se fez por esperar, mas Máspoli saiu do gol para defender e, com isso, os três meio-campistas do Brasil foram para cima dele, a ponto de fazê-lo perder a bola, ocasião que Chico aproveitou para chutar no ângulo. Mas Máspoli ergueu-se do chão com bastante esforço para defender a ball. Salva o goleiro celeste: Os brasileiros vieram com velocidade pela direita, driblando Rodriguez Andrade, que não parecia feliz com sua atuação. Friaça passou a bola para Zizinho, depois Zizinho devolveu para Friaça. Ele então deu um passe para Ademir, que se aproximou do gol e, já na linha do pênalti, a poucos passos do goleiro celeste, mandou a bola num ângulo, mas Máspoli se esticou todo e jogou a ball para escanteio. Chico bateu o corner de forma fechada, fazendo com que o goleiro Máspoli mais uma vez saisse bem e conseguisse pegar a bola. Morán, nervoso, perde o gol: O fato de que os brasileiros atacavam com maior frequência não diminuía os uruguaios que, a cada lance davam um tremendo trabalho para a seleção local. E foi assim que, por volta dos 26 minutos, numa jogada extraordinária, deixando Danilo e Juvenal pelo caminho, Schiaffino saiu com a bola e foi perseguido por todos. Com o intuito de deslocar e surpreender o resto da defesa rival, ele mandou a bola para Morán, que estava sozinho, com o gol inteiramente à sua disposição. A situação era tão favorável para os uruguaios, que provocou uma tremenda angústia no âmbito do estádio e fez o Brasil inteiro se levantar dos bancos naquela final de Copa do Mundo. Mesmo assim, nosso jovem wing, por causa do seu estado de nervos, se apressou demais e inacreditavelmente chutou para fora. Shot de Míguez na trave: A área defendida por Barbosa estava a ponto de ser vencida como consequência de um grande chute de Míguez. Ghiggia driblou Bigode e deu a bola para Obdulio Varela, este passou para Schiaffino que, por sua vez, repetiu a jogada anterior quando Morán tinha perdido o gol. Schiaffino deu passe para Míguez que, entre os backs adversários, saiu correndo e bateu um violentíssimo shot, digno de Petrone. Barbosa se esticou com uma elasticidade incrível, mas a violência do chute superou as suas posibilidades. O goleiro brasileiro caiu no chão de barriga para baixo, mas a bola bateu com força na trave lateral e voltou ao campo... O rebote foi alcançado por Schiaffino, mas o insider


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esquerdo demorou na jogada e Augusto aproveitou para afastar o perigo. A falta de sorte estava perseguindo os celestes, mas, por outro lado, também estava ensinando-os. Outra vez os favoritos se salvaram de um gol certeiro.

A total confiança de Míguez e Julio Perez “Eu digo sinceramente. No primeiro tempo, nós jogamos melhor. Se tivéssemos terminado o primeiro tempo ganhando de 2x0, ninguém poderia se queixar. Porque teve um chute meu que pegou no travessão e um gol que Morán errou, mas que passou ao lado do gol, pois era compreensível que ele estivesse nervoso em sua estreia na Copa do Mundo. Mas também digo que, se tivéssemos ganhado o primeiro tempo de 2x0, a partida não teria terminado. Nós ganhamos porque ganhamos justo no final. Senão, não sei o que teria acontecido. Eram mais de duzentas mil pessoas. Mas o gol de Ghiggia foi marcado quando a plateia já não tinha mais tempo de reagir. Muitas vezes me dizem que se jogássemos essa final contra o Brasil no Maracanã cem vezes, nós iríamos perder noventa e nove vezes. No sei se seria assim. Em todo o caso, ganhamos a que valia”, comentou Oscar Míguez, em entrevista para A história fala, do canal VTV. “Durante a Copa, todo mundo dizia que o time não estava bom. Os jornalistas nos castigavam, criando um clima de derrota e pessimismo que era injusto. Os cronistas se deixavam impressionar pelas goleadas do Brasil, mas não se davam conta de que era porque os rivais se sentiam diminuídos. E não era para menos. A arquibancada, a multidão, os foguetes e todas essas coisas que pesaram contra os espanhois e os suecos, permitindo as goleadas do Brasil. Mas com a gente isso não funcionava dessa forma. Nosso time jogava bem e estava integrado por ‘homens’. Jogávamos como os uruguaios sempre jogaram. Nós nunca ganhamos com folga. Não tínhamos velocidade. Sempre fomos rápidos pelas laterais, mas no meio-campo éramos mais lentos. E isso os jornalistas não viam. Não se davam conta de que nós não nos sentiríamos diminuídos na final. Eu sei que, ao dizer estas coisas, vai ter gente pensando: ‘Olha só este cara, falando de otimismo depois que se passaram vinte anos’. Mas não é assim. Nós sempre estivemos tranquilos e nós, os jogadores uruguaios, achávamos que a iríamos ganhar do Brasil, ou então que perderíamos mas não por goleada”, contou Julio Perez, em entrevista ao autor para o El Diario (26/10/1977, coleção “Estrelas do Esporte”). SEGUNDO TEMPO Este período mostrou um futebol intenso e, devido à forma como se deu, acabou adquirindo a cracterística de dramatismo inusitado. Exatamente às 15 horas e 47 minutos, começou a segunda parte do match, com Míguez saindo


Maracanazo, A História Secreta | 313 com a bola em direção a Julio Perez. O insider tentou ceder a bola para Obdulio Varela, mas Ademir conseguiu tirá-la dele e pasar para Chico que, numa corrida veloz até o gol, mandou um centre shot que Máspoli, abandonando a área, interceptou. Os brasileiros reiniciaram o jogo com terrível fúria, dispostos a acabar com o time adversário. Dois ataques velozes esfriaram a defena. Gol do Brasil aos 2 minutos: Os brasileiros aproveitaram bem uma jogada infeliz de Rodriguez Andrade e a posição duvidosa de Friaça. Sobre uma roubada de Obdulio Varela, Schiaffino avançou e os zagueiros acompanharam seu movimento. Isto foi fatal, pois Juvenal roubou a bola e passou rapidamente para Ademir pelo centro do campo. O atacante brasileiro, depois de driblar Obdulio Varela, deu lance para Zizinho e este, vendo a posição adiantada de Friaça, passou a bola para o ponta, mesmo estando em offside (impedimento). Rodriguez Andrade tentou intervir e deu um pontapé na bola, permitindo que o ponta ficasse completamente sozinho e de frente para Máspoli. O lineman (assistente de linha ou bandeirinha) levantou a bandeira. Mas o juiz não cobrou e o wing, num rápido rush, entrou na área para “shotear” cruzado e violento, a cinco metros do gol. Máspoli saiu temerosamente e o primeiro gol foi marcado. O que aconteceu no estádio do Maracanã é indescritível e as pessoas pareciam ter enlouquecido. A gritaria da multidão era ensurdecedora; as explosões de bombas e foguetes eram ininterruptas. Parecia que até as paredes de cimento estavam tremendo. Qualquer outra seleção que não fosse a uruguaia teria despencado ali, sem conseguir se reerguer.

“Obidulio” e sua reclamação com o juiz de linha… britânico! Gambetta tirou a bola que estava embolada na rede do gol do Uruguai. Com as mãos, ele a jogou em direção ao meio de campo. Quando a bola já estava a vários metros da meia-lua, Obdulio Varela pegou-a e saiu correndo até a linha lateral do lado esquerdo da defesa uruguaia. Olhando com atenção, esta cena consta nas filmagens existentes. O capitão celeste, com a bola debaixo do braço, começou a “falar” com o juiz de linha britânico, George Mitchell. O diálogo era impossível, impraticável. Os estudos não tinham sido o forte na vida de Obdulio, pois ele falava uma linguagem meio estranha, incompreensível para o juiz de linha, que só conhecia o idioma britânico. A cena parecia ter sido tirada de uma obra de teatro e, como tal, com o passar do tempo, foi incorporada à lenda e atribuíram à atitude de Obdulio Varela algo deliberado e premeditado, como se tivesse sido destinada somente a ganhar tempo para fazer com que a multidão baixasse sua euforia, os gritos e as explosões de foguetes em som de festa. Assim, ao reiniciar o jogo, os brasileiros não poderiam ser incentivados pelo furacão de fervor que vinha das arquibancadas. Mas... o que foi que ocorreu realmente?


Maracanazo, A História Secreta | 353

CAPÍTULO 11 As imagens da história

Na foto acima se observa a primeira Comissão Diretiva da Mutual, junto a outros jogadores que participaram do seu ato de fundação, em 6 de agosto de 1946. A partir da esquerda: Homero Blanco (Secretario), Ricardo “Cacharpa” Pérez, Carlos Chagas, Obdulio Varela (Vice-presidente), Luis Ernesto Castro e Francisco Sabini. Sentados, no mesmo sentido: (?), Enrique Castro (Presidente), Hugo Bagnulo (Tesoureiro) e Dalton Rosas Riolfo (Secretário).

Por sua importância, a greve da Mutual imediatamente chegou às páginas políticas. Estes registros apareceram na seção editorial do El Diario. Vê-se a o Presidente da AUF, César Batlle Pacheco, caracterizado com Fúlmine, personagem criado pelo caricaturista Divito. Na outra está o Dr. Luis Alberto de Herrera, que depois de receber os grevistas em seu quintal, manifestou total apoio a Mutual. Sua atitude confrontava tanto Batlle Pacheco quanto o Presidente da República, Luis Batlle Berres, com quem formou "a coincidência" para aprovação de determinadas leis.


Maracanazo, A História Secreta | 371 Juan e Alberto Lopez gêmeos em tudo, até mesmo na lesão no joelho. Uruguai estreou na Copa um mês após a nomeação de Juancito como técnico da Celeste. (à direita) 09/07/1950: Uruguai empata em 2x2 contra a Espanha em São Paulo (foto central) É muito provável que se houvesse TV no Brasil em 1950 e a Copa transmitida, o gol que Barbosa levou em 16 de julho talvez não ocorresse. O motivo é que o gol que Ghiggia marcou contra a Espanha foi exatamente igual ao que marcou contra o Brasil,no Maracanã. A bola passou entre o goleiro e a trave. O que poderia ter acontecido caso Barbosa tivesse visto? 13/07/1950: A difícil vitória do Uruguai por 3X2 contra a Suécia em São Paulo (última foto) A equipe desta tarde. De pé, a partir da esquerda: Obdulio, Juan Lopez, Anibal Paz, Tejera, Marias González, Abate, Gambetta, Rodríguez Andrade e Kischber. Agachados, a partir da esquerda: Mario Alvarez, Figoli, Ghiggia, Julio Perez, Miguez, Schiaffino e Vidal. Por lesão de Maspoli e JC González estrearam no Mundial Paz e Gambetta


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| Atilio Garrido O Brasil naquela tarde, de pé a partir da esquerda: Moacir Barbo­sa, Augusto da Costa, Danilo Alvim, Juvenal Amarijo, José Bauer e João Ferreira (Bigode). Abaixo: Mario Améri­co (K), Albino Friaza, Thomas Soares (Zizinho), Ademir de Menezes, Jair Rosa Pinto e Francisco Aramburu (Chico).

Brasil abriu o placar no início do segundo tempo. Friaza comemorou seu tiro beijando a rede. Rodríguez Andrade, superado pelo ponta, olha a bola entrar. Máspoli sempre defendeu que o jogador brasileiro "estava impedido". Obdulio reclamou com o auxiliar Mitchell por este não ter levantado a bandeira.

Todos olharam fixamente para a bola. Schiaffino, Juvenal no chão, o juiz Reader, Míguez e Barbosa. Um chute indefensável !


Maracanazo, A História Secreta | 373

Schiaffino afirma que pegou mal na bola... Ghiggia invadiu pela ponta direita. Ele olhou para a área e viu Schiaffino vindo na diagonal da esquerda. Ele cruzou rasteiro e “Pepe” emendou de primeira com o pé direito para marcar, antes que Juvenal pudesse chegar na marcação. A bola saiu forte e entrou no canto superior esquerdo do arco de Barbosa que não chegou, apesar de seu mergulho. Desde então, toda vez que contava o lance, Schiaffino afirmava que pegou mal na bola. “Quando empatei, eu virei o pé, porque eu queria bater no outro canto. Mas o chute saiu para o lado oposto que eu pensei. Coisas do “Pepe”! Empata o Uruguai! ...

Bigode põe a mão na cabeça. Ghiggia inicia sua comemoração. Atrás da trave Nobel Valentini se levanta para comemorar o gol. Ao seu lado, Alfredo Testoni já tirou a sua fotografia...


DO ÚLTIMO APITO À ETERNIDADE A Copa do Mundo de 1950 foi um marco histórico, um divisor de águas para o esporte mundial, em que ficou evidente a popularidade e importância do futebol no mundo pós-guerra. Foi a Copa da Grandiosidade, que expôs ao mundo um país longínquo, gigante em suas dimensões, assim como na paixão de sua população pelo futebol, e que tem no Maracanã o símbolo máximo dessa imensa paixão. No futebol, o país buscava seu lugar entre os melhores do mundo, ainda atrás dos seus concorrentes diretos, Uruguai e Argentina. Nos cenário político, o país já sofria com a hipocrisia e manipulação social. O torneio foi épico no cenário político por exacerbar todos os elementos que fazem do futebol o esporte mais popular do mundo, como as façanhas do esforço e da vontade humana, a glória do triunfo inalcançável e a tragédia do inesperado. A Copa de 1950 provou ao mundo que não há meio termo no futebol.

ISBN: 978-8566464320

9 788566 464320

www.livrosilimitados.com.br


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