Color My World

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Color My World Volume 1

Roteiro Rodrigo Antonio Ilustrações Marina Szöllösy Diagramação Luana Pedrosa Trilha Sonora Rodrigo Antonio



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A

mão leve, fria e seca se levanta em direção ao relógio que despertaria dali a alguns minutos, enquanto a outra permanece imóvel, estática sob os leves lençóis azuis que se emaranhavam sobre a cama e como se não houvesse excitação nenhuma nas cenas vistas a pouco, abrindo os olhos, lentamente, como num ritual que sempre precede uma forte melancolia. E assim, quase etérea, se ergue da cama e atravessa o quarto grande, tateando o piso com os pés descalços e uma postura elegante, imponente, apenas com os cabelos longos e azuis, como o coração de uma safira, lhe cobrindo o corpo pálido e delicado. Na ducha, a água, sempre quente, toca seu corpo agora encolhido, e se entrelaça as lagrimas deixadas a caminho do chão enquanto murmura para as paredes: - Círculo cheio, Laranja. ·7·


No primeiro passo de volta ao quarto, retoma a feição contestadora que apresentara antes, e se posiciona para pentear calma e meticulosamente os longos fios iluminados pela luz da manhã que lhe acalenta as costas por entre as cortinas brancas entreabertas, enquanto reflete frente ao que a espelha, sobre a torturante cena bela, que repetidamente a assola. “...Como jamais havia visto antes, seu rosto é tão calmo, estático e doce! Tem feições delicadas e lábios finos brancos levemente alaranjados pelo pôr do sol, o corpo torcido como uma escultura grega em eterno sofrimento é envolto pelo caótico altar de longilíneos cristais translúcidos, que se entremeiam as flores brancas que ali foram deixadas...” Seus olhos rapidamente se voltam novamente ao espelho, e com seu habitual semblante de desinteresse, vai ao guarda-roupas, onde vê seu novo uniforme, uma camisa branca, enfeitada por ela com um laço vermelho, sobreposta por um casaco clássico com pequenos detalhes dourados e uma saia plissada, pretos e austeros, como suas expressões durante todo o tempo. Antes de sair do quarto - que embora grande e luxuoso, é simples, com tonalidades brancas e poucos detalhes em azul marinho, sem muitas texturas e prateleiras cheias de livros de todos os tipos em formas orgânicas, sempre minimalistas – para, e desvia o rosto em direção a agenda preta, aberta sobre a escrivaninha aos pés da cama e ao lado da janela, que marca hoje, uma segunda feira, 09/08/2049, pega uma espécie de mala preta de mão e sai murmurando: ·8·


- Marinho, amargo, pontiagudo.

¡9¡


As sapatilhas negras, embora delicados marcavam com graça e firmeza os passos que descem ecoando nas grandes escadas vazias de sua casa, rumo a mesa do café, que acabara de ser servida pelos pais que a aguardavam na sala de jantar. A mulher de 44 anos que facilmente aparentava estar por volta dos 30, tinha postura elegante. Trajava uma blusa de gola alta em tom de verde militar que realçava sua aura austera e ostentava uma exuberância natural de quem aprecia a excelência nos mínimos detalhes, quando em conjunto com pelo fino bracelete dourado em formato de argola e os delicados anéis. Os cabelos são ruivos, tom de cobre, e o corte austero emoldura o rosto que se afunila delicadamente até o queixo e deixa a nuca, também pálida, exposta aos olhares. As feições delineadas são as de uma legitima italiana, sobrancelhas arqueadas e claras, desenhavam um perfeito acompanhamento para o olhar castanho e afiado como as claras areias de um oásis, que quando aquecidas se tornam o mais translucido e perigoso dos vidros. Esses olhos herdados pela filha, contemplam seus progenitores com admiração e respeito, mas logo são surpreendidos por uma voz firme, um sol 4 de gosto ácido, antes mesmo que a menina se sentasse. - Ao menos no primeiro dia acordou a tempo. Disse a mãe, enquanto levava uma xícara de chá branca, adornada com um filete dourado na borda, aos lábios naturalmente avermelhados e olhava assustadoramente calma pelo canto dos olhos. Ignorando a respiração oscilante da filha a cada palavra. · 10 ·


- Repassou a... - Acho que pelo menos no primeiro dia dela podemos comemorar tomando nosso café sem questionamentos, não é, Alícia? Tenho certeza que a Yuki se preparou bem para o dia de hoje, certo, meu bem? Interrompe seu pai, Misao, com um largo sorriso por baixo dos óculos pequenos que usava. O jeito acolhedor do homem de 45 anos, era simples como aparentava, sempre despreocupado. Usava uma camisa azul simples, e calças sociais cobrindo os sapatos que de tanto uso estavam meio gastos. A pele branca contrastava com os estreitos olhos estreitos e os cabelos curtos bagunçados na cor azul safira. Era alto, mas os ombros estreitos não impunham qualquer tipo de presença agressiva. Sua voz era inebriante, uma forma espalhada, laranja com pinceladas acastanhadas, um perfeito dó 3! Eis então que Yuki responde, tímida, mas feliz, com um pequeno sorriso no canto da boca, e a cabeça baixa em sinal de respeito. “S... Sim, pai!” Naquela manhã, diferente de todas as outras, a família Akane, tomava seu café, sobre a grande mesa de vidro posta com as mais diversas iguarias e sucos, de forma quieta, polida e estranhamente agradável. · 11 ·


Mesmo no silêncio, os pensamentos de Yuki se perdem num mar de cores e formas enquanto observa a brisa leva as folhas de uma arvore pela janela. O cheiro do chá de morango, o favorito de sua mãe, lhe parecia triste, em tons de azul marinho e roxo circulando calmamente pelo ar. O café preto do pai, era grave, e focado como um fá 1, e por isso lhe era claramente arredondado, mas de uma forma espalhada. Interrompendo esse instante especial, uma única frase é lançada por Alícia, que ao olha-la por um instante, alerta, no tom imperativo que lhe era característico. - Yuki, não deixe que essas coisas que você vê, desviem sua atenção hoje. Yuki é sinestésica, uma condição genética comum, mas rara em grau tão elevado. Suas sensações se remetem a sentidos diferentes dos originais, involuntariamente e de forma totalmente independente de associações de memória, como o cheiro grave do café pela manhã e o som verde de seu próprio nome. Suas sensações podem também, se remeter a cores, números, dias da semana e sentimentos. Alguns especialistas falam em números de 1 pessoa em cada 23, outros de 1 pessoa a cada 2000 pessoas e os sinestésicos mais comuns são os que relacionam letras e números a cores, sendo que essas associações nunca se mudam e são projetadas num espaço próximo de quem presencia esse fenômeno, nunca apenas mentalmente. Mas nunca havia sido provado um caso de sinestesia em que os estímulos gerassem respostas dos 5 sentidos ao mesmo tempo... · 12 ·


- Yuki! Reitera Alícia, franzindo a testa e arqueando as sobrancelhas delineadas como quem não tem paciência para aquele tipo de situação. - Sim, mãe, não atrapalharão. Responde a menina, no susto, mas de forma categórica, firme como quem responde a um superior sem questionamentos. Yuki então se levanta e caminha até a porta, em perfeita harmonia, uma situação estéril onde apenas os seus passos eram ouvidos. Firma os pés no chão como um pequeno soldado e se volta aos pais, que permaneciam sentados, para agradece-los com um leve aceno de rosto. A mãe, sempre perdida em seus pensamentos, a deixa sem resposta enquanto corteja seu chá, e o pai sorri, enquanto a contempla com uma expressão mista de orgulho e tristeza para então dizer: - Boa sorte, te vejo hoje à noite? Não consigo antes, estarei terminando os preparativos do projeto. - Obrigada! Sim, te encontro a noite na sua apresentação.

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Responde a menina, enquanto sorri, e sai pela porta da frente...


O lado de fora da casa dos Akane tem forma de um tipo de retângulo disforme, os materiais se misturam entre pilares de construção brancos e vidros grandes para permitir a entrada de luz natural em todos os ambientes. A casa contava com 3 suítes grandes, hall, sala de estar, sala de jantar, cozinha, uma biblioteca e uma sala de música e era rodeada de ipês das mais diversas cores, mas que floresciam em tempos diferentes, para embrulhar a casa branca em um capricho da natureza, que parecia querer agradar durante todo o ano enquanto não houvesse neve. A luz do sol da manhã era tenra naquele dia, mas a claridade incomodava os olhos claros, ela, no entanto gostava do calor, era confortável, como uma forma retilínea e flexível. No caminho nota que a brisa na Alemanha era diferente do que estava acostumada, recém-chegada do Japão onde vivera por 15 anos, até o ar lhe parecia mais movimentado aqui. As árvores no verão eram amarelas e faziam um som acastanhado característico que lhe agradara muito. A sua sinestesia que se ensandecia com tantas novidades, fazia parte da sua vida rotineira e de uma forma tão presente que era impossível imaginar o mundo sem ela, era impossível imaginar as letras sem as cores, os sons sem as formas que sempre vinham com eles, e os gostos estavam sempre atrelados as mais diversas texturas, prontas para serem tocadas ao seu redor e lhe proporcionar um mundo inteiro de possibilidades. Não era raro a menina, que aparentava ser séria e centrada, se perder em seus · 16 ·


próprios pensamentos e sensações, se divertindo silenciosamente enquanto conhece novos lugares e experiências. A família, muito bem-sucedida era conhecida pela rigidez e dedicação que empenhava em tudo que faziam e por isso exigiam uma dedicação a mais da filha, mesmo conscientes da sua condição. Misao, apesar do sorriso, é um cientista experiente, pioneiro em pesquisas de multi-universo e engenharia micro celular. Alícia era uma violinista internacionalmente conhecida, frequentemente comparada aos melhores da história até pelos críticos mais céticos. Dentro dessa rotina, Yuki sempre estava rodeada de estudos e afazeres para corresponder às expectativas postas sobre ela e estudando sempre em casa sob a tutela dos olhos atentos da mãe. Hoje era a primeira vez que ia a escola, mas mesmo o misto de angústia e excitação não abalavam seu olhar frio e o andar preciso. De longe, avistara o conservatório onde foi recentemente aprovada. Era imenso, a 500 metros era possível avistar o edifício em formato de meia lua estruturado em marfim branco e adornado em suas mais sinuosas curvas por uma espécie de metal brilhante refletindo a luz do sol nas mais diversas direções e criando uma aura própria para o lugar.

Quanto mais se aproxima, mais a menina se sentia atraída.

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Era maravilhoso como as curvas lhe pareciam vivas e a cor da luz entorno da construção era azul clara e se movia livremente...



Agora na entrada dos portões a menina se sente aflita, é grande a quantidade de pessoas em frente aos grandes portões duplos que a separam da maravilha escultural vista de tão longe. As pessoas em volta com um ar de ostensão se alternam entre homens, mulheres e seus aparentes filhos que estavam ali sendo entregues como oferendas aos deuses. Esses por sua vez carregavam consigo um largo sorriso proveniente de uma felicidade mista entre pertencer a um bem maior e um medo profundo dos perigos que os aguardam, o que irrita Yuki, embora a mesma praticamente não reaja a isso e continue seu caminho rumo a construção. Do lado de dentro dos portões, esculturas dividem espaço com a grama bem cortada e o solo de pedra arquitetonicamente desenhado para formar diversas formas ao longo do caminho. Apesar de todas as belezas, Yuki se distrai e se sente levemente incomodada pela quantidade de passos que ecoavam em sua mente como quadrados pretos, um após outro. - Tsc, quanta gente! - Pensa ao longo do caminho, enquanto adentra a estrutura que lhe parecia ainda mais vibrante de perto. Por dentro da construção, um hall enorme, alto e sutilmente decorado em todas as suas minucias aguardava os recém-chegados estudantes. As formas do projeto eram imponentes e ousadas, uma construção arquitetônica sem pilares, proporcionada pela utilização do magnetismo na difusão do peso dos pisos, uma tecnologia utilizada no início do século para a suspensão de trens· 20 ·


bala. Apenas a luz do sol, separada do calor por uma película, iluminava o centro do espaço diretamente e era difusa a todo o local por um enorme lustre translúcido localizado no alto da sala, dando visão a duas escadas ao lado, próximas a entrada principal e que davam acesso ao andar superior e dois corredores de acesso mais a fundo nas laterais, separados por uma grande entrada que dava acesso ao salão principal. Até para a menina, de quem eram raras as expressões em público, foi impossível não demonstrar uma reação, frente ao lugar em que pisara, no entanto rapidamente o espanto se transforma: - Estranho... Essa forma, esse lugar, não tem som algum... Todas as cores aparecem, mas não tem som. Pensa, enquanto tenta compreender o que acontece a sua frente. E então continua: - Esse lugar é bem estranho, parece é tão... perfeito, tão... bem pensado, é assombroso. Mesmo entre as formas nada convencionais o espaço lhe parecia morto, as luzes verde escuras dançavam pela sala em um ritmo melancólico, completamente mudas e tristes como quando uma balada de Chopin tocada em um piano com as cordas quebradas e se escuta apenas o bater dos martelos. Yuki então, agora sim, arrepiada e visivelmente incomodada força os dentes uns contra os outros e acelera seus passos rumo ao salão principal, atravessando a multidão a sua frente sem se preocupar em empurra-los ou não. · 21 ·


Ainda confusa pela sensação que acabara de ter, a menina, ao contrário dos outros alunos que se sentam nos assentos confortáveis do salão principal do conservatório - o único lugar de todo o espaço todo onde a madeira toma o lugar do aço como um elemento de adorno a fim de proporcionar uma melhor acústica para o local - se dirige ao backstage do local, onde aguarda por volta de 30 minutos e se posiciona para assistir ao lado do palco, oculta ao discurso de abertura da recepção de calouros. Neste meio tempo, um senhor, que aparentava ser muito mais velho passa ao seu lado sem ao menos a intenção de cumprimenta-la e se dirige ao centro do palco, posicionando-se para discursar e chamando a atenção de todos os alunos dispersos. - Cinza, agulhas, amargo, áspero. Pensou consigo Yuki ao observar o homem que estava impecavelmente alinhado em um terno azul marinho decorado por uma gravata borboleta vermelha, então, enfim, focou-se ao discurso. - Bom dia, meu nome é Hanzel Van Ludwig, o reitor desta instituição. Gostaria de parabeniza-los pelas suas conquistas, pelo fato de estarem aqui e estarem aptos a representar deste dia em diante a Primeira Grande Escola. Mas não se enganem, a jornada de vocês está apenas começando, aqui, nós procuramos apenas os melhores. Portanto se esforcem, leiam, pratiquem e honrem o nome da instituição que agora fazem parte! · 22 ·


Em nome desse espirito de excelência, como é tradição, todos os anos na recepção de calouros, são executadas duas peças, a escolha dos músicos, a serem apresentadas pelo primeiro lugar nos exames de admissão deste ano, e o melhor aluno entre os terceiranistas. Para destacar aqueles que como vocês poderão ter, tem um futuro brilhante em seus caminhos. Dando início as apresentações, a primeira colocada nos exames de admissão... - Akane Yuki! As pernas da garota tremiam, e as mãos se enrijeciam como se não pudessem fazer um único movimento. Para ela era nítido: - Não vou conseguir fazer isso.

Seu corpo, no entanto, se movia em direção ao palco

involuntariamente, e como de costume aos olhos leigos, a postura parecia impiedosa como sempre. Trajava um longo vestido negro, que se espalhava durante a sala em cada passo dado. Carregava apenas em suas mãos, agora úmidas, uma flauta transversal prateada com adornos dourados em suas chaves. A quantidade de pessoas era enorme, de longe podia ouvir alguns comentários. -Quem é ela? -Nunca ouvi falar, mas ela é linda! · 23 ·


-Impossível ter sido uma desconhecida e não eu o primeiro lugar. Eram diversas vozes, e cheiros, sua sinestesia se perdia em tantos estímulos. - As cores... são muitas, muitos cheiros, muitos sons, muitos gostos... Eu não vou conseguir. Pensava Yuki enquanto se posicionava no centro do palco, dividindo o espaço com uma orquestra que a acompanharia. Ao som da primeira nota do piano, os místicos olhos castanhos se esconderam por um segundo, tudo mudou, não havia mais ninguém ali, apenas Yuki e suas cores, que se misturavam e criavam novas formas, saltando, iluminando e se espalhando pelo salão antes escuro. Era incrível, os verdes claros, os mais vívidos, guiavam o caminho. Esses eram flexíveis, macios, tinham cheiro floral, gosto doce e lhe traziam um sentimento de amor. Eram seguidos por tons de rosa, vermelho, azul escuro, mostarda, e tons de acastanhado, cada qual com suas características específicas.

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Era o espetáculo mais belo que já havia visto, nunca em sua vida as coisas lhe pareceram tão intensas, tão próximas, tão... reais...


As cores se aproximavam e se afastavam, dançavam no ar guiadas pelo som de sua flauta. - Mas o que está acontecendo aqui? Pensava a garota enquanto, continuava a tocar Conforme o final crescente da música, as cores, que antes passeavam no salão iluminado, começam a perder cada uma de suas características. Perdem seus gostos, consequentemente a menina não sentia mais sabor algum em sua boca, apenas a sensação fria de seus lábios finos tocando a flauta. As pessoas que ali estavam, começam a reaparecer e lotar o salão um a um, as cores então perdem seus cheiros, e o verde que antes parecia tão vibrante, agora passa a esmorecer até que seu olfato se extinga completamente. Ao final da apresentação, o tato e a audição começam a desaparecer e Yuki apenas pode observar o auditório lotado de pé a aplaudindo. Sem expressar nenhuma reação, a menina caminha ao local por onde entrara no palco e busca algum lugar onde pudesse se encostar, mas sua visão inebriada dificulta muito a tarefa. Já não sentia ou ouvia coisa alguma, finalmente com o desaparecer completo da última cor e o desmaio da menina, se vai também sua numa cegueira branca, sua visão.

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CAPĂ?TULO 2: Mundo Novo

Continua...



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