Experiências urbanas de alteridade

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experiências urbanas de

alteridade investigações sobre apropriações humanas e formação de identidade

luana pedrosa prof. ms. ricardo luis silva


Centro Universitário Senac Programa de Iniciação Científica, Tecnológica e Artística

Linha de pesquisa Arquitetura e Design

Grupo de pesquisa Identidade urbana: casos, acasos e a construção da imagem da metrópole paulistana

Orientação Prof. Ms. Ricardo Luis Silva

Autoria Luana Pedrosa

Trabalho desenvolvido durante o período de agosto de 2014 a dezembro de 2015


resumo Este é o resultado de uma pesquisa de Iniciação Científica, que pretendeu estudar a formação da identidade do espaço urbano através das ocupações e apropriações humanas na metrópole contemporânea. Como a pesquisa se configurou como um processo investigativo, busca-se a compreensão de como as ocupações se relacionam com o espaço e com as pessoas, a partir de experiências urbanas de alteridade – onde todo homem social interage e interdepende do outro – dialogando ou exaltando o genius loci (o espírito do lugar) e tomando a cidade como locus da experiência. Analisa-se como a identidade pode ser explicitada a partir da incorporação de uma “visão de mundo” de autores e arquitetos como Alejandro Aravena, Lina Bo Bardi e Ítalo Calvino, entre outros que, de certa forma, tem uma ligação no modo de perceber as apropriações humanas e o cotidiano.

palavras-chave Identidade urbana, Alteridade, Espaço urbano



experiências urbanas de

alteridade investigações sobre apropriações humanas e formação de identidade



agradecimentos Agradeço aos meus pais, Edith e Agnaldo, e a minha família por acreditarem em mim e darem o suporte necessário, até mesmo na hora de “ligar os pontos”; agradeço (três vezes) ao meu orientador Ricardo por toda a enorme paciência, orientações e conversas, que alimentaram de forma significativa e positiva tanto essa pesquisa quanto minha formação como arquiteta urbanista; agradeço todos os meus amigos por todo o apoio e compreensão, por toda ajuda (em especial, no final da pesquisa, com tantos pontos, Aline Barros, Fiona Platt, Augusto Ruschi e Tânia Mautone, e Tadeu Omae na diagramação da madrugada) e e por participarem direta ou indiretamente deste processo; agradeço à equipe Zoom por contribuírem significativamente para minha formação e experiência; agradeço à todos os professores com quem tive a oportunidade de ter aula durante não somente este 1 ano e meio de pesquisa, mas pelo 4 anos de faculdade até agora; e por fim, mas não menos importante, agradeço à Coordenação de Pesquisa e ao Centro Universitário Senac pela oportunidade e por investirem nesta pesquisa.


sumรกrio


introdução | 11 inquietação | 13 metodologia | 17 conceituação | 23 investigações literárias | 35 investigações arquitetônico-sociais | 77 conclusão | 155 referências | 158


introdução


introdução Como um processo, a pesquisa é parte da construção de uma linha de raciocínio que consiste na compreensão a questão de identidade e alteridade urbana, de forma a reunir as ferramentas de leitura desse fenômeno e os processos envolvidos para futuramente consolidar e equacionar suas possibilidades, através de análises de movimentos e ocupações pela cidade, como forma de expressão humana. Ao estudar os conceitos iniciais para compreender o processo da formação de identidade através de experiências de alteridade no meio urbano, foram eleitas leituras fundamentais, onde haviam indícios da presença de um debate ou um elogio à alteridade urbana; cada uma com um viés específico – literário e arquitetônico-social – como ferramentas para uma compreensão mais apurada sobre a possibilidade de alteridade no espaço urbano, entrando em uma maior abrangência que fez-se necessária para maior compreensão dos processos de formação de identidade. Através de diferentes olhares extraídos das leituras, aplicando-os sobre ocupações e manifestações humanas e a apropriação do espaço urbano e paisagem urbana como palco de acontecimentos, analisa-se a apropriação do espaço, que se torna uma forma de experiência urbana de alteridade.

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inquietação


inquietação O processo é uma etapa fundamental da formação da cidade e dos espaços que propiciam ocupações e manifestações humanas. A cidade é uma obra aberta em constante transformação, onde a relação entre o outro, o espaço e o eu se reflete no ambiente construído. Mas, na maioria das vezes, o projeto da cidade foi apresentado pelos próprios urbanistas como o produto de uma cultura, de intenções e saberes que não podiam remeter imediatamente apenas a um autor específico, mas sim a sujeitos coletivos, aliás, vagamente identificáveis. (...) Para construir, modificar e transformar a cidade, a multidão anônima é frequentemente uma protagonista tão importante quanto os grandes autores. (SECCHI, 2006, p. 46).

Em grandes metrópoles, as ruas se tornaram prioritariamente locais de passagens para carros, os espaços públicos foram diminuídos e a segregação e isolamento ficaram cada vez mais visíveis. A vida urbana ativa e a experiência do caminhar e do contato com o Outro perderam força a partir do cenário moderno. Desde o flâneur de Baudelaire e Walter Benjamin, aos dadaístas, surrealistas e situacionistas, a discussão e a crítica (muitas vezes ambíguas) à cidade | 13


moderna através de intervenções e apropriações humanas tornou-se mais forte. O cidadão, ao sentir as consequências desse modelo que isola, segrega e homogeneíza o espaço urbano, buscou ressignificar determinados espaços da cidade através de intervenções urbanas. Com exemplos mais palpáveis, vemos o Festival BaixoCentro1, que possui influências teóricas dos situacionistas, atuando com manifestações culturais de arte, música e teatro na região central da cidade de São Paulo (com foco no Minhocão) e o coletivo A Batata Precisa de Você2 que buscou reativar o Largo da Batata, localizado na região oeste da cidade de São Paulo, como um espaço público de qualidade para a população local, entre inúmeros outros movimentos, que ocuparam e se apropriaram de espaços urbanos (não só em São Paulo, mas em várias cidades no mundo). A discussão sobre a alteridade dentro do espaço urbano identifica conflitos, diferenças e a diversidade que compõe 1 Festival de música, arte, teatro e cultura realizado através de financiamento coletivo (crowdfunding), no Elevado Costa e Silva com objetivo de tomar as ruas e resgatá-la como um espaço comum, de manifestações humanas. O festival começou em 2012. 2 Movimento criado por moradores da região de Pinheiros, próximo ao Largo da Batata. Foram realizadas diversas atividades no local com o intuito de fortalecer a relação afetiva da população local com o Largo e evidenciar o potencial do lugar. As ocupações acontecem desde o começo de 2014.

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a heterogeneidade da cidade – essencial para percepção das dinâmicas humanas e urbanas que geram identidade e que qualificam o espaço como lugar. A percepção do cotidiano e a criação de “curtos-circuitos” para discutir a realidade vigente podem ser consideradas intervenções que fazem emergir tal identidade, as manifestações e apropriações humanas são resultados da compreensão daquele lugar, contexto ou momento que o homem percebe, trazendo a tona elementos que são esquecidos, ocultos e até mesmo banalizados O homem e sua intervenção produzem o urbanismo e o urbanismo, por sua vez, induz e constrói as relações interpessoais da esfera política da vida, tendo a cidade como produto geral e locus da experiência ao mesmo tempo. (JACQUES, 2013)

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metodologia


metodologia de pesquisa A metodologia se faz um elemento de grande importância deste trabalho. Divida em três etapas, a metodologia consiste em:

conceituação: base teórica A conceituação se baseia em recolher os materiais necessários para a leitura da alteridade e compreendê-la como conceito, vista nas apropriações do espaço urbano. Para compreensão inicial, foram utilizados os textos de “Walkscapes – O caminhar como prática estética” (Francesco Careri) e “Elogio aos Errantes” (Paola Berenstein Jacques), pois as duas leituras se complementam, formando uma ideia inicial de explorar a cidade através do caminhar e experimentar a cidade e da experiência de alteridade no meio urbano. Além dessas duas leituras fundamentais, também foram utilizados outros textos para complementar a linha de raciocínio: “A fenomenologia do lugar” de Norberg-Schulz, “O estranho” de Sigmund Freud e “O olhar no olho do Outro” de Maria Rita Kehl.

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proposta metodológica: leitura, texto-síntese e metatexto Após estabelecer leituras essenciais para a conceituação de alteridade, desenvolveu-se um método de leitura e compreensão dos textos escolhidos como principais, que serão apresentados abaixo, para iniciar as investigações: (01) ler e interpretar o texto, (02) produzir um texto-síntese da compreensão inicial e (03) realizar um metatexto, inspirado na série de Sol LeWitt, “All ifs ands or buts connected by green lines” (1973), para compreender o conteúdo a partir de outro olhar. O metatexto consiste em um método de leitura para proporcionar uma outra construção das ideias, uma nova camada de leitura e interpretação. Neste caso, elege-se uma palavra que sintetize (não de forma plena) a compreensão da leitura. A partir de cada letra dessa palavra, destaca-se todas as outras letras iguais no mesmo texto, circula-se e conectase cada letra, desconstruindo o texto a partir das letras. O exercício pode ser considerado inútil, mas abriu novas possibilidades de leitura e compreensão e colaborou em uma pequena experiência de alteridade, a partir do momento em que mais pessoas colaboraram com os metatextos. 18 |


“All ifs ands or buts connected by green lines� (1973) de Sol LeWitt (Fonte: pinterest.com)

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possíveis vieses: literário e arquitetônico-social Com o intuito de incorporar outros campos de conhecimento além da arquitetura e do urbanismo – que se aproximam de discussões sobre o espaço urbano e sua construção através de outros olhares – para enxergar novos elementos e possíveis diferentes leituras sobre o tema, estabeleceu-se dois vieses distintos para desenvolver a compreensão de alteridade: Viés literário, como uma “visão de mundo” de personagens (muitas vezes caricatos) como uma forma de narrar, entender, e/ou criticar uma realidade, com contextos e situações criadas a partir do imaginário, possíveis através da literatura fantástica, com Jorge Luís Borges, em “Ficções”, que traz uma primeira visão de alteridade, sem necessariamente estar no meio urbano, e Ítalo Calvino, que coloca sua personagem, Marcovaldo, um homem ordinário, em situações inusitadas pela cidade industrial em transição para a cidade moderna; Viés arquitetônico-social, uma leitura sobre a “visão de mundo” de arquitetos Lina Bo Bardi (Brasil - 1914-1992), Rem Koolhaas (Holanda - 1944), Herman Hertzberger (Holanda 20 |


1932) e Alejandro Aravena (Chile - 1967), constituindo uma linha de raciocínio, na ordem citada, sobre cultura e construção, crítica e reconhecimento e valorização da identidade (tanto coletiva quanto individual) na cidade.

Jorge Luís Borges

Ítalo Calvino (Fonte: bsp.org.br)

(Fonte: qg.globo.com)

Rem Koolhaas

Herman Hertzberger

Alejandro Aravena

(Fonte: studioclio.com.br)

(Fonte: designedforliving.com)

(Fonte: archimagazine.com)

Lina Bo Bardi

(Fonte: laciudadviva.org)

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conceituação


conceituação walkscapes: o caminhar como prática estética (francesco careri) Um manifesto sobre o caminhar como ferramenta crítica e prática estética, como diz o próprio título, Walkscapes é um convite ao caminhar. Francesco Careri faz uma compilação histórica sobre a prática da errância, do caminhar uma prática primitiva e simbólica de transformação de território: da história de Caim e Abel (nomadismo versus sedentarismo), dos nômades primitivos aos dadaístas e surrealistas, do grupo Stalker do qual pertenceu, da Internacional Letrista à Internacional Situacionista, do minimalismo aos artistas da Land Art dos anos 60 e 70; Careri reforça seu discurso explorando o caminhar não só como uma forma de ver e construir a paisagem, mas também como forma de intervir. O atravessar, instrumento de conhecimento fenomenológico e de interpretação simbólica do território, é uma leitura psicogeográfica do território comparado ao walkabout dos aborígenes australianos. (CARERI, 2013). | 23


Segundo a genealogia de Walkscapes, o ponto focal de Francesco Careri é a New Babylon (Nova Babilônia), onde existem grandes possibilidade de alteridade. Por mais que seu livro permaneça mais acerca da genealogia sobre a prática do caminhar e no seu discurso e convite ao caminhar, na versão mais recente de seu livro, existe um adendo intitulado “Walkscapes Ten Years Later”, no qual Careri escreve sobre a atualização de sua bibliografia e uma nova interpretação do que ele mesmo escreveu. Atravessando Bogotá, Santiago do Chile, São Paulo, Salvador da Bahia, Talca, entendi que não sei caminhar na quadrícula colonial e que para ir em transurbância tenho de buscar os pontos em que a grelha se rompe, perder-me ao longo dos rios, circunavegar as novas zonas residenciais, imergirme no labirinto das favelas. Na América do Sul, caminhar significa enfrentar muitos medos: medo da cidade, medo do espaço público, medo de infringir as regras, medo de apropriar-se do espaço, medo de ultrapassar barreiras muitas vezes inexistentes e medo dos outros cidadãos, quase sempre percebidos como inimigos potenciais. (CARERI, 2013, p. 170).

Como referência, a caminhada exploratória, ou Transurbância, do grupo romano Stalker (grupo que Careri fez 24 |


parte, citado em seu texto), também atravessa os “territórios atuais”, ou os vazios da cidade, chamados de “vazios plenos” por Hélio Oiticica e Lygia Clark, que acreditavam que eram vazios cheios de possibilidade, os espaços “entre”. A experiência que leva a descoberta, feita pelos pés, sobre uma Nova Babilônia, a cidade nômade, fruto do pensamento urbano situacionista – “um projeto de cidade onde se pode viver, e viver quer dizer criar” (JACQUES, 2013 apud CONSTANT, 1960) – já se encontra nas margens, sombras e sobras, no medo do encontro com a alteridade radical, conflituosa. Como ponto de partida, este mapa foi construído a partir da primeira leitura conceitual: Walkscapes, de Francesco Careri.

Mapa psicogeográfico construído a partir da ideia de espaços de ir e espaços de estar, baseado em levantamento feito com 40 pessoas. (Fonte: acervo pessoal da autora)

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Ainda não entrando no tema de alteridade, o mapa contém a ideia do corpo presente na cidade, suas conexões subjetivas e objetivas com os lugares, pontuados pelos pins. O mapa foi produzido a partir de um levantamento num grupo de aproximadamente 40 pessoas, pedindo que elegessem 3 locais na cidade: onde moram, onde trabalham e onde se divertem. As áreas recortadas do mapa de São Paulo são áreas de interesse que as pessoas ressaltaram, como espaços de estar. As áreas em branco são consideradas os espaços de ir. Os pins brancos são onde moram, os vermelhos, onde se divertem, e os verdes, onde trabalham. Esse mapa é uma possível tradução da apropriação humana na escala da cidade: um primeiro passo para discutir a subjetividade, a presença do corpo na cidade, encontros e desencontros.

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elogio aos errantes (paola berenstein jacques) Em um compilado sobre errâncias urbanas, desde o perder-se na multidão e cair no anonimato, ao causar o curtocircuito e provocar reações, participação, jogo, marginalidade e fazer derivas pela cidade, Paola Berenstein busca valorizar a experiência urbana de alteridade através do caminhar, que estão cada vez mais raros na cidade contemporânea. Como construção e (contra)produção de subjetividades, as errâncias (ou sua narrativa) “podem operar como potente desestabilizador de algumas partilhas hegemônicas do sensível” (JACQUES, 2013), tomando como ponto de partida o empobrecimento da experiência de alteridade na modernidade. O choque da modernidade é uma experiência física e psicológica – desde a industrialização, à cultura de massas, convergência de fluxos e informações em grande quantidade, disparidade sócio-econômica e violência urbana – e há um anestesiamento diante desses estímulos, da imagem publicitária contemporânea da cidade-espetáculo, criando-se uma estratégia de apaziguamento a partir da construção de subjetividades e desejos hegemônicos operados pelo capital | 27


financeiro, com a sua proteção através de uma atitude blasé1. A crítica das dinâmicas atuais se dá sobre a busca pela esterilização (captura, anestesia e domesticação) dessa experiência altamente estimulante, a espetacularização da cidade e a pacificação dos espaços públicos – que cria falsos consensos e esconde tensões – quando, na verdade, a valorização da alteridade traz a cada indivíduo suas experiências em particular, essencial para a vida urbana e potencializando a esfera pública, onde o Outro urbano resiste à pacificação e desafia a construção desses pseudo-consensos. São esses vários outros que, por sua simples presença e prática cotidiana, explicitam e provocam dissensos (JACQUES, 2013, p. 15), que inventam táticas e astúcias para sobreviver no cotidiano e nas ruas, constantemente alvos de uma assepsia promovida por projetos “revitalizadores” de espaços banais: os errantes que Paola cita durante o livro buscam justamente onde podemos identificar essas possibilidades e esses espaços que dão possibilidades de experiência, crítica, resistência ou insurgência contra a ideia do empobrecimento e do processo de esterilização da experiência; e não só buscam por isso, mas também transmitem as experiências através 3 Termo definido pelo sociólogo alemão Georg Simmel como a essência de não deixar-se impressionar por grandes diferenças observadas na cidade. O sociólogo descreve a essência da urbanidade moderna como o blasé.

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da narrativa: o flanêur de Baudelaire e Benjamin, a multidão londrina de Poe, os contos de João do Rio, as experiências surrealistas, dadaístas, as experiências de Flávio de Carvalho, as derivas e ideias de cidade da Internacional Situacionista de Debord e Constant e o Delirium Ambulatorium de Oiticica – Paola destrincha essa “cronologia errática” da descoberta e experimentações das possibilidades, quase como um segundo manifesto, seguindo Careri, sobre o caminhar, exaltando a importância da alteridade urbana. (...) desde o surgimento da própria disciplina urbanística, esse outro caminho, errante, paralelo – ou melhor, simultâneo – à história oficial do urbanismo erudito; e a de que se trata de um mesmo processo, cuja potência de resistência configura, a partir dessas diferentes instâncias, uma transmissão desviante da experiência urbana de alteridade através do errar pela cidade, e assim, uma crítica insistente ao urbanismo hegemônico. (JACQUES, 2013, p. 35).

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leituras complementares Através da leitura e compreensão de textos pontuais, desenvolveu-se a uma linha de raciocínio estruturada a partir das questões referentes ao lugar, pertencimento, identidade e estranhamento/familiaridade. Com a leitura de “A fenomenologia do lugar” de Christian Norberg-Schulz, compreende-se que o conceito de genius loci refere-se à essência do lugar. Trata o espaço como “totalidade intuitiva tridimensional da experiência cotidiana”, que abre espaço para intervenções, apropriações e para as relações humanas acontecerem ali. Entende-se o espaço (independente de sua escala, seja a escala de uma casa ou do espaço urbano, uma praça ou uma cidade) como um “sistema de lugares”, sendo também um sistema de relações. Os lugares possuem caráteres, atmosferas, constituídas por materialidade e forma. É levantada a questão de como se constitui fisicamente o tal lugar e quais são suas fronteiras (“onde o lugar começa a se fazer presente”), e de como a estrutura do lugar se constitui: se expressando em totalidades ambientais que incluem aspectos espaciais e característicos. Com isso, a fenomenologia do lugar deve abordar métodos básicos de construção e suas relações com a articulação formal. 30 |


A partir desse ponto, da essência do lugar, inicia-se o raciocínio sobre a relação do eu com o espaço. Numa breve leitura de “O estranho”, de Sigmund Freud, extraiu-se a essência de seu ponto focal do texto: o estranhamento e a familiaridade. Grosso modo, coisas desconhecidas que chamam a atenção, soam estranho, inquietam, porque em algum momento no passado aconteceu algo e esse algo se repetiu novamente no presente; então, a familiaridade com aquele estranhamento. Com esse pensamento, ao passar por uma experiência em determinado lugar, há o registro dessa memória e da sensação experimentada no momento. Ao repetir essa experiência com essa determinada sensação, sentida anteriormente, há o reconhecimento de um possível genius loci do lugar porque as sensações dessa atmosfera (termo utilizado no texto do Schulz) vivida anteriormente vêm à tona novamente em outro lugar. Assim constroem-se relações com os espaços a partir do momento que as sensações se repetem: daí a familiaridade se faz presente, é o que faz com que se crie uma relação com aquele lugar, ou com o outro, pois só há a relação com o outro (espaço, que toma a qualidade de lugar, ou com outro indivíduo) porque há nesse outro um pouco da experiência pessoal, ou das suas próprias características: dessa forma, constitui-se o conceito de alteridade. Para trazer a questão da alteridade para o cotidiano, | 31


Maria Rita Kehl complementa a discussão ao trazer o homem urbano, que é o homem comum, e seu medo de reconhecer-se no Outro, evitando a alteridade, pois há a possibilidade de reconhecer o mal em si próprio em outro homem comum na cidade: São Paulo são 12 milhões de cidades, 12 milhões de mapas sentimentais recortados pelas pequenas histórias de vida de seus habitantes. Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que sua imaginação inventou. Cada homem comum possui secretamente, na imensidão esmagadora da cidade, os nichos que acolhem suas lembranças: memórias do vivido, fragmentos da precária identidade que o homem urbano consegue constituir. (KEHL, 2015, p. 24).

Com essas questões, inicia-se a investigação através da literatura fantástica, que traz contos de conflitos entre homens e a fuga da anestesia cotidiana da cidade industrial.

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investigações literárias


investigações literárias Do ponto de vista do homem comum, que cidade é mais real: a das ruas, praças e prédios que ele percorre e vê todos os dias ou a cidade inconsciente que vive nele sem que ele perceba? (...) Sem o poeta, quem atestaria a existência dos anônimos de todas as multidões urbanas? Quem daria voz e significado a essas “vidas infames”, passageiras, insignificantes? A poesia moderna canta a existência do homem comum. (KEHL, 2015, p.28)

O viés literário, como uma “visão de mundo”, por meio da literatura fantástica e de personagens criados, é forma de entender, retratar e/ou criticar uma realidade, com contextos e situações criadas a partir do imaginário, com escritos de Jorge Luís Borges e Ítalo Calvino.

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ficções, de jorge luís borges leitura do texto A partir de contos fictícios, Borges cria diferentes atmosferas e situações, territórios de conflito e jogo, exaltando contradições nas quais o homem cai. Explora mais a relação do homem com o Outro, fala de desejos, instintos, subjetividade. não entra completamente na alteridade, mas é um primeiro passo. Em “As Ruínas Circulares”, quando o homem dorme (e faz muito disso) e idealiza o homem perfeito. O sonho, que é fruto da imaginação humana (e talvez de outras questões místicas), nos leva a uma ideia de comparação, já que há a idealização do homem perfeito. Por que seria perfeito? Em relação aos homens, ressalta situações onde eles e seus defeitos, talvez, sejam protagonistas. Nesse contexto, Borges escreve sobre os homens de forma mais subjetiva, sobre seus defeitos e fraquezas e, assim, cria os contos de perseguições (do outros homens ou de ideias), dos caminhos 36 |


e dos lugares, inventados, traçados e ocupados pelo próprio homem, seja na imaginação ou em casos possivelmente reais. Em outros contos, a morte, resultante das perseguições (talvez também de delírios, sonhos, desejo de vingança e afins), fica entendido como um descarte simples de humanos em alguns contos, sendo tratada também a questão do tempo. Como tudo se relaciona com o tempo, qual a sensação do passar do tempo – ou do parar do tempo. O tempo é a maior questão, girado em torno do universo da imaginação humana. Sua narrativa trás essa sensação da história ser contada ao ritmo no qual vivemos, de uma conversa, de alguém contando uma história; imersão no tempo sugerido pelo conto de forma sutil.

conceitos no texto Borges explora mais a relação do homem com o Outro, fala de desejos, instintos e subjetividade, como dito anteriormente. Não entra afundo no tema da alteridade, mas é um primeiro passo para a investigação com os territórios de conflito e jogo, exaltando contradições nas quais o homem cai e sua relação com o Outro e o espaço. | 37


texto-síntese

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metatexto Metatexto produzido a partir do texto-síntese, com a palavra-chave FICÇÕES. 38 |


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marcovaldo – ou as estações na cidade, de ítalo calvino leitura do texto Marcovaldo é um simples operário que faz de tudo dentro da empresa que trabalha, vive na cidade industrial em transição para a cidade moderna. Vive dificuldades financeiras, habita e trabalha em locais em condições insalubres, com uma família grande com quem tem que dividir um minúsculo espaço, sustentar-se com pouco dinheiro e achar diferentes saídas para os problemas. A princípio, soa como uma história melancólica, mas Marcovaldo dribla todos esses fatores na busca pela natureza dentro da cidade industrial e nas peculiaridades de pequenos elementos que passam despercebidos pelas pessoas, transformando situações do cotidiando em pequenas aventuras (e não somente ao olhar de Marcovaldo, mas também de seus filhos -com a licença poética de serem crianças). 54 |


A história se desenrola a partir de pequenos contos, separados pelas estações do ano (primavera, verão, outono e inverno), elemento fundamental para as ações e reações da natureza nas situações criadas por Marcovaldo – a chuva, a neve, temporada de migração de animais, cheia de lagos, as folhas das árvores no chão, o clima – com as interferências da cidade industrial – a fábrica que despeja o lixo no rio, a indústria comercial que manipula o consumismo, o comportamento de uma sociedade em determinada época e a dinâmica geral da cidade – gerando brechas para “escapar da dura realidade”. “O Outro Urbano é o homem ordinário que escapa – resiste e sobrevive – no cotidiano, reinventa modos de fazer, astúcias sutis e criativas, táticas de resistência e sobrevivência pelas quais se apropria do espaço e assim ocupa o espaço público de forma anônima e dissensual.” (JACQUES, 2013, p. 15).

Suas fantasias dentro de uma realidade resultam em experiências urbanas de alteridade e derivas por uma cidade hostil; por mais que acabe em desencantos e desventuras, Marcovaldo segue, estação pós estação, criando situações inusitadas (tratamento do reumatismo com picada de abelha, percorrer a cidade atrás de gatos, pescaria em aquário de restaurante, andar de bicicleta pela cidade com uma planta, | 55


para que ela cresça) e transformando um mundo “pessimista” em uma utopia cheia de possibilidades, seja com cogumelos, coelhos, plantas, peixes ou sabão em pó, para contornar a falta de dinheiro, a doença, a melancolia e o tédio, proporcionados pela cidade “maquinária”.

conceitos no texto Personagem da literatura do realismo fantástico, Marcovaldo sai da condição anestesiada e maquinária da cidade, com suas pequenas ações no cotidiano. O palco de suas peripécias é a cidade, onde muitas vezes se perde em errâncias e exalta conflitos e tensões; busca nos resíduos, no banal e na natureza possibilidades que podem ser interpretadas como experiências urbanas de alteridade. O trecho citado do livro de Paola Jacques descreve o personagem de Marcovaldo de forma plena, um homem ordinário que sobrevive no cotidiano criando novas táticas e situações.

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metatexto Metatexto produzido a partir do texto-síntese, com a palavra-chave MARCOVALDO. | 57


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investigações arquitetônicosociais


investigações arquitetônico-sociais O viés arquitetônico-social, como uma leitura da “visão de mundo” de arquitetos é uma forma de identificar, tanto no ambiente construído quanto no discurso dos arquitetos, a possibilidade de experiências de alteridade. Lina Bo Bardi, arquiteta ítalo-brasileira, se preocupava com a “Alma Popular da Cidade”, passou por diversas áreas: cultural, política, arquitetônica e artística, buscando construir ou reafirmar uma identidade, exaltando a importância do popular e da construção feita pelas próprias pessoas. Rem Koolhaas, arquiteto holandês com escritórios na Holanda, Estados Unidos, China e Catar, ganhou notoriedade por assumir uma postura crítica na condição de pensar e desenhar o espaço, Koolhaas teve uma contribuição significativa ao criticar o contexto atual, principalmente no âmbito do urbanismo: desenvolveu uma série de textos, ensaios e reflexões, como os “Três textos sobre a Cidade”. Alejandro Aravena, arquiteto chileno, e Herman Hertzberger, arquiteto holandês, possuem nesta leitura o maior papel de reconhecer e valorizar a identidade, através da abertura de possibilidades quanto o problema como uma possível solução. | 77


textos selecionados de lina bo bardi leitura do texto Os três textos selecionados – Cultura e não cultura, Arte industrial e Nordeste – focam no tema da cultura produzida pelas mãos da própria população, da importância e do significado desse feito para as pessoas e para a cultura popular, como uma forma de fortalecer a identidade (brasileira). No primeiro texto, Cultura e não cultura, Lina critica a substituição de uma real cultura, que seja útil ao homem, por uma “pseudocultura”, carregada por um “criticismo cosmopolita superficial” (nas palavras da própria arquiteta) que abandona os reais problemas a serem enfrentados pela população e pela cultura, permanecendo no vazio do pensamento com uma linguagem especializada e erudita. Lina ressalta que, ao contrário dos críticos e eruditos, a população que possui maior preocupação em resolver questões relacionadas às suas necessidades básicas e resolver 78 |


as questões por si mesma, possui a força necessária para o desenvolvimento de uma real cultura por conta de sua essência e senso de realidade. A despreocupação com a pseudocultura ressalta a importância dos problemas existentes e de como o povo lida com isso. Lina discorre sobre a importância da aceitação das realidades existentes e conduzi-las a uma ação política efetiva, salvaguardando ao máximo as forças genuínas do país e ao mesmo tempo estar ciente do que ocorre internacionalmente, sem desmerecer o nacional. Isso nos leva à discussão do texto Arte Industrial, onde Lina define as diferenças entre artesanato, artesão e artista popular, sendo: o artesanato a expressão do tempo e de uma sociedade projetado e executado pelo trabalhador; o artesão, executor especialista sem capital; e a arte popular, que é “Arte com A maiúsculo” . Lina segue sua crítica à pseudocultura, dessa vez mais direcionada ao saber popular e à cisão entre o técnico e o operário, pois os objetos pensados e executados por uma só pessoa possuem a essência do objeto. O técnico não tem a competência prática e o operário é aviltado pela falta de satisfação no trabalho, e isso não mostra a raiz cultural histórico-popular do país, explicitada pelo texto anterior, porque não há a necessidade real da execução da peça. O último texto, Nordeste, fecha a linha de raciocínio | 79


sobre a cultura: a exposição e análise sobre uma região do Brasil onde há certa escassez e onde as pessoas têm a necessidade de pensar e executar os objetos e resolver problemas. Caracteriza e contextualiza as discussões dos textos anteriores, trazendo a tona a real identidade do país.

conceitos no texto Lina desenvolve um raciocínio focado na questão da cultura como elemento essencial para criação de uma identidade e de pertencimento para o indivíduo, desde a produção cultural à exposição cultural de um país. A importância da apropriação de uma cultura, principalmente dentro de um contexto de escassez, faz com que as ideias de Lina Bo Bardi conversem com outros dois autores utilizados para a discussão mais adiante (Alejandro Aravena e Herman Hertzberger).

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metatexto Metatexto produzido a partir do texto-sĂ­ntese, com a palavra-chave CULTURA. | 81


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junkspace, de rem koolhaas leitura do texto O texto Junkspace (Espaço-lixo) é o trecho final de um raciocínio sobre uma análise crítica da cidade contemporânea, desde a arquitetura à cultura vigente. Na série crítica, “Três textos sobre a cidade”, Koolhaas define o espaço-lixo como “o resíduo que a humanidade deixa no planeta, a soma total do êxito atual” . É a busca pela identidade por conta de uma possível fetichização; não é mais identidade por essência, mas sim pelo consumo. Questão amplamente abordada pelo autor, Koolhaas explora a arquitetura moderna como ponto de partida para o espaço-lixo se propagar. A preocupação com as massas anulou a visibilidade da arquitetura feita pelo povo, fazendo com que o espaço-lixo se tornasse o principal: as infraestruturas de apoio, as grandes conexões, uma grande bolha: a cidade acumulou inúmeras informações em sobreposição, sem necessariamente qualificá-las. “Revela uma infraestrutura ininterrupta: escadas rolantes, 96 |


ar condicionado, aspersores (...) raramente se vislumbram limites”. A arquitetura e seu significado não importam no espaço-lixo. É um espaço condicionado, que não oferece possibilidades para quem o experimenta. A cidade tornouse o espaço-lixo com sobreposições desconexas e forçadas, um espaço feito para as massas que desconsidera a unidade, pensando nas “marcas à mercê dos grupos de interesse”. A arquitetura se tornou uma arquitetura de efeitos especiais: exuberante, espetacular, mas é só mais um elemento, sem dar certeza de onde estamos, anulando o lugar. O autor segue fazendo uma crítica aos diversos elementos do espaço-lixo: às sobreposições, modularidade, megaestruturas, irregularidade construída a partir de elementos idênticos; sua associação às necessidades fisiológicas e aos utilitários genéticos, à quantidade e não ao tipo. Com mania de atemporalidade, o espaço-lixo se aproveita das oportunidades de se expandir. Essa cidade formada por espaços e arquitetura feitos para as massas se constitui como um paradoxo. Ao mesmo tempo em que anula o pensamento do indivíduo e das diferenças, anulando a alteridade num espaço que dê conta de uma multidão e não permita possibilidades (a não ser a possibilidade de reprodução do próprio espaçolixo), o espaço-lixo é a forma que a sociedade (funcionalista e capitalista) tem de se encontrar no mundo. Sua procura por | 97


uma identidade, por ter a sensação de pertencimento meio a uma cidade tão genérica dentro do contexto do consumo desenfreado, que busca nas marcas e nos grandes ícones atuais formas de pertencer à tribos ou camadas sociais, resulta no espaço-lixo: as sobreposições feitas por milhares de pessoas, aniquilando e gerando uma “pseudo-identidade”. Pode ser considerado como a alteridade levada ao extremo (oposto a outros autores), que levam os conflitos a serem constantes, sem respeitar o espaço do outro, e sim aniquilando o espaço do outro ao pensar o seu próprio. A leitura do autor é até certo ponto pessimista sobre um espaço aniquilador de identidade, e que ao mesmo tempo é um grande palco para conflitos acontecerem, mostrando que a cidade é, além de um espaço aberto e formado por diversas oportunidades, também pode ser um espaço opressor, com requisitos padrão para sobreviver ali,e uma delas é ter sua identidade “a qualquer custo”.

conceitos no texto Rem Koolhas, quando escreve sobre o Junkspace (em tradução literal: Espaço-lixo), coloca esse espaço como as ruínas do modernismo, não só como uma ferramenta para criticar a decadência e espetacularização das cidades, mas 98 |


também uma rota de fuga para encontrar uma alternativa para a convivência. Koolhaas é tido como um contraponto para os autores abordados anteriormente, trazendo a questão dos possíveis extremos em relação à alteridade: anulando ou potencializando ao máximo. Há a remoção do outro tentando ser diferente, na busca da sensação de ser único, de ter uma identidade, mas acaba anulando o outro nessa busca. Com a grande quantidade de informações e sobreposições, não há estranhamento nem familiaridade, logo não existe um real reconhecimento da sua própria identidade. Critica também as “cidades inteligentes”, a cidade que vende a falsa sensação de segurança, automatizada, criada a partir de um desenho que anula qualquer possibilidade de alteridade ou transgressão, como o próprio autor cita em uma palestra no encontro High Level Group sobre cidades inteligentes: uma cidade fadada a criar espaços de segregação, que permitam somente iguais dentro de um mesmo ambiente. Nesse aspecto, pode-se fazer um comparativo entre os espaços da rodoviária, que propicia encontros de diferentes classes, destinos e pessoas, versus o aeroporto, ambiente inicialmente elitizado, onde somente uma parcela da sociedade pode usufruir. A homogeneização dos espaços anula as possibilidades de alteridade, de encontrar-se com o Outro, do diferente, dos conflitos e tensões. | 99


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the forces in architecture, de alejandro aravena leitura do texto Alejandro Aravena, dentro de seu escritório Elemental, rotulado como um Do Tank, parte da premissa de ‘encontrar o mais irredutível, preciso e relevante valor começando da situação’ (ARAVENA, 2011) onde a ação (que eles chamam de verbo) é o que eles fazem a partir da arquitetura. A busca pela questão elemental (palavra-chave para seu trabalho) se estrutura a partir da ação de dar um passo atrás antes de partir para a resolução do projeto: buscar a raiz do problema e então compreendê-lo a partir da formulação da pergunta certa; e também não vê-lo necessariamente como um problema, mas sim como uma forma de articulá-lo. A inclusão da comunidade no processo de construção é sua principal filosofia de arquitetura, onde sua visão é de prover a infraestrutura básica, dando-lhes a liberdade de expressão, sem tirar sua capacidade de autoconstrução – que foi uma das formas de ver um possível problema na paisagem 112 |


urbana como algo de uma importância maior para cada indivíduo ou família, articulando essa questão com outras questões menos subjetivas, como a limitação no orçamento e a limitação espacial na hora de desenhar as habitações de interesse social (um exemplo disso é a Quinta Monroy, em Santiago do Chile). Dessa forma, Aravena sintetiza e dá uma solução simples a um problema que parece ser extremamente complexo. Sua maior questão se estrutura a partir do entre, em suas próprias palavras, “o que acorre na escada e na rua [do aeroporto de Santiago do Chile] não é somente a despedida e as boas-vindas, mas a extensão delas até o primeiro e o último momento” - o que acontece, a apropriação humana daquele lugar e, principalmente, naquele momento, é onde está a essência do valor que busca encontrar. Fica nítido também, dito no texto anteriormente, sua preocupação em ressaltar o poder de autoconstrução e não anular isso. Dessa forma, não homogeneíza a habitação social, conferindo maior identidade a cada unidade.

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conceitos no texto A compreensão da “visão de mundo” de Alejandro Aravena através de uma leitura subjetiva das ideias colocadas pelo arquiteto em seu livro, The Forces In Architecture, e em seu texto Os Fatos da Arquitetura, leva à visão de que Aravena compreende os conflitos da cidade contemporânea e os assume, de forma a incorporá-los projetualmente como parte da solução, e não exatamente como um problema. Assume, também, a problemática da escassez, trabalhando o poder de síntese da arquitetura, para que sirva como um suporte para as apropriações humanas. Ao atrelar uma solução construtiva a sua compreensão da relação entre eu e o espaço e da relação do eu e o Outro, Aravena potencializa a possibilidade da criação de uma identidade através da apropriação humana, conceitos bastante explorados pelo arquiteto holandês Herman Hertzberger, visto no próximo texto a ser analisado.

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textos selecionados de herman hertzberger leitura do texto Nos textos selecionados para análise do livro Lições de Arquitetura, de Herman Hertzberger – “De usuário a morador”, “A rua” e “O espaço habitável entre as coisas” –, o autor traz questões como senso de responsabilidade, sentimento de comunidade e a criação de possibilidade ao usuário através do desenho como chaves para que a arquitetura estimule afinidade emocional do indivíduo com o lugar e do indivíduo com sua comunidade, trazendo, implicitamente, a questão da alteridade como um dos pilares da sensação de pertencimento. O pertencimento, de fato, leva o indivíduo passar de um usuário comum à parte de um todo, à morador. Em seu primeiro texto, “De usuário a morador”, Hertzberger ressalta a importância da criação de condições para estimular um maior senso de responsabilidade, o que exige e/ou implica em maior grau de envolvimento. A exemplo disso, utiliza as escolas Montessori: onde os “deveres 130 |


domésticos” são parte do programa diário das crianças, fazendo -as criar maior afinidade emocional com o ambiente e suas atividades; alerta, também para os riscos de ambientes multifuncionais, por exemplo, uma sala utilizada para duas atividades diferentes. Há a possibilidade de alterarem suas coisas de lugar, e o problema não são as diferenças, mas sim o respeito que deve (ou deveria) existir para com o outro, principalmente para que respeite a criação de sua identidade. No texto “A rua”, Hertzberger coloca seu pensamento “além da porta ou do portão”, para “um mundo onde de pouco temos a ver, sobre o qual praticamente não exercemos influência” . Defende a rua como sala de estar comunitária, mas que houve certa desvalorização desse conceito a partir do aumento de carros na rua, da organização das habitações e serviços sem critério, diminuição da densidade populacional e da melhoria das condições econômicas, que implica em maior individualidade e menos ações conjuntas com os vizinhos (lembrando que o autor não demoniza a melhoria das condições econômicas das pessoas). Analisando arquitetonicamente, o arquiteto é somente responsável pela implantação e o desenho da arquitetura, onde define graus de compartilhamento e isolamento das pessoas. Não há possibilidade de forçá-las a conviver no espaço público, mas há meios, através do desenho, de estimular possíveis usos | 131


compartilhados e tirar as pessoas de um isolamento total e alienação que espaços segregadores proporcionam. A questão é o ponto de equilíbrio entre a privacidade e o contato com o Outro, para não sentir que seu espaço tenha sido invadido por completo (e talvez sujeito a alterações) nem isolar completamente um e outro, mas para que o público e o privado se complementem, de forma que o usuário se identifique como ele próprio, com suas características e particularidades dentro de seu espaço; e que se identifique como um membro de uma comunidade e, apesar de existirem conflitos e diferenças, ele se sinta parte do espaço público. O último texto, “O espaço habitável entre as coisas”, passa para a escala da relação do usuário com os objetos, mostrando a capacidade da forma, em desempenhar diversos papéis sob circunstâncias mutáveis e a expansão das possibilidades de todas as coisas projetadas. Hertzberger defende que a forma e o espaço devem potencializar a acomodação, gerando maior receptividade a diversas situações para estimular a vida cotidiana. O autor deixa claro que a interpretação do usuário em relação ao objeto necessita ser mais livre, criando condições, por exemplo, o sentar, que oferece oportunidades de apropriações temporárias e cria mais circunstâncias para o contato com o outro, mas sempre com cautela para evitar desperdícios de espaço. Sua atenção 132 |


ímpar ao deslocamento do olhar do âmbito oficial para o informal traz uma leitura mais humana à arquitetura (ou ao espaço de modo geral, seja público ou privado) onde sempre encontra a alteridade como alternativa para que as dinâmicas cotidianas tenham maior fluidez.

conceitos no texto Herman Hertzberger utiliza o espaço como artefato de discurso para as relações entre as pessoas, como o espaço pode potencializar ou induzir tais relações. Seja um espaço público ou privado, o arquiteto parte do princípio que o desenho da cidade, da rua ou do ambiente podem abrir possibilidades de apropriação, que possivelmente geram a sensação de pertencimento ao local, não só como indivíduo, mas como membro de uma comunidade. Assim como Alejandro Aravena, Hertzberger utiliza a arquitetura como um suporte para as relações humanas acontecerem, abrindo espaço para a interpretação do usuário e da comunidade, principalmente nas “salas de estar comunitárias”, que são as ruas (pontochave para voltar ao pensamento e crítica de Francesco Careri e Paola Jacques e constituir a linha de raciocínio proposta por esta pesquisa). | 133


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conclusão A cidade, como concentração de oportunidades, se forma, transforma, cresce e se expande pelo território, o que permite múltiplas interpretações e experiências a partir da convergência de fluxos que se conectam e entram em conflito ao longo de um complexo tecido urbano. Com uma inquietação constante sobre a necessidade de movimentos urbanos de ressignificar espaços, ruas, praças – enfim, a vida urbana – identifica-se a importância da emersão do “espírito do lugar” para que as pessoas sintam-se parte daquele lugar – o corpo se faz presente, o corpo vira uma extensão da rua, é parte dela – e da cidade. Com a leitura, um debate reflexivo sobre o que poderia ser extraído, junto a produção de um texto, a pesquisa caminhou para um caminho investigativo que, a partir das ferramentas para compreender a ocupação do espaço (extraídas de cada autor), desenvolveu-se uma postura crítica sobre a ocupação do espaço no cotidiano – analisou-se criticamente através de múltiplos olhares e de possíveis vieses a manifestação subjetiva das pessoas no espaço, para construir uma “caixa de ferramentas” para reconhecer a alteridade que, ao meu ver, é um elemento de extrema importância na vida | 155


urbana e na construção de uma identidade. A noção de alteridade se conecta diretamente com essa necessidade do contato com o Outro, da construção coletiva, do caminhar e do perder-se na multidão: olhar criticamente para o espaço urbano e para um modelo de sociedade que “deu as costas” às ruas e ao Outro pela falsa sensação de segurança, reflexos do ambiente construído e para o ambiente construído. E o único modo de ter uma cidade viva e democrática é poder caminhar sem suprimir os conflitos e diferenças (...) Caminhar é um instrumento insubstituível para formar não só alunos como também cidadãos, que o caminhar é uma ação capaz de diminuir o nível de medo e de desmascarar a construção midiática da insegurança: um projeto ‘cívico’ capaz de produzir espaço público e agir comum. (...) Ocorre a libertação de convicções postiças e começa-se a recordar que o espaço é uma fantástica invenção com a qual se pode brincar, como as crianças. (CARERI, 2013, p. 170-171).

Ao explorar diversos autores com diferentes “visões de mundo”, a alteridade se faz presente em cada discurso de formas diferentes, tratada sempre como uma forma de identificação do indivíduo com o Outro e/ou com o lugar. Os autores conversam e se complementam com aproximações ou oposições: da crítica sobre as dinâmicas atuais e a busca pela 156 |


esterilização de experiências estimulantes, de ações que criam os falsos consensos e escondem as tensões necessárias para a experiência urbana de alteridade, encontrada em Koolhaas com sua crítica à cidade contemporânea, em Ítalo Calvino com seu personagem Marcovaldo que percorre a cidade saindo de um estado “anestesiado” pela cidade industrial, e Paola Jacques que elogia os errantes, desde o flanêur ao situacionista; à questão da criação de uma identidade e pertencimento, a partir da construção de uma cultura e/ou da apropriação de espaços, vista em Lina, Hertzberger e Aravena. Todas as questões discutidas giram em torno de experiências vividas pelo corpo no espaço, seja na escala de uma casa ou da cidade. A construção dessa linha de raciocínio com as intervenções e apropriações humanas, sejam arquitetônicas ou não, dialogam e exaltam o tal “espírito do lugar” e sua identidade, ressignificando subjetivamente o espaço. Com isso, a importância dessa pesquisa não é somente sobre identificar esse fenômeno da alteridade urbana ou de analisálo, mas também assumir como uma postura crítica: o arquiteto urbanista está na condição de pensar e desenhar o espaço arquitetônico e urbano, além da sua condição multidisciplinar, portanto seu trabalho possui influência direta em dinâmicas urbanas, seja qualificando, potencializando, gentrificando ou segregando espaços.

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referências

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