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O AMOR QUE NÃO OUSA DIZER O NOME

“Não são as nossas diferenças que nos dividem. É a nossa inabilidade de nos reconhecer, nos aceitar e celebrar as nossas diferenças.”

Audre Lorde6

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De categorias, títulos e rótulos

Quando falamos sobre sexualidade, as definições atuais abrangidas pelas ciências sociais apontam sua ligação com significados, ideias, desejos, sensações, emoções, experiências, condutas, proibições, modelos e fantasias que são configurados de modos diversos em diferentes contextos sociais e períodos históricos. Ou seja, de acordo com a publicação Gênero e Diversidade na Escola: formação de professoras/ es em Gênero, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais, trata-se de uma questão dinâmica, mutacional e que está sujeita a diversos usos, múltiplas e contraditórias interpretações. Principalmente: está sujeito a debates e a ferrenhas disputas políticas.

Para discutir a existência de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros – LGBT+, no entanto, é preciso não apenas pensar questões referentes à sexualidade, mas ampliar o debate para compreender o que é gênero, quais aspectos são de fato biológicos e quais são sociais, o que são as orientações sexuais, o que são as identidades e expressões de gênero e, por fim, por que, no campo das disputas políticas, em pleno século XXI, este tema continua sendo tão disputado.

É importante ressaltar, antes de mais nada, que as categorias que aqui trabalharemos não são engessadas. Herek (1995) aponta que os sistemas de rotulação são extremamente simplistas ao tratar de um assunto tão complexo. O autor ainda argumenta que nem todas as pes-

5 Título de um poema escrito pelo irlandês Oscar Wilde. 6 Frase escrita no livro Our Dead Behind Us, da escritora caribenha-americana, feminista, mulherista, lésbica e ativista dos direitos civis, Audre Lorde. Tradução livre.

soas exibem coerência entre os seus sentimentos sexuais, seus comportamentos e sua identidade e que muitas delas sofrem considerável fluidez na sexualidade ao longo de suas vidas. Embora concordemos veementemente com Herek, precisávamos de uma base para orientar o nosso estudo. Sendo assim, conceituaremos alguns dos termos que utilizamos neste livro-reportagem, mas o fazemos conscientes da fluidez e da pluralidade de outros significados que os mesmos podem ter em outros contextos.

O conceito gênero foi formulado nos anos 1970 com profunda influência do movimento feminista. Criado para distinguir a dimensão social da dimensão biológica, o termo se baseia na premissa de que há, sim, machos e fêmeas na espécie humana, levando em consideração aspectos biológicos. Entretanto, a maneira de ser homem e de ser mulher está intrinsecamente atrelada à cultura. É preciso pensar gênero distanciando homens e mulheres das anatomias de seus corpos e compreendendo que ambos são produtos de uma realidade social.

Já o papel de gênero é a forma como a pessoa se relaciona socialmente, se ela é mulher e se veste como mulher ou se é homem e se veste como homem, por exemplo. A identidade sexual é a forma como o indivíduo se percebe em relação ao gênero que possui e a orientação sexual diz respeito à atração sexual e afetiva que se sente por outros indivíduos. Desde o berço meninos e meninas são submetidos a um tratamento diferenciado que os ensina os comportamentos e emoções considerados adequados, por exemplo. Ou seja: qualquer “desvio” deve ser reprimido para recuperar-se o “bom comportamento”. (FRY, MACRAE, 1983, p.12).

As características biológicas que as pessoas têm ao nascer são identificadas como o seu sexo ou aparelho reprodutor biológico. Neste espectro, falamos sobre cromossomos, genitália, composição hormonal e outros temas inteiramente ligados ao funcionamento do nosso corpo físico. Tudo isso indica que a pessoa pode nascer com a genitália considerada feminina, masculina ou intersexual. Portanto, não há gênero no sexo biológico em si, o que existe é uma expectativa social de gênero em relação ao corpo/genital (CADERNO, 2017).

Identidade de gênero, por sua vez, é uma experiência interna e in-

dividual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por meios médicos, cirúrgicos e outros) e outras expressões de gênero, inclusive vestimenta, modo de falar e maneirismos (PRINCÍPIOS, 2006). Identidade de gênero é a percepção que uma pessoa tem de si como sendo do gênero masculino, feminino ou de alguma combinação dos dois, independente de sexo biológico.

Trata-se da convicção íntima de uma pessoa de ser do gênero masculino (homem) ou do gênero feminino (mulher) (ABGLT, 2010). A identidade de gênero da pessoa não necessariamente está visível para as demais pessoas. Sendo assim, é importante entender que existem pessoas transgênero e cisgênero. As pessoas transgênero não se identificam parcial ou completamente com o gênero designado ao nascer e as cisgênero identificam-se com o gênero atribuído ao nascer.

Expressão de gênero é como a pessoa se manifesta publicamente, seja por meio do seu nome, da vestimenta, do corte de cabelo, dos comportamentos, da voz e/ou características corporais e da forma como interage com as demais pessoas. A expressão de gênero da pessoa nem sempre corresponde ao seu sexo biológico (adaptado de GLAAD, 2016).

No campo das orientações sexuais, existem (entre outras):

Os heterossexuais, que são aqueles que sentem atração afetiva e sexual por indivíduos do sexo/gênero oposto;

Os homossexuais, que são os que sentem atração afetiva e sexual por indivíduos do mesmo sexo/gênero. Mulheres que se relacionam com outras mulheres chamam-se lésbicas e homens que se relacionam com outros homens são chamados de gays;

Os bissexuais, que tanto podem sentir atração afetiva e sexual por alguém do mesmo sexo/gênero, como por alguém do sexo/gênero oposto;

Os assexuados, que são os indivíduos que não sente nenhuma atração sexual, seja pelo sexo/gênero oposto ou pelo mesmo sexo/gênero;

Os pansexuais, que são as pessoas que sentem atração afetiva e se-

xual por outras pessoas, independente de sua identidade de gênero ou sexo biológico. A pansexualidade é uma orientação que rejeita especificamente a noção de dois gêneros e até de orientação sexual específica. (MARSHALL CAVENDISH CORPORATION, 2010).

Fry e Macrae (1983) acreditam que a orientação sexual se inicia desde o início da vida do indivíduo, e que o meio em que vivemos reprime isto de forma a não aceitar, em hipótese alguma, um comportamento contrário àquele que foi ensinado pelos pais, segundo o qual o homem foi feito para a mulher e a mulher, para o homem, ou que o mundo fora designado somente para as pessoas cisgênero, sem espaço para a existência das pessoas trans.

Faz-se imperativo compreender, neste momento da discussão, que vivemos em uma sociedade heterocisnormativa. O que isso significa? Que a nossa sociedade é construída para associar heterosexualidade e cisgeneridade com normalidade. Tudo o que foge a esse padrão é associado à perversão e ao erro, logo, a algo que precisa ser punido, extinguido.

É importante entender, ainda, o que significa cada um desses conceitos para compreender, inclusive, a dinâmica do preconceito. Um homem gay afeminado não sofrerá LGBTfobia da mesma forma que um homem gay com aparência heteronormativa. Uma mulher lésbica cisgênero vai passar por experiências diferentes das vividas por uma mulher lésbica transgênero ao longo da vida. É preciso perceber tal fato, também, para ter a dimensão da complexidade desta “sopa de letrinhas” que engloba em uma única luta questões referentes às orientações sexuais, à identidade de gênero e ao sexo biológico.

Por que lutamos?

A humanidade é formada por seres plurais e diversos quanto à maneira de ser, sentir, raciocinar, agir e perceber a vida. Essas pluralidades e diversidades também se aplicam à forma como nos relacionamos afetivamente e/ou sexualmente com outras pessoas. Isso significa que não existe um modo único de relação, que supostamente seja “natu-

ral”, “certo” ou “normal”, mas, ao contrário, as possibilidades são inúmeras. Contudo, e infelizmente, as pessoas que têm comportamento sexual que se diferencie do socialmente aceito sofrem preconceito e acabam sendo tratadas com desrespeito e desprezo.

A discriminação das pessoas em função de suas diferenças é uma realidade. Em vez de respeitar a diferença como um dos valores de maior prestígio para a humanidade, o caminho que percorremos até aqui nos mostra que escolhemos o caminho contrário. Para entender a diversidade sexual, bem como outros aspectos intrínsecos à vida dos seres humanos, é preciso perceber que ela não é um fenômeno meramente fisiológico, mas fortemente marcada pelas relações sociais.

Os segmentos contrários à diversidade sexual geralmente o são por dogmas religiosos e morais, já que, de acordo com a teologia moral cristã, dominante na sociedade brasileira, a diversidade é antinatural e um pecado nefando. Esse pecado foi considerado mais grave do que matar a própria mãe ou escravizar outro ser humano (MOTT, 2003). Sendo a nossa sociedade ocidental baseada nos valores judaico-cristãos, não é difícil encontrar as raízes da discriminação e do preconceito contra LGBT+, atitude esta que chamamos de LGBTfobia.

Além de já ter sido considerada, em diferentes momentos históricos, antinatural e um pecado, a diversidade também já foi tida como um crime hediondo em que “(...) os réus desse crime hediondo deviam ser punidos com a pena de morte: a pedradas entre os antigos judeus e até hoje nos países islâmicos fundamentalistas; decapitados, no tempo dos primeiros imperadores cristãos; enforcados ou afogados na Idade Média; queimados pela Santa Inquisição; condenados à prisão com trabalhos forçados na Alemanha nazista” (MOTT, 2003, P. 20).

Outro fator importante que não pode ser esquecido é o uso da medicina como meio de propagação do estigma e preconceito contra pessoas LGBT+. Em meados do século XIX, por exemplo, a medicina definiu a homossexualidade como uma doença fisiológica causada por distúrbios genéticos ou biológicos e, no início do século XX, a psicanálise introduziu a visão psicológica da homossexualidade, que, ainda que fosse menos moralista, a considerava um distúrbio, ou seja, uma anormalidade, no desenvolvimento da sexualidade.

Foi somente em 1973 que a homossexualidade deixou de ser classificada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria. No Brasil, em 1985, o Conselho Federal de Psicologia deixou de considerar a homossexualidade um desvio sexual e, em 1999, estabeleceu regras para a atuação dos psicólogos em relação às questões de orientação sexual, declarando que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão e que os psicólogos não poderão participar de eventos e serviços que proponham tratamento e/ou cura para a homossexualidade. Em 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou a homossexualidade da sua lista de doenças mentais. Já em 1991, a Anistia Internacional passou a considerar a discriminação contra homossexuais uma violação aos direitos humanos.

Já quando se fala sobre a transexualidade, foi somente em 2019 que a Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu da sua classificação oficial de doenças, a CID-11, o chamado “transtorno de identidade de gênero”, definição que considerava como doença mental a situação de pessoas trans – indivíduos que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento.

É perceptível, assim, que a luta LGBT+, além de importante historicamente, ganhou contornos mais democráticos principalmente na história recente. Assim, ela se perpetua como necessária tanto na busca pela manutenção dessas conquistas, quanto na busca por igualdade e equidade social.

Homofobia ou LGBTfobia? Homossexuais ou LGBT+? Abordagens e explicações

A palavra homofobia foi utilizada pela primeira vez pelo psicólogo George Weinberg, em 1972, e deriva das palavras gregas: homos e phobikos (ter medo ou aversão a). A palavra homofobia traduz o ódio, a intolerância ou a aversão à homossexualidade e aos homossexuais. De acordo com o livro Gênero e Diversidade na Escola (BARRETO;ARAÚJO;PEREIRA, 2009), a homofobia opera por meio da violência simbólica, que nem por isso deixa de ser danosa.

Com o avançar das discussões e com a necessidade de abranger todas as especificidades da chamada “sopa de letrinhas” que permeia esse universo, a palavra homofobia já não dava mais conta de toda a problemática referente a esse heterogêneo grupo de pessoas.

Dessa forma, por se tratar de um movimento social que está em constante evolução, já fomos contemplados pela sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), que fora substituída por GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgênero) que, por sua vez, fora substituída por LGBT, trazendo o L das lésbicas à frente como um evidente recado sobre a invisibilidade sofrida pelas mulheres. Homofobia, portanto, passa a ser substituída por LGBTfobia.

Atualmente, inclusive, embora ainda não haja nenhuma definição oficial, o Brasil encaminha-se cada vez mais para acrescentar o I, de intersexual, à sigla e um símbolo de “+”, que faz menção a tudo o que ainda não é contemplado. Neste livro escolhemos utilizar a versão já acrescida do símbolo +, com a finalidade de contemplar o máximo de pessoas possível em nossas discussões.

Utilizamos assim LGBT+ e LGBTfobia, considerando que os preconceitos impressos contra essas populações, embora tenham uma mesma raiz, possuem diferentes ramificações e se desenvolvem de maneiras distintas.

Outra explicação faz-se necessária para os capítulos que se seguem: é importante compreender que pesquisas históricas, por mais cuidadosas que sejam, podem conter elementos e simbologias que já não são mais tratadas da mesma forma no tempo atual. Isso acontece diversas vezes em nossa pesquisa com o termo “homossexual” sendo utilizado para se referir à população LGBT+ como um todo.

Na medida do possível, foram feitas as alterações cabíveis. Entretanto, em alguma citação ou mesmo na fala de algum entrevistado, preferimos manter a originalidade do que foi dito, compreendendo que esta também é uma marca temporal importante para o Movimento LGBT+, que até bem pouco tempo era apenas conhecido como Movimento Homossexual ou Movimento Gay.

Fotos: Diana Davies. Acervo: New York Public Library.

Foto: Leonard Fink. Acervo: LGBT Community Center National History Archive.

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