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O MOVIMENTO LGBT+ NO CONTEXTO BRASILEIRO
“A gente se fortalece na luta”. Marielle Franco7
O surgimento de um Movimento LGBT+ verde e amarelo
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No final da década de 1970, o país vivia um período de efervescência, em que os estudantes tomavam as ruas para exigir a anistia dos presos e exilados políticos. Era o início do processo de redemocratização do país e o começo do fim da ditadura militar. O Brasil começava a respirar ares mais otimistas, grandes transformações se anunciavam e a sociedade civil ressurgia politicamente. Trabalhadores, estudantes, intelectuais e empresários buscavam uma reestruturação social, e foi por meio dos movimentos sociais que a parcela oprimida da população vislumbrou a possibilidade da mudança social e política que desejavam (MACRAE, 1990).
Foi justamente nesse momento que o Movimento LGBT+ começou se articular no Brasil. Nessa década, segundo Silva (2009), a homossexualidade e a transexualidade começou a aparecer nas artes, publicidades e peças de teatro em grandes centros do país, dando início à produção de uma percepção social do tema, o que, de certo modo, contribuiu para que a ação política dos militantes e apoiadores da causa se tornasse mais visível e assumisse um caráter afirmativo. No início dessa mesma década, no entanto, o país passava por um período diferente em sua história.
Para Green (1999), no início da década de 1970 o país já encontrava
7 Frase dita pela vereadora do Rio de Janeiro, ativista pelos Direitos Humanos e socióloga, Marielle Franco (Psol), em seu último ato antes de ser assassinada em 14 de março de 2018.
“condições amadurecidas” para o surgimento de um movimento político que lutasse pelos direitos de pessoas homossexuais e transexuais, como aconteceu em países vizinhos, como Argentina e México. Mas a intensificação da repressão ditatorial no Brasil, ocorrida justamente quando esses países vizinhos já estavam por findar o período ditatorial, contribuiu para que o movimento só se formasse quase uma década depois.
Green (1999) argumenta que se o governo não tivesse aumentado a postura repressora, ampliado a censura e restringido os direitos democráticos em meados de 1968 com a imposição do AI510, o movimento politizado LGBT+ poderia ter surgido já no início dos anos 70, e não no final, como ocorreu. Regina Facchini (2005), no entanto, salienta que pode ter sido, justamente, a intensa repressão ditatorial no país um fator estimulante para a formação de resistências, não apenas no Movimento LGBT+, mas em diversos setores sociais. “Ela – a ditadura – pode ter sido, inclusive, responsável pelo perfil fortemente anti-unitário que marcou a ‘primeira onda’ do movimento homossexual brasileiro” (FACHINNI, 2005, p.93)
A título de explicação didática, Facchini divide a história dos movimentos LGBT+ em dois momentos distintos, que a autora nomeia de ‘a primeira onda’, que vai do início dos anos 1970 até meados da década de 1980, e ‘a segunda onda’, de meados dos anos 1980 até os dias atuais.
Essa “primeira onda” do Movimento LGBT+ precisava, justamente por ser o primeiro foco da luta, dar início ao processo de formação de uma identidade LGBT+ no país, pluralizar suas ideias e se integrar à sociedade. Uma importante contribuição para que essa identidade começasse a tomar forma foi dada com o surgimento de jornais marginais. Tais publicações buscavam a conscientização dos LGBT+ como grupo social, fomentavam a militância e discutiam questões como o corpo e a sexualidade. Faziam parte desse projeto intelectuais exilados durante a ditadura militar, que regressavam ao país trazendo suas experiências no exterior. De acordo com Silva, “essas pessoas entendiam que era preciso debater publicamente questões relacionadas com os feminismos, de ordem sexual, ecológica e racial etc., as quais circulavam internacionalmente, mas, no Brasil, ainda não eram postas na agenda, em
virtude da opressão exercida pelo regime militar e do conservadorismo moral da sociedade brasileira” (SILVA, 2009, p.167).
O surgimento desses jornais foi apontado por Silva (2009) como um importante fator para o início do Movimento de Libertação Homossexual no país. É nesse contexto que surgem as primeiras publicações no Brasil a tratar abertamente a questão da homossexualidade no país: o Lampião da Esquina e a Chanacomchana.
Na esquina, rosa e marginal
No final da década de 1970 a chamada “imprensa alternativa” se expande e ganha força na atuação contrária ao regime ditatorial que vigorava no país. É nesse ambiente que surge o Lampião de Esquina, um jornal voltado para a luta de todos os setores oprimidos da sociedade – mulheres, negros, homossexuais e índios –, mas que na prática acabou sendo majoritariamente voltado para o público LGBT+.
No final de 1977 o jornalista e editor norte-americano da revista Gay Sunshine, de São Francisco, California, Winston Leyland, veio ao Brasil para fazer conferências sobre o tema. Sua visita acabou inspirando um grupo de jornalistas, escritores e intelectuais que decidiram pela “criação e produção da edição número zero do jornal Lampião, em abril de 1978, o qual passa a chamar-se, na edição número um, lançada em 25 de maio seguinte, como Lampião da Esquina” (SILVA, 2009, p.171).
Segundo Rodrigues (2007), essa publicação é considerada o primeiro veículo de ampla circulação dirigido ao público homossexual e transexual. No jornal, as questões eram abordadas com enfoques inovadores para a época, que variaram de dicas culturais até matérias que discutiam religião, direitos humanos, justiça e perseguição ao homossexual. O editorial da edição zero do Lampião da Esquina, chamado Saindo do Gueto, já demonstra a proposta de criação de uma consciência LGBT+ para que os sujeitos pudessem se aceitar e que a sociedade também o aceitasse:
norias a pecha de casta, acima ou abaixo das camada sociais; que ele não quer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizem; que ele não é um eleito nem um maldito; e que sua preferência sexual deve ser vista dentro da condição psicossocial da humanidade como um dos muitos traços que um caráter pode ter, Lampião deixa bem claro o que vai orientar a sua luta: nós nos empenharemos em desmoralizar esse conceito que alguns nos querem impor – que a nossa preferência sexual possa interferir negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos” (O Lampião. Editorial, no 0).
Rosa e marginal, como era chamado, O Lampião da Esquina tinha nos seus editoriais um espaço para tratar claramente das demandas sociais dos LGBT+ e demais grupos que viviam à margem da sociedade. Nos outros espaços a publicação mesclava textos sérios e textos descontraídos, cheios de metáforas e jogos de linguagem, que poderiam confundir algum leitor desavisado e que não conhecia certas palavras usuais pela comunidade.
O Lampião da Esquina era, antes de qualquer coisa, uma fonte de subsídios em que as pessoas podiam encontrar informações que estruturassem sua consciência política. A comunidade LGBT+, finalmente, encontrou um conteúdo que agregasse questões afetivas, políticas e morais sobre suas vidas, e pôde se reconhecer em uma publicação.
Mas se a contribuição para a luta LGBT+ foi grande, o tempo em que a publicação circulou foi curto. O jornal durou apenas três anos, encerrando suas atividades em junho de 1981. Por ser formado por pessoas com divergências ideológicas, o jornal passou a enfrentar disputas internas, enfraquecendo sua intenção. “Com um corpo editorial formado por onze personalidades com posições ideológicas tão díspares não é de se estranhar que logo cedo as disputas por temas acabariam por enfraquecer o jornal” (RODRIGUES, 2007, p.93).
Por tratar abertamente um tema nunca antes abordado pela mídia do país, O Lampião da Esquina contribuiu não somente por ser a primeira publicação voltada à comunidade LGBT+ do país, mas também por seu caráter contestador e corajoso. Seu fim representou um relevante prejuízo para o Movimento LGBT+, considerando o fato de ele ter sido o principal canal de comunicação nacional entre a militância e a
população em todo país.
Chanacomchana: a hora e a vez das mulheres lésbicas e bissexuais
Uma outra publicação que fez história foi o Chanacomchana. Esse boletim foi uma publicação dos coletivos que formaram os grupos Lésbico-Feminista – LF (1979-1981) e Ação Lésbica-Feminista – GALF (1981-1989). Lançado em 1981, o boletim foi uma espécie de fanzine que misturava colagens bem progressistas e revolucionárias com questões que envolviam as lésbicas.
O jornal foi vendido e distribuído no Ferro’s bar, em São Paulo, comumente frequentado por lésbicas, mas as publicações não foram aprovadas pelo dono do estabelecimento, o que resultou na expulsão das mulheres do lugar em 1983. Esse episódio originou o que comumente é chamado de Stonewall brasileiro: como resposta a ele, as mulheres decidiram que não deveriam perder seu lugar de convívio fazendo um happening na noite de 19 de agosto.
Em entrevista dada ao portal UOL, Miriam Martinho, uma das pioneiras do Movimento LGBT, contou sobre aquela noite no Ferro’s Bar: “Lembro que tive muito medo da polícia aparecer e nos levar presas. Tive medo da imprensa também. Não era muito confortável aparecer nas páginas dos jornais na época. Mas organizamos tudo de forma a minimizar os riscos: chamamos os grupos gays da época e algumas feministas para dar apoio. A vereadora Irede Cardoso foi uma das parlamentares pioneiras no apoio aos direitos homossexuais no Brasil, pedimos cobertura da OAB, chamamos a imprensa.”
Ela acrescenta: “chegamos no dia 19 de agosto e tentamos entrar no Ferro’s. O porteiro fechou a porta para que a gente não entrasse. Passamos a conversar com as mulheres que estavam do lado de fora do bar, juntamos gente, mais os grupos que estavam dando apoio, tentamos de novo. O porteiro enfiou a mão na cara de uma das integrantes do GALF, pela porta entreaberta. Um homem aproveitou e jogou fora o boné do porteiro, ele se distraiu e entramos todos”. Por conta desse evento, no dia 19 de agosto comemora-se o dia do orgulho lésbico em São Paulo.
É importante ressaltar que O Lampião da Esquina e a Chanacomchana não eram as únicas publicaçaões no país voltadas para o público
LGBT+, mas não havia outra com a sua estrutura. As outras publicações eram, segundo Silva (2009), boletins produzidos caseiramente por alguns grupos e não conseguiram a mesma disseminação e qualidade do conteúdo.
Sua iniciativa, certamente, teve um papel fundamental para a comunidade LGBT+ à época, e é inegável que a sua atividade inspirou a criação de grupos de discussão e militância Brasil afora. Nesse clima de contestação se formava, em São Paulo, um grupo que deu início aos coletivos de luta LGBT+: o Grupo SOMOS de Afirmação Homossexual.
É preciso afirmar: SOMOS
A formação do primeiro foco de luta LGBT+ no país não se deu apenas das publicações mencionadas. Grupos como o SOMOS também foram fundamentais para a promoção do debate e afirmação. Fundado em maio de 1978, em São Paulo, por um grupo de LGBT+ descontentes com a vida de “gueto”, entre eles dois editores do Lampião, o grupo SOMOS nasce com a proposta de politização da questão LGBT+.
Inicialmente formado apenas por homens, o seu primeiro nome foi Núcleo de Ação pelos Direitos Humanos dos Homossexuais, que passou a ser Somos – Grupo de Afirmação homossexual em 1978. Em seu primeiro ano de atuação, o grupo já “denunciava a forma preconceituosa com que o jornal Notícias Populares tratava os homossexuais” (SILVA, 2009, p. 175). O ano seguinte foi de consolidação e crescimento para o SOMOS. Após participar de um ciclo de debates na Universidade de São Paulo (USP), ele passou a contar com cerca de 100 homossexuais, sendo aproximadamente 80 homens e 20 mulheres, chegando mais tarde a contar com grupos em Sorocaba, interior de São Paulo, e no Rio de Janeiro.
Sua primeira intervenção militante foi realizada no dia 20 de novembro de 1979, dia em que se celebram os feitos de Zumbi dos Palmares e a Consciência Negra no país. Durante uma passeata convocada pelo Movimento Negro Unificado, os integrantes do grupo SOMOS carrega-
vam consigo uma faixa com os dizeres: “Pelo fim da discriminação racial – SOMOS – Grupo de Afirmação Homossexual”.
Segundo Fachinni (2005) e Silva (2009), o grupo SOMOS inspirou o surgimento de novos grupos, em diversas partes do país, durante a década seguinte. Uma expansão significativa dos focos de luta LGBT+ modificava o cenário político deste movimento no Brasil. Nascia, então, uma nova demanda para os militantes: era preciso, de alguma maneira, fazer com que as experiências vividas por esses grupos chegassem aos outros grupos; era preciso conectar para continuar crescendo.
O I Encontro dos Homossexuais Militantes, ocorrido no Rio de Janeiro em 16 de Dezembro de 1979, nasceu a partir dessa ideia. Esse encontro possibilitou aos grupos interagirem, programarem atividades conjuntas, ampliando, de certa forma, a visibilidade e o poder do movimento social. O encontro foi patrocinado pelo jornal O Lampião da Esquina, que ainda se encontrava em atividade nessa época.
Uma das resoluções desse encontro destacava a exigência de incluir na Constituição Federal do País o respeito à orientação sexual. O termo utilizado à época era “opção sexual”, mas nas décadas seguintes se fortaleceu entre gays, lésbicas e bissexuais a defesa do uso do termo “orientação sexual” em oposição a “opção sexual”. Não se trata apenas de nomenclatura, a briga é por demarcar que a homossexualidade não é uma escolha objetiva.
Outra decisão foi ampliar a reivindicação pela supressão da homossexualidade na lista das doenças mentais. Por fim, o fruto mais concreto desse encontro foi a convocação de um novo encontro, que se realizou em abril do ano seguinte: o I Encontro Brasileiro de Grupos Homossexuais Organizados (EBHO). Esse segundo encontro, que aconteceu na USP, contou com a participação de 200 homossexuais e, na plenária final, aproximadamente registrou a presença de 800 pessoas, entre pessoas LGBT+ e não-LGBT+.
Das resoluções propostas pelo EBHO, destacam-se o apoio à legalização dos grupos LGBT+ e a promoção de um maior debate entre tais grupos; a ampliação do estudo e das conferências sobre, com a finalidade de ampliar o debate para a sociedade; e a luta pela aprovação de leis anti-discriminatórias e pela exclusão do código 302 da Organização
Mundial de Saúde, que classificava a homossexualidade como um desvio sexual. Registra-se que “em grande parte devido às pressões dos movimentos homossexuais, em 1973 a homossexualidade deixou de ser classificada como doença pela Associação Americana de Psiquiatria” (FRY e MACRAE, 1983, P. 45).
Outro fato importante a se destacar sobre esse segundo encontro: os participantes acabaram se dividindo em dois grupos por divergências no ordenamento político- ideológico do movimento – uma parcela do encontro acreditava só ser possível conquistar a emancipação mediante a aproximação estratégica do Movimento LGBT+ com os demais movimentos sociais da época, e a outra parte entendia que o necessário mesmo era que o movimento se limitasse ao debate acerca da homotransexualidade em si, sendo desnecessária a integração com outras questões sociais.
Tal divisão só foi superada, ainda que temporariamente, devido a uma violenta onda de repressão promovida pelo delegado Wilson Richetti contra os LGBT+ de São Paulo, ao final de 1980. Chamada de “rondão”, a operação realizada por Richetti espancou e prendeu dezenas de homossexuais, travestis e prostitutas do centro da cidade. A violência da operação foi tamanha que ocasionou uma passeata organizada pelos movimentos LGBT+, grupos feministas e o Movimento Negro Unificado, que contou com a participação de cerca de 10.000 pessoas (TREVISAN, 2004).
No ano de 1980 surgiu um importante grupo, que sobrevive até os dias atuais: o Grupo Gay da Bahia (GGB). Desde a sua fundação, o GGB acumula significativas vitórias no campo LGBT+, como, por exemplo, a publicação de diversos livros e artigos sobre o tema, a realização de conferências, debates e mesas-redondas, a liderança da campanha nacional que retirou a homossexualidade da lista dos desvios sexuais.
O precursor Grupo SOMOS, que já havia se dividido em outros três, se dissolveu em 1983 por problemas financeiros e dificuldades em conseguir novos membros. Outro importante grupo surgido nessa década, em 1985, foi o Grupo Atobá - Movimento de Emancipação Homossexual, no Rio de Janeiro. O grupo nasceu a partir da indignação de alguns amigos de Sidney Quintanilha dos Santos que foi brutalmente assassinado. O
grupo ainda mantém as suas atividades até os dias atuais.
Por questões de espaço, para compor este trabalho, selecionamos apenas alguns grupos, não com a intenção de ignorar a existência dos outros tantos que sabemos já terem existido – ou que ainda continuam com suas atividades. Optamos por narrar detalhadamente os grupos de maior visibilidade. É importante ressaltar que na década de 1980 inúmeros outros grupos ligados à causa LGBT+ existiram e deixaram de existir no país.
Apesar dos anos 80 terem sido uma década de muitas atividades para o movimento, Silva (2009, p.177) argumenta que também aconteceu uma grave crise: “neste momento, os grupos militantes brasileiros haviam minguado, restando apenas sete (...) o que refletia, em certa medida, esta crise interna vivida pelos movimentos”. Fleury e Torres (2010) explicam que, apesar de ser complicado apontar com exatidão o motivo da dispersão do Movimento LGBT, alguns pontos podem ser levados em consideração: a ilusão democrática resultante do enfraquecimento da ditadura e sua ruína em 1984, e o aparecimento dos primeiros casos da infeção por HIV (virus da imunodeficiencia humana), chamada de maneira ignorante pela imprensa de “peste gay”, o que fortaleceu a estigmatização tanto da doença quanto dos LGBT+.
HIV: um divisor de águas para o Movimento LGBT+
O aparecimento da infecção por HIV, no início da década de 1980, acaba por reconfigurar o Movimento LGBT+ no mundo. A doença, que foi estigmatizada impiedosamente como o “câncer gay”, culminou no aumento considerável do preconceito, intensificando os ataques ao grupo. De acordo com Silva, “se a atuação da militância homossexual nos anos 1970 havia contribuído efetivamente para a diminuição da intolerância, do desprezo e da exclusão social, vividas historicamente por homossexuais – ao menos nos grandes centros urbanos – o surgimento da Aids mudou aquele quadro e suscitou a retomada do preconceito e das distintas formas de violência a que os(as) homossexuais estavam sujeitos, inclusive incrementando este cenário de modo negativo” (SIL-
VA, 2009, p.186).
As notícias em torno do HIV contribuíram para o fortalecimento dos discursos LGBTfóbicos e moralistas que as igrejas cristãs e os setores conservadores lançavam junto à opinião pública. Por outro lado, nesse período de disseminação do vírus e aumento do preconceito contra os os LGBT+, muitos grupos surgiram no país para lutar contra a desinformação da população, inclusive dos próprios LGBT+, que não encontravam informações ao seu próprio respeito.
Mais de 20 grupos de luta LGBT+ existiam no início dos anos 1980 no Brasil, mas em 1984, contabilizavam-se somente sete e, em 1985, seis. O próprio Lampião de Esquina deixou de ser publicado em 1981, e o Somos se dissolveu em 1983, em um período no qual os desfechos finais da ditadura resultavam em crise entre os movimentos sociais no geral. Eles precisavam organizar novas formas de atuação que não fossem pautadas pelo grande inimigo que o governo militar representava.
O Movimento LGBT+, portanto, tinha uma questão particular: o avanço da epidemia de HIV, que afetou com mais força e primeiramente homossexuais homens, assim como bissexuais, travestis e transexuais no início da década de 1980.
Homossexuais, a partir deste momento, ganharam um novo estigma: eram vetores de uma doença fatal. Dessa forma, a pauta da liberação sexual se esvaziou frente à nova crise de saúde pública. Militantes do Estado de São Paulo, especialmente, deixaram os grupos estabelecidos. Muitos passaram a atuar em projetos de combate à Aids. Grupos como o GGB (Grupo Gay da Bahia), fundado em 1980 em Salvador, e Triângulo Rosa, fundado em 1985 no Rio, tomam a dianteira do movimento.
Já na década de 1990, o Movimento LGBT+ começou a ganhar visibilidade massiva nas ruas. Em 1995, a Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersex realizou a sua 17ª conferência no Rio, que terminou com uma pequena marcha na praia de Copacabana. Em 1996, um ato na praça Roosevelt, em São Paulo, reuniu cerca de 500 pessoas reivindicando direitos LGBT+.
A partir daquele ato, coletivos LGBT+ começaram a planejar a primeira parada LGBT+ do país, que aconteceu em 1997 na avenida Paulista,
em São Paulo. Hoje a parada é um dos maiores eventos da capital paulista, reunindo um público maior do que o de cidades inteiras.
Livres e iguais em dignidade e direitos?
“Essa será a Constituição cidadã, porque recuperará como cidadãos milhões de brasileiros, vítimas da pior das discriminações: a miséria [...] O povo nos mandou aqui para fazê-la, não para ter medo. Viva a Constituição de 1988! Viva a vida que ela vai defender e semear!” (discurso de Ulysses Guimarães, proferido em outubro de 1988).
Com essas palavras, o deputado Ulysses Guimarães encerrou os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte que promulgou, em outubro de 1988, a Constituição Federal que vigora no país até os dias atuais. Celso Ribeiro Bastos (1988) aponta que a Constituição é um complexo de normas jurídicas fundamentais, escritas ou não, que traçam linhas mestras de um dado ordenamento jurídico. Para ele, as regras e os princípios de uma Constituição devem ser aqueles relativos à estruturação do Estado.
Baseado nas constituições dos Estados Democráticos de Direito, o nosso texto constitucional prima por uma série de direitos que, se assegurados, devem promover uma sociedade mais justa e respeitosa. A Constituição de 1988 foi elaborada com a premissa da ampliação da cidadania e, conforme afirma Cláudio Vicentino, “pretendia resgatar a plenitude democrática brasileira e encaminhar a solução da ‘dívida social’” (1997, P. 444).
Segundo Maria Berenice Dias, citada por Horácio Costa, ela “foi recebida como a salvadora da pátria, gerando a expectativa de trazer a solução para todos os males” (2010, p. 21). Por ter como princípio fundamental o respeito à dignidade humana, assegurando o direito à liberdade e à igualdade, e proibindo qualquer tipo de discriminação, essa última versão da Carta Magna do país foi chamada de Constituição Cidadã.
Dentre os direitos garantidos por essa Constituição, podemos destacar o da igualdade de todos perante a lei, sem qualquer discriminação,
o que significa que todos os cidadãos são iguais em direitos e deveres. Tais direitos, além de serem parte do nosso texto constitucional, são princípios básicos para todos os países que assinaram a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, em 1948. Essa declaração estabelece já no artigo 1º que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”.
Entende-se como Direitos Humanos todos aqueles direitos que são inatos a condição humana, tendo como um exemplo básico o direito à felicidade e a igualdade perante a lei. Segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
Artigo 1. Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.
Artigo 2. Quando esses direitos passam a fazer parte da Constituição do país, transformam-se em Direitos Fundamentais, e as leis que asseguram esses direitos são chamadas de Garantias Fundamentais. Todos os seres humanos podem invocar os direitos e as liberdades proclamados na presente Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer outra situação. Além disso, não será feita nenhuma distinção fundada no estatuto político, jurídico ou internacional do país ou do território da naturalidade da pessoa, seja esse país ou território independente, sob tutela, autônomo ou sujeito a alguma limitação de soberania (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. 1948).
E ainda que o próprio nome pareça não deixar dúvidas a respeito de quem deva desfrutar desses Direitos – todos os seres humanos - é importante ressaltar que a noção de quem é ou não humano, nem sempre é um consenso. No trecho do discurso do deputado Jean Wyllys, um dos defensores da luta LGBT+ no Brasil, no seminário sobre Direito Homoafetivo, realizado pela Comissão de Diversidade Sexual da Ordem dos Adgovados do Brasil, na Ufes no dia 10 de junho de 2012, ele descreve melhor essa situação: “Como exemplo disso, podemos utilizar a escravidão dos negros africanos pelos colonizadores europeus durante séculos, o programa nazista, que exterminou na Alemanha milhões de
pessoas, entre elas judeus, ciganos e LGBTs; Cuba pós- revolução, que levou os homossexuais às prisões, e países como Emirados Árabes, Sudão, Nigéria, Mauritânia, Arábia Saudita, Iêmen e Irã, onde as relações homoafetivas são proibidas por lei e podem chegar a ser condenadas à pena de morte. Todos esses movimentos foram embasados na não-humanidade destes grupos. Portanto, é possível ver que a humanidade dos mesmos não está dada, ela faz parte de um contexto de conquista”.
Os direitos humanos constituem o marco de reconhecimento dos direitos e liberdades inerentes à pessoa humana, sem qualquer espécie de discriminação. São os direitos que consagram o respeito à dignidade humana, que visam resguardar a integridade física e psicológica das pessoas perante seus semelhantes e perante o Estado em real. Exemplos desses direitos e liberdades reconhecidos como direitos humanos incluem os direitos civis e políticos, o direito à vida e a liberdade, liberdade de expressão e igualdade perante a lei, direitos sociais, culturais e econômicos, o direito à saúde, ao trabalho e à educação (BARRETO;ARAÚJO;PEREIRA, 2009).
O princípio da igualdade e o direito a não sofrer discriminação são reconhecidos, também, em outros tratados internacionais:
O princípio da igualdade, em sua dimensão formal, objetiva a superação das desigualdades entre as pessoas, por intermédio da aplicação da mesma lei a todos, vale dizer, mediante a universalização das normas jurídicas em face de todos os sujeitos de direito [...]. Na esfera da sexualidade, âmbito onde a homossexualidade se insere, isto significa, em princípio, a extensão do mesmo tratamento jurídico a todas as pessoas, sem distinção de orientação sexual homossexual ou heterossexual (Rios, 2002, p. 128)
A atual Constituição Federal pode ser apontada como a principal responsável pela consolidação das conquistas democráticas nos 25 últimos anos da história do Brasil. No entanto, ainda que o seu caráter principal seja o de promover e fundamentar a igualdade entre os brasileiros, algumas parcelas da população ainda não se encontram amparadas por ela.
Nessa parcela podemos incluir, certamente, os LGBT+ que são alijados pelo Estado de diversos direitos civis. Por dependerem do Poder
Legislativo que tem se mostrado omisso desde o princípio desta luta no Brasil, os LGBT+ acabam precisando contar com o Poder Judiciário para questões fundamentais como, por exemplo, a criminalização da LGBTfobia, o direito ao casamento homoafetivo, a adoção, o uso de técnicas de reprodução assistida e uso do nome social para pessoas transgênero.
No caso específico dos arranjos familiares, a Carta de 1988 remodela o paradigma familiar e consolida a legitimação das famílias “(...) na afetividade e não no poder marital ou paternal; igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges; liberdade de Constituição, desenvolvimento e extinção das entidades familiares; igualdade dos filhos de origem biológica ou socioafetiva; garantia de dignidade das pessoas humanas que a integram (...)”. (Constituição da República Federativa do Brasil, 1988)
A família, por ser reconhecida como a célula primordial da sociedade, é objeto de preocupação mundial no campo jurídico, ético, religioso, moral e social. A Constituição de 1988 reconheceu como entidade familiar as famílias constituídas fora do casamento, às quais chamou de união estável. Igualmente nominou de família um dos pais e seus filhos, o que passou a chamar-se de família monoparental.
De acordo com o Estatuto das Famílias, “a complexidade da sociedade contemporânea incita transformações de diversas ordens que incidem diretamente na realidade sociocultural e privada dos cidadãos. Novos arranjos e composições familiares se materializaram sem que a Lei tivesse tempo de prever e proteger seus direitos. A garantia dessa pluralidade se encontra ameaçada, sendo mister e oportuno um ordenamento jurídico brasileiro mais humanitário e inclusivo” (2007).
Diante disso, ao não legislar questões específicas e importantes para as pessoas LGBT+ o Estado contribui para institucionalizar uma série de negação de direitos a essa parcela da população.
Desde o surgimento de um grupo de pessoas que passou a questionar o porquê de algumas pessoas não poderem viver suas vidas normalmente como quaisquer outros cidadãos, em meados do século passado no país, o movimento busca a desmistificação do tema e o igual tratamento civil e social entre as pessoas LGBT+ e não-LGBT+.
Para tanto, o Movimento LGBT+ Brasileiro contemporâneo conta com o apoio de alguns – poucos, ainda – parlamentares que abraçaram a causa, além de importantes decisões favoráveis no Supremo Tribunal Federal. Mas se caminha a passos lentos. As propostas a favor dos direitos LGBT+ são, cada vez mais, divulgadas pela mídia nacional e discutidas pela população brasileira, ainda que encontrem obstáculos, principalmente, em alguns setores da sociedade.
“Nunca se teve tanto, mas o que se tem é praticamente nada”8
A Justiça tem sido a grande aliada dos LGBT+ no Brasil e tem protagonizado os maiores avanços conquistados por essa parcela da população. Há, entretanto, exemplos no legislativo que lutam para que os direitos humanos das pessoas LGBT+ sejam assegurados e que merecem ser citados nesta pesquisa por seus incansáveis esforços. É o caso da senadora Marta Suplicy (PMDB-SP), que foi precursora, apresentando o primeiro projeto prevendo a união estável homossexual ainda na década de 1990 e Jean Willys (PSOL), eleito em 2010, que também foi um expoente dessa luta. Eleito com uma plataforma pró-LGBT+, Wyllys foi por muito tempo o único LGBT+ assumido entre os parlamentares eleitos no Brasil. As forças contrárias, entretanto, sempre ecoaram mais alto e mantiveram-se suficientemente organizadas para permitir que apenas avanços tímidos pudessem acontecer.
Foi no Judiciário que os avanços realmente se desenrolaram. De acordo com publicação do portal Nexo, um exemplo dessa posição é a reação ao projeto de lei 122 de 2006, que criminalizaria a homofobia no país, como já ocorre com o racismo. Ele foi aprovado em 2011 pela Câmara dos Deputados, mas foi arquivado no Senado em 2015.
A falta de atuação do Legislativo contribui para o processo da “judicialização da política” sobre questões LGBT+. O termo se refere a quando o Judiciário é chamado para resolver conflitos que tradicionalmente
8 Frase dita pelo professor e Pesquisador da Universidade Federal de Goiás, Luiz Melo, segundo o Manual de Comunicação LGBT+ (2018).
deveriam ser solucionados por outros Poderes.
É importante ressaltar que os parlamentares que votaram a Constituinte não garantiram, diretamente, direitos às pessoas LGBT+ ao decidirem pela não inclusão, por exemplo, do veto à discriminação por orientação sexual. Mas estabeleceram princípios que, posteriormente, serviram de base para garantir esses direitos judicialmente. São eles: a dignidade da pessoa humana; a promoção do bem estar de todos, sem preconceitos e discriminação; a igualdade de direitos; a liberdade e, por fim, a segurança jurídica.
Marcos na luta LGBT+ no Brasil
Alguns marcos na luta LGBT+ no Brasil de acordo com o Manual de Comunicação LGBT+ escrito em 2018 pela Aliança Nacional LGBTI junto da organização Gay Latino foram:
2002 | A então desembargadora do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, utiliza em suas decisões, pela primeira vez, o termo homoafetividade;
2006 | A Lei Maria da Penha entra em vigor dispondo em seu art. 2o que, independente de orientação sexual, etnia, classe, toda mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.
2008 | Ocorre a 1ª Conferência Nacional GLBT em Brasília, na qual se decide utilizar a letra “L” antes da “G” na sigla do movimento. Tal ocorre pelo crescimento do movimento lésbico e como manifestação de apoio por parte da comunidade de Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros, buscando, assim, mais visibilidade para as mulheres do movimento - que passa, então, a ser denominado LGBT.
2011 | O STF, ao julgar a ADI 4277 e ADPF 132, em decisão histórica, reconhece união estável para casais do mesmo sexo e cria jurisprudência inédita pressionando o Legislativo Brasileiro a quebrar seu silêncio frente às relações homoafetivas.
2011 | Ocorre em Brasília a 2ª Conferência Nacional de Políticas Pú-
2013 | É publicada a Resolução n° 175 do Conselho Nacional de Justiça que obriga os cartórios a realizarem a cerimônia de Casamento em igualdade de condições aos casais homoafetivos, com base nos princípios de liberdade, igualdade e promoção do bem de todos sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, previstos na Constituição Federal.
2015 | Em julgamento ao Recurso Extraordinário n° 846.102, o Supremo Tribunal Federal, tendo como relatora a Ministra Cármen Lúcia, define que a união entre casais homoafetivos pode ser definida como família nos termos da Constituição Brasileira, nos seguintes termos: “A Constituição Federal não faz a menor diferenciação entre a família formalmente constituída e aquela existente ao rés dos fatos. Como também não distingue entre a família que se forma por sujeitos heteroafetivos e a que se constitui por pessoas de inclinação homoafetiva”.
2018 | Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275, o Supremo Tribunal Federal determinou que a retificação do registro civil de mulheres trans, travestis e homens trans, deve se dar de modo desburocratizado – ou seja, sem demanda judicial, nos próprios cartórios, por meio de autodeclaração –, sem limite de idade (respeitando a maioridade civil e a representação dos responsáveis no caso das pessoas menores de idade), não sendo necessária tanto a apresentação de laudos psicológicos e psiquiátricos quanto a cirurgia de readequação sexual.
2018 | O Tribunal Superior Eleitoral determinou que a partir das eleições de 2018 a autodeclaração de pessoas transgênero – que não se identificam com o sexo biológico, como transexuais ou travestis – será considerada na verificação do cumprimento das cotas obrigatórias de gênero dos partidos políticos e que podem concorrer nas eleições utilizando o nome social.
2019 | A Organização Mundial da Saúde (OMS) removeu da sua classificação oficial de doenças, a CID-11, o chamado “transtorno de identidade de gênero”, definição que considerava como doença mental a situação de pessoas trans – indivíduos que não se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento.
Ato público - Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, 2018. Acervo: Fórum Estadual LGBT do Espírito Santo.