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PREFÁCIO

Conheço a Carolina Maria desde a sua atuação enérgica e brilhante à frente da Coordenação de Políticas para a Diversidade Sexual do município de Vitória, entre 2017 e 2019. Conhecê-la a partir deste lugar me fez pensar na sabedoria que a Umbanda e o Candomblé ensinam para nós, suas filhas, seus filhos: há que reverenciar os moços, que têm muito a ensinar às pessoas mais velhas. Com a Carol à frente desta Coordenação, tive oportunidade de acompanhar alguns dos muitos desafios que esta função propõe, sendo um dos que mais me chamaram a atenção as formações para professoras e professores na temática que envolve a diversidade sexual e as pessoas Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero (LGBT+)1. Quanta energia e quanta coragem nesta mulher tão jovem para enfrentar profissionais da educação que, em grande parte, constituem o quadro de capixabas com postura LGBTfóbica, como este livro exibe com precisão no capítulo “Espírito Santo em foco: traçando um mapa da sociedade capixaba”, ao questionar se “Nível de escolaridade e religião podem influenciar a LGBTfobia?”. Sim. Podem, revela a obra. Revela também neste mesmo capítulo que o Espírito Santo é o estado com maior número de pessoas evangélicas do país, o que pode revelar em alguma medida o comportamento LGBTfóbico da população no geral. Ousada constatação, plena de razão, desde minhas experiências muitas de mulher negra, lésbica, umbandista, professora de gentes pequenas e grandes numa sociedade historicamente racista, misógina,

1 Optamos por utilizar a sigla LGBT+ devido ao fato de ser a sigla ainda utilizada pelo conselho estadual do Espírito Santo, ainda que saibamos que há diversas discussões e expansões do termo ocorrendo simultaneamente em vários movimentos.

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lesbofóbica, eurocentrada.

Aliás, ousadia é uma palavra que pode explicar um pouquinho do tanto que é o Lucas, também autor deste livro-reportagem. Sua obra recentemente publicada “Desaquendando a história drag: no mundo, no Brasil e no Espírito Santo” indica seu arrojado modo de situar-se no mundo, indo na contramão do conservadorismo que toma conta da sociedade brasileira nos últimos tempos. Bravo (breve Doutor) Lucas!

Carol e Lucas, então, nos brindam com esta obra, que, a meu ver, já se torna imprescindível à memória dos movimentos sociais LGBT+ no país. Nem sei se ela e ele sabem que se remetem vez em quando aos ensinamentos africanos e afro-brasileiros quando escrevem, pois tratam do respeito a quem veio antes, que pavimentou os caminhos de quem chega agora, o que chamamos de “reverência à ancestralidade”. O símbolo Sankofa, que inicia este texto, traduz bem o que quero dizer aqui e o que fizeram Carol e Lucas nesta obra. A iniciativa de fazer este livro-reportagem, como a autora e o autor definem a obra, é justamente a ação do hoje para preservar memória: o livro-reportagem em questão atua numa tentativa de resistir à dissolução do tempo.

Esta memória é muito bem retratada nos capítulos iniciais, que discorrem com objetividade sobre o Movimento LGBT+ desde seus primeiros passos (registrados pela história) no ocidente e depois se atém ao Brasil, destacando mulheres lésbicas, pessoas trans e homens gays que arriscaram a integridade física e moral para lutarem pelo direito de existir. Essas ações individuais e coletivas pela existência formaram os pilares para nosso movimentar de hoje e de amanhã, uma vez que “[...] valorizar o caminho trilhado até aqui é essencial para a construção de um futuro melhor” (p.20).

Pensar num prefácio requer, sempre, certo rigor técnico, o que me fez refazer a leitura algumas vezes. Mas me denuncio aqui ao revelar que fui tomada de muita emoção e deixei de lado o afastamento crítico que geralmente é exigido para esta tarefa. Como não se emocionar ao conhecer mais de perto as histórias desbravadoras de tantas pessoas que conheci e conheço neste Espírito Santo, como a queridíssima, corajosa e irreverente Ednamara ou o maravilhoso Amilton de Almeida, entre tantas outras pessoas que vieram antes abrir os caminhos? Neste

ponto, o livro também exibe brilhantismo ao nos fazer entender que boa parte dos movimentos sociais, hoje reconhecidos como revolucionários, começaram na maioria das vezes de modo despretensioso. Exemplo disso é a história da Santa Sapataria, coletivo de lésbicas do Espírito Santo. História que tive o privilégio de estar lá quando começou, sem jamais imaginar que há dez anos estava contribuindo para a revolução sapatão capixaba.

Para quem começa o percurso nos estudos da diversidade sexual e mesmo para quem já possui alguma caminhada neste campo, a autora e o autor, amorosa e didaticamente, reservaram o primeiro capítulo para elucidar questões como “homofobia ou LGBTfobia? Qual expressão deve ser usada”? Ainda neste capítulo, discorrem sobre as categorias que conformam a diversidade sexual, a “sopa de letrinhas”, parafraseando o título da obra da pesquisadora Regina Fachinni. Informações que mais se assemelham a formações, uma vez que atende aos interesses de muitas pessoas que, todavia, se inquietam com os rótulos na tentativa de compreender a complexidade da sexualidade humana mais a partir das palavras do que a partir dos humanos.

Temos adiante preciosa obra com seis capítulos que ousam tratar das políticas públicas conquistadas com os atrevimentos das bichas, sapatonas, travestis e drags que começaram tudo. Livro que esmiúça, nas palavras vivas de quem aqui está ou esteve, cada pancada policial tomada simplesmente pela existência não-normativa. Trabalho que provoca indignação e admiração, tudo ao mesmo tempo, a cada página virada. Provoca, acima de tudo, vontade de conhecer mais o Movimento LGBT+ do Espírito Santo.

Carol e Lucas, talvez a palavra seja Gratidão a vocês que cobrem uma lacuna na nossa história capixaba. O livro-reportagem de vocês ensina muito bem o “pavimentar caminho” para que outras pessoas possam vir atrás. Ensina o Sankofa. É por isso que aposto no interesse de outras pesquisadoras e pesquisadores que desejem prosseguir este trabalho, que, entusiasmante que é, revelará outras histórias em outros cantos deste estado, ampliando o espectro memorial da história do Movimento LGBT+.

Enfim, recomendo fortemente este livro a você, leitora e leitor. Tenho

o privilégio de tê-lo lido em primeira mão e já me antecipei em colocá-lo entre os meus preferidos. Acredito que você também vai gostar. Aquenda!!!

Ariane Meireles

Capixaba, professora da educação básica, umbandista, filha de Oxum e Xangô. Ativista de movimentos sociais desde a adolescência: de pessoas negras no início e LGBT+ pelos anos 2000. Fundou a Santa Sapataria. Ama a dança afro brasileira. Mestra em Política Social e Doutoranda em Ciências da Educação.

MOVIMENTO LGBT+ CAPIXABA 15

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