Amiel

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Amiel, o homem (in)visível “Terei eu sido culpado e criminoso porque um erro grosseiro me deu um lugar no mundo que não deveria ser o meu?” Barbin, Herculine.

Março de 1983. Na aurora de seu sétimo mês de nascimento, Ué-ué-Ué-ué, berra sobre a maca hospitalar uma criança. A genitália – principal fator na construção de sua identidade – parece transgredir uma binaridade socialmente imposta. Ambígua, Indefinida. Imensurável na balança do masculino-feminino. Os médicos, espantados, parecem calcular uma maneira de consertar aquilo que os manuais da medicina descreviam como erro, como incerto. Nas mãos, pinça, bisturi, afastador, inúmeros instrumentos tecem uma unicidade em meio ao binário. O pênis, intersectado na vagina, já não mais existe. O corpo ambíguo, indefinido, agora sobrepesa no indicativo feminino da balança. Renasce, unívoca, Anamaria Vieira. [ ... ] Na infância, não sabia quem era, vivia a procura de si. Rejeitava bonecas, casinhas, ursos de pelúcia, kit cozinha. Preferia brinquedos que a fizessem pensar. Quebracabeças, caça-palavras, os inúmeros kits pense-bem. Brincava, incansável. Quem sabe, a procurar palavras que a definissem, que a designassem, entre as palavras-cruzadas. 1994. Ana, a menina cuja feminilidade fora construída pelas hábeis ferramentas da medicina, na primavera de seus doze anos, descobre que seu frágil corpo é, socialmente, hipersexualizado. Tempos de cólera, revelação. A mãe, cautelosa como uma garça, conta-lhe segredos. Anamaria, descobre que não possui sistema reprodutor, não pode ser mãe. Indaga os motivos. A mãe, altiva, responde-lhe: “É muito comum, filha. Há outras pessoas que nascem assim, mas no futuro, você terminará sua feminilização”. Não sabia decerto o que significava, indaga – no âmago – acerca de si. [ ... ] Agosto de 2015, o sol brilha na cúspide de Virgem. Indefinido, um corpo de trinta e três anos. Cabelo fino, curto, num tom chiaroscuro. Os olhos, cujo negrume revela certa dúvida, parecem – de algum modo – atentos ao que está por vir. Os lábios, com traços grossos, parecem enfeitar o rosto ainda informe, ambíguo. Tilintam palavras sobre si, indecifráveis. Corpo incogniscível, abjeto, a pesar na balança binária do masculino e feminino, imensurável. Procura, mapeando a si mesmo, a identidade nunca antes revelada, camuflada numa corporificação que jamais lhe pertenceu. Na busca por respostas, desenrola sobre as mãos uma carta, tal como um possível mapa a mostrar-lhe o caminho. Espécie de taromancia a revelar-lhe o destino. Epístola profética, a responder o questionamento que desde a infância lhe incomodara: “Quem sou eu?”.


Anamaria Vieira, encontra uma carta, redigida por sua mãe. Não sabe ao certo, mas lhe parece que naquele escrito estão as palavras reveladoras, as quais responderiam os questionamentos matrucados na cabeça desde a infância. Algo nela sempre soube que havia um segredo. Inicia a leitura. Ao ler, espanta-se, os lábios parecem revelar histórias de dor, sofrimento e engano. “Agora as coisas parecem se encaixar, mas por que não contaram isso antes?”, questiona. Ana, descobre que é e sempre fora: Intersexual. Dos olhos, gotejam lágrimas salubres, tratam-se de uma resposta silenciosa às gritantes e doloridas lembranças do passado. Inicia-se, desde então, um processo trimensal – do Agosto ao Dezembro de 2015 – de autoentendimento. [ ... ] Janeiro de 2017. O corpo, cuja feminilidade fora construída brutalmente, parece transmutar-se. Dos olhos, negros como ébano, parecem irromper dentro deles ou mesmo coincidindo com eles, outros olhos e decerto olhos de outro rosto. Dos lábios grossos, formando faceiras curvilíneas, sobressai um sorriso a decorar o rosto. Já não é Ana, nunca foi. Eis que surge um novo eu, um novo nome: Amiel. Descobrira-se! Morre Ana, nasce Amiel. Um homem, a transcender a feminilidade imposta, que nunca lhe pertencera.


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