Rainhas do carcére

Page 1

Rainhas do Cárcere Histórias, causos e cantos da vivência T no sistema prisional do Recife

Casa das Dindas, o ruído das necessitadas “Eu ... que estou muito necessitada, suplico-te por um milagre”. Braços entreabertos a acolher o recinto, a batina no corpo e o terço enrolado na mão. Desolado, mas com tom de consolo, assim jaz Frei Damião Bozzano em frente ao presídio homônimo, no Complexo do Curado. Parece interceder pelas vidas cativas. Entre as grades das celas, estendem-se toalhas, lençóis, peças de roupa multicoloridas, que sinalizam a ala na qual vivem cerca de oito dindas. Travestidas, periféricas e marginalizadas, condicionadas ao crime pela abjeção grafada em seus corpos e identidades. Naquele dia, o primeiro – num período de um ano – Lara, Bruna, Ariana e Vitor erguiam sua câmera, microfone e ouvidos num único propósito: Ouvir. Ouvir os clamores, histórias e lembranças de oito travestis, das quais filmaram quatro: Thianny, Fabiana, Rafa e Sabrina, cada qual com suas particularidades. Acompanhados de representantes do Centro Estadual de Combate à Homofobia (CECH), entregam os documentos necessários a um dos carcereiros que monitorava a visita, o qual dialogava, harmonicamente, com os integrantes do CECH. - As meninas estão fazendo muita confusão, tem que ver isso aí, o que vocês podem fazer, disse. Ao seu lado, estava outro carcereiro, que exalava certa inexperiência no trato. Ao ouvir o “meninas”, surpreendido, afirmou: - Aqui não tem meninas. O outro agente, replicando: - Tem sim, as meninas da sala das dindas. E o novato, repetiu a sentença com firmeza: - Aqui não tem meninas, aqui só tem homens. Lara (impactada), parece, mentalmente, confirmar suas hipóteses. Afinal, quem consideraria àquelas cujos corpos e vivências exalavam subalternidade, meninas? Ou melhor, mulheres? Elas mesmas, em sua condição marginal, proferiam, tal como uma máxima grafada em bandeiras, a seguinte sentença: “Não somos mulheres, nascemos homens!” Com essa premissa – não sabiam elas – questionavam as noções de identidade de gênero empregadas nas academias, para quem foram e ainda são simples objetos de estudo. Para a filósofa norte-americana Judith Butler, esse corpos que transitam entre o masculino e o feminino são subversivos, ultrapassam as fronteiras do sexo e do gênero impostas pela ordem heteronormativa, são constructos de uma subalternidade, são, em essência e condição: corpos abjetos – que não deveriam existir, dentro de determinada matriz cultural. Mas existem e apesar da invisibilidade, resistem.


Dindas: Pretas, travestidas, prostituídas e subalternas

As lentes da câmera passeavam entre os cômodos, focando nos corpos que ali habitavam. Quatro histórias, quatro causos e um canto. Quatro dindas a contar as peripécias da vida condicionada, desde cedo, ao mundo subalterno e marginalizado. [ ... ] Maquilada, vestida de primavera, Thianny, traz sobre o peito um medalhão. Conta, com gracejo e simplicidade, a história de sua vida. Aos 9 anos, iludida por balas e datilografia, iniciou sua vida sexual e em seguida submeteu-se à hormonização.“Fui colocando roupa de mulher, tomando hormônio, afeminando-me mais”, disse. Transitava entre as avenidas Conselheiro Aguiar e Domingos Ferreira, em Boa Viagem, Recife-PE. Prostituída, conheceu o roubo. Os cabelos adornados com mega hair, o corpo curvilineado pelas buchas, camuflada sobre um trejeito de violão, para atrair àqueles que em troca de alguns vinténs saciavam-se com a luxúria de seu corpo. Com os lábios entreabertos, cantarola As travestis chegou / preparadas pra roubar..., cantiga em homenagem aos roubos que exercia com as amigas pelas veredas do Recife. De certa forma, agradece pelo implemento da Casa das Dindas, tem banho de sol, saída noturna. Não está mais sob a escuridão de antes, no cárcere privado, sem visitas, em meio aos detentos cisgêneros que lhe roubavam. [ ... ] Rafaela, já não adorna mais o corpo, deixou de usar saia, cortou o cabelo. Camufla-se numa identidade que não é sua, masculinizada. Não tem culpa, a identidade feminina se perdeu nos estupros corretivos que sofreu, antes mesmo da prisão. Sente falta do amor. Não o amor carnal, “Nenhum homem aqui dentro pode dar esse amor, nem o mais bonito”, reforça. Com lágrimas nos olhos, relembra do amor inalcançado, o amor da família. Vivia à deriva, nas portas de bares, desde os 13/14 anos de idade, comercializando o próprio corpo, mas também o corpo alheio, a partir da cafetinagem. Ao falar da prisão, relembra das situações agressivas dentro do cárcere, no qual teve que ceder o próprio corpo em troca de respeito e segurança. [ ... ] A amiga agonizava em seus braços, no meio da rua, vítima de uma paulada na cabeça. Pedindo ajuda aos transeuntes, Fabiana, escuta em resposta aos gritos de socorro: “É o que? pensei que fosse gente.” Familiarizada com a desumanização desde cedo, a travesti é uma das mais experientes quanto à vivência no sistema prisional do Recife. Sendo trinta, dos seus quarenta e cinco anos destinados ao cárcere, que nem sempre lhe acolheu. Expulsa de casa aos nove anos de idade, mantinha um caso com o vizinho, pelo qual era estuprada. Prostituída, fazia covers das divas que tanto sonhou ser: Withney Houston, Laura Pausini, entre outras. Durante os anos 80 e 90, comercializou seu corpo nas ruas da Antônio Falcão, local de extrema periculosidade para a população T, cujo número de mortes aumentava diariamente. Vitimizada pelo antro, foi presa por matar um cliente que a espancou, tinha dezesseis. Nas amarras do cárcere, faleceu aos 45 anos, flagelada pelas chagas de um câncer bucal, devido as negligencias do sistema de saúde prisional.


[ ... ] Foi pela manhã, levantou, pegou duas trouxas de louças, acordou disposta para lavá-los. De repente, os demais presos acordam, questionam-se: “Quem lavou as louças?”. Com o coração contrito, Sabrina, responde: “Fui eu que lavei”. Pa-pum- Pei, soavam os chutes, murros e tapas na travesti. Para os outros cárceres – cisgêneros – não era digna de lavar as louças, teria ela passado a noite estimulando os órgãos genitais dos cativos. Imagina só, comer nas louças lavadas por essas mãos? Para eles não era digna de tal ato, não era digna de nada. [ ... ] Inaugurado em 2014, a fim de atender demandas da população LGBT no sistema prisional do Recife. A Casa das Dindas, no Presídio Frei Damião Bozzano, Complexo Prisional do Curado, conta com o apoio da Secretaria Executiva de Ressocialização (SERES), em parceria com movimentos da sociedade civil organizada – GTP+, IBRAT, GESTOS e AMOTRANS – e o Centro Estadual de Combate à Homofobia – CECH.

O Centro Estadual de Combate à Homofobia Dos rugidos e clamores dos Leões do Norte, movimento referencial nas políticas LGBT+, surge o CECH; sendo anexado, no final de 2011, na Secretaria Executiva de Justiça e Direitos Humanos (SEJUDH), pelo Governo de Pernambuco. Por volta dos meses iniciais de 2012, o Centro começa suas atividades sob a organização do Instituto de Apoio Técnico Especializado à Cidadania – IATEC, cuja regulação dura até meados de 2014. Em 2014, sob a intermediação do Instituto Ensinar de Desenvolvimento Social – IEDES, que seleciona múltiplos profissionais, dentre estes psicólogos, assistentes sociais e advogados; o Centro permanece suas atividades no que confere à cidadania da população LGBT+ e no combate à LGBTfobia, abarcando demandas de violência tanto do público quanto dos seus familiares. No intuito de promover a formação das temáticas LGBT’s dentro das políticas setoriais, acompanhando as demandas de violação – acompanhamento em delegacia; processos de retificação de registros civis; além de monitorar as atividades propostas pela secretaria executiva – o CECH atendeu e interiorizou políticas de Direitos Humanos em Pernambuco, desde Petrolina às ilhas de Fernando de Noronha. No que concerne ao sistema prisional, exerceu atividades in locus nas três unidades que compõem o Complexo do Curado – Presídios: Juiz Antônio Luís Lins de Barro; Frei Damião Bozzano e Aspirante Marcelo Francisco de Araújo ( PJAULLB, PFDB e PAMFA). O Centro Estadual de Combate à Homofobia encerra suas atividades em meados de 2016, devido acusação administrativa de tráfico de drogas e incitação sexual. Atualmente, o CECH se reestrutura com uma equipe de oito profissionais.


Mini Pavilhão E: Um constructo da prostituição A casa, como toda residência de respeito, trazia uma mensagem honorífica aos habitantes. Não um simples “bem-vindos”, mas um conjunto de pequenas letras douradas no qual se podia ler o seguinte tratado: “sem preconceitos”. Acima deste preceito, estava a descrição que de certa forma condicionava os que a habitavam: “Inauguração do Mini Pavilhão – E do Presídio de Igarassu – PE”. As paredes, erguidas pelo trabalho braçal de cativos resguardam as dezesseis travestis e transexuais. Na área externa, de um espaço de 12 x 3,5 metros, erguem-se palmeiras, acalentadas pela areia da praia. O chão, coberto de britas, relembra a cantiga de ninar Se essa rua / Se essa rua fosse minha / eu mandava, eu mandava ladrilhar / Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante. Uma preciosidade inválida, refletindo àquelas que como as britas valiam. Tijolos, cimentos e mão de obra, comprados pela comercialização do corpo. Inaugurado em 2014, no Presídio de Igarassu, cuja população de 3600 presos superlotam as 700 vagas disponíveis, o mini pavilhão E abriga cerca de 16 travestis e transexuais que colorem o sistema prisional. Dentre essas, estava Fernanda Falcão. Ela, cuja estadia durou cerca de um mês e duas semanas, foi a precursora no que diz respeito a comercialização do próprio corpo, para instaurar a construção do pavilhão. [ ... ] Foi aos dezesseis, açoitada e coagida por incontáveis policias, em frente ao hotel que fazia de ponto. Não tinha pai, nem mãe para tirar-lhe o cárcere. Fora expulsa de casa. Tráfico de drogas foi a sentença, dada por àqueles que a coagiam. Na rua, vivia às ordens de uma cafetina, principal delatora do suposto crime. Doze, número que marcou sua estadia na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FUNASI), em Abreu e Lima. Lá, conheceu os movimentos sociais, os quais em posse das fitas de segurança do mesmo hotel que lhe servia de ponto, comprovaram sua inocência. Liberta, voltou às ruas. Abraçada pelas amarras da prostituição. “A única coisa que travesti fazia”, lembra. Aos dezoito, foi novamente reclusa a partir da cafetinagem. 31 pedras de crack, 31 reais marcavam sua sentença. Absolvida, conheceu o Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo (GTP+), no qual participou dos Mercadores de Ilusão – projeto destinado ao auxilio de meninos e meninas que trabalhavam como profissionais do sexo, mas que estavam reclusos no sistema prisional. Um trabalho de palestras, a contar vivências da subalternidade e dor. Contava aos ouvintes, sua experiência enquanto travesti no sistema prisional, no qual tinha sido estuprada, selecionada por cativos e carcereiros, os quais em sua posição de dominância, usufruíam gratuitamente de seu corpo. No Presídio de Igarassu, lutou com unhas e dentes pelo implemento do Mini Pavilhão E, um conjunto de oito celas destinadas às GBT’S. Prostituía-se, em meio as demais – principal fonte de renda das 98% travestis e transexuais no sistema prisional – erguendo dos destroços do corpo, as paredes que desde 2014 abrigam dezesseis travestis e transexuais.


[ ... ]

Fernanda, vestida de primavera, cabelos modelados numa amarra, traz sobre o peito um medalhão. Entre os ombros, adornando um dos braços uma bolsa acompanha, tal como um dançarino, seu andar. Abraça-me, convida-me a sentar em uma das cadeiras na sua sala, na Secretaria de Desenvolvimento Social, Criança e Juventude (SDSCJ), situada na Av. Cruz Cabugá, Santo Amaro, Recife – PE; na qual atua como assessora da Coordenadoria LGBT, com enfoque na política e cidadania de travestis e transexuais. Nem parece mais a jovem expulsa de casa aos dezesseis, cativa e prostituída. Mas ao contrário de muitos, faz da dor seu estandarte e sonha com um mundo melhor para àquelas que hoje estão na situação que estava. “Eles [GTP+], mostraram que travesti não é só prostituição”, salienta, com orgulho. Sumário

GTP+ - Grupo de Trabalhos em Prevenção Posithivo. IBRAT – Instituto Brasileiro de Transmasculinidades. AMOTRANS – Articulação e Movimento para Travestis e Transexuais. GESTOS – Soropositividade, Comunicação e Gênero. GBT/LGBT+ - Abreviação para ALGBTIQ+ (Assexuais, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Intersexuais, Queer).


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.