“A indignação contra o aumento das tarifas levou o povo a depredar uma parcela considerável das unidades de transporte coletivo da capital paulista. Cerca de 450 veículos foram atingidos pela fúria popular.” O Estado de S. Paulo, 2 de agosto de 1947, página 5
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA FACULDADE CÁSPER LÍBERO #41 - 1º SEMESTRE DE 2007
E lá se foram 60 anos mundo
Um sobrevivente de Hiroshima cidade
A arquitetura e a paisagem de uma São Paulo surpreendente futebol
Ascensão e queda de Barbosa entrevista
Carlos Heitor Cony revolta popular
Transporte, o eterno problema
moda
Uma revolução chamada biquíni SEXO
Os “catecismos” de Carlos Zéfiro arte
Chatô X Ciccillo, a disputa que rendeu dois museus seções: Gente, Sites, Música, Filmes, Leitura, Ali na Esquina, Ficção
SEXO REPORTAGEM
ritual de
Iniciação
REPORTAGEM LUCAS FRASÃO (3° ano de Jornalismo)
No final da década de 1940, uma nova publicação começou a ser vendida clandestinamente nas bancas do Rio de Janeiro: os “catecismos” de Carlos Zéfiro. Catecismo? Clandestino? Isso mesmo. Mas, diferente do livro religioso destinado à catequese, os quadrinhos pornográficos de Zéfiro rezavam por outro terço — e iniciaram uma geração de adolescentes nos rituais do sexo.
As revistas assinadas por Carlos Zéfiro — pseudônimo do funcionário público Alcides Aguiar Caminha — viraram febre entres os jovens. Com medo de perder o emprego no Ministério do Trabalho, Caminha escondeu a identidade real de Zéfiro por mais de 40 anos, e só assumiu publicamente ser autor dos “catecismos” em 1991, pouco antes de sua morte.
Os quadrinhos pornográficos de Carlos Zéfiro, vendidos clandestinamente à geração de nosssos avós, ganharam status de arte e viraram peças de colecionador
Reprodução da capa de Sara (1949), um dos primeiros “catecismos“
Sequência do “catecismo” A Despedida, de 32 páginas
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ESQUINAS 1º SEMESTRE 2007
meados da década de 1970, porque “àquela altura, já tinham saído de moda”. “A novidade eram as fotonovelas pornôs suecas que ocuparam o mercado”, ele disse. Um dos parceiros de Carlos Zéfiro foi o livreiro Hélio Brandão. “Ele era o editor-pirata do Zéfiro”, afirma Otacílio. Embora os “catecismos” fizessem sucesso em todo o país, Zéfiro não enriqueceu com as vendas. “O Hélio [Brandão] me disse que eles nunca chegaram a ter lucro real”, conta Otacílio, “porque, volta e meia, algum carregamento era apreendido e os distribuidores davam calote”. O preço? “Não devia ser tão caro”, segundo o jornalista. “Algo como uns cinco reais nos dias de hoje”. vida dupla Com exceção de poucos amigos, ninguém conhecia a identidade de Carlos Zéfiro. Funcionário público, casado a vida inteira com a mesma mulher, Dona Serrat, pai de cinco filhos, Alcides Aguiar Caminha era um cidadão comum — embora tenha admitido, nos anos 1990, se inspirar em casos extraconjugais para fazer os quadrinhos eróticos. Nascido em 26 de setembro de 1921, ele aprendeu a desenhar sozinho e, além disso, também era compositor. Aliás, ficou mais conhecido pelas músicas do que pelos quadrinhos. Em 1965, a diva Elizeth Cardoso gravou A Flor e o Espinho, fruto da parceria entre Caminha, Nélson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Entre outros sucessos dele, estão Notícia (1954) e Capital do Samba (1956). No Departamento de Imigrantes do Ministério do Trabalho, Caminha era datiloscopista — perito na identificação de impressões digitais —, e temia a demissão. O artigo 207 da lei federal 1711, de 1952, que rege o funcionalismo público, prevê punição ao empregado que for objeto de “incontinência pública e escandalosa, vício de jogos proibidos e embriaguez habitual”. Para a sociedade da época, as revistas pornográficas de Zéfiro eram escândalo puro. Tanto que, em 10 de junho de 1970, sob a ditadura Médici, uma busca dos militares para encontrar os responsáveis pelos “catecismos”, que a esta altura já tinham chegado a Brasília, resultou na prisão do livreiro Hélio Brandão, encontrado com 50
mil exemplares. Ficou preso por três dias — e rompeu a parceria com Alcides Caminha. O autor dos quadrinhos só escapou porque se escondia atrás do pseudônimo. seu alcides, e o zéfiro? O suspense sobre a identidade de Carlos Zéfiro acabou publicamente em novembro de 1991, por ocasião de uma reportagem na edição número 196 da revista Playboy, assinada pelo jornalista Juca Kfouri. “Foi a matéria que eu mais gostei de ter feito na vida”, ele disse. Por quê? “Convencionou-se que jornalismo investigativo é jornalismo de denúncia, e não é verdade”, ele explica, “quando se faz uma reportagem investigativa que não prejudica ninguém, ao contrário, traz bônus, é muito legal. Foi exatamente o caso dessa matéria sobre o Carlos Zéfiro”. À época diretor de redação, Kfouri saiu em busca da identidade verdadeira do quadrinista e quase acreditou na mentira do também jornalista Eduardo Barbosa — amigo de Alcides Caminha. Sem dinheiro, ele tentou se passar por Zéfiro, pedindo 25 mil dólares à Playboy em troca da entrevista. “Seria a maior barriga da minha carreira”, afirma Kfouri. “Eu ainda não tinha escrito uma linha, mas estava convencido de que era realmente o Zéfiro”. A desconfiança surgiu depois que Barbosa ficou embriagado durante a primeira conversa. A confirmação da farsa veio dias depois, quando Hélio Brandão desmentiu o impostor e deu pistas sobre o paradeiro de Zéfiro. Sob o pretexto de fazer uma reportagem
sobre samba, Kfouri foi conversar com o já idoso compositor Caminha. “Estávamos sentados na cama dele”, lembra Kfouri, “tínhamos ido lá para pegar umas fotos no criado-mudo. Eram fotografias dele com o Nelson Cavaquinho. Quando eu peguei numa das pastas, ele disse: ‘Não, não põe a mão aí!’. Eu abri e vi o modelo de uma moça de lingerie. Ele continuou a falar do Nelson Cavaquinho. Então, eu falei baixinho para ele: ‘Seu Alcides, e o Zéfiro?’ De repente, ele deu um salto na cama”. a despedida Revelada a verdadeira identidade, Caminha foi homenageado em eventos como a 1ª Bienal Internacional de Histórias em Quadrinhos, no Rio de Janeiro, deu diversas entrevistas — uma delas para o programa Jô Soares Onze e Meia, no SBT — e teve seus “catecismos” elevados à categoria de arte. Mas, já com problemas de saúde, ele faleceu meses depois da fama, em julho de 1992, vítima de um derrame. Atualmente, a responsável pela comercialização de seus quadrinhos é a goiana Adda Di Guimarães, que criou há dois anos a editora A Cena Muda, especialmente para relançar toda a coleção. “Eu tenho público no Brasil inteiro”, ela disse, “mas as distribuidoras acharam problemático porque [os catecismos] são pequenos, fáceis de serem roubados”, explica. Em busca de patrocínio, Adda vende as publicações em sua banca de jornais em Ipanema, no Rio, e pretende lançar, de três em três meses, edições com oito histórias do lendário Carlos Zéfiro.
reprodução/DR
reprodução/DR
O funcionário público Alcides Caminha, na década de 1940, quando começou a criar as primeiras histórias eróticas sob o pseudônimo Carlos Zéfiro. Estima-se que ele tenha produzido cerca de 800 títulos diferentes
de mão em mão Conseguir os “catecismos” (leia box) de Zéfiro não era tarefa das mais fáceis. Os jornaleiros só vendiam as publicações para conhecidos e não expunham os gibis na vitrine — como se faz hoje, normalmente, com revistas masculinas. “Desde os 12 anos, eu pedia nas bancas do Leblon: ‘Tem sacanagem?’”, lembra Dave Braga, 53 anos, colecionador dos quadrinhos de Zéfiro que hoje mora na Califórnia, Estados Unidos. “Se te conheciam, eles vendiam, se não, eu tinha que pedir para os meus amigos comprarem”. Àquela época, falar de sexo em público era tão tabu quanto vender fotos de mulheres nuas. Tanto que os “catecismos” eram vendidos de forma clandestina. Depois, os quadrinhos passavam de amigo a amigo, até serem, geralmente, descartados: os filhos tinham medo de que os pais descobrissem o que eles andavam lendo. “Eu tinha muita vergonha e medo de alguém descobrir que os ‘catecismos’ estavam comigo”, conta Braga, que, atualmente, tem mais de 500 títulos em sua coleção. A tiragem média era de cinco mil exemplares. O formato de bolso (cerca de 11cm x 16cm) facilitava a distribuição e as vendas. Algumas edições especiais chegaram a medir o dobro deste tamanho. Geralmente, os jornaleiros obrigavam os adolescentes a comprarem publicações tradicionais e escondiam os “catecismos” dentro delas. Os enredos das histórias tratavam sempre de aventuras eróticas, às vezes incestuosas, em cenários diversos e inusitados. Cada revista tinha cerca de 32 páginas. Estima-se que Carlos Zéfiro tenha criado mais de 800 títulos diferentes. mão no bolso A produção era independente e nunca foi vinculada a editoras. Zéfiro desenhava em casa, no Rio, e amigos próximos se encarregavam de imprimir e distribuir nas bancas da cidade. De acordo com o jornalista Otacílio d’Assunção, autor do livro O Quadrinho Erótico de Carlos Zéfiro, “a coisa começou meio por brincadeira, e depois foi montada uma rede de distribuição precária nos anos 1950, que se espalhou por todo o Brasil”. Segundo ele, a última revista saiu em
Alcides Caminha, aos 70 anos, na época da entrevista à revista Playboy, em 1991, quando assumiu publicamente ser autor dos quadrinhos
Por que “catecismos”? A origem do termo “catecismo” é controversa. Na década de 1970, dizia-se que o autor dos quadrinhos era um ex-seminarista, e daí, por ironia, viria o nome — versão alimentada pelo anonimato de Carlos Zéfiro. Para alguns, teria surgido espontaneamente: como os livros religiosos usados na catequese, os desenhos pornográficos também iniciariam os jovens, mas nas artimanhas do sexo. Para outros, o nome viria do hábito dos jornaleiros de esconderem as revistas dentro de outras
publicações, às vezes religiosas, e o apelido teria se difundido. Assim, uma coleção de 12 “catecismos” comporia um testamento (novo ou velho). A Bíblia seria feita com 24 “catecismos”. O mais provável é que seja uma adaptação para o português das Tijuana-Bibles, quadrinhos eróticos vendidos ilegalmente nos Estados Unidos entre 1930 e 50. A reedição dos quadrinhos está à venda na banca A Cena Muda, avenida Visconde de PiraJá, Ipanema, Rio de Janeiro. Tel.: (21) 2287-8072.
“Zéfiro educou o brasileiro para o sexo”, prefaciou o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, na série que relançou as HQs eróticas em 2005
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