Fios de memoria revisado

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Fios de Mem贸ria Maria Jos茅 Lobo Zenha


De uma simples paleta, transformou-se em uma aquarela. Por meio de um sopro divino, que envolveu alguém, surgiu o tema do nosso encontro. Pelas mãos de outra, virou um quadro que recebeu moldura.... E agora, ele vai se transformar, para nós, em uma doce lembrança, inesquecível.


Para nossa Mãe Acreditamos que, quando alguém viaja pela estrada da vida enfrentando tempestades, gozando a luz do sol ou ficando no meio das tormentas, é a força de vontade que determina a sobrevivência. Portanto, dedicamos estes fios de memórias à mulher em cujos ombros nós crescemos e cuja força herdamos, nossa mãe, Maria José Lobo Zenha, vovó Zezé. Ela ensinou às suas crianças a força da fé diante de adversidades impensáveis. Deu atenção aos seus oito filhos, uma proeza, e mostrou ser dona de uma inteligência brilhante, presença de espírito e sabedoria. Seus sacrifícios foram muitos: suas queixas poucas. Todos os seus filhos sabiam que ela oferecia tudo o que tinha, sem reservas. Ela viveu a perda de seu marido muito cedo e, depois de alguns bons e longos anos, de seu único filho homem e ainda manteve seu vigor para cuidar do resto da família. Sua generosidade e sua beleza, tanto interior, quanto exterior, ficarão inesquecíveis. Mãe, nós amamos e respeitamos muito a senhora, . agradecemos a Deus por sermos suas filhas. Esforçamo-nos para criar os nossos segundo os mesmos princípios com os quais nos criou.


Memórias não podem ser esquecidas “O passado, uma vez vivido, entra em nosso sangue, molda o nosso corpo, escolhe as nossas palavras. É inútil renegá-lo. As cicatrizes e os sonhos permanecem. Os olhos dos que sofreram e amaram serão, para sempre, diferentes de todos os outros. Restanos fazer as pazes com aquilo que já fomos, reconhecendo que, de um jeito ou de outro, aquilo que já fomos continua vivo em nós, seja sob a forma de demônios que queremos exorcizar e esquecer — sem sucesso —, seja sob a forma de memórias que preservamos com saudade e nos fazem sorrir com esperança.”

Rubem Alves


Mamãe chegou ao mundo no dia 27 de agosto de 1913. Não cercada de mimos e tesouros, mas de muito amor.

Casa da Vovó Lilica (1975) – B. Santa Tereza/ Belo Horizonte (MG)

Colégio São José (1980) – Oliveira (MG)

Filha de Guiomar Lopes Lobo e Pedro Lobo, nasceu em Queluz, município de Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais — terra das montanhas, do ouro e de gente de confiança. É a mais velha de uma prole de onze irmãos: Nonô, Juquinha, Lili, Geraldo, João, Ignês, Filhinha, Nenem, Ilza, Antonina e Eulália.

Pedro e Guiomar(Vovó Lilica) - Pais de Zezé


No relógio do tempo: ao centro a matriarca: Vovó Lilica. Da direita para esquerda: Zezé, Geraldo, Antonina, Neném, Juquinha, Filhinha, Lili, Eulália, Ilza, Nonô e Ignês.


Segundo ela, veio ao mundo através de uma parteira, Dona Bianca, que era uma “italiana muito brava”. Foi longo o caminho que ela seguiu... Em sua infância, alguns ofícios marcaram suas habilidades: o pai, homem de grande virtude, costurava botinas para os fazendeiros da região, com ele aprendeu a arte do coser. Com sua mãe, exímia dona de casa e prendas do lar, aprendeu a cozinhar, a bordar em bastidor e a pintar. Já na adolescência, sua mãe costurava para os maquinistas e, num belo dia, conheceu o elegante comerciante na Estação do Horto, Joaquim de Oliveira Zenha, Quinzinho, aprendiz de serralheiro na Serralheria Souza Pinto, onde atuava com seu pai Manuel de Oliveira Zenha. E com Quinzinho casou-se no dia de Nossa Senhora da Conceição, 8 de dezembro de 1933, às 17 horas, na igreja tradicional de Santa Tereza e Santa Terezinha, no histórico bairro de Santa Tereza. “Cheguei no altar e vi a igreja repleta de gente. Era uma tarde linda, de muito sol. Teve uma procissão, na minha frente, das Filhas de Maria. A festa foi linda! Muita gente para o jantar: amigos, padres da igreja, delegado, irmãs de caridade, vizinhos. Antigamente o povo celebrava os casamentos com muito carinho, festa, alegria e fé. Meu enxoval foi todo bordado a mão por minhas irmãs e mamãe Lilica, feito em casa mesmo”.


Com ele viveu um sonho de amor em formar uma grande família e, em busca dessa alegria e graças a Deus, foi abençoada com 8 filhos, Dulce, Dirceu, Therezinha, Ana Lúcia, Heloisa, Maria Auxiliadora, Márcia e Maria de Fátima, 20 netos, 30 bisnetos e 3 tataranetos.

Casa da Savassi (1958) – Belo Horizonte (MG)

Bodas de Prata em 1958, na catedral da Boa Viagem.


Falar das qualidades de uma pessoa não é uma tarefa muito fácil, muito pelo contrário, pois, às vezes, não conseguimos enxergar naquela pessoa tudo de bom que ela tem, pois nossos olhos não alcançam todas as virtudes. Mamãe carrega com ela uma ferramenta de grande valor, a coragem, forjada pelo coração, para nos ajudar a enfrentar as dificuldades que aparecem no nosso caminho. Foi essa qualidade, que nos momentos de grandes crises, em última instância, fez com que ela tomasse decisões difíceis e desse apoio a todos nós. Sempre foi uma guerreira e para ela nunca houve fronteiras. “Eu faço, eu vou, eu sei, eu posso, eu consigo, eu resolvo”. Mesmo passando por cima de qualquer obstáculo, ela sempre foi à luta. Indo à luta, muitas vezes teve de ser autoritária.... Casa da Savassi (1960) – Belo Horizonte(MG)


“Entender é isso: a gente vê uma coisa e vai procurando, na memória, um cabide onde a „coisa‟ possa ser pendurada. Quando encontramos o cabide e a penduramos dizemos, „entendemos‟. O fato do cabide já estar lá na memória, à espera, significa que aquela ideia já estava prevista, Já era sabida, Não causava susto. A memória não tem cabide para coisas novas.” “Como a memória não tem cabide para coisas novas, resolvemos acordar a nossa inteligência adormecida.” Aí então a cabeça fica grávida: engorda com ideias. E quando a cabeça engravida não há nada que segure o corpo.” Nosso corpo não se segurava mais e fomos então em busca de histórias, nossas histórias.... “Cada história é um exercício de saudade. E também de esperança. O que se deseja é reencontrar no futuro, uma atmosfera de felicidade que se experimentou no passado.”

Rubem Alves


Meu nome é “Trabalho”. É assim que nós, ultimamente, temos lhe chamado. Hoje, mais do que nunca, não se dá ao luxo de se levantar mais tarde, descansar após o almoço, tirando uma soneca, assistir a um programa de televisão de braços cruzados. Como escreveu Ana Lúcia, “não me lembro dela ir ao cinema no cine Pathé, tão próximo à nossa casa na Savassi. Nunca deixou para depois o que podia fazer naquele momento, seja lá qual fosse.

Viveu grande parte da sua vida sob o domínio do machismo reinante naquela época, mas isso nunca a incomodou!! Se não era independente economicamente, pelo menos se mostrava dona absoluta de suas ações. Resolvia tudo sozinha, não pedia a opinião de ninguém. Até mesmo quando precisava ir ao hospital fazer suas cirurgias, só avisava ao papai quando estava de saída com a mala na mão. Casa da Savassi (1960) – Belo Horizonte(MG)


Tinha sempre alguém lhe auxiliando na cozinha da nossa casa, além das filhas, é claro! Ana Lúcia se lembrou da Tereza, que na sua infância foi um amor de pessoa. Degomira corria igual a nós, quando o papai gritava alguém da porta do bar que dava para dentro da nossa sala de visita ou quando ele vinha pela casa a dentro arrastando seus tamancos de madeira pelo chão. Quando morávamos na Savassi, os locais de compras foram sempre os mesmos por anos a fio.... # o armazém Colombo # o verdureiro Elpídio # a loja de tecidos e armarinhos do Surette # o barbeiro Serafim # o sapateiro Angelim # o farmacêutico Sr. Geraldo # o carro do taxista Santos # o açougueiro Seu João # o carroceiro Dudu que deixava o papai de cabeça quente com suas brincadeiras e trapalhadas.


Mamãe adorava passar rouge. Quando precisava ir ao centro da cidade fazer compras, se aprontava toda e lá estava o rouge enfeitando sua face. Passava no Kinkas Bar, propriedade do papai, para pegar dinheiro no caixa e ele, com um guardanapo de papel, limpava o rosto dela. Então, mamãe voltava para dentro de casa, não se importava, passava o rouge novamente e saía pelo portão da nossa casa sem voltar ao bar. Isso é que é ser poderosa!!! Centro (1938) – Belo Horizonte(MG)


“Porongo!” Um vira lata, grande companheiro, Sem raça, sem pedigree. Solto pelo quintal, ia para a rua, passeava, voltava. Todos lhe conheciam. Ao avistarmos a carrocinha de cachorros que passava uma vez por semana por aquele bairro tão elitizado, corríamos para saber onde ele estava, pois se fosse pego, viraria sabão!!!

Quintal da casa da Savassi (1960) – Belo Horizonte(MG)

Dirceu, Bráulio e Porongo (1961) – Belo Horizonte(MG)

Mês de junho era só festa, sanfona, bandeirinhas e roupa caipira. Dirceu e seus amigos organizavam a quadrilha em nossa casa. Os ensaios, toda noite, eram a melhor parte da festa e a maior diversão, regados de doces, pipoca e quentão. No quintal, não se enxergava o céu, pois, acima de nossas cabeças, varais e mais varais de bandeirinhas coloridas. O verde dos bambus, roubados na Mata da Baleia davam um charme todo especial naquele quintal.


Por volta de 1974, Dora e mamãe moravam na rua Padre Severino no bairro São Pedro. Nessa época, Márcia morava e trabalhava em Brasília e Fátima já tinha ido morar em São Paulo. Mamãe, na sua inquietude, resolveu hospedar algumas moças do interior que vinham estudar em Belo Horizonte. “O apartamento é grande para nós duas! Temos que aproveitá-lo de alguma forma” — era a sua fala. Foram quase 10 anos com gente entrando e saindo, almoçando, dormindo jantando, estudando, chorando de saudade de casa e, algumas vezes, se desentendendo umas com as outras. Durante as férias escolares ou feriados, voltava a reinar a calma... Quase todas partiam para suas cidades para matar as saudades dos familiares. Namorar dentro do apartamento... nem pensar. Mas elas se viravam e namoravam na rua. Algumas se tornaram nossas grandes amigas, como a Geralda e a Miriam.


A família reunida (1957) Belo Horizonte (MG)

Os almoços de domingo com toda a família reunida na nossa casa era uma grande alegria. Mas como dava trabalho!!! Cedo, levantávamos para ir à missa das 8h na capela do Colégio Dom Silvério e, quando chegávamos, mamãe colocava todo mundo para correr. A mesa era aberta no quintal, onde só os adultos podiam se assentar. Como a mesa era grande para nós, ainda tão pequenos! Papai não fechava o bar mas a toda hora ia dar um alô para os parentes e levava pé de moleque para a vovó Lilica adoçar a boca. Vovó Lilica chegava muito pronta com sua blusa branca toda rendada. Mamãe lhe dava um avental branquíssimo e lá ia ela se assentar em uma cadeira, debaixo do pé de laranja para picar a couve do almoço. Nesses domingos, ali reunidos, para comer, conversar, brincar e rezar, estavam presentes avós, tios, primos e amigos. Tudo envolta de uma mesa farta e saborosa. Mamãe, sempre apressada, saudava a todos que chegavam para somar naquela festa que podia ser em comemoração de um noivado, aniversário, casamento ou por outro motivo para reunir a nossa grande família. Essa era uma oportunidade para todos matar as saudades, contar as dificuldades e facilidades de como a vida estava caminhando. Também eram dias com muito riso, música, alegria e panelaço — mamãe sempre gostou de bater panelas quando a turma se reunia. Tudo muito simples e celebrativo.


Dirceu e Quinzinho no Kinkas Bar (1965) – Belo Horizonte (MG)

Mamãe também trabalhou como cozinheira no bar do papai. Lá perto, aos sábados, entre 5h até as 15h funcionava uma feira na rua Fernandes Tourinho que abrangia uns quatro quarteirões. Era um verdadeiro Mercado Central a céu aberto. Cedo, o bar do papai começava a funcionar e para isso tínhamos de preparar os salgados na sexta-feira à noite. Era uma enorme bacia de feijão fradinho deixado de molho para fazer o bolinho de feijão, carne cozida, linguiça, chouriço, coxinha. Sem falar na sexta-feira santa, quando tínhamos um tanque de sardinha para limpar e fritar. Como sair para passear na sexta, se deveríamos ajudar a mamãe? “Eu, Dora, chorava.... mas não tinha jeito. Não ia! Essa batalha era desde a época de Dulce e Therezinha, ainda jovens, quando tinham de ajudar a mamãe e ainda olhar as irmãs menores. Acho que é por isso que a mamãe tem uma grande fascínio pelas comidas. Pois a lida com panelas, fogão, temperos, carnes e por tudo que se passa na cozinha foi uma constante em sua vida. Tudo era prático , rápido e bem gostoso porque tinha coisas a mais para fazer.”


Ana Lúcia, uma pessoa divertidíssima. Ela não se cansa de falar que a mamãe, a vida toda, lhe xingou e lhe deu cocadas. Mas ela também não devia ser fácil... Todas deixaram aqui, em seus cabides, fatos bem pitorescos: “Em minha infância”, Ana disse, “gostava de meia soquete colada na perna, mas naquela época as meias não tinham elástico e eu vivia puxando as meias para cima e todas as vezes que fazia isso e mamãe estava perto de mim, ganhava umas cocadas bem fortes para eu me comportar, pois aquilo não eram modos de uma menina”. “Na escola primária, gostava muito de estudar e como a mamãe estava sempre me mandando fazer algum serviço ou olhar alguma criança. Um dia, preguei uma tábua nos galhos bem grossos e bem lá no alto, no pé de ameixa bem grande que tinha no quintal da nossa casa, e lá em cima fazia meus deveres de casa como se fosse uma carteira da escola”. “Também adorava jogar vôlei com a turma da rua e eu tinha que comprar pão toda tarde. Aproveitava esses momentos, me esquecia do horário e quando voltava, apanhava por ter demorado e não ter acabado de arrumar a cozinha”. “Quando comecei a trabalhar, gostava das minhas roupas muito limpas e arrumadas dentro do armário e só tinha o sábado para fazer essa limpeza. Mamãe não se conformava com isso e, toda hora que passava no corredor da nossa casa, onde ficava meu armário, me via mexendo nas minhas coisas... me dava cocada.”


Centro (1942)– Belo Horizonte

“Por causa dos meus namorados, fiquei também muito de castigo. Quando isso acontecia, papai me levava um sanduíche de salame e um copo de groselha. Era a minha alegria!!!” “ Namorava na varanda da casa à noite, só aos sábados e domingos, e quando passava da hora do namorado ir embora, mamãe começava a acender e apagar a luz sem parar,. Isso era um aviso muito sutil que estava na hora da coisa boa acabar. Fora as inúmeras vezes que a vi atrás da cortina me espreitando!!!” “Nos passeios que fazíamos com ela pelo Centro de Belo Horizonte, me lembro que eu, Fátima e Dora nos preparávamos com roupas bonitas e simples. Mamãe andava muito elegante, de vestido de chemise e sapatos de salto alto. Íamos de ônibus, sem problema e confusão”. “Sempre nos levava na casa Sloper, onde comprava o que estava precisando. Sempre gostou de comprar alguma coisa na seção de cama, mesa e banho. Já vem de muito a sua atração pelos tecidos e bordados. Para quem não viveu nessa época, essa casa era um magazim na Av. Afonso Pena, no qual o prédio existe até hoje perto da Igreja São José. Era uma loja de departamentos como hoje são os shoppings. Também nesses dias, ganhávamos um gostoso lanche: banana split, na Loja Americana ou na Confeitaria Camponesa. Se lembram, manas, quantas delícias??? Era coisa simples, mas esses passeios eram uma festa. Ai que tempo bom”!!


“Posso dizer que me lembro também do prazer da mamãe trabalhando na máquina de costura. Tecidos, linhas, dedal, agulhas, tesouras, bastidores, pinceis e tintas... era um universo que sempre presenciei na minha casa. Para quem não sabe foi a costura que levou a mamãe a ter um trabalho fora, por um tempo, ela deu aulas de costura. Atualmente a vendo ainda tão próxima desses objetos, fazendo algum trabalho fico orgulhosa.” “Momentos significativos eram também aos domingos quando íamos com a mamãe à missa na Capela do Colégio Marista que ficava bem próximo da nossa casa. Valia a pena acordar cedo, colocar roupa de passear, subir a Rua Lavras, participar da missa e receber a eucaristia na Capela grande e bonita do colégio. Hoje, eu sei que, na sua sabedoria, a mamãe sabia que momentos como aqueles são importantes para os filhos adquirirem alicerce dos fundamentos espirituais.”.


“Aos domingos tínhamos de ir almoçar na casa da vovó Lilica, em Santa Tereza. Os namorados de mais tempo, também eram obrigados a ir. Adami e Francisco, então, apelidaram a vovó Lilica de „Primeiro Ministro‟, pois só ela mandava e desmandava em todos. Para ir até lá, ou íamos no táxi do Santos, ou pegávamos o bonde na Praça Diogo de Vasconcelos (hoje Praça da Savassi). Descíamos na Av. Afonso Pena e tomávamos outro bonde onde hoje é o Mercado das Flores. Todos os filhos tinham de comparecer, inclusive paizinho, que tinha de fechar o bar e ir para o almoço. A bagunça era bem grande pois havia bastante crianças pequenas e os adolescentes ficavam doidos para ir para a praça namorar.” Quintal da Vovó (Décadas de 40, 50 e 60) Belo Horizonte (MG)


“Em agosto, íamos para a Serra da Piedade junto com toda família. O Chico, da Therezinha, ia carregando as garrafas de água, mas ele não esperava ninguém subir, subia na frente e assim todos ficávamos morrendo de sede.”

Os piqueniques deixaram saudades. Dia de Santo Antônio, partíamos de trem para Roças Grandes com a família da tia Antonina e vovó Guiomar. O trem era tão cheio que os adultos passavam as crianças pela janela para elas guardarem lugares para todo mundo. Por lá ficávamos até à tardinha, quando pegávamos o trem de volta, cansados e muito felizes. Heloisa fala que era o lugar mais longe que ela conhecia na sua infância querida. “Aos domingos íamos para a represa de Água Limpa. Lá também ia a família da tia Antonina, a tia Ilza e os amigos da turma da rua. A viagem, com muita cantoria, era feita em uma jardineira alugada e todo mundo levava sacolas e mais sacolas de lanche pois, ficávamos por lá o dia inteiro. Era como uma praia, rodeada de areia.” Represa de Água Limpa (1955) Belo Horizonte (MG)


“Dirceu resolveu que ia estudar no Caraça para ser padre. Ele foi com um amigo da nossa rua, o Guilherme Vivaqua. Sempre íamos visitá-lo. A viagem era muito longe e levávamos coisas gostosas de comer para ele matar as saudades. Mas, um belo dia, ele largou a batina e voltou para casa.”

Caraça (1940) – Minas Gerais

“Na nossa infância, morávamos na rua Paraíba, 1516, no bairro dos Funcionários. Brincávamos sempre na calçada da Av. do Contorno, nossa casa tinham outro portão que dava para essa avenida. Esse portão ficava em frente à Padaria Natal, onde hoje é uma das filiais da Drogaria Araújo, e da casa do professor Morandi e D. Aurora. Aos domingos, alugávamos bicicleta no bicicletário do Rui, onde hoje é a sapataria Elmo, na Savassi. Paizinho só deixava a gente alugar por 1h. Nós éramos três irmãos nessa época, eu, Dulce, Dirceu e Therezinha, íamos aprender a andar e, com isso, não sobrava tempo nem para a gente se divertir. Outro vizinho nosso era a família Delucca. Até hoje temos contato com a Norma. A família Vivaqua também fez parte da nossa infância com seus filhos que regulavam idade com a gente. Em 1950, tivemos como vizinhos, o Sr. Francelino e a D. Latife com os filhos — Luíz Márcio, Maria Eugênia e Paulinho. Nessa época, mamãe se alegrou bastante com a chegada de Dora, Márcia e Fátima, as “rapa tacho” da casa.


“ Dona Maria Cantagalo, nossa vizinha, era professora de piano com quem eu, Dulce, e Therezinha fazíamos aula de piano. Só não conseguimos chegar a fazer „concertos‟ pois tivemos de deixar as aulas para ajudar mamãe nos serviços da casa e do bar.” “Na Av. do Contorno, o que a gente mais gostava eram os dias de chuva, pois a enxurrada descia da rua Lavras e subia no passeio da nossa casa. A gente adorava ficar brincando naquela água barrenta.” “O Kinkas Bar era na esquina da Rua Paraíba com Av. do Contorno e Av. Cristovão Colombo. Durante quase 20 anos de bar, mamãe pode contar quantas vezes ela entrou naquele lugar, pois nós mulheres não podíamos entrar no bar quando ele estivesse funcionando. Quando paizinho comprou duas sinucas bem grandes para o bar, aí é que nós não podíamos nem passar na porta para ver o que estava acontecendo lá dentro. Queríamos ver os galãs da Turma da Savassi, principalmente o Lude Dolabela. Outra turma que jogava sinuca era a do Santo Antônio e, quando essas duas turmas se encontravam, era briga na certa. É uma pena o Dirceu não estar mais aqui conosco para contar lembranças do bar, principalmente da turma do Clube Atlético Mineiro, que sempre estava lá para discutir sobre futebol.”


“Em 1959, Dulce se casou com Adami, ela foi a primeira noiva da casa.Mamãe fez um enxoval muito bonito, com alguma peças bordadas de richelieu, que ela fazia muito bem e uma linda festa na casa do vovô Zenha. Ela também fez o enxoval de todas as outras filhas que se casaram.Em fevereiro de 1960, com o nascimento do primeiro neto, Bráulio, Mamãe e papai ficaram muito contentes, mas logo em abril, Dulce e Adami receberam uma proposta de emprego para irem para Brasília. Eles então resolveram aceitar o novo emprego na capital federal e deixaram o neto com mamãe, pois não sabiam como seria a vida deles na nova capital. Mamãe cuidou de Bráulio durante quatro meses e, em setembro, ela o levou para encontrar com seus pais, ficou por lá durante alguns dias até ele se adaptar e Dulce conseguir alguém para lhe ajudar. Enquanto esteve fora, papai reclamava muita da ausência dela, eram muitos adolescentes para ele tomar conta. Therezinha conta que...

“No terreiro da nossa casa, havia umas galinhas e eu adorava tirar as galinhas do ninho para roubar seus ovos e comê-los quente.” “Na avenida do Contorno onde morávamos tinha várias árvores chamadas de „ficus‟, onde ficavam os carroceiros à espera de uma chamada para o trabalho. Tinha um que não esqueço seu nome, Dudu. Ele vivia tomando conta da gente quando íamos atravessar a avenida para ir até a padaria comprar pão.” “ Nós tínhamos dois portões na nossa casa. Como já se lembrou Ana... Um dava para a rua Fernandes Tourinho e o outro para a avenida do Contorno (chique, não?) e próximo a este havia um enorme pé de laranja bem docinhas, onde ficávamos chupando-as, assentadas debaixo de sua sombra. Era lindo vê-lo todo carregadinho de frutas bem amarelinhas. Nossa rua era bem animada, tinha muitas crianças e jovens, e todos se conheciam. Fazíamos uma „festa‟ quando nos encontrávamos para jogar queimada, brincar de pique esconde e até mesmo jogar vôlei, muitas vezes indo para outros bairros jogar. Tínhamos a Margarida, uma tartaruga de quem gostávamos muito, mas ela desapareceu quando os pedreiros começaram a fazer o alicerce da casa vizinha.”


Nas gavetas do armário, além dos cabides dependurados em flashes de lembranças atemporais, também guardamos no fundo das gavetas, flores secas, gravetos, aromas, sabores e cheiros de frases que não vamos nos esquecer, da nossa convivência junto à mamãe: “Achar pronto e comer é a melhor coisa do mundo.” Não vou deitar durante o dia! Deito só quando eu morrer.” Não vou caminhar. Já caminhei muito por essa vida.” “Quanta lembrança boa!” “Como você pode ficar tão à toa?” “Onde está a Márcia?” “Vem fazer “pé de galinha” nesse pano aqui!” “Vocês acham que eu sou boba?” “ Oh! A sombração!” “Apareceu o assombração!.” “Costuro desde menina.Enfio essa agulha até hoje!” “Zezé, saí daqui. Você não manda mais nessa casa.” “Sua casa é mais embaixo.” “Não sei se pode, vou falar com seu pai.”


Minha viagem à Itália , 19 de maio de 1993. “Saí de Belo Horizonte no dia 19 de maio de 1993 às 18h e fui para o aeroporto de Confins com destino a São Paulo/Roma. Muita gente foi se despedir de mim: Ana, Eduardo, Dora, André, Lucas, Márcia, Dirceu, Carmélia, Miriam Lobo, a namorada do Guilherme e Dulce. Heloisa e Dulce vieram passar o dia das mães comigo. Heloisa se despediu de mim em casa pois estava de volta a Salvador e Dulce foi embora no outro dia para Brasília. Foi uma linda e triste despedida pois todos fizeram, muita força e cooperaram com esta viagem. A alegria de todos era enorme. Fiz a viagem em companhia de duas folcolarinas que iam para Roma para um encontro no dia 5 de junho Elas foram minhas guias e amigas até Roma quando nos separamos. Daí tomei outro avião sozinha mas com Deus. Uma das folcolarínas, a Elaine, conversou com o Sr. Gian Paulo e suas duas filhas, Graziele e Giliana, que muito gentilmente me colocaram no avião que ia para Verona e eles partiram para Veneza. Cheguei em Verona às 17h, no dia 20, e ninguém imagina a minha alegria e a de Fátima quando nos vimos frente a frente no aeroporto. Já eram mais de 18 horas quando tomamos o carro, ela diz máquina, e viajamos durante mais ou menos 1h:30h em direção ao Centro Mariápolis em Trento, onde ela mora com mais cinco folcolarinas: Paula, Gabriela, Luiza, Tina Vaninha e Giovana. Não posso descrever a recepção na sala com cartazes, faixas, flores, palmas e uma grande alegria que só Deus sabe. Não me cansava de vê-la e perguntar para mim mesma: Será verdade que é eu mesma que estou aqui? Elas todas falando em italiano, rindo muito que até parecia que eu estava entendendo tudo de tanta alegria. Não desfiz a mala pois fomos para outra casa dormir e ficarmos mais a vontade. Mais conforto era impossível... O tempo estava muito bom e às 22h falamos com Dulce dando notícias. Logo depois fomos dormir. Dia 21, em Trento, levantamos às 9h, fizemos um lanche e fomos de carro para o Centro Mariápolis onde Fátima mora. Visitei o Folcolare inteiro, que é enorme, almoçamos e fomos dar uma volta de carro pela cidade. Às 18h, fomos à missa em uma igreja linda, onde agredeci a Deus e pedi muito por todos. Jantamos e fomos dormir.


Dia 22, sábado, demos uma volta na cidade outra vez e fomos providenciar o almoço de domingo, dia do encontro com mais de 200 pessoas o dia todo. Preparamos até a massa do quibe que eu levei e foi uma festa só! Como é grande a cozinha! Muitos fogões, máquinas para tudo, geladeiras industriais, muitos armários, uma infinidade de banheiros. Tudo tão moderno que nunca pude pensar em trabalhar na companhia da Fátima e em um lugar assim, preparando tanta comida. Vanda, uma folcolarina é quem comanda a cozinha e tem uma equipe grande que a ajuda, mas a experiência que ela tem é incrível. Dia 23, domingo. Na noite de sábado, dormimos no Folcolare pois tínhamos que levantar cedo para os preparativos do almoço e do encontro. Todos queriam conhecer a mãe de Fátima. Eu não entendia nada que elas falavam mas estava adorando. Tudo é muito requintado. As roupas que eu trouxe, ela não me deixou vestir. Dizia, não dá, vamos comprar roupas novas e de acordo. Foi um custo achar roupas adequadas para ela me apresentar ao ambiente como mãe da Fátima, mas tudo era uma festa. No final do encontro, assistimos a uma missa e fomos dormir. Dia 31, segunda-feira, chegamos em Tiera de Primiera às 16 h, fomos à missa e passamos por uma pizzaria. Era tudo lindo e muito chic. Comemos uma pizza e eu tomei um copo de cerveja deliciosa. Tiramos muitas fotos e seguimos para a casa de Chiara. Às 22h, liguei pra Heloisa, mas ela não estava, então falei com Tom. Mais tarde, fomos dormir. Terça-feira, 1 de junho, fomos a Santo Antônio(??) visitar as lojas. Que coisa fora de série! Estava encantada com as roupas de cama, as cortinas e os tapetes. Seguimos viagem para as montanhas. As estradas ótimas, os túneis intermináveis dentro das rochas. As montanhas pareciam se unir ao céu, Quando elas precisam descansar, vão para as montanhas. E é mesmo verdade, só vendo para crer. Na cidade, os hotéis são um luxo pois é uma cidade de turismo, principalmente para os alemães. Muitos velhos, quase não se vê criança. Voltando das montanhas, paramos em um restaurante e tomei uma cervejinha deliciosa. Não demoramos pois tínhamos que fazer mais compras e o comércio fecha às 12h e só abre às 15h. Voltamos para Trento às 16h pois Fátima tinha uma reunião. Às 18h, fomos à missa,na volta, jantamos e ficamos conversando um pouco. Eu ficava ao lado da Fátima, que ia traduzindo tudo que falavam. Era uma graça porque elas riam muito e era mamãe pra lá, mamãe pra cá, era só isso que eu entendia”... Talvez, devido a tantas festas, encontros, viagens pelos arredores da Itália, mamãe não acabou de escrever seu diário.


Em março de 2010, viajamos juntas pela primeira vez, mamãe e as sete irmãs.

Salvador – Bahia (2010)

Começamos por Salvador, onde fomos comemorar o aniversário da Heloisa. Chegamos todas na mesma hora no aeroporto e, nessa linda capital, passamos uma semana passeando, andando de ônibus com a mamãe, indo à praia, visitando os pontos turísticos. Não podíamos deixar de ir à igreja do Senhor do Bonfim, de que Heloisa é muito devota. Lá assistimos a uma missa, mamãe roubou fitinhas das grades da igreja e ia comendo seus sanduíches que tivemos de levar, pois o passeio seria demorado e ela não perdoa ficar com fome.

Foto de Fátima Zenha – Salvador/Bahia (2010)

As viagens continuaram.... Em, outubro de 2011, fomos para a capital federal, Brasília, comemorar o aniversário da Dulce e, dessa vez, levamos a Wânia conosco. Foi uma festa só! A casa cheia, muita comida gostosa, muita farra e alegria. Brasília – Distrito Federal (2011)


Maio de 2012, partimos para Recife. Agora foi a vez de soprarmos as velas da Fátima. Como nunca tínhamos participado da vida dela mais intimamente, chegamos bem comportadas....mas não foi preciso muito tempo para nos descontrairmos. A comunidade onde ela mora é muito grande e bonita e fomos recebidas de forma bem alegre. Por lá ficamos dois dias e partimos para a praia de Porto de Galinhas, onde passamos bons momentos de muita farra, banhos de mar, risos, almoços e lanches, sempre à hora, para a mamãe não se agitar.

Porto de Galinhas/Pernambuco(2012). Da esquerda para a direita: Dulce, Fátima, Therezinha, Ana Lúcia, Vovó Zezé, Dora, Heloisa e Márcia.


Outubro de 2012, Angra dos Reis. A convite da Therezinha, fomos nós, outra vez, soprar as velas de seu aniversário e nos despedirmos dela, pois iria se mudar para o México com sua filha Renata. Algumas das Lobas também fizeram as malas e foram conosco: Wânia, Edna, Consuelo, Cristina e tia Inês. Lá reinou a paz e a alegria. Ficamos hospedadas na casa de praia do Vitor (filho mais velho de Therezinha), um lugar lindíssimo e onde festejamos o aniversário de Therezinha. Com uma noite de festa cigana com direito à fantasia, coquetéis e uma bela de uma paella!!

Aeroporto Santos Dumont - Rio de Janeiro (2012)

Essas viagens nos proporcionaram momentos de descanso, prazer, alegria — principalmente por termos a mamãe sempre junto com a gente, com saúde e disposição para enfrentar aeroporto, estradas, falação e risos de tantas mulheres juntas. Foram momentos e dias que fizeram bem à nossa alma e estreitaram, ainda mais, as nossas relações afetivas. Isso só pode ser uma benção de um Deus tão bom e poderoso.


Fragmentos encontrados em um caderno na gaveta “Jesus Maria e José, protetores das famílias, nos esclareça, junto ao Divino Espírito Santo, o que for da Vossa vontade, Senhor. Hoje, dia 26 de abril de 1984, quinta-feira, Santa Rita, rogai por nós, iniciamos a nossa obra no terreno da casa de Ana Lúcia e Cordeiro. Estão de acordo comigo, os filhos Dirceu e Carmélia, Dora, Nino e Márcia. Márcia está à frente de tudo e com direito a resolver tudo junto comigo.” Mudamos para o bairro Liberdade, Rua Professor Nelsom de Sena, 378,próximo ao aeroporto, numa casa geminada que a Márcia comprou, no dia 7 de abril de 1995, sexta-feira com a graça de Deus. Muito obrigada pela ajuda de todos. Mudamos para o bairro Pompéia, no dia 7 de fevereiro de 2000, segunda-feira, na rua Violeta,671. Mudamos para a rua Campinas,510, na Esplanada, em 2004, no terceiro andar e a Dora mora no primeiro andar e alugamos a casa de Márcia na Pampulha dia 1º de fevereiro de 2000. “No dia 2 de maio de 2013, mamãe se mudou para um apartamento que a Márcia comprou, no Jaraguá, sexto andar. Esse momento foi o mais difícil para mim, Dora, pois, há quase dez anos, ela morava no meu prédio. A partida foi triste, mas ela precisava de ir morar em um apartamento que tivesse elevador. Saberei viver sem a sua presença no meu dia a dia, mas não me esquecerei dos bons momentos que passamos juntas no prédio. Era só eu abrir a porta do seu apartamento que ela gritava lá da mesa: “Já sentiu o cheiro do café e subiu, não é? Ou, veio almoçar? Pega uma cadeira e assenta. Por que o Nino não veio também? Ou quando entrava pela minha porta, fazia o Nome do Pai, abençoando minha casa. Nunca vou me esquecer desse gesto”...


“É muito bom ver a mamãe completar 100 anos. Não dá para fazer de conta, que isso não é relevante para a nossa família . É um momento e tanto, mas este não é o único. Foram muitos acontecimentos que guardamos na lembrança desta mãe que experimentou trabalho, coragem, amor, otimismo, derrotas, fé , sonhos, dor, vitórias, tristezas e despedidas... Por fim, queremos agradecer a Deus esta imensa conquista da mamãe e da nossa família, por poder comemorar este centenário junto de todos nós e dizer que todas estas memórias mexem com as nossas emoções. Daí a importância da celebração neste dia 27/08/2013, pois algum detalhe irá tocar fundo em nós, como também na nova geração que participa desta grande festa, o nosso Encontro de Gerações (31/08 e 01/09 de 2013) que deixará „marcas‟ que carregaremos por toda vida”.


Nestes 100 anos de fios de mem贸ria, o tear das palavras pede o desenrolar da linha desta hist贸ria em que voc锚 faz parte. Esperamos continuar a desenrolar e a tecer a vida.


Todos os bordados usados no livro, como moldura, foram feitos pela Vovó Zezé...

Argumento do Livro: Maria Auxiliadora Zenha Projeto gráfico: Lucas Zenha Antonino

Contribuições de textos: Ana Lúcia, Dora, Dulce, Fátima, Heloísa, Márcia, Therezinha e Maria José Lobo Zenha Contribuições de fotos: Filhas, netos e sobrinhos Revisão final: Magna Rodrigues Versão Digital: Leo Zenha e Luciana Zenha

Belo Horizonte, 27 de agosto de 2013.


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