Da performance Jonas e Hoffman tradução

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Da performance (e outras complicações) Jens Hoffmann e Joan Jonas in: HOFFMANN, J. e JONAS, J. Questions d’art: Action Londres/Paris/NY, Thames & Hudson, 2006 tradução: Lucio Agra “A fronteira entre arte e vida deve se manter tão fluida e indistinta quanto possível.” Alan Kaprow

A palavra “performance” anda por todos os discursos atualmente. É empregada em múltiplos setores da atividade da a economia, os negócios, a tecnologia, as ciências e a medicina até a arte, a cultura popular, a política e a universidade. Ainda que todos façam uso dessa palavra, parece difícil conceder-lhe um significado claro e preciso. Pois é justamente essa resistência às tentativas de classificação que fazem deste um domínio artístico particularmente interessante. O objetivo primeiro deste livro é o de repor em questão o modo pelo qual a arte e suas categorias são habitualmente observadas. Ao preferir ao termo performance – e aquilo que ele representa historicamente – o termo ação, pretendemos atacar de frente a categorização e suas complicações. Veremos que é possível reagrupar artistas e obras segundo um modo associativo, aberto e inovador, próprio a lançar sobre suas ligações e suas afinidades, um luz mais justa e artística do que o clássico “sobrevôo” histórico. A performance morreu? Viva a performance! Este programa revela a percepção paradoxal que temos hoje da performance no seio das artes visuais. A maior parte dos dicionários propõe uma definição muito ampla para o termo: O Merrian-Webster, por exemplo, define o termo inglês simplesmente como “a execução de uma ação, a conclusão de uma tarefa ou o grau de eficácia de um funcionamento, de uma operação.” Evidentemente tudo isto pode se revestir de múltiplas significações. No mundo empresarial, por exemplo “performance” designa a produtividade de um empregado, as flutuações de um título nas bolsas, os resultados de uma sociedade do ponto de vista da gestão da produção. No esporte, falamos da performance de um atleta em uma competição e, no domínio das tecnologias, a mesma palabra ser para definir a eficácia de uma nova técnica. Na política, aplica-se às ações de um político, de um partido ou à eficácia de uma idéia. Utiliza-se esta palavra, também, para referir o preço elevado que foi estabelecido para um imóvel antigo, uma jóia ou uma tela em um leilão. No domínio das artes, falamos de performance para a interpretação de um cantor de ópera, e o inglês se serve também dessa palavra para qualificar a representação em si mesma; sendo a ópera um acontecimento temporário, executado para uma platéia, ou seja, uma ação artística pública e provisória. Estes são alguns exemplos entre numerosas outras acepções possíveis. Quanto mais nós lemos e compreendemos coisas sobre a “performance”, mais a noção tende a se obscurecer. Subitamente, as atividades também diversas tais como contar piadas ou cozinhar vêemse qualificadas de performances, da mesma forma que os talk shows televisivos ou os concursos de comedores de cachorro quente, por exemplo. Do que se trata, portanto? Da sociedade como performance? Do mundo como teatro? A idéia de performance foi seriamente reexaminada nos últimos dez anos, à ocasião do que numerosos textos teóricos sobre as artes visuais, o teatro e a dança tem qualificado de “virada performativa” (tournant performatif). Disciplinas como a filosofia, a sociologia, a lingüística e a antropologia têm feito uso particular da noção de performance para reformular as questões fundamentais das ciências sociais, passando


dos métodos estruturalistas ao estudo dos processos. Assistir a um concurso de comedores de cachorro quente pode se tornar, assim, uma experiência antropológica ciradora de uma estrutura social suscetível de nos ensinar o processo de uma civilização. Da mesma maneira, o ato de cozinhar torna-se uma forma de ritual performativo implicando elementos essenciais à nossa sociedade. A cultura – em particular a ligação entre práticas rituais, situações postas em cena e processos gerais de civilização – será, doravante, considerada como performance. Em seu livro O espetáculo da vida cotidiana (1959) 1, o sociólogo Erving Goffmann fala do processo de socialização como uma forma de performance. Para descrever essa formação da identidade social a partir dos atos cotidianos e das interações que tomam forma no nosso ambiente de todos os dias, ele emprega numerosos termos ligados ao teatro (“cena”, “público”, “acessórios”, etc.), propondo uma teoria da vida cotidiana como encenação teatral na qual cada um de nós tem um papel. Por volta da mesma época em que Goffman publicava seus textos mais influentes, o filósofo britânico John L. Austin desenvolvia a sua teoria dos “atos da fala” (actes de langage)2 que viria a se tornar célebre. Durante uma emissão radiofônica em 1956, Austin empregaria pela primeira vez o termo “performativo” (performatif). Com essa palavra ele queira designar uma forma de discurso capaz de realizar uma ação. Os performativos são, portanto, os enunciados que, em lugar de descrever uma realidade, agem sobre ela. Podemos citar como exemplos o “eu vos declaro marido e mulher” num casamento, ou a frase bíblica “Faça-se a luz”. O livro de Austin Quando o dizer é fazer (1959; 1970 tradução francesa)3 tornou-se rapidamente um grande clássico no domínio da lingüística e da filosofia da linguagem e a sua influência nas ciências sociais é percebida ainda hoje. Enquanto Austin analisa a função performativa da linguagem, Goffman estuda mais particularmente a construção identitária como processo performativo, abrindo, assim, caminhos para as teorias feministas. Judith Butler, autora da célebre obra Gender Trouble (1990; 2004 tradução francesa)4 . Ali ela estabelece uma ligação entre as noções de identidade, de gênero sexual (gender) e de performatividade. Influenciada por Jacques Derrida e sua idéia de processo citacional como modo de construção de identidade, Butler considera o gênero como performativo, ou seja, tornamo-nos homens ou mulheres à força de repetir os atos que dependem dos modos socialmente estabelecidos de ser homem ou mulher e não nos subordinando a um destino natural e inevitável. Seu argumento segundo o qual o gênero não é mais do que uma forma “de relação entre os sujeitos socialmente constituídos em contextos específicos” e não um atributo fixo em uma pessoa, está na origem de um grande interesse pela noção de performance e sua relação com os cultural studies. A ligação entre performatividade e antropologia nos conduz a interssar-nos pelo domínio da arte e, mais particularmente, do trabalho de Richard Schechner. Schechner tem, com efeito, um lugar significativo no debate sobre a performance , pois trata-se de um dos poucos a lançar uma ponte entre a teoria e a prática artística. Um professor universitário muito estimado, fundador do célebre Departamento de Performance Studies da New York University, ele foi também um homem de teatro influente nos 1

Publicado no Brasil com o título A Representaçao do Eu na Vida Cotidiana. Petrópolis: Vozes, [1959] 1989. (N.T.) 2 O termo que utilizo é o mais empregado no Brasil (Teoria dos Atos da Fala) embora não seja dos mais precisos. (N.T.) 3 Tradução brasileira: AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990 (N.T.) 4 Sem tradução em português. (N.T.)


anos 60 e 70 com o seu legendário Performance Group. Esclareceu as relações possíveis entre o teatro e a antropologia, palavras que encontraremos no título de seu livro mais célebre, Entre o teatro e a antropologia (1985)5, prefaciado pelo antropólogo Victor Turner. Schechner é, sobretudo, conhecido pelo seu “teatro do environment” (théatre de l’environement)6 que rejeitava a tradicional separação palco/platéia e que militava pela participação dos espectadores, à maneira daquilo que observamos nas diversas práticas culturais performativas/performáticas, notadamente em certos rituais religiosos. Quanto a Victor Turner, ao se inspirar em Goffman e sua visão do mundo como cena de teatro, elaborou a noção de “drama social”: situações de crise que saem do cotidiano ordinário e obedecem, segundo ele, a esquemas específicos. À vista do que acabamos de demonstrar, damo-nos conta de que as palavras “performance” e sobretudo “performantivo” foram bastante utilizadas no estudo de fenômenos culturais em um escopo muito amplo. A análise do emprego do termo “performativo” no mundo da arte revela um uso mais e mais impreciso. Serve sobretudo para descrever, definir ou estimar uma criação que possua linhas de parentesco com a performance ou possua atributos comparáveis. Basta observar a imensa diversidade de obras associadas a estes termos para chegar à conclusão de que a performance é tudo menos uma disciplina rigorosamente definida. Trata-se acima de tudo de um certo tipo de rede heterogênea que reagrupa os conceitos e as demandas artísticas procedentes de técnicas, correntes e origens culturais bastante diversas. No campo das artes visuais, o termo se emprega principalmente para designar uma forma artística fundada sobre a representação em movimento, em ação. A performance não dá a ilusão do acontecimento mas presentifica o acontecimento real como obra. Uma performance é geralmente executada por um artista ou grupo de artistas diante de um público sentado ou em pé, em um tempo e lugar dados. Contrariamente ao teatro, a performance não dá a ilusão do acontecimento mas presentifica o acontecimento real como obra. Dessa forma o termo permanece associado principalmente às obras criadas nos anos 60 e 70 e permanece em grande medida associada àquela época. Em seu livro pioneiro A arte da performance – do futurismo ao presente (1979; 2001, ed. francesa)7 RoseLee Goldberg oferece uma definição mais aberta da performance ao declarar que esta pode ser toda e qualquer manifestação ou ação artística apresentada diante de um público, que não está baseada, em contraste com o Teatro, sobre diálogos previamente estabelecidos. Goldberg remonta ao início do século XX para fazer dos Futuristas os primeiros a introduzir a idéia de performance na esfera das artes visuais, com seu conjunto de ações particularmente anti-burguesas às quais chamavam de “sensações dinâmicas”. Aborda, a seguir, o construtivismo, Dada, o surrealismo e a Bauhaus, todos movimentos que participaram no desenvolvimento de uma abordagem multidisciplinar da arte e do mundo em geral. O que é fundamentalmente novo na visão de Goldberg é a definição bem aberta da performance que ela apresenta com um tipo de gesto interdisciplinar reunindo as 5

Sem tradução em português. (N.T.) Optei por traduzir preservando a palavra praticamente idêntica em francês ou inglês, ao invés do equivalente português “ambiente”. Sigo, assim, a mesma sistemática adotada anteriormente por Renato Cohen para esse termo. (N.T.) 7 RoseLee GOLDBERG A arte da performance – do futurismo ao presente SP, Martins Fontes, 2006, trad. Jefferson Luiz de Camargo e supervisão de Kátia Canton. 6


múltiplas formas de expressão (a dança, o teatro, a literatura, a música, a poesia, a arquitetura e, naturalmente, as artes visuais). Esta visão da performance tem duas fontes, uma de caráter modernista, a outra pós-moderna: de uma parte os artistas da vanguarda européia de começos do século vinte que trabalhavam em múltiplos domínios e misturavam as disciplinas a fim de romper com a visão de arte da época; de outra, as reviravoltas que a arte enfrentou nos Estados Unidos, no pós-segunda guerra assim como o espírito dos anos 60 que contribuíram para borrar as fronteiras entre as disciplinas antes consideradas como distintas, notadamente a dança, o teatro, a música e as artes visuais. Entre os exemplos maiores, ´podemos citar os primeiros happenings de Allan Kaprow, as performances coreográficas do teatro da Judson Church, o trabalho de John Cage no Black Mountain College, o grupo de performance de Richard Schechner e os legendários E.A.T. (Experiments in Art and Technology – Experimentos em Arte e Tecnologia) de Billy Klüver, organizados em Nova York em 1966 que respondiam ao desejo de criar um projeto radicalmente inderdisciplinar, associando a arte e a ciência. Analisemos agora uma definição mais evidente – mas igualmente mais estreita – da performance, que coloca o corpo no centro da investigação e da expressão artísticas e da qual um sinônimo poderia ser o termo “body art”. O livro de Lea Vergine, Body art and performance: The body as a language (1971) (Body art e performance: o corpo como linguagem)8 foi o primeiro a reunir os artistas que trabalhavam com ou sobre o corpo. Esta definição de performance como ação centrada no corpo influencia ainda hoje nossa concepção do que ela é. De fato, para a maior parte de nós, a palavra evoca imediatamente os artistas que fizeram de seus corpos o objeto de sua arte e que se tornaram os incontornáveis nesse campo, tais como Marina Abramovic, Vito Acconci, Chris Burden, Otto Mühl, Bruce Nauman, Denis Oppenheim ou Carole Schneemann. Desse modo, temos tendência a associar à performance algumas imagens estereotipadas de corpos feridos, violentados, nus, rastejando na lama, sangue ou mesmo excrementos. É evidente que a body art vai muito mais longe do que esses clichês. Na verdade, tudo que é ligado a uma existência ou a uma identidade singular, entra na esfera da body art , revelando, dessa forma, um grande inventário de maneiras de enfrentar criativamente os diferentes aspectos da vida. Na realidade a body art é, em si, um termo inclusivo que não lograremos reduzir a um conceito preciso e particular. Outras histórias da performance (redigidas essencialmente nos Estados Unidos) assimilam o nascimento da performance à action painting de Jackson Pollock, apoteose de uma arte do gesto. A ligação entre Pollock e a performatividade é visível tanto nos traços de sua ação sobre a tela, quanto principalmente no testemunho que constituem as célebres fotografias e filmes de Hans Namuth. Aí vemos Pollock em plena criação, revelando de maneira quase estática a “fisicalidade” de sua pintura que, literalmente, desborda do quadro. Isto se liga de forma interessante à característica de abertura e ausência de fronteiras da performance. Como escreveu Allan Kaprow em seu ensiao de 1958, intitulado “O legado de Jackson Pollock”: “Não entramos em uma tela de Pollock por um lugar (nem por cem). Não importa onde é tudo e entramos e saímos quando e onde podemos...” A grande inspiração de Kaprow foi o fato de que Pollock transgrediu o quadro, o território da pintura, o campo retangular da tela, para ir em todas as direções. Nele, Kaprow viu um símbolo da vontade de desvendar novos territórios e ultrapassar os limites impostos por um campo artístico, vontade que reencontramos na idéia de performance. 8

Sem tradução em português. O livro vem sendo reeditado pela Skira (última edição consultada: 2000) (N. do E.)


Kaprow também buscou muita inspiração no trabalho de John Cage e nos escritos do filósofo americano John Dewey para chegar às suas “extensões no tempo e no espaço”. Depois de abandonar a pintura, ele começou, em 1957, a criar seus environments, que, em seguida, dinamizava graças a diversos eefeitos e tranformava em “Happenings” nos quais o público era convidado a participar diretamente. Seus 18 happenings em 6 partes , apresentados na Galeria Reuben de Nova York, em 1959, refletiam sua convicção de que não há fronteiras entre a vida cotidiana e a arte. Esta obra obteve grande repercussão e teve influência duradoura tanto em artistas americanos como da Ásia ou Europa, particularmente sobre aqueles que pertenciam ao grupo Fluxus. Por serem espontâneos, efêmeros, livremente programados, e por terem relação direta com a vida de todos os dias, os happenings de Kaprow foram os arautos daquilo que viria a ser a performance. O desejo de explorar, situar e preencher o fosso entre arte e vida estava no âmago das pesquisas artísticas e teóricas de Kaprow. Seu empenho no conjunto e em particular nos Happenings jogaram um papel importante no desenvolvimento da performance e das artes visuais em geral pois prefiguraram uma nova maneira de encarar a relação entre a arte e a vida que viria a se tornar cada vez mais freqüente nas criações dos decênios seguintes, obras que começaram a observar, criticar e interpretar as práticas sociais, políticas e culturais de um mundo ao qual estavam destinadas. Está claro que todas as definições possíveis da performance que apresentamos aqui estão ligadas de uma forma ou de outra e, provavelmente, ao vê-las todas juntas, poderemos fazer uma idéia mais precisa da significação deste termo no contexto da arte. Este livro deve ser visto, portanto, como um conjunto de reflexões e interrogações que derivam de uma definição provisória e inclusiva de performance, e não um estudo sistemático da história dessa forma artística nem análise estrita se uma definição ou significação quaisquer proposta por teóricos. Esta obra se propõe, portanto, a abraçar, de forma associativa, um largo panorama de obras contemporâneas que comportam elementos performativos/performáticos. 9 Trata-se, na verdade, de prolongar o movimento iniciado pelos artistas que se envolveram mas estratégias participativas, efêmeras, evolutivas, conceituais e moventes, todas qualificáveis como performance em sentido amplo.

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Por vezes empreguei os dois termos para traduzir “performativ” por entender que apenas o primeiro poderia não dar conta do sentido integral pretendido. (N. do T.)


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