DIÁLOGO E TRAIÇÃO
DIÁLOGO E TRAIÇÃO
GRÃO VASCO
JÚLIO RESENDE
DIÁLOGO E TRAIÇÃO
DIÁLOGO E TRAIÇÃO
GRÃO VASCO
JÚLIO RESENDE
DELEGAÇÃO DE VISEU DA ORDEM DOS ADVOGADOS
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GUILHERME FIGUEIREDO BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
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A exposição que agora se proporciona, no âmbito do 8.º Congresso dos Advogados Portugueses, nasce de um acordo antigo e longamente maturado, entre a Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados, o Lugar do Desenho — Fundação Júlio Resende e o Museu Nacional Grão Vasco, sobraçandoos num propósito comum: pôr em “diálogo” dois grandes artistas que viveram em épocas distantes — os Mestres Grão Vasco e Júlio Resende — a pretexto da coincidente comemoração centenária do nascimento deste último (23 de outubro de 1917) e da fundação do museu que homenageia o primeiro (16 de março de 1916). Como moderadora, à partida improvável, do referido “diálogo” surge, pois, a Ordem dos Advogados, implicando o direito e a profissão advocatícia, numa função mediadora, cujo sentido, eventualmente ousado e provocatório, importa esclarecer liminarmente. Sabe-se bem da relação que o Direito mantém com a Arte, enquanto expressões do humano: cinema e direito; literatura e direito, arte e direito ocupam agora disciplinas, obras e autores, num movimento cada vez mais densificado sobre a Arte no Direito e o Direito como Arte. No entanto, as desconfianças e reservas abundam, de parte a parte, e com argumentos não despiciendos, que remetem para a origem inconfundível da esferas prática e poiética, da prudência e da arte, da razão prática e da razão estética e do consequente apartamento, quando não animosidade e conflito, entre as exigências de regulação e sanção, de um lado, e os impulsos de expressão e transgressão, de outro, os parâmetros relativizadores da proporção e os difíceis cânones do belo, para não falar nos píncaros absolutos do sublime. Entre os que receiam a liberal inutilidade ou detractam a suposta jactância de um direito abeirado da arte (esquecido, pois, da sua vocação pragmática ou da gravitas preceitual) e os que denunciam esse namoro interesseiro, com que tenta redimir-se artisticamente de culpas históricas, não faltam, pois, reacções negativas — que vão do puro preconceito às reticências fundadas de especialistas na matéria. E todavia, se pontes existem entre as experiências e razões, os discursos e as intenções assim problematicamente convocadas, não de somenos serão as que se estabelecem graças à actividade do advogado nas suas múltiplas expressões: desde a performance retórica, à reconstrução narrativa dos casos, da perturbação hermenêutica dos quadros normativos e seu alargamento ao enriquecimento dos catálogos de tópicos e à imaginação permanente de argumentos e argumentações constitutivas; da metabolização discursiva do trágico da vida ao empolgamento combatente com causas quase épicas. Exercícios pelos quais, afinal,
se repensa e redescobre continuamente a auto compreensão histórica do homem, que a arte sintetiza e cristaliza nos seus lances e arroubos inimitáveis, mesmo se o próprio pintor valoriza, com saudade, como aprendeu «a colocar as cores na paleta, segundo as boas regras» (Júlio Resende). Se o quisermos dizer de forma mais simples e sintética, o que sobretudo une a advocacia à actividade artística é, em primeiro lugar, a liberdade de exercício, enquanto pressuposto básico para a sua existência plena e, em segundo lugar, a importância dada ao outro, cuja dignidade de pessoa se constrói por inúmeros recursos, incluindo o direito à cultura. Como já o escrevi a outro propósito, não tenhamos ilusões, a revolução tecnológica da modernidade e contemporaneidade sucede num período histórico em que as sociedades são mais complexas e contingentes, lidando com poderes difusos, logo que cedidos pelo Estado e outras autoridades democraticamente controladas, segundo esquemas orgânicos e processuais conhecidos, a entidades e instituições privadas furtivas a escrutínios públicos que não os do mercado e em condições de muito real e indiscutível imperfeição deste. No âmbito do direito, a acentuação pós-moderna configurada num direito complacente, delicado, micro, subjectivo; no âmbito ético o relativismo, a perda da inquietação, que não duvida nem se questiona, nem reflecte, e muito decide, que apenas caminha e não faz caminho; no âmbito da arte, de uma estética da autocomplacência, o belo “é pequeno, delicado, leve e terno”, como refere Byung-Chul Han. Este pano de fundo não nos remete para qualquer crise, já patologicamente degenerada, antes para a pertinência de uma reflexão crítica e a inerente necessidade uma maior compreensão interdisciplinar da realidade (não contraditória da especialidade dos saberes), bem como para uma vivência eticamente conformada e comunitariamente desenhada pela dignidade da pessoa humana. E se não é uma tarefa do artista enquanto criador, embora o seja para o advogado enquanto chamado para a defesa dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, a verdade é que a cultura, de que o direito faz parte, não se desassocia, de garantir, seja qual for a fenomenologia em causa, de dar viva à “vida realmente vivida”. Finalizo agradecendo, penhoradamente, ao Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende, na pessoa do Presidente do Conselho de Administração Prof. Pintor Victor Costa, ao Museu Nacional Grão Vasco, na pessoa da Diretora Drª. Paula Cardoso, e à Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados, na pessoa da sua Presidente Drª. Cristiana Rodrigues, que tornaram possível este diálogo com esta moderação.
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MUSEU NACIONAL GRÃO VASCO
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PAULA CRISTINA CARDOSO DIRETORA DO MUSEU NACIONAL GRÃO VASCO
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Do latim musēum, um museu é um lugar onde se guardam e exibem colecções de objetos de interesse artístico, cultural, científico e histórico. É um lugar de património, de memória, de cultura e lazer. Um lugar que mantém viva a história de um país ou região. O Museu Nacional Grão Vasco tem como fundamental intento a preservação, divulgação e aprofundamento do conhecimento de um rico acervo de pintura renascentista do pintor Grão Vasco - “os valiosos quadros existentes na Sé de Viseu (…) além doutros objetos de valor artístico ou histórico (...)”. Mas, como qualquer Museu que quer acompanhar os tempos, tem de saber estabelecer conexões com o presente e abrir portas para o futuro, fundir-se com o tempo, com a cidade, com o território, mas também com outras experiências e realidades artísticas. É neste contexto que se insere a exposição Diálogo e Traição – Grão Vasco | Júlio Resende. Diálogo e Traição – Grão Vasco | Júlio Resende convida-nos à exploração de diálogos entre as obras do Mestre renascentista da pintura portuguesa – Vasco Fernandes – o Grão Vasco, que produziu uma obra imensa e intensa no seu significado religioso e artístico, e o grande artista contemporâneo Júlio Resende que fundiu o seu trabalho numa dinâmica vanguardista e modernista, não dispensando a influência de várias correntes de produção artística. Secularmente distanciada, a criação artística destes dois vultos da arte nacional, pretende estimular o nosso olhar, transportando-nos para diferentes paletas pictóricas, suscitando-nos à curiosidade da sua relação e questionando-nos sobre as suas (re) interpretações e ligações. Esta exposição resulta de uma vontade comum entre o Museu Nacional Grão Vasco, a Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados e o Lugar do Desenho - Fundação Júlio Resende que, no seguimento da exposição “Korntal – Aguarelas de Júlio Resende”, patente no MNGV no âmbito das comemorações do centenário da sua fundação – 2016, voltaram de novo a encontrar sinergias, agora nas comemorações do centenário do nascimento de Júlio Resende, demonstrando assim a importância das parcerias na divulgação e visibilidade do património e da cultura.
CELEBRAR E REPENSAR JÚLIO RESENDE [1917—2011] NO CENTENÁRIO DO SEU NASCIMENTO
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LUGAR DO DESENHO
Desde a sua criação, em 1993, e a inauguração das suas instalações, em 1997, que o Lugar do Desenho — Fundação Júlio Resende se dedica ao estudo, à preservação e à difusão do vasto acervo de desenhos que possui. Formada por duas mil e quinhentas peças que o pintor reuniu ao longo da sua carreira e destinou à Fundação, a colecção permite seguir o seu trajecto artístico, desde os tempos de formação aos de consagração. As actividades culturais e educativas que a Fundação tem desenvolvido estimulam uma leitura aberta do desenho e uma reflexão multidisciplinar sobre a sua prática. Porque a experiência da viagem foi determinante na obra de Júlio Resende e porque estamos perante um artista que dedicou parte da sua vida às questões da divulgação e da recepção da arte, é justo celebrar o seu nascimento, através de uma série de exposições em várias cidades portuguesas. É o que se pretende com a parceria entre o Lugar do Desenho, a Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados e o Museu Nacional Grão Vasco, para a organização de uma exposição temporária por altura do Congresso Nacional dos Advogados Portugueses, exposição com características peculiares, assente num diálogo entre a obra de Júlio Resende e o patrono do museu viseense, Vasco Fernandes, o Grão Vasco. Situadas e produzidas nos contextos epocais muito diferenciados dos séculos XVI e XX, as respectivas obras partilham a importância e o significado cultural que assumiram ao longo do tempo e do reconhecimento que a história lhes dedicou. O diálogo possível constitui um desafio considerável que o Lugar do Desenho aceitou e que resultará, certamente, numa releitura do trabalho dos dois artistas. Rever Júlio Resende é rever uma obra que resume a arte do século XX. É urgente repensá-la e reenquadrá-la na história da arte moderna e contemporânea. O centenário do nascimento do pintor é o momento certo para esta acção.
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DIÁLOGO E TRAIÇÃO. GRÃO VASCO | JÚLIO RESENDE
1 — DIDI-HUBERMAN, Georges – Diante do Tempo. Lisboa: Orfeu Negro, 2017, p. 10. [ed. original de 2000]. 2 — Destacam-se, entre outros: RODRIGUES, Dalila – Modos de Expressão na Pintura Portuguesa. O Processo Criativo de Vasco Fernandes (1500-1542). Tese de Doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2000. Em linha: http://hdl. handle.net/10316/645; CASIMIRO, Luís Alberto – Pintura e Escultura do Renascimento no Norte de Portugal. In “Revista da Faculdade de Letras Ciências e Técnicas do Património”. Porto 20062007, I Série vol. V-VI, pp. 87-114; Grão Vasco e a Pintura Europeia do Renascimento. Lisboa: C. N. C. D. P., 1992; Além do Grão Vasco. Do Douro ao Mondego: a Pintura entre o Renascimento e a Contrareforma. Exposição Comemorativa do Centenário da Criação do Museu de Grão Vasco. Viseu: Museu Nacional Grão Vasco, 2016.
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LAURA CASTRO
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Diante de uma imagem – por muito antiga que seja –, o presente nunca cessa de se reconfigurar, mesmo que o desapossamento do olhar tenha completamente cedido o lugar ao hábito enfadado do “especialista”. Diante de uma imagem – por muito recente ou contemporânea que seja –, também o passado nunca cessa de se reconfigurar, já que esta imagem só se torna pensável numa construção da memória, senão mesmo do assombro.1 VER EM DISTÂNCIA E RECUO Deslocadas embora do seu contexto original de culto e liturgia, as obras de Vasco Fernandes (c. 1475-1542) não perderam a condição sagrada, tendo sido substituídos os rituais do espaço religioso pelos do espaço museológico que conserva protocolos de reverência e devoção. Mais próximas de nós, pela cronologia e pelos ambientes que conhecemos por experiência própria, as obras de Júlio Resende (1917-2011) transmitem-nos uma familiaridade que as anteriores não admitem. Os dois artistas distanciam-se, desde logo, pelos seus dispositivos de apresentação e pelas implicações deles decorrentes. Os trabalhos do primeiro apelam a um sentido patrimonial, inevitavelmente relacionado com o passado, e os do segundo, ao uso estético relacionado com a contemporaneidade, ainda que a situação inversa também ocorra com a atribuição de valor patrimonial à obra de Júlio Resende e com a adesão estética à obra de Vasco Fernandes. No entanto, a ocupação do lugar museológico do pintor quinhentista pela arte do século XX – seis aguarelas, seis desenhos e quatro óleos do pintor portuense – não deixa de instaurar um sentimento de profanação. Incapazes já de separar o lugar onde vemos do que vemos, a importância da produção de Vasco Fernandes aparece indissociável do museu que adoptou o seu nome, na formulação que melhor celebra a sua estatura cultural – Grão Vasco. A esse sentimento de profanação e à tensão entre os sentidos patrimonial e estético, voltarei na segunda parte do texto. A distância mencionada não se atenua com a consulta de alguns dos principais trabalhos editados sobre Vasco Fernandes e o seu tempo 2 e de bibliografia há muito conhecida sobre Júlio Resende, 3 que mostra a fractura no que significa fazer história da arte do século XVI, a partir do presente, ou fazer história da arte do século XX, contemporaneamente. As fontes e os recursos disponíveis são bem diferentes, como também o é a convicção de que os objectos e as imagens das duas épocas requerem procedimentos e metodologias a eles adequados.
Enquanto se procura informação nas obras do século XVI, com a preocupação de as contextualizar e de apreender os códigos da narração e da figuração religiosa, admiram-se as obras do século XX, com base na liberdade e no desprendimento narrativo que representam. Assim prevalecerá, nas obras mais antigas, a vontade de conhecimento de uma pintura que radica no texto sagrado e, nas obras mais recentes, o olhar de admiração face a trabalhos que partem da sensibilidade directa do mundo e da vida (que, por certo, não estaria ausente das primeiras, embora sem tradução imediata). Na demanda desse conhecimento, revelam-se as vicissitudes do destino das obras de Vasco Fernandes, idealizadas e produzidas para um local, depois retiradas, desmembradas e algumas reunidas, de novo, sem respeito pelo critério inicial, facto que a pesquisa histórica haveria de corrigir 4. Remete-se para a topografia dos retábulos e dos lugares altos que ocupavam, lembram-se as manipulações de forma e perspectiva que apenas no enquadramento original poderiam funcionar. Segue-se o espírito comparativista, constata-se o quão importante é a documentação para investigar colaboradores do pintor. Tal não sucede ao percorrer o itinerário pictórico de Júlio Resende. Exceptuando a arte criada para espaços públicos ou para espectáculos, esse itinerário é mais constante, com as obras a circularem entre o seu atelier, as galerias e os coleccionadores ou a permanecerem na sua posse até formarem o espólio do Lugar do Desenho, sem evidência (por ora) de deslocações de obras que lhes alteram parcialmente o significado. O estudo arquivístico e documental não dispensa a observação das peças que compõem esta dupla exposição. As diferenças são notórias: o aparato pictórico e ilusionista, a carga dramática e o vigor de uma representação teatral em Vasco Fernandes; a estruturação e leveza, a sensibilidade poética e o lirismo em Resende. Se, no caso quinhentista, o quotidiano se insinua na sumptuosidade e na gravidade da narrativa sagrada, no caso contemporâneo, é do acompanhamento do dia-a-dia que se trata, com cenas despojadas da grandiosidade da história e investidas da simplicidade da vida. Se, no primeiro caso, os volumes plásticos se associam a anatomias robustas e a panejamentos que se dobram, sobrepõem e estendem, no segundo, apela-se a uma geometrização que tende a reduzir a forma anatómica a grandes estruturas, apagando os elementos descritivos dos corpos ou deixando que as manchas da matéria fluida se organizem e desfaçam qualquer construção plástica. À descrição espacial e topográfica existente em Vasco
3 —CASTRO, Laura – Júlio Resende – Tentações da Pintura Ocidental. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999; CASTRO, Laura – Júlio Resende. Matosinhos: Câmara Municipal de Matosinhos, 2001; CHAVES, Joaquim Matos e MOTA, Arsénio – Júlio Resende A Arte Como/Vida. Porto: Civilização, 1989; FRANÇA, José-Augusto – Resende. Porto: Maio 1960, sep. de “Lusíada”; PERNES, Fernando – Homenagem a Júlio Resende. In “Catálogo da Exposição Retrospectiva do Pintor Júlio Resende”. Porto: MNSR/CAC, 1979; VASCONCELOS, Flórido – Cátalogo de Exposição Retrospectiva da Obra do Pintor Júlio Resende. Lisboa: SNI, 1960 e Porto: ESBAP, 1960.
5 —DIDI-HUBERMAN, Georges – O que nós vemos, O que nos olha. Porto: Dafne Editora, 2011, pp. 17-27. 6 — DIDI-HUBERMAN, Georges – O que nós vemos…, pp. 203-204.
4 — Tal situação aconteceu com as predelas das pinturas S. Pedro, Baptismo de Cristo e Pentecostes, cujo reordenamento foi proposto pela historiadora e então Directora do Museu Grão Vasco, Dalila Rodrigues. V. Monumentos, n.º 13, 2000. Lisboa: D.G.E.M.N..
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Fernandes, com rios, lagos, cidades, suas torres e portas de entrada, montanhas e atmosferas de dominante cinzenta, correspondem, em Resende, espaços ambíguos em que figura e fundo se encontram e se dissolvem. Na pintura do século XVI a paisagem é usada pelo artista como parte integrante dos fundos que conferem credibilidade às cenas, enquanto na do século XX, ela é o resultado de sinais e de notações dispersas com as quais o espectador imagina e constrói um ambiente. As personagens pintadas no século XVI abrigam-se em arquitecturas de templos em que, por vezes, se reconhecem aspectos veristas de certos edifícios e adoptam elementos heráldicos associados à coroa portuguesa, num diálogo de tempos, espaços e histórias sagradas e profanas que o vocabulário da pintura unifica. Esta lógica cede lugar, nas obras do século XX, a personagens situadas, por sua conta e risco, no espaço da pintura que interpreta a geografia exterior. Finalmente, saliente-se um aspecto extraordinariamente importante para a caracterização geral das obras em análise: a concepção dos programas iconográficos quinhentistas, oriundos de encomendantes cultos e a relação intelectual estabelecida entre o mecenas e o pintor, dotado este dos meios para assimilar e concretizar aqueles programas, distingue-se, em parte, da individualidade com que o artista contemporâneo trabalha e da autonomia da sua pintura relativamente a qualquer projecto de base literária. Na imaginação do diálogo desta exposição, paira a tese de Georges Didi-Huberman e a sua classificação das imagens e das formas de ver em dois tipos. À obra de Vasco Fernandes adaptar-se-ia o exercício da “crença”, visão que descobre o que existe para lá da superfície, que recusa a evidência, que ultrapassa o imediato à procura de dogma, verdade, sentido metafísico… À obra de Júlio Resende, acomodar-se-ia o exercício da “tautologia” que retira prazer daquilo que vê, volumes, manchas, cores. De um lado, reconhecimento da complexidade da imagem, da sua linguagem, da sua simbólica; do outro, observação e satisfação com o que imediatamente se manifesta.5 Esta oposição tende a diluir-se porque a arte moderna do século XX, pese embora o seu formalismo, também admite a pesquisa do inacessível, e a pintura do século XVI, embora nos incite “para além daquilo que se vê”, requer um modelo formal e material, sem o qual não haveria significado que resistisse e se desse a ver. Eis porque todas as imagens, independentemente da época e do movimento, partilharão algo daquelas categorias – crença e tautologia. Podemos, então, regressar à ideia de distância e de familiaridade (enganadoras) da obra dos dois artistas e evocar o que o autor citado apelida de “fenomenologia do recuo” como estratégia de visão porque só recuando
perante a imagem se conseguirá gerar a distância que leva à descoberta: “[esta] simples fenomenologia do recuo nos mantém à distância, nos mantém respeitosamente diante dela. É então que ela [a imagem] nos olha”. 6
7 — Ficha de inventário de obra do Museu Grão Vasco n.º 2145/23 Pin. Em linha: http://www.matriznet.dgpc. pt/matriznet/home.aspx.
SEIS AGUARELAS
9 —RESENDE, Júlio — Autobiografia, Lisboa, O Jornal, 1987, pp. 46-47.
A aguarela instalou-se na sala do Políptico da capela-mor da Sé de Viseu. Uma das peças do retábulo, a Adoração dos Reis Magos, apresenta um pormenor dos mais curiosos e celebrados deste conjunto de pinturas. Trata-se daquela que se considera ser a primeira representação de um índio na arte ocidental, no papel do rei mago negro, Baltazar, resultante da chegada dos portugueses ao Brasil, pouco tempo antes da execução da pintura e do conhecimento dos povos que habitavam o território. A sua descrição assinala: “Situado no centro da composição, Baltazar ostenta um traje onde se misturam influências europeias tradicionais – a camisa e os calções – com a novidade exótica de um toucado de penas, bem como inúmeros colares de contas coloridas, grossas manilhas de ouro nos pulsos e tornozelos, brincos de coral branco, remate de penas idênticas às do toucado, no decote e na franja do corpete, e uma flecha tupinambá com o seu longo cabo. Segura igualmente uma taça feita de nós de coco montada em prata, o que reforça ainda o seu carácter exótico.” 7 Sobre esta figura, afirma Dalila Rodrigues: “[…] a intenção foi a de representar o “outro”, o novo e diferente, numa evidente correlação com um acontecimento também novo e marcante – o encontro dos Portugueses com uma nova etnia. Esta figura, ao contrário do que sucede com as habituais representações do mago negro na pintura portuguesa deste período, que surge invariavelmente com trajes ocidentalizados, identifica-se com o índio através do exotismo da indumentária e dos acessórios, fundamentalmente, e não de traços fisionómicos bem particularizados.” 8 A figura do índio brasileiro foi o pretexto para a escolha das aguarelas de Júlio Resende, realizadas no Brasil, na década de 70 em que o artista visitou aquele país, concretamente, em 1971, 1973 e 1977, e a que voltaria em 1981 e em 2000. Foi o próprio a reconhecer o impacto que o Brasil teve na sua obra: “(...) ficaria preso definitivamente ao Nordeste brasileiro. A confluência rácica, a natureza da paisagem, as crenças, os costumes, tudo isso se traduzia num incentivo para criar as minhas formas pictóricas. A partir daí a estrutura do quadro terá deixado o carácter um tanto severo,
8 — RODRIGUES, Dalila — Op. Cit., pp. 222-223.
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10 —RESENDE, Júlio – Entrevista. In "A Capital", 22 de Março de 1978. 11 — ANDRADE, Eugénio – No Jardim de Rikiú. In “Aguarelas Série Brasil”. Porto: Mini Galeria, 1973.
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resultante do esquema perpendicular, para se subordinar ao esquema diagonal.” 9 Foi também a partir desse período que começou a usar determinadas combinações de cores, como por exemplo, o rosa e o amarelo, segundo afirmou ao jornal A Capital, numa entrevista em que sintetizou a influência brasileira na produção posterior a 1971: “antes, havia na minha pintura um certo pendor físico e depois ela tornou-se, de facto, mais dinâmica, as figuras muito mais instáveis, uma amplitude maior do gesto e um ritmo diferente.” 10 A aguarela serviria exemplarmente os propósitos de leveza e de liberdade inspirados pelo Brasil. E as seis aguarelas selecionadas evidenciam-no bem, nos valores cromáticos e na gestualidade que dominam o suporte branco do papel. Aguarelas Série Brasil foi o título da exposição que o pintor realizou em 1973 na Mini Galeria, no Porto. Do texto de Eugénio de Andrade, transcreve-se: “Aqui estão estas manchas frementes que a mão diligente e ainda não fatigada de Júlio Resende espalhou no papel: são a nostalgia de um mundo vegetal, atravessado aqui e ali pela vibração de um insecto. […] dir-se-ia que estes carmins molhados, estes verdes transparentes são a fulguração de uma terra que tivesse despertado há pouco, muito jovem ainda – e sem mácula.” 11 O recurso aos meios da época – o óleo sobre a madeira de carvalho, no início do século XVI, a aguarela sobre papel, na segunda metade do século XX – permitiram aos dois artistas exprimir a sua relação com um mundo novo que o Brasil configurava. Vasco Fernandes interessou-se por documentar uma população indígena que importava cristianizar, incluindo um seu representante num episódio da história sagrada, e Júlio Resende esteve atento a uma atmosfera e a um ambiente que impressionaram os seus sentidos, incorporando-os nos valores cromáticos e compositivos da sua obra. SEIS DESENHOS O desenho apresenta-se na sala onde está exposta a obra Lamentação com Santos Franciscanos, de Vasco Fernandes, em transição para a sala que exibe a peça emblemática do museu, São Pedro, proveniente da capela lateral direita da Sé de Viseu, dedicada àquele apóstolo. Esta obra-prima, tesouro nacional, é descrita nos seguintes termos: “No painel maior representa-se São Pedro de corpo inteiro, sentado no trono, em atitude de benção, com as respectivas insígnias. […] Sentado num trono pontifical de arquitectura
italianizante, com olhar dirigido a um espaço absoluto e com uma impressionante monumentalidade, São Pedro figura ao centro da composição. Duas aberturas iguais, ladeando o trono, prolongam o espaço da figuração dando a ver duas paisagens onde se representam, respectivamente, duas cenas alusivas à vida do Apóstolo: à esquerda “O Chamamento do Pescador”; à direita “Quo Vadis?”. Vasco Fernandes construiu uma verdadeira imagem de propaganda [..].” 12 Desta descrição, são particularmente importantes os aspectos que se referem à monumentalidade, à imponência e à centralidade da figura de São Pedro, que Dalila Rodrigues reforça: “O apóstolo ocupa solitariamente o centro do campo figurativo […] A poderosa rotundidade escultórica do volume da figura, cuja monumentalização se gera na genial articulação entre a luz incidente da direita, esbatida pela que entra das aberturas laterais, e a projecção da sombra no trono, a eloquência do gesto e do olhar, ambos dirigidos a um espaço infinito mas tangível ao do espectador, enfim, um somatório de inteligentes estratégias de representação, fazem do S. Pedro o chefe espiritual da cristandade […].” E, mais adiante: “Construída a pensar na força expressiva da figura do apóstolo, na sua arrojada monumentalidade, a composição organiza-se a partir de uma essencial ideia de simetria, ainda que depois a contrarie, quando faz acrescer outros valores, outros ritmos e até outras movimentações à forma e à sua relação com o espaço. No eixo central coloca a figura piramidal de S. Pedro, enquadrada pelo volume monumental do trono que, por sua vez, é enquadrado pelas duas aberturas laterais. Neste esquema compositivo, a racionalidade e o equilíbrio, traduzidos de imediato na harmoniosa escala das figurações, parecem ser os vectores dominantes.” 13 A referência às grandes estruturas e volumes plásticos determinou a escolha dos desenhos de Júlio Resende, datados dos anos 60, 70 e 80 do século XX. Neles pressentem-se figuras ou o que delas resta, poderosas ainda nos seus vestígios, nas suas reminiscências, mas que impressionam mais pela ausência do que pela presença efectiva. Já não é o volume, a massa e a plasticidade que dominam, mas o desfazer da figura em manchas que se estendem irregularmente sobre a superfície. Mantêm uma carga dramática forte, nos diferentes a caminho do irreconhecível e do irrepresentável que, no entanto, não chegam para negar o que José-Augusto França classificaria como “antropomorfismo essencial” 14 do pintor e que me levou a recordar a leitura desafiante do mesmo Didi-Huberman, sobre obras abstractas em que resiste a presença antropomórfica, não como duplo ou replicação da humanidade, mas como assombro e fantasma que ali
12 — Ficha de inventário de obra n.º 2160/38 Pin. Em linha: http://www.matriznet. dgpc.pt/matriznet/home. aspx.
14 — FRANÇA, JoséAugusto - Pintura Portuguesa Abstracta em 1960. Lisboa: Artis, 1960.
13 — RODRIGUES, Dalila – Op. Cit., p. 261 e pp. 375-376.
15 — DIDI-HUBERMAN, Georges – O que nós vemos…, pp. 175-209. 16 — ANDRADE, Eugénio de – Resende entre a Angústia e a Esperança. In “Os Afluentes da Memória”. Porto: Editorial Inova, 1970, pp. 123 e 125. [Texto de catálogo de exposição na Cooperativa Árvore, 1966]
permanece para nos inquietar. 15 No negro das aguadas e da tinta-da-china, na energia gestual com que se dispõe a matéria, nos sinais de deformação e até no informe, evidencia-se aquela matriz com que o artista gostava de se definir, a matriz expressionista. Estes desenhos estabelecem um contraponto com o forte carácter compositivo, arquitectónico e majestoso da pintura do século XVI, mostrando-nos como se pode passar da massa à mancha, da planificação prévia à pulsão do momento, da composição à aparição ou do espírito à alma, para recuperar as palavras de Eugénio de Andrade quando assinala precisamente o teor expressionista de tais trabalhos. Afirma o poeta sobre desenhos como estes: “[…] frequentemente conciliam energia e leveza, de linhas finas mas incisivas, que ora se procuram ora se afastam, num ritmo de dança ou ondulação primaveril, onde uma ou outra mancha de sombra – quando não é só um espaço branco criado no papel – como que atrai tão aérea matéria, impedindo-a de se transformar em puro arabesco.” 16 O parágrafo revê a forma na sua natureza aberta e esquiva, de formação, configuração, formatividade orgânica, processo e não produto, movimentos que tão claramente se exprimem nos desenhos exibidos. QUATRO PINTURAS A ÓLEO
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Na Sala onde se apresentam pinturas de Vasco Fernandes alusivas ao Martírio S. Sebastião, ao Baptismo de Cristo e a episódios do ciclo da Paixão, acolhem-se quatro trabalhos a óleo, de Júlio Resende, datados dos anos 50 e 60. Nas descrições das grandes pinturas pertencentes ao museu acentuam-se os valores rigorosos da composição, as relações de natureza espacial, os equilíbrios estabelecidos entre os grupos figurativos, centros definidos pela geometria e centros dinâmicos. Afirma-se a coerência da pintura assente na harmonia entre repertório iconográfico e organização das formas e dos volumes no espaço, entre a estrutura narrativa e a estrutura compositiva que asseguram a sua função religiosa e a eficácia da sua linguagem. A descrição assinala: “A composição [de O Baptismo de Cristo] foi estruturada em função das figuras de Cristo e de São João Baptista, pois o espaço envolvente, ainda que permita adensar a estrutura narrativa, foi concebido em função destas duas presenças monumentais. […] dois núcleos formais secundários […] foram programados com um sentido rítmico de equilíbrio entre a metade direita e a metade esquerda da pintura, definindo duas diagonais.” 17
“A cruz de Cristo [em O Calvário] inscreve-se sensivelmente no centro da composição, numa posição frontal e num plano mais próximo ao do espectador, enquanto as do Bom e do Mau Ladrão se afastam ligeiramente (uma mais do que a outra) e se dispõem em diagonal. A esta organização dinâmica da composição, acresce ainda a expressiva contorção da figura do Mau Ladrão, que vem contrariar qualquer ideia de simetria do campo figurativo, no terço superior, e acentuar a tensão dramática em toda a zona direita da composição. […] Mas a regularidade desse núcleo formal rompe-se também quando faz avançar para o primeiro plano, para o limite do campo figurativo, S. João, Madalena, a santa mulher e a Virgem, que organiza numa rigorosa composição triangular.” 18 “Genial [Martírio de S. Sebastião] no agrupamento das figuras e na organização dos volumes das arquitecturas, que configuram duas diagonais dinâmicas, contrariando como é habitual a solução da frontalidade.” 19 O aparato projectual das obras de Vasco Fernandes serviu de inspiração à escolha das obras de Júlio Resende, com propostas distintas daquelas que os desenhos ou as aguarelas proporcionaram. Deste modo, se contempla um terceiro eixo de trabalho esclarecedor da pluralidade de registos em que o pintor actua. A narração e a iconografia da pintura do século XVI revestem o esqueleto estrutural da obra, remetendo-o para um plano subjacente que faz justiça ao seu papel no processo de trabalho, enquanto na pintura do século XX, esse processo desvenda-se e assume protagonismo. Os óleos exibem a sua estrutura formal mediante a geometria e trazem à superfície as suas linhas essenciais, por redução e por simplificação. São parte de um grande ciclo temporal, entre a segunda metade da década de 40 e o final da década de 60, em que se assiste a uma sucessão de exercícios plásticos, metódicos, associados aos lugares por onde o artista passa ou onde reside, em que a pintura interpreta o lugar, a comunidade e o trabalho. Cada fase é marcada por ensaios empíricos e por valores intelectuais que tratam a realidade em malhas formais e plásticas, formas elementares. No catálogo da exposição realizada em 1979 no Museu Nacional Soares dos Reis, Fernando Pernes considera que pinturas como as que aqui se expõem, possuem uma “plasticidade monumentalista de teor abstracto-construtivista” e que nelas se unem o “cósmico” e o “humano”20, num apelo ao “espaço ambíguo” característico deste tempo, em que figura e fundo se fundem, em osmose, como se fossem feitos de uma mesma substância. Eis, portanto, como se encontra
17 — Ficha de inventário de obra n.º 2157/35 Pin. Em linha: http://www. matriznet.dgpc.pt/ matriznet/home.aspx 18 — Ficha de inventário de obra n.º 2156/34 Pin. Em linha: http://www. matriznet.dgpc.pt/ matriznet/home.aspx 19 — Ficha de inventário de obra n.º 2158/36 Pin. Em linha: http://www. matriznet.dgpc.pt/ matriznet/home.aspx
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20 — PERNES, Fernando – Homenagem a Júlio Resende. Exposição Retrospectiva. Porto: Centro de Arte Contemporânea – Museu Nacional Soares dos Reis, 1979. 21 — CHAVES, Joaquim Matos – Júlio Resende. A Arte Como/Vida. Porto: Civilização, 1989.
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solidez, densidade e grandiosidade numa pintura que age por redução, depuração e transfiguração, palavra usada por empréstimo de Joaquim Matos Chaves. 21 Estas obras produzidas no dealbar da segunda metade do século XX, são exemplo dessa transfiguração e de uma pesquisa que não cessa de se metamorfosear e de atingir novas formulações e questionamentos sobre o homem. Fecha-se o diálogo entre os artistas, com a referência à indagação de um sentido para a existência humana, que em ambos se denuncia, a de Vasco Fernandes regulada pelos limites do religioso, a de Resende circunscrita à experiência do mundo em redor.
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25 ADORAÇÃO DOS REIS MAGOS, 1501-1506 Vasco Fernandes e Francisco Henriques – Políptico da Capela-Mor da Sé de Viseu Pintura a óleo sobre madeira de carvalho 131 x 81 cm Coleção Museu Nacional Grão Vasco n.º 2145/23 Pin
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A OUTRA DIMENSÃO DO PRODÍGIO, 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55,2 x 75,3 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO [BRASIL], 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55 x 75 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO [BRASIL], 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55 x 75 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO [BRASIL], 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55 x 75 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO [BRASIL], 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55 x 75,3 cm Coleção Lugar do Desenho
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A SEIVA LEVA O GESTO AO INFINITO, 1973 Júlio Resende Aguarela sobre papel 55,2 x 75,3 cm Coleção Lugar do Desenho
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SÃO PEDRO, 1530 Vasco Fernandes Pintura a óleo sobre madeira de castanho 213 x 231,3 cm Coleção Museu Nacional Grão Vasco n.º 2160/38 Pin
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HOMEM PÁSSARO, 1984 Júlio Resende Tinta da china e aguada sobre papel 64,7 x 50 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO, 1971 Júlio Resende Tinta da china e aguada sobre papel 65 x 50 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO, 1981 Júlio Resende Aguada de tinta da china sobre papel 65 x 50 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO, 1963 Júlio Resende Tinta da china e aguada sobre papel 50 x 55 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO, 1962 Júlio Resende Tinta da china e aguada sobre papel 65,5 x 50 cm Coleção Lugar do Desenho
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SEM TÍTULO, 1963 Júlio Resende Caneta e aguada sobre papel 65 x 50 cm Coleção Lugar do Desenho
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41 BAPTISMO DE CRISTO, 1530-1535 Vasco Fernandes, com colaboração de Gaspar Vaz Pintura a óleo sobre madeira de castanho 211,5 x 231,5 cm Coleção Museu Nacional Grão Vasco n.º 2157/35 Pin
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43 CALVÁRIO, 1530-1535 Vasco Fernandes, com colaboração de Gaspar Vaz Pintura a óleo sobre madeira de castanho 242,3 x 239,3 cm Coleção Museu Nacional Grão Vasco n.º 2156/34 Pin
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45 MARTÍRIO DE SEBASTIÃO, 1530-1535 Vasco Fernandes, com colaboração de Gaspar Vaz Pintura a óleo sobre madeira de castanho 211,5 x 231,5 cm Coleção Museu Nacional Grão Vasco n.º 2158/36 Pin
46 HOMEM E REDE, 1959 Júlio Resende Óleo sobre tela 100 x 81 cm Coleção Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso
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PINTURA Nº 9, 1959 Júlio Resende Óleo sobre tela 100 x 80 cm Coleção Eng. Ilídio Pinho
48 MULHERES DE PESCADORES, 1951 Júlio Resende Óleo sobre tela 80 x 100 cm Coleção Museu do Chiado – Museu Nacional de Arte Contemporânea Nº 1442 Pin
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A TIGELA AZUL, 1954 Júlio Resende Óleo sobre tela 81 x 100 cm Coleção Arq. José Carlos Loureiro
POST SCRIPTUM
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LAURA CASTRO
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Ocorreu-me que a exposição de Júlio Resende no interior da exposição de Vasco Fernandes, pudesse intitular-se conversation exhibition, expressão inspirada no género de pintura difundido no século XVIII, designado conversation piece, em que se retratavam grupos de pessoas em conversas, atitudes e contextos de alguma informalidade, em contraste com o ar cerimonial do retrato de pose. Na verdade, esta seria uma conversation exhibition porque faz dialogar dois pintores num ambiente que, mantendo embora o formalismo que convém às salas de um museu nacional, admite a intromissão contemporânea e a ruptura da coesão que as rege. Trata-se ainda de uma conversation exhibition, no sentido em que os artistas expostos são forçados a dialogar por via de uma intenção curadorial, da mesma forma que as personagens das conversation pieces, estabeleciam o diálogo que o pintor lhes permitia simular, aparentando conversar entre si ou voltar-se para o espectador, alheando-se do momento e do ambiente em redor. Assim estarão as obras de Vasco Fernandes e de Júlio Resende, a olhar-nos mais do que a olharem-se, como diria o pensamento tutelar de Didi-Huberman, uma vez mais. A ideia inicial de diálogo entre estes artistas foi definida pelas instituições envolvidas: o Lugar do Desenho-Fundação Júlio Resende, o Museu Nacional Grão Vasco e a Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados. O que poderia parecer simples, acabou por instalar a desconfiança sobre a eficácia de tal projecto e arrastar um sem número de considerações, dúvidas e dificuldades que explicam que me ocupe, nos parágrafos finais deste texto, das ideias, das indecisões e das razões curadoriais que demoraram algum tempo a estabelecer, e que deixe notícia do pensamento sobre as obras e dos passos em volta de Vasco Fernandes e Júlio Resende. Como atrás se disse, são tão distintos os tempos de cada pintor, o contexto cultural e social, a condição de artista, as circunstâncias de produção e de recepção da arte, a presença relativa do modelo convencional e da personalidade artística, que se afigurava muito pouco razoável procurar um diálogo literal entre ambos. Reconhecem-se nos artistas modos de ver, de imaginar e de pensar muito díspares, visões do mundo distintas, entendimentos da pintura diversos. Daqui decorreu o gesto profanador e as indecisões de processo que a seguir se registam. Primeira indecisão: face à pintura, o desenho. Perante uma época de extraordinário domínio dos recursos pictóricos e perante a magnificência da pintura do século XVI, a opção poderia ter recaído apenas sobre desenho de Júlio Resende, feito num século que o explorou autonomamente e de forma magistral. Segunda indecisão: face à grande escala, a pequena escala. Diante de peças de grande dimensão destinadas a arquitecturas
imponentes, a escolha poderia ter incidido unicamente sobre peças de pequena dimensão, por exemplo, esquissos saídos de blocos de viagem. Terceira indecisão: face à figuração, a abstracção. Frente a trabalhos com grandes aparelhos figurativos e narrativos, a selecção poderia ter privilegiado exclusivamente obras de carácter abstractizante. Uma exposição que resultasse destes critérios seria certamente interessante por favorecer o contraste absoluto entre os dois artistas e por enveredar por uma via de discrição e não de ostentação. No entanto, não faria justiça à obra de Júlio Resende e negaria a possibilidade de representar de forma convincente aquelas que também são características dominantes do seu trabalho, o experimentalismo, a diversidade e a abrangência em termos técnicos e estéticos. O presumível diálogo, elaborado e reelaborado, os pretextos, pensados e repensados, conduziram às premissas seguintes, as únicas que pareciam viáveis: primeira – rejeitar comparações imediatistas e encontros a partir de uma suposta intencionalidade interna aos objectos; segunda – afirmar discursos paralelos, relacionados por pontos de contacto externos à lógica intrínseca das obras; terceira – montar esse paralelismo através de obras representativas, indiscutivelmente emblemáticas, no caso de Vasco Fernandes, e certamente exemplares, no caso de Resende. Assumiu-se, portanto, o confronto entre discursos visuais de natureza distinta, reconhecendo o binómio exposição-diálogo 22 e o propósito de manifestar a diferença entre dois destinos, salientar grandes obras de duas grandes figuras da arte portuguesa, reconhecer mais divergência do que convergência e introduzir na exposição permanente de Vasco Fernandes uma exposição temporária de Júlio Resende. No entanto, a desconfiança não terminava e a ela juntava-se o risco. À ideia de uma exposição-diálogo entre dois pintores separados por quatro séculos de cultura e história, sucedia a ideia de uma exposição-traição. Uma exposição que sujeita artistas e obras a apresentações e leituras inesperadas, alienadas das suas intenções, só pode afigurar-se como uma traição perpetrada pelo curador e pelas instituições. Chamados a pensar mais uma exposição temporária, procura-se na pintura o que o seu autor não esperaria, inscreve-se o presente no passado e projecta-se o nosso modo de ver sobre tudo o que nos antecedeu. Profanar e atraiçoar são matrizes de um exercício expositivo aprisionado no historicismo das obras e nas suas datas e, ao mesmo tempo, liberto pelo diálogo de tempos.
22 — Título de uma exposição realizada em 1985 pelo Centro de Arte Moderna, da Fundação Calouste Gulbenkian, que apresentou obras de diversos museus europeus.
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NOTA BIOGRÁFICA
JÚLIO RESENDE (1917|2011) natural do Porto, é autor de uma obra de pintura vastíssima, desenvolvida entre os anos 30 do século XX e a primeira década do século XXI. Concluiu a formação em Pintura, no ano de 1945, na Escola de Belas Artes do Porto, onde seria docente entre 1958 e 1987. Em 1947 instalou-se em Paris. Viajou por França, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália. Na capital francesa frequentou o atelier de Untersteller, na Escola de Belas Artes de Paris, e a Academia Grande Chaumière, como discípulo de Othon Friesz. Sob a orientação de Duco de la Aix aprendeu a técnica do fresco. Realizou apontamentos do natural – paisagem e figuras – e numerosas cópias no Museu do Louvre. Conviveu com artistas estrangeiros, particularmente com Mabel Gardner, o escultor Zadkine, o pintor checoslovaco Frantisek Emler e o norueguês Oddvard Straume. Estas ligações determinariam a realização de exposições nos países nórdicos e o intercâmbio com esses artistas. Promoveu em 1957 uma exposição de artistas portugueses em Oslo e Helsínquia. Nos anos de 1949/50 foi professor na pequena escola de cerâmica em Viana do Alentejo, Alentejo, período em que privou com o escritor Vergílio Ferreira e com os artistas Júlio e Charrua. Nos anos 50 promoveu as Missões Internacionais de Arte, para as quais eram convidados artistas estrangeiros para residências artísticas em Portugal. Em 1954 leccionou na Escola Industrial e Comercial da Póvoa de Varzim e em 1955 promoveu a segunda "Missão Internacional de Arte", naquela localidade. Em 1970 foi responsável pela orientação visual e estética do Espectáculo de Portugal na "Exposição Mundial de Osaka", momento relevante da sua presença no estrangeiro. Tornou-se Membro da Academia Real das Ciências, Letras e Belas-Artes Belgas, tendo feito uma conferência neste enquadramento, em Bruxelas, em 1972. Nos anos 90, reforçou a articulação com os países de língua portuguesa ou de influência portuguesa, tendo sido promovidas pela Fundação Júlio Resende, diversas estadias artísticas em Moçambique, Cabo Verde e Goa que resultaram em exposições nesses países.
Realizou obra pública com trabalhos executados em técnicas que vão da cerâmica ao fresco, do vitral à tapeçaria, instaladas em espaços do norte ao sul de Portugal. Ilustrou obras literárias, nomeadamente para a infância, realizou cenários e figurinos para teatro, bailado e espectáculos de grande impacto. Sobre a sua produção debruçaram-se os principais críticos e historiadores de arte portugueses, mas também importantes escritores e poetas. Realizou inúmeras exposições no país e no estrangeiro, tendo iniciado, em 1934, a participação em exposições colectivas, e um trajecto individual em 1943. Ao longo da sua carreira, foi distinguido com relevantes prémios: Prémio Armando Basto (1945), Amadeo Sousa Cardoso (1949), António Carneiro (1953), todos atribuídos pelo SNI; Prémio do Salão dos Artistas de Hoje (1956); Prémio Especial na Bienal de S. Paulo (1951); Menção Honrosa na 5ª Bienal de S. Paulo e 2º Prémio Pintura na I Exposição de Artes Plásticas FCG (1957); Prémio AICA – SEC (1984) Prémio Aquisição 1987 da Academia Nacional de Belas Artes (1988); Prémio de Artes Casino da Póvoa (2008). A criação do Lugar do Desenho-Fundação Júlio Resende foi um dos principais projectos a que se dedicou a partir da década final do século XX e primeira década do século XXI. Projectada pelo arquitecto José Carlos Loureiro, foi inaugurada em 1997, na margem do Douro, em Gondomar, junto à casa-atelier do artista, da autoria do mesmo arquitecto. Faleceu aos 93 anos de idade, a 21 de Setembro de 2011, na sua casa em Valbom, Gondomar.
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EXPOSIÇÃO
CATÁLOGO
Diálogo e Traição. Grão Vasco | Júlio Resende Centenário de Nascimento do Pintor Júlio Resende 1917 | 2017
Textos Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados
Organização Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados Museu Nacional Grão Vasco Lugar do Desenho — Fundação Júlio Resende Local Museu Nacional Grão Vasco Data 15 Jun. 2018 — 14 Out. 2018 Curadoria Laura Castro Secretariado / Lugar do Desenho Cecília Moreira
Design Gráfico esad—idea Inês Nepomuceno Catarina Freitas
Museu Nacional Grão Vasco
Editor Delegação de Viseu da Ordem dos Advogados
Lugar do Desenho – Fundação Júlio Resende
Impressão e Acabamento Tipografia da Beira Alta
Laura Castro — Universidade Católica Portuguesa — Centro de Investigação em Ciência e Tecnologia das Artes Escola das Artes
Tiragem 200 exemplares
Fotografia © AL Arnaldo Soares Museu Municipal Amadeo de Souza Cardoso Museu Nacional Grão Vasco ADF/DGPC
Data Junho 2018 ISBN 978-989-96982-7-7 Depósito Legal xxxxxx
ORGANIZAÇÃO
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15.06—14.10.2018
15.06—14.10.2018