Pawel Kuczynski
SALAH H. KHALED JR.
discurso de ódio e
sistema
pEnAl TRADIÇÃO INQUISITÓRIA, T E N TA Ç Ã O A U T O R I TÁ R I A E RACIONALIDADE BINÁRIA
APRESENTAÇÃO Marcia Tiburi Prefácio Geraldo Prado 3ª ED. REVISTA, AMPLIADA E MODIFICADA
Copyright © 2021 by Editora Letramento Copyright © 2021 by Salah H. Khaled Jr. Diretor Editorial | Gustavo Abreu Diretor Administrativo | Júnior Gaudereto Diretor Financeiro | Cláudio Macedo Logística | Vinícius Santiago Comunicação e Marketing | Giulia Staar Assistente Editorial | Matteos Moreno e Sarah Júlia Guerra Designer Editorial | Gustavo Zeferino e Luís Otávio Ferreira Conselho Editorial | Alessandra Mara de Freitas Silva; Alexandre Morais da Rosa; Bruno Miragem; Carlos María Cárcova; Cássio Augusto de Barros Brant; Cristian Kiefer da Silva; Cristiane Dupret; Edson Nakata Jr; Georges Abboud; Henderson Fürst; Henrique Garbellini Carnio; Henrique Júdice Magalhães; Leonardo Isaac Yarochewsky; Lucas Moraes Martins; Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme; Nuno Miguel Branco de Sá Viana Rebelo; Renata de Lima Rodrigues; Rubens Casara; Salah H. Khaled Jr; Willis Santiago Guerra Filho.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD K45d Khaled Jr., Salah H. Discurso de ódio e sistema penal: tradição inquisitória, tentação autoritária e racionalidade binária / Salah H. Khaled Jr. - 3. ed. - Belo Horizonte : Letramento ; Casa do Direito, 2021. 176 p. ; 15,5cm x 22,5cm. ISBN: 978-65-5932-033-2 1. Direito. 2. Direito penal. 3. Discurso de ódio. 4. Brasil. I. Título. CDD 345.81 CDU 343(81)
2021-1793
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Direito penal : Brasil 345.81 2. Direito penal : Brasil 343(81)
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Para Aline e Martina.
APRESENTAÇÃO PARA A PRIMEIRA EDIÇÃO
O ódio surge em nossa época como uma espécie de emoção comum. Quando dizemos que ele é um afeto, queremos dizer que toca a todos, que está ao alcance de qualquer um. É das emoções que sejam compartilhadas, capazes de contagiar a muita gente. Somos condicionados a pensar que o ódio seja assim, algo próprio e, portanto, natural, que nasce na intimidade de alguém como algo inevitável. Na mesma linha, costumamos contrapor ao ódio o amor, pensando que ele também é natural. E esse é o começo dos erros que cometemos em nome desses afetos. Porque, ao tê-los como naturais, eles nos tornam cegos e, no limite, autoritários. O ódio que cada um sente dá a sensação de uma verdade alcançada e inquestionável em relação ao objeto do ódio. A sensação de autoridade que o ódio produz é impagável. Ela faz alguém se sentir grandioso, superior ao que se odeia. É essa compensação imediata que se alcança pelo ódio, o que o amor nem sempre fornece. Por que o amor é uma emoção que se dá em outro tempo. Ele é lento quando comparado ao ódio. Para quem odeia, o ódio é experimentado como uma coisa boa. Além de tudo, aquele que sente ódio se sente como uma autoridade, justamente porque o ódio, como qualquer afeto, parece evidenciar verdades. O perigo está em que o ódio não é apenas sentido em relação a algo que se revela odiável, mas o ódio pode ser produzido na direção de um objeto que não se imaginou odiar antes. Podemos assim estimular o ódio, o nosso próprio e o dos outros, e procurar o que odiar depois. Do mesmo modo, podemos fazer com o amor. Não dizemos que há pessoas cheias de amor para dar? Ora, os afetos são energias psíquicas que surgem de tempos em tempos para manter tudo como está ou para causar transformações. O ódio pode ser contraposto ao amor apenas genericamente. O que os dois afetos nada têm em comum é que podem ser manipulados sem muita dificuldade. Diremos que o amor é construtivo e o ódio é destrutivo, mas ambos são afetos criados, inventados, fomentados por
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um mecanismo poderoso, o discurso que pode ser imagético ou verbal. Assim, o ódio se faz discurso, mas apenas quando a ordem do discurso usa o ódio, assim como pode, em outro momento, usar o amor para os fins aos quais serve. Na sociedade do espetáculo, a manipulação do ódio se dá pelos meios de comunicação de massa. Nesse contexto de imaginação manipulada e controlada, o que ninguém percebe é que o ódio que transita não lhe pertence. Assim como as pessoas vivem a repetir ideais prontas que não são suas, que são impensadas, do mesmo modo, reproduzem afetos que não são seus. O vazio afetivo é vivido com emoções alheias, com mercadorias emocionais, daí o verdadeiro culto de emoções que vemos em estádios de futebol, em igrejas, diante das televisões e até mesmo nas ruas. O vazio emotivo, efeito de subjetividades canceladas, é vivido como anestesia insuportável. Muitas pessoas encontram o ódio nesse momento e sentem, por meio dele, uma específica sensação de força e poder. Ligado àquela sensação de autoridade, o ódio faz um sucesso impressionante nas instituições que controlam o poder. É nesse momento que o ódio se liga ao poder penal, tema desse instigante livro de Salah H. Khaled Jr. O ódio é o que leva qualquer um à sensação da autoridade; em nossa sociedade, ele se expressa no lugar imaginário de promotor e juiz vivido por cidadãos comuns. Julgamentos e condenações são banalizados e surgem como entretenimento e até mesmo como diversão para aqueles que vivem no regime afetivo do ódio manipulado, alienados de outros afetos. O ódio é um regime afetivo e também ético-político, que causa efeitos concretos na sociedade. Em sua aliança com o poder penal, o ódio nos faz construir um outro, o criminoso como um outro. É nessa sociedade que a corrupção se torna uma espécie de “crime do outro”, como o mal a ser exorcizado. Cegos de ódio, cidadãos comuns tornam-se incapazes de fazer perguntas. E, sobretudo, a pergunta essencial sobre o modo como se tornaram cegos. O livro de Salah Khaled nos leva de volta à dúvida amorosa e à inteligência dos afetos tão em baixa nesse momento. MARCIA TIBURI
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4. CORPOS OBJETIFICADOS: ALGO SOBRE PASSARINHOS, GAIOLAS E LAVA JATOS
A Operação Lava-Jato representou uma ruptura significativa para a dinâmica habitual das práticas punitivas brasileiras: de fato, talvez tenha sido a primeira oportunidade em que as baterias foram apontadas de forma incisiva para uma clientela que não é a habitual do sistema penal. Não é por acaso que alguns incautos adeptos do que Maria Lúcia Karam acertadamente chamou de “esquerda punitiva” a aplaudiram. Inicialmente isso pareceu positivo: não é por acaso que muitas pessoas compreenderam que foram dados passos decisivos para o combate à corrupção no país. No entanto, o que os observadores comprometidos com a contenção do poder punitivo perceberam foi um efeito colateral verdadeiramente devastador: não só ocorreu uma universalização perigosa da arbitrariedade do sistema penal, como os limites do que é aceitável ou não no processo penal foram esticados até o ponto de ruptura. O discurso inquisitório não foi apenas recepcionado de forma irrestrita pelo lavajatismo: ele foi revigorado e intensificado com base em novos vértices que fizeram do sistema penal uma maquinaria potencialmente ainda mais destrutiva e movida por insaciável apetite cautelar, no âmbito de um estarrecedor balcão de negócios que abala profundamente o equilíbrio que deve funcionar como limite da persecução penal. O Direito Processual Penal deixa de ter como alicerces ação, jurisdição e processo – o actum trium personarum dá lugar a delação premiada. Uma frase em particular ilustra muito bem o argumento. A declaração do Procurador da República, Manoel Pastana, causou justificada perplexidade: “o passarinho pra cantar precisa estar preso”. Por mais anedótica que a declaração possa soar, causa enorme desconforto o fato de ela ter sido proferida no contexto do que aparentava ser um novo fundamento para a prisão preventiva. Pastana argumentou que o expediente conformava uma “interpretação inovadora” do artigo 312 do Código de Processo Penal, que autorizaria uma extensão dos limites do que pode Discurso de ódio e sistema penal 55
significar a expressão “para conveniência da instrução criminal”, ou seja, a sujeição dos corpos como meio para extração da verdade e abertura de espaços de negociação visando uma eventual confissão/delação. Diante desse contexto, estaria “justificada” a prisão para forçar o passarinho a “cantar” – em verso e prosa – como foi cometido o delito, em um “negócio” que o Estado faz com o “criminoso”. Visivelmente trata-se de modalidade de prisão-guerra, utilizada como tática de aniquilação do outro, típica do dilema do prisioneiro, como discutido por Alexandre Morais da Rosa.73 Como já foi amplamente discutido por juristas comprometidos com a democracia, a delação premiada motiva inúmeras objeções. São enormes as restrições ao instituto, que estão assentadas em razões políticas, jurídicas e epistemológicas.74 Nesse sentido, engana-se quem supõe que o processo não possa ser interpretado através da metáfora do jogo: para Foucault, o interrogatório está muito próximo dos antigos desafios germânicos. Ele se liga às ordálias, aos duelos judiciais, aos julgamentos divinos, pois o juiz deve submeter o acusado, deve triunfar sobre ele: no suplício do interrogatório objetiva-se obter um “[…] indício, o mais grave de todos – a confissão do culpado; mas é também a batalha, é a vitória do adversário sobre o outro que ‘produz’ ritualmente a verdade”.75 Como pontuei no primeiro capítulo, ainda prospera uma concepção de processo como ritual de sujeição arbitrária do outro, seja através de violência física ou simbólica. 73 “A partir da teoria dos jogos [Dilema do Prisioneiro] podem se configurar como mecanismos de pressão cooperativa e/ou táticas de aniquilamento (simbólica e real, dadas as condições em que são executadas). A prisão do indiciado/acusado é modalidade de guerra com tática de aniquilação, uma vez que os movimentos da defesa estarão vinculados à soltura. Clausewitz deixou herdeiros no processo penal ao apontar que a pressão pela liberdade ou por finalizar o processo ajuda na estratégia, uma vez que atua no centro de gravidade: a liberdade. Além disso, a facilidade probatória […] e a redução da condição do acusado a objeto (subjugação psicológica do acusado, defensor, familiares, etc.) podem ser úteis à acusação, como já apontava o Manual dos Inquisidores.” MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 157. Ver também p. 168: “O uso pela polícia e pelo jogador acusador possuem o condão de desestabilizar o investigado e, quem sabe, com isso, promover confissões, delações, etc.” 74 Ver LOPES JR., Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Processo penal no limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015. 75 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 36-37. 56 Salah H. Khaled Jr.
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