2 minute read

A Penúltima Verdade e o Sapo Barbudo

Ninguém é trouxa ao ponto de ter esperado uma lua de mel, imagino. A grande imprensa nem chegou a engolir o sapo barbudo, durante a campanha. Apenas ficou com ele na boca, jogando de um lado pro outro, como um velho desdentado com um pedaço de biscoito duro.

Mas, ao contrário do velho, não esperava que a saliva ajudasse. Só ganhava tempo, pra ficar bem na foto da luta pela democracia. É que estava constrangedor continuar fingindo que o miliciano não fazia número um e dois no meio da sala. Mesmo assim insistiu na equiparação entre o sapo barbudo e o miliciano escanhoado, como se fosse possível comparar alguém que, pra ser preso, precisou de um juiz que ignorou o pequeno detalhe da falta de provas com alguém que começou a carreira planejando um atentado terrorista. Meio como comparar água com cloroquina.

Advertisement

Quando se luta pela democracia, talvez fosse bom a gente perguntar pra algum editorialista: vem cá, meu bem, o que é mesmo democracia? Porque a democracia da grande imprensa acha normal, ou mais, salutar, manter milhões na miséria pra que uns poucos rentistas continuem faturando. Claro que a defesa disso vem coberta com as lantejoulas fabricadas por economistas amestrados em Chicago.

Passei dias pensando nessa e em outras escrotidões, como a respiração boca a boca pra reanimar o Moro na falta de uma criatura na direita sem um prontuário muito volumoso, ou a defesa do teto de gastos que nunca preocu- pou nos dias atrozes do miliciano. Daí comecei a reler A penúltima verdade. Não é o melhor Philip K. Dick, mas não é o pior e ilustra nossas vidas com a clareza da caricatura. Sabe-se da obsessão de Dick com a dificuldade de distinguir o que é real do que é irreal. Se essa distinção começou a preocupar o macaco logo que ele desceu da árvore, hoje ela deve preocupar muito mais, porque os meios de baralhar a realidade cresceram assustadoramente nos últimos tempos e prometem verdadeiras alucinações para um futuro próximo.

O planeta de Dick, em 2010, futuro distante em 1964: milhões de pessoas vivem em subterrâneos, há quinze anos, pensando que na superfície come frouxo a terceira guerra mundial. Produzem robôs sem parar e assistem pela tevê cidades sendo destruídas, os índices de radiação, as pestes e os discursos de bravura do Protetor, Talbot Yancy. Na superfície, o mundo está dividido em grandes feudos de publicitários chamados yance-men, que produzem as cenas de guerra, inventam as pestes e escrevem os discursos do Protetor, que nada mais é que um boneco animado por computação. Claro que os robôs são comprados pelos publicitários, porque vivem brigando por problemas de fronteira entre seus feudos. A guerra tinha durado só dois anos e o Ocidente colaborava com a União Soviética na manutenção da farsa. Sim, o romance é muito mais complicado, mas isso é o miolo dele.

Me diz aí, parceiro: você não se sente num subterrâneo, numa fábrica de robôs, distraído com o noticiário dos yance-men da Folha, do Estadão, do Globo, da CNN?

Fernando Jorge Uberti publicitário, ilustrador, cartunista, quadrinista e artista gráfico nasceu na cidade de Alegrete, Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Publicou seu primeiro Cartum num suplemento estudantil em 1959. Publicou seus trabalhos na imprensa brasileira e internacional. Participou de salões e exposições de humor no Brasil, Alemanha, Canadá e Itália. Além de várias antologias de humor. Consagrou a pracinha Marquesa de Sévigné.da Rua Lima e Silva, com seu peculiar chafariz.

This article is from: