P A G U *

Page 1

pa g u

[...] voltamos para casa, já tendo eu tornado aquele estado reconfortante, embora profundamente insatisfatório, conhecido como “estar em seu juízo perfeito”. HUXLEY, Aldous. As portas da percepção e Céu e inferno. 13. ed. São Paulo: Globo, 1995.

literária

histórica

Editorial

2

A Cigarra

3

It’s like a roller coaster ride for the mind

4

A menina e o espelho

6

Todas as coisas encontram o seu lugar quando a gente encontra o nosso!

8

Entre chagas e borboletas

11

transgressora


Editorial

a margem da máquina ainda é a máquina É com imensa satisfação – e um pouco de perplexidade – que chegamos a nossa segunda edição. PAGU é uma revista que surgiu no início de 2018 como a matéria de espíritos inquietos, gauches a procura do líquido instante de loucura; que pulsam e queimam perto do selvagem coração da vida, que compreendem a escola como asas e não grades, adeptos de uma matemática profana onde 2 + 2 não são necessariamente 4, que não temem o abismo e o mergulho em si próprios, que incomodam e vão além, que trazem no olhar o grito e a urgência de saberem habitar a ponta do mundo, quase a perder-se, sem saber como se segurar e sem conhecer o caminho. Esta edição traz a experiência e um pouco dos que toparam essa aventura, traz suas perspectivas, mudanças e permanências. Esperamos fazer parte desse momento tão maluco de suas vidas.

2

Quem tem consciência para ter coragem Quem tem a força de saber que existe E no centro da própria engrenagem Inventa contra a mola que resiste Quem não vacila mesmo derrotado Quem já perdido nunca desespera E envolto em tempestade, decepado Entre os dentes segura a primavera Secos e Molhados (Primavera nos dentes, 1973)

Raul Corrêa Idealizador-editorprodutor-arte-finalista da PAGU raulcorreademacedo@ gmail.com


a cigarra

Thais Travassos

Hoje é um dia depois da tempestade que destruiu a cidade. Hoje, na sacada do sétimo andar, entre os espólios do vento e da chuva, estava também uma cigarra. A debater-se. Era uma cigarra no concreto do apartamento e voava contra o vidro que separa a vida do mundo, de onde às vezes se enxerga o farol triste da ilha. Ela era simplesmente uma cigarra no seu corpo sob asas violentas e transparentes: voava sem saber os limites dos vidros, das paredes. Debatia-se. Sofria sob as asas. Custa aproximar-se de uma cigarra. Então eu a olhava, sentada sobre as mãos, pensando no próximo passo, com folhas molhadas presas ao corpo, com feridas expostas cruamente pelos troncos derrubados pelas águas, com os cabelos ainda engrenhados pelo passar dos dedos de vento, pelo cair da tarde, pelo incompetente Dionísio. Custa aproximar-se de uma cigarra. Elas são grandes, espalhafatosas e, ao voar desesperadamente contra os vidros da casa, parecem perigosas. Quando tocadas, emitem sons profundos, das gargantas da terra, de faunos perdidos, som de hera e de cipós que galgam o corpo das imbaúbas jovens. Custa aproximar-se de uma cigarra. Levantei-me, entretanto, e, com um dos retalhos da vida, abracei na mão o bicho, que gritava como se fora estourar (a velha história sobre cigarras é mentira – nunca estouram). Desci então os degraus do prédio, abri as portas e devolvi o objeto cantante entre os dedos ao casco da árvore cuja copa vez ou outra faz sombra para as luzes do farol. Li, depois, quando já secava o corpo, passados os alagados, que cigarras sobem pelos troncos para a sua morte: elas vivem, verdadeiramente, dentro da terra, anos a fio comendo raízes e planejando a subida, o canto, a procriação. Quando sobem, algumas procriam, renovam o ciclo perdido dos deuses, outras acabam no concreto do apartamento. Aquela foi salva por entre dedos úmidos, talvez procriasse, talvez fosse brutalmente devorada por um dos pássaros da primavera.

3


it’s like a roller coaster ride for the mind Muito prazer, eu sou a Bek. Sou cantora e compositora, mas hoje estou aqui para abordar um assunto muito presente em nossa sociedade atualmente, principalmente entre os jovens: a imposição de padrões inatingíveis e a baixa autoestima. Posso dizer que escolhi esse tema porque, além de ser extremamente importante (não por bons motivos, infelizmente), convivo com isso todos os dias, assim como sei que ocorre com muitas pessoas, especialmente por conta das redes sociais. São corpos e vidas padronizados, perfeitos, inatingíveis, o mun-

4

do das aparências inteiro rolando solto todos os dias e o tempo todo pelas “timelines”, que geram primeiramente as comparações, mas não se demoram a se transformar em transtornos reais.

Também fiz essa escolha porque já escrevi sobre o assunto. Mas não, não cheguei a publicar nenhum livro ou um artigo sequer, mas criei o que sempre esteve mais próximo de mim desde que nasci: música. E ainda é por meio dela que pretendo discorrer sobre.

“A menina e o espelho” (2016) surgiu em um momento muito difícil, no qual eu precisei me reerguer emocionalmente de alguma forma, pois percebi que aquela situação, naquele momento, só dependia de mim. E creio que não houvesse forma melhor do que escrever e aconselhar a mim mesma e a outras pessoas que enfrentam diariamente o mesmo problema. A música é sobre uma menina que possui uma dificuldade de aceitação a si mesma e, um dia, é aconselhada por seu sábio espelho. Posso dizer que um dos momentos mais emo-


cionantes dos quais fui humildemente presenteada nesta vida foi assistir a uma apresentação de dança teatral feita pelas crianças do quarto ano do Colégio São Francisco de Assis em Caçapava, em 2017, tematizando minha música. Naquele dia eu soube que meu objetivo de colaboração foi alcançado, porque, afinal, não importa se sua palavra atinge uma única pessoa ou milhares delas, o que importa é se ela atinge, somente. E ouvir minha música saindo do peito daquelas crianças, ver os garotos vestidos de espelho, as meninas dando tudo de si para representar

a menina, é algo que não se pode medir felicidade, emoção e que não tem preço. Por isso, disponibilizo aqui a letra de “A menina e o espelho”, a fim de que possam compreender melhor e, caso se interessem, possam buscá-la e e ouvi-la nas mídias digitais (como Spotify, Deezer e SoundCloud). Há também um videoclipe disponível na página da minha banda, “Bek e os Tio de Fusca”, e no YouTube! Espero que gostem e que essa música possa continuar atingindo e confortando mentes, é tudo o que mais quero. Um grande beijo!

Rebecca Di Giorgio (Bek) Rebecca tem 20 anos, é vocalista da banda “Bek e os Tio de Fusca”, compositora e apaixonada por música. Em 2013, foi vencedora do concurso “Nossa Gente”, cuja proposta era a execução de um videoclipe da canção

“Meu Lugar”, da TV Vanguarda. Hoje, está cursando o quarto semestre de Letras na UNITAU.

5


6

e aninem a ohlepse o


snotab e sehsulb sues sO“ raflumac sotnemitnes sues oãredop acnuN etnem aus a raruc medop oãN rasnep ed etneod áJ etnerefid oãt méugla res mE ”rama es oãn missa roP rezid siuq ohlepse o euq O atiefrep é aninem a euq ioF rerfos asicerp oãn E rezid siuq ohlepse o euq O radroca arp etrof é ale euq ioF reviv sohnos sues so arap E !ohlepse ,agiD

PS: Para ler o poema é necessário um espelho :)

airótsih amu é assE ohlepse mu e asodiav aninem amu erboS :aizid ehl erpmes euQ

rasnep ed etneod áj etnem aus a eruC etnerefid oãt méugla res mE rama es oãn missa roP rezid siuq ohlepse o euq O atiefrep é aninem a euq ioF rerfos asicerp oãn E rezid siuq ohlepse o euq O radroca arp etrof é ale euq ioF reviv sohnos sues so arap E rezaf siuq erpmes ue euq O aninem amu raduja ioF res ues o atieca oãn euQ rezaf euq o ies arogA ohlepse o e aninem ad airótsih a moC rerfos siam osicerp oãN Rebecca Di Giorgio (Bek)

7


Todas as coisas encontram o seu lugar quando a gente encontra o nosso!

Oii, gente! Tudo bem? Passando por aqui para contar um pouquinho da minha história pra vocês. Bom, a escolha do meu curso, Letras, deu-se ainda no Ensino Médio e, quem me conhece, sabe que meu objetivo sempre foi fazer minha graduação na USP. Após o término do terceiro ano, comecei a fazer um cursinho prévestibular voluntário, o Libertas - realizado no Departamento de Ciências Sociais, Letras e Pedagogia. Fiquei lá por dois anos e enfim passei na Fuvest.

Luana Fernanda Luana, 24 anos. Estudante do quarto semestre de Letras. A futura linguista da Universidade.

8

A própria experiência que tive no cursinho de ver professores se doando pelo próximo, e uma galera envolvida para dar oportunidades a quem carecia, me fazia ter a certeza de que me tornar professora e ser também alguém que vá auxiliar na realização dos sonhos de outras pessoas, era a minha vocação. Fiquei na USP um semestre e por motivos pessoais acabei saindo. Voltei para Taubaté e comecei a prestar o vestibular na Unitau, mas para o curso de jornalismo. Prestei três vezes, mas por “motivos financeiros” (coloco aspas, porque hoje entendo os reais motivos de não ter dado certo) ,

não iniciei o curso. Foi somente em julho de 2018 que resolvi, depois de conseguir admitir muitas verdades sobre mim e para mim, voltar para o curso de onde nunca deveria ter saído. Minha entrada na Unitau foi a mais improvável e inesperada possível. Pouco menos de um mês da minha decisão de voltar ao curso, eu já estava dentro da sala de aula. Foi o melhor presente de Deus que recebi neste ano. Confesso que nunca me imaginei estudando na Unitau, mas fui tão bem acolhida, pelos colegas, professores, funcionários, que a universidade tornou-se pra mim, sem exageros, um lar. E


“Deus só abre as portas de onde Ele está!

através desta porta muitas outras se abriram. Em menos de um mês de aula, uma ideia que tive sobre um possível tema para o TCC, antes de adentrar à universidade, tornou-se, por meio de sugestões da Profa. Dra. Adriana Cintra, um tema para um projeto de iniciação científica. O tema é: Análise de linguagem, interpretações sobre o divino e o sagrado e suas relações. Sob orientação da Profa. Dra. Adriana, fiz o projeto em dois meses e, felizmente, ele foi aprovado! Nesta pesquisa, estou fazendo análises sobre as representações do divino e do humano em letras de música gospel, unindo

as coisas que mais amo e que fazem parte da minha vida: música, fé e linguística. Estou muito realizada com tudo que tenho vivido aqui. Hoje entendo que o mais importante é a verdade que há em nós. A preocupação com opiniões alheias sobre nossa vida só nos fazem recuar e ser alguém diferente do que verdadeiramente se é. Por isso aconselho a você que está lendo este depoimento a ser sincero com você mesmo sobre seus desejos e medos, principalmente, no que se refere à escolha do seu curso. Decida fazer o que ama e corra o risco de ser feliz pra sempre!

9


10


pro-crasti-na-ção

Ella Oliveira Gosta de filmes sobre literatura e livros sobre cinema. Escreve sob pseudônimo cansada dos próprios vocativos. Atualmente, está cursando o quarto semestre de Letras na Universidade de Taubaté. Seu livro, “Histórias Vermelhas Demais Para Roupas Brancas”, disponível no Watpadd, sonha em se tornar papel.

A folha diante de mim continua branca, adornada apenas com linhas azuis que aguardam o peso das palavras cair sobre elas. Que palavras? Quaisquer. Pouco me importa. Há muitas folhas como essa na minha escrivaninha, várias linhas esperando para serem escritas, várias linhas esperando para serem lidas das pilhas do livros que eu nem sequer abri. Formam-se pilhas, porque eu não tenho espaço nas estantes e nem tempo hábil para livrar-me dos livros que não são meus. Não tenho tempo, nem espaço, nem personagem para escrever sobre... Penso muito, escrevo pouco. A folha continua em branco. Como a manifestação material do bloqueiro criativo que surge em minha mente, imperioso, uma muralha. Creio que estou doente. Falta de criatividade. Os sintomas são: bloqueio criativo e procrastinação. Ou seria a falta de criatividade sintoma da doença do bloqueio criativo? Não sei. Pouco me importa. PRO-CRAS-TI-NA-ÇÃO. Penso muito, escrevo pouco. Penso se viverei o bastante para contemplar um futuro no qual fastásticas máquinas conectadas ao meu cárebro conseguirão captar palavra por palavra de meus textos pensados, para que eu não precise nunca mais dar à luz a nenhum deles. O nome disso é preguiça. PROCRAS-TI-NA-ÇÃO. Leio pouco, escrevo pouco, não me reconheço. Encaro o papel e com esforço escrevo três palavras. TRÊS PALAVRAS. E depois de outras três pensadas e inconclusas, solto a caneta e culpo os sons pela minha situação. Eu ouço o barulho da água escorrendo aqui dentro e lá fora, o som dos carros na avenida, uma risada não muito distante e um chiado vindo do quarto ao lado. Há também uma televisão, porque

sempre há uma televisão, e um celular. Mais um carro. Passos. Gavetas abrindo e fechando. Angústia. Cadeiras que insistem em se mexer. Uma música baixa e outras risadas. Mais um carro. Agora o barulho da geladeira. Todas as portas estão fechadas, mas eu ouço tudo... Há gritos e gritos, choro e canção e minha eterna vontade de não fazer nada, de não ser nada. Por que ouço tudo? Os sons atrapalham meus pensamentos, fato, mas eu poderia realmente tomar os sons por amarras da minha escrita e vendas da minha leitura? Eu maldigo os sons até precisar deles... Hipócrita que sou, coloco uma música alta para tocar em meus fones de ouvido, apenas um deles funcionando... Depois da raiva vem o tédio. Ligo a minha televisão. Está passando um filme. É sobre um roteirista que colecionou ao longo de cinco meses cento e trinta e oito páginas não escritas e, em decorrência disso, precisa concluir todo um roteiro em apenas dois dias. O que o atrapalhou, no entanto, não foram os sons, foram as festas, as bebidas, as viagens para cidades históricas que lhe sussuravam fatos e as mulheres que lhe diziam as coisas que ele queria ouvir. Que ótima maneira de não ser criativo, ele deveria pensar consigo. Há uma maneira certa de não ser criativo? Há um motivo plausível no mundo para um escritor não escrever? E se bloqueio criativo for só um mito? Não seria decentemente criativo o ser que o inventou? Sem perceber já estou imersa ao filme. Crente de que qual seja a sina do roteirista, similar será a minha própria. Será que ele conseguirá escrever? Em lugar de: Será que conseguirei escrever? Como ele fará para escrever? Em lugar de: Como farei para escrever? Perguntas, perguntas... Outro carro. Uma nova música começa a tocar. De longe, conversas e risadas, mas eu ainda ouço tudo! A chuva vai embora sem me trazer nada. Agora até as palavras que me vinham à mente se vão antes mesmo de chegar. O filme continua. Será que ele conseguirá escrever? Será que as palavras depois de meses suprimidas e renegadas cairão sobre as linhas azuis em um movimento alucinado de iluminação? Depois do tédio vem a epifania. Estou esperando.

11


A

G

a

i

a

C iê nc i a Friedrich Nietzsche Por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhandonos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós: precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tão bem como o chapéu de bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos – necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.