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1.2. As angústias pessoais como motor para a criação

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47 artigo denominado Teoria da Complexidade: uma nova visão de mundo para a estratégia, apresentado no I Encontro Brasileiro de Estudos da Complexidade (2005), o autor Martins Torres nos traz uma interessante abordagem sobre a visão de mundo, que vem muito ‘a calhar’ na análise que aqui se apresenta:

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Visão de mundo é uma janela conceitual, através da qual nós percebemos e interpretamos o mundo, tanto para compreendê-lo como para transformá-lo. Esta janela funciona como uma espécie de lente cultural, na construção da qual os ingredientes incluem valores, crenças, princípios, premissas, conceitos e enfoques que modelam nossa percepção da realidade e, portanto, nossas decisões, ações e interações e todos os aspectos de nossa experiência humana no universo. É a ferramenta cultural mais poderosa da qual dispõe um indivíduo, grupo social, uma comunidade e uma sociedade, para (re)significar seu passado, compreender seu presente e fazer previsões para construir seu futuro. Quando compreendemos que a realidade é o que o nosso método de observação nos permite perceber, passamos a reconhecer que nossa visão de mundo formata nossos modelos mentais, através dos quais observamos, sistematizamos, interpretamos e aportamos significado às nossas próprias experiências no mundo (TORRES, 2005: 200).

1.2. As angústias pessoais como motor para a criação

Uma das hipóteses levantadas neste trabalho é se as angústias pessoais funcionam como motor para a criação artística. Para Ostrower (2008), o que impulsiona o ato criador é uma tensão psíquica que difere do conflito emocional. Trata da tensão psíquica como um fluxo mental, gerado a partir de percepções e associações, que levam o indivíduo à busca e à ação.

Não acreditamos que seja o conflito emocional o portador da criatividade. O que o conflito faria, dada a sua área e sua configuração

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48 particular em cada caso, ao intervir na produtividade de um artista, seria eventualmente propor a temática significativa, por ser ela tão imediata e relevante para a pessoa. Poderia também, junto ao assunto assim selecionado, influir na escolha, ainda que inconsciente, dos meios e das formas de configurar. Portanto, o conflito orientaria até certo ponto o quê e o como no processo criador. Mas o conflito pessoal não poderá em si ser confundido nem com o potencial criador existente, nem com a capacidade de elaborar criativamente um conteúdo. Ao contrário. O quanto existe de elaboração visível na obra artística, nos indica exatamente a medida de controle que o artista ainda pode exercer sobre seu conflito (em Van Gogh, por exemplo, isso fica patente). (OSTROWER, ANO: 29).

FIGURA 7. Registro de anotação pessoal. Autoria própria, 2013.

Essa afirmação parece negar nossa hipótese. Mas poderíamos pensar que as angústias podem funcionar como impulsionadoras em alguns momentos de criação, em alguns artistas - talvez não em outros. De qualquer forma, negar sua importância seria precipitado; o que ocorre é que, sendo o processo criativo composto de uma rede altamente complexa de interrelações, as angústias não seriam, sozinhas, as propulsoras da criação. Podemos pensar também que não é possível fazer uma separação exata entre a tensão psíquica que leva ao impulso criador e o conflito pessoal, pois, ambos passando por processos mentais,

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49 se misturam. De acordo com o Dicionário Online Michaelis, em termos psicanalíticos, o conflito4 viria a ser a “tensão produzida pela presença simultânea de motivos contraditórios; segundo a psicanálise, há em todo conflito um desejo reprimido, inconsciente”. Mas devemos pensar em conflito necessariamente como algo que envolve sofrimento? Todo enfrentamento de um caminho com múltiplas possibilidades de resolução gera, mesmo que por um curto momento, um conflito; a dúvida é o conflito. E a dúvida está sempre presente no fazer artístico.

Cada criação é recriação de um objeto amado, que foi perdido e estragado num mundo interno com um self despedaçado (MÉLEGA in MONTALE, 2001: 114).

No início do século XX, a psicanalista Melanie Klein desenvolveu uma teoria quanto ao impulso criativo, estando ele sempre relacionado à busca de reparação de um objeto perdido.

O conceito de reparação, introduzido por Klein em 1929, foi aplicado à compreensão do impulso criativo entendido concomitante à posição depressiva. Este nasce da necessidade de reparar o objeto perdido no momento em que ele é vivido na sua totalidade, quando os aspectos

4 conflito con.fli.to sm (lat conflictu) 1 Embate de pessoas que lutam. 2 Altercação. 3 Barulho, desordem, tumulto. 4 Conjuntura, momento crítico. 5 Pendência. 6 Luta, oposição. 7 Pleito. 8 Dissídio entre nações. 9 Psicol Tensão produzida pela presença simultânea de motivos contraditórios; segundo a psicanálise, há em todo conflito um desejo reprimido, inconsciente. 10 Sociol Competição consciente entre indivíduos ou grupos que visam a sujeição ou destruição do rival. C. cultural, Sociol: incompatibilidade entre valores culturais cujos portadores humanos estabelecem contato. C. de atribuições, Dir: fato que ocorre entre autoridades judiciárias e administrativas, quando cada uma delas se julga, ao mesmo tempo, competente para deliberar sobre determinado caso. C. de jurisdição, Dir: questão sobre competência entre juízes ou tribunais da mesma jurisdição. C. de leis: a) divergência entre as leis de diferentes estados ou jurisdições, quanto aos direitos do mesmo indivíduo; b) divergência entre as leis atuais de um país e as que anteriormente regiam a mesma matéria. <Em: http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portuguesportugues&palavra=conflito>. Visualizado em 08 de abril de 2013.

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50 bons e maus são reconhecidos como um todo. (...) O ato criativo, segundo Klein, constitui uma das modalidades privilegiadas da atividade reparativa. (MÉLEGA in MONTALE, 2001: 117).

De acordo com esse pensamento, o ato criativo estaria sempre relacionado a uma perda e à busca de preenchimento. Será que essa tentativa levou o uso da fotografia a um nível tal que hoje tenhamos esse excesso de imagens nos bombardeando todo o tempo? Digo isso porque, ainda havendo uma enorme crença na fotografia como captadora e restituidora da realidade, embora muito já se venha discutindo no sentido contrário, neste sentido ela permitiria ao sujeito se apropriar do objeto fotografado. Claro, aqui devemos fazer a ressalva de que, aproximando essa hipótese à teoria de Klein, não tratamos apenas dos objetos ‘concretos’, mas de objetos psicológicos.

De modo geral, o que está em jogo é, pois, a essência mesma da fotografia. Ao nos questionarmos sobre o objeto a ser fotografado, refletiremos sobre as capacidades e os limites da fotografia em sua pretensão de restituir o objeto visado, e, portanto, suas possibilidades, seus sonhos, suas ilusões. Será que ela realmente pode apreender e restituir um objeto - mais ainda, o real - ou ela só atingiria aparências interpretadas por pontos de vista particulares? (SOULAGES, 2010: 27).

Mas quando pensamos em arte, não podemos esquecer que ela nasce de uma complexa construção de elementos conscientes e inconscientes do artista: ela não traz em si os dados exatos da natureza (até porque, esses ‘dados exatos’, se percebidos como fenômenos, podem ser apreendidos de forma diferente cada vez que nos relacionarmos com eles). Portanto, mesmo que o artista vise transformar seus conflitos em arte, o que ele pode conseguir é trabalhar com alguns elementos de forma simbólica e inseri-los em seu objeto, mas nunca poderá transferir suas experiências diretamente ao objeto, e o receptor jamais poderá captar as experiências pessoais do artista naquele objeto: o que perceberá são rastros. Além

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51 disso, se fosse necessário haver angústia para haver criação artística, seria como imaginar que são melhores artistas os que mais sofrem; também seria como imaginar que quem não vive uma experiência ruim não pode produzir um bom objeto artístico, e o que seria dos atores? Deveriam ter vivido todas as experiências ruins que interpretam em suas cenas para que atuassem bem?

Poderíamos pensar em como a arte pode colaborar para a elaboração dos conteúdos de um indivíduo que sofre – por exemplo, através das técnicas de arteterapia - nas quais o sofrimento não é primariamente o impulso criador, mas é sobre o qual o terapeuta realiza o estímulo para que o paciente, através da produção de um objeto, traga à tona seus conteúdos perturbadores, através de símbolos. Mas seriam arte os produtos da arteterapia? Não sendo produzidos a partir de uma elaboração mental que vise, a priori, a expressão através de uma forma, mas sim um extravasamento dos sentimentos através do objeto, um produto do automatismo, poderíamos pensar nessas obras como arte?

João Cabral de Melo Neto, em seu livro Prosa (1997), falando do ponto de vista da análise literária, fala dos poetas que buscam em suas poesias a tradução direta de suas experiências:

O poema é o eco, muitas vezes imediato, dessas experiências. É a maneira que tem o poeta de reagir à experiência (...). A experiência, nesse tipo de poetas, cria o estado de exaltação (ou de depressão) de que ele necessita para ser compelido a escrever. Geralmente, esses poemas não têm um objetivo, exterior. São a cristalização de um momento, de um estado de espírito (...). Quase sempre, tais poemas são construídos. Sua estrutura não nos parece orgânica (...). A experiência vivida não é elaborada artisticamente. Sua transcrição é anárquica porque parece reproduzir a experiência como ela se deu, ou quase. E uma experiência dessa jamais se organizará dentro das regras próprias da obra artística. Em tais autores, o trabalho artístico é superficial (MELO NETO, 1997:

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