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1.1.3. A memória materializada (os documentos de processo
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42 pela concretização desse desejo que, por ser operante, o leva à ação. A tendência é indefinida, mas o artista é fiel a esta vagueza. O trabalho caminha para um maior discernimento daquilo que se quer elaborar (SALLES in ZULAR, 2002: 185).
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Salles, inclusive, prefere não tratar o ato criador sob o ponto de vista da intencionalidade, porque esse termo pode trazer em si uma ideia de que a obra se constrói sobre um objetivo claro, racional e bem definido. Por isso, trata desse aspecto mais como tendências do artista. Indo de encontro com esse pensamento, Ostrower (2008) nos diz que as intenções vão se estruturar junto com a memória, mesmo que nem sempre de forma consciente pelo artista, ou seja, sem objetivos imediatos. E conclui que “às vezes, descobrimos as nossas intenções só depois de realizada a ação” (OSTROWER, 2008: 18).
Mais do que um simples ato proposital, o ato intencional pressupõe existir uma mobilização interior, não necessariamente consciente, que é orientada para determinada finalidade antes mesmo de existir a situação concreta para a qual a ação seja solicitada. É uma mobilização latente seletiva. Assim, circunstâncias em tudo hipotéticas podem repentinamente ser percebidas, interligandos-se na imaginação e propondo a solução para um problema concebido. Representam modos de ação mental (OSTROWER, 2008: 10).
Os documentos de processo são os diversos registros que o artista acumula e que desempenham papel de armazenamento e experimentação. É a memória da obra; também é memória do artista.
O efeito que a obra causa em seu receptor tem o poder de apagar, ou ao menos, não deixar todo o processo aparente, podendo levar ao mito de
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43 que a obra já nasce pronta, ou seja, de que a obra não tem memória. Ao nos propormos a acompanhar seus processos de construção, narrar suas histórias e melhor compreender esses percursos, independentemente da abordagem teórica escolhida, estamos tirando a criação artística do ambiente do inexplicável, no qual está, muitas vezes, inserida. Ao mergulhar no universo do processo criador, as camadas superpostas de uma mente em criação vão sendo lentamente reveladas e surpreendentemente compreendidas (SALLES, 2008: 25).
Já foi dito anteriormente que os documentos de processo não incluem o registro de todos os fenômenos que compõem o processo de criação, porque muitos deles ficam, por exemplo, restritos a processos mentais, os quais não podemos acessar. De toda forma, os documentos de processo podem nos indicar tramas de pensamento. E pensando nas tramas desse processo como formadoras de uma rede, não podemos analisar um documento sem lembrar que ele está “inevitavelmente relacionado a outro e tem significado somente quando os nexos são estabelecidos” (SALLES, 2008: 117).
A realidade é inacabada, é um eterno e caótico fluir. Devemos reconhecer a incompletude e a incerteza da realidade, bem como as múltiplas conexões entre os componentes dessa realidade. Examinar isoladamente um componente não faz sentido – é o reducionismo das partes. Devem ser examinados, também, os relacionamentos deste componente com os demais e com o global constituído por todos eles. Examinar somente o global sem examinar os seus componentes e os relacionamentos, também não faz sentido – é o reducionismo do todo (TORRES, 2005: 194).
Além disso, os documentos de processo não devem ser estudados pelo seu objeto em si, mas por seu propósito. Criando esses documentos, o artista vai organizando e compreendendo o seu fazer. Esses documentos são elucidativos aos receptores finais, mas também ajudam os artistas
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44 a terem mais consciência de si, “tornando os artífices mais hábeis e seguros de seu ofício” (SANTOS, 1994: 487).
Como já mencionado, enquanto o artista cria, ele dialoga com seu destinatário intrapsíquico. Os documentos de processo também assumem, nesse aspecto, um papel importante: enquanto registra suas pesquisas e impressões, o artista conversa consigo mesmo a respeito de suas escolhas, o que dá aos documentos aquilo que Salles chama de aspecto comunicacional intrapessoal (SALLES, 2008: 47). Quando essas anotações são estudadas por outra pessoa, estabelece-se um caráter interpessoal de comunicação: “o pesquisador faz, na verdade, uma espécie de intromissão de caráter interpessoal nessa manifestação de comunicação interna” (SALLES, 2008: 48).
FIGURA 2. Meus cadernos de anotação do ano de 2013.
Enquanto memória, as anotações, rascunhos ou esboços servem ao artista para poderem ser revisitados posteriormente, ou seja, permitem releitura; o artista tem sua emoção e memória reativadas, o que possibilita novos processos de imaginação e elaboração das ideias.
O artista observa o mundo e recolhe aquilo que, por algum motivo, o interessa (...). Esse armazenamento parece ser importante, pois funciona como um potencial a ser, a qualquer momento, explorado; atua como uma memória para obras. (SALLES, 2008: 51).
Seguem abaixo alguns exemplos de anotações que fui acumulando durante o processo que envolveu este trabalho (outros exemplos aparecerão no decorrer do texto):
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FIGURA 3. Registro de anotação pessoal. Autoria própria, 2013.
FIGURA 4. Registro de anotação pessoal. Autoria própria, 2013.
FIGURA 5. Registro de anotação pessoal. Autoria própria, 2013.
![](https://assets.isu.pub/document-structure/221005131351-7678d124be9f813d9b800d148c4e4ea5/v1/db52a25b57d0607388883aae9becafd3.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
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![](https://assets.isu.pub/document-structure/221005131351-7678d124be9f813d9b800d148c4e4ea5/v1/78b27e6f23c86e1a71e83a4a25f3dd8e.jpeg?width=720&quality=85%2C50)
FIGURA 6. Registro de anotação pessoal. Autoria própria, 2013.
Os documentos de processo não são construídos, necessariamente, dentro da mesma linguagem em que a obra se apresentará ao espectador. O artista se apropria das linguagens que lhe parecem pertinentes para o desenvolvimento do seu processo. Para Salles, a decisão por uma determinada linguagem é importante para a construção da obra, mas o percurso de construção é intersemiótico (SALLES, 2008: 82). Ou seja, nos documentos de processos do artista, podemos encontrar diversos tipos de registros em linguagens diferentes; o artista vai fazer a interrelação dessas diversas linguagens e traduzi-las para outra - que domine e que lhe interesse - para dar forma à sua obra (SALLES, 2008: 95). A criação de textos antes da criação das imagens, por exemplo, é amplamente conhecida no cinema: no geral, escrevem-se roteiros para depois transformá-los em imagens. Mas não é só no cinema que isso acontece. Muitos artistas plásticos e artistas visuais se utilizam desse recurso.
Utilizar palavras auxilia na mediação entre nosso consciente e o mundo, e a partir do momento em que as coisas são ditas, tornam-se presentes para nós (OSTROWER, 2008). Podemos pensar que tornar presente, ou seja, trazer uma ideia para um plano mais concreto pode auxiliar a organizar o fluxo de pensamentos e a partir dessa organização, permitir estruturar uma forma de expressão. A partir da expressão, seria possível então gerar um ‘produto’ que tornaria concreta a relação do artista com o mundo; nesse ‘produto’ o artista materializa sua visão do mundo. Em um