Caminho

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L.Butterfly

HipotéticoAmor Amor Hipotético poesias

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L.Butterfly

HipotéticoAmor Amor Hipotético poesias

projeto e desenhos Márcio Koprowski

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Há sete anos eu vivia com um homem. Ele foi embora. Para sempre. Pouco depois, minha amiga Cathy encontrou um desconhecido num bar. Ela achou que ele me agradaria. Pediu seu endereço e me deu de presente, proporcionando-me assim um dos episódios mais romanescos de minha vida. A esse estranho providencial.

Sophie Calle



Introdução Na brincadeira do pseudônimo, onde o som da letra L remete ao pronome femenino elle, que em francês quer dizer ELA, seria então... ela. borboleta… feminino, símbolo de transformação, metamorfose, ciclo de vida. L.Butterfly é o pseudônimo adotado por mim, Vera Briones, na minha escrita. De resto, o desejo de passar de um ponto ao outro, da forma à cor, da substância à insubstância, do duro ao macio, do sólido ao líquido, como se fosse um peito nutriente, redondo, túrgico, convexo e suculento, com curvas perfeitas e pele de seda, do qual podemos retirar o segredo de ver e sentir. Vera Briones 26 de janeiro de 1946 Rio de Janeiro L.Butterfly 26 de janeiro de 2014 Cunha



Sumário A Cruz de Inês

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Abraço

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Alice

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Amor à Primeira Vista

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Amore Amore

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Amores

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Androginia

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Aquário

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As Rosas são Vermelhas e as Violetas ...

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Bailarina

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Bem Carioca

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Bichu Isquizitu

22

Brancas Nuvens

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Carnaval

24

Carta de Amor

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Casa-me

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Caução

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Chopin

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Comme la Rose

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Conversas com a Alma

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Corpo Presente

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Criatura

36

da Janela de Cunha

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do Mistério para o Mistério

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Domingo

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Domingo em Ipanema

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Em Segredo

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Enigmas

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Então eu Digo

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A Cruz de Inês Não tenho estilo, escrevo o que me dá na telha. O que me vem no momento. Mas uma coisa é certa em todo o meu riso há sempre sofrimento. Digo o que penso porque acredito e acredito que todo dito faz-se e refaz-se antes de ser dito. Não é mero jogo de palavras, acredito nisso. E mais, muitas vezes surge uma palavra que escapa da memória exatamente como rato que conhece a arapuca insistindo no naco. Uma escrita limpa, clara como a espuma de um ovo, sem extravagâncias barrocas, sem nada que impeça, das escaldadas asas apenas a palavra minimalista na nitidez de um dito dito ao apreço, uma obra prima, embaraçando no espelho ossadas de letras deixadas ao talvez. Não crer que um deus não se importe com o destino das filhas do céu desprotegido é exigir muito para uma escrita, em demasiado, cruz separada do corpo que animou.

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Abraço em teus braços asas sem penas tudo parece graça envolta por teus braços num abraço redondo ninho de passarinho o começo fica igual ao fim enrodilhada nos teus braços o mundo segue devagar estrelas deslizam e cometas, cometas deixam o rastro que surge nos jasmins teus braços como cipós envolventes sem os nós que não fazem nós são feitos para o abraço

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Alice uma frase, não mais que uma cinco ou seis palavras no máximo talvez nove não mais que isso cortante dita de maneira natural uma espada afiada para um único golpe nove palavras unidas numa sentença cortem-lhe a cabeça, dita a Rainha de Copas inflexível inexorável inexplicável Alice se encolhe suas duzentas e vinte palavras respondidas em nove cortada a cabeça, incisão longa abre ao meio o peito mostra entranhas cor-de-rosa contraponto do cinza exterior Alice se recolhe não se esconde desaparece na linha do horizonte Alice Alice que tola sem inteligência sem juízo Alice Alice o chá já foi servido uma lebre maluca, um chapeleiro louco e você na nova versão Alice toma chá de dente de leão cospe não engole

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condenada por um largo sorriso de um gato que aparece e desaparece único com quem Alice mantém diálogo lhe diz: essas são as regras do jogo


Amor à Primeira Vista eu o vi pela primeira vez à porta de uma casa preso pela coleira nas mãos da Rita quando seus olhos bateram nos meus uma onda fria percorreu minha espinha seu olhar penetrou minha alma, decifrou meu coração estava ali a procura de um dono foi assim, amor à primeira vista eco e som este cão doce olhar foi companheiro guarda anjo de um filho meu foi guia e trilha foi canção alegria esperança desvelo fiel afeto incondicional usava bandana nas festas deitado embaixo da mesa de som ninguém chegava perto sem sua permissão o mais popular e querido entre todos andava solto, dono do chão hoje, nos campos verdes do céu onde o vemos correndo entre as estrelas ressoa dentro do meu peito seu olhar mais que perfeito criação ideal de um deus puramente amoroso

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Amore Amore amore, amore só se necessita o que está disponível só se deseja aquilo que já é nosso amore, amore enquanto você vaga pelas coisas do espaço entro no tempo criando significado amore, amore o que foi bom, foi não é mais não faz diferença o efémero da flor é sua beleza o controle do prazer pela repetição do conhecido não responde aos anseios da própria vida amore,amore somente com o tempo … com a ousadia de tentar e viver é que se descobre o que este mundo pode nos proporcionar amore, amore temer o desconhecido por ele não ser conhecido é uma ironia … pois não há como saber o que seria …. amore, amore na verdade e no amor o compromisso é a entrega a mão da morte é a mesma que a mão da vida

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Amores sou água que preserva sua memória uma molécula sem peso e volume sem cor amores crescem e desaparecem amor é perigo cola a carne rasgando

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Androginia um canto é um recanto sacrossanto que todo humano oferece seu pranto gratuito, sem fundamento como da graça um vazamento como da fumaça um desfalecimento augúrio de tormento canto fazendo-se santo Pixinguinha queria vivo para pedir uma nota em esperanto que desse corda ao encanto que na poesia fundisse a sonoplastia que toda vida tem história singular androginia que todo humano guarda o segredo do quão carinhoso é o ser do seu desejo

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Aquário ah, olha só .... olha a olho nu olha a céu encoberto tá tudo lá E se procuro E se busco E se tento encontrar o arquipélago, éden particular, ponto exato entre latitude e longitude, onde desenho a estrela polar … essa parte de mim que pondera … e desdiz a que delira ... ah, céu mutante, onde o sol vagabundo entre nebulosas se esconde, renovando o ano em si próprio, marcado pelo equinócio de verão. será lá, onde o meu olhar não puder alcançar a vista, será lá, onde adentram meus queridos e quem precise de abrigo… que essa outra parte de mim, gravada em Aquário, é só vertigem, e se perde em 980° quadrados, espaço imenso donde espreita a água que verte indiferente do jarro.

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As Rosas são Vermelhas e as Violetas ... as rosas são vermelhas e as violetas ... são ... sei lá .... qualquer cor as rosas espinhosas ardorosas calorosas escandalosas as rosas são sempre vermelhas são sempre rosas possuem tudo ... possuem perfume ... possuem maciez ... possuem ... possuem ... possuem tudo ficam no roseiral no centro do jardim no meio do mundo cantadas descritas romanceadas são letras são músicas canções declarações cartas propostas depois pétalas encravadas ... suspensas ... em livros ... viram poemas esmagadas lisas mortas sem cor letras iniciais tecidas à unha marcam o par são lembrança ... de amor ... de cor ... de veneno ... de espinho ... de paixão tão louca são esquecimento ... perdido no meio do livro possuem tudo ... até mesmo as traças ... as violetas .. sei lá ... de qualquer cor

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Bailarina as vezes ando tão distraída que me perco dentro de mim procurando o que estava em busca esqueço que este lugar é tão pequenino que à alma resta apenas rodar como uma bailarina

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Bem Carioca de que vale relembrar se nada mais é o que foi e o que foi não é mais, alterado pelo que veio depois se o tempo todo nos enganamos e jamais sabemos a não ser o que esquecemos qual ar que penetra pelas estreitas ruas do Rio o presente transforma e converte o que está embaixo em atual surgem os vultos passeando pela Gonçalves Dias e Ouvidor passos ali encarnados, ditos engraçados amores começados à porta de uma confeitaria quantos olhares, quantas flores encomendadas na banca do mercado quantos buquês de noivas, quantos desenlaces quantos convites para uma única dança e se me pego neste flagrante onde a saudade é traço talvez não queira dizer nada mais que do traço humano se num distante passado o contorno da água da Baía fazia curvas tão próximas donde se debruçava o corpo na balaustrada que hoje separa ônibus e calçada subir ao Mirante da Igreja e ver como era lindo o que se descortinava no horizonte talvez um futuro brilhante talvez uma nova “cidade luz” e desta enamorou-se meu pai quando aqui pôs os pés na primeira vez e sonhando sonhava estar no continente de onde partira e perdia-se nos Jardins da Glória, subia o morro de Santa Tereza como se sobe ao monte das Oliveiras ou ao monte de Santa Luzia. afinal, não sei exato o que em seu íntimo se desenrolava ao desembarcar na nossa terra, que promessas traria, que curiosidade o impregnava. insisto e refaço passos que levam pelos trilhos de um bonde que ainda resiste subindo e descendo pelos Arcos da Lapa. passos incógnitos cobrem pedras desgastadas das antigas ruas no Arco do Teles, no resto dos casarios, risos e lágrimas lavaram estas vielas. lembrar

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assim, em preto e branco, como desenhos de pedras portuguesas assentadas em areia fina se assemelha a tomar um gole de vinho num såbado ensolarado num vinhedo do Alto Minho. isso mostra nada mais que o traço bem carioca essa capacidade de saudosamente lembrar ou em saudade lembrando posto que tudo se faz e refaz outra vez no traçado da cidade, no rosto de alguÊm

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Bichu Isquizitu quem eu queru num mi qué fazê o quê homi é bichu isquizitu si tu mostra tua querência eli sai pela porta sem pedi licencia mas si tu faz cara di nem aí eli corri quinem cabritu dizendu minha nêga tô aqui

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Brancas Nuvens deixar passar tudo em brancas nuvens é passar da cumplicidade à conivência por isso a voz se levanta que as mulheres tomem vergonha e não tenham receio se um tapa na cara as encolhe a outra face se apresente até que a justiça em se fazendo acorrente o abusado que de herói vire covarde tanto fora quanto dentro de seu meio se o aprendizado não basta a morte o encontre mas isto é ferir-nos no mais profundo pela violência morre também o filho o herói que virou covarde é desta prisão que se faz a vida da mulher quando a justiça não é cega ela também no feminino sendo posta em sinal de alerta para que não se esqueça que ante a lei somente há igualdade e que o crime fere e mata em igual medida a todo gênero se este preceito é olvidado o ouvido de atento fica surdo ao grito estampado na face de cada mulher espancada no surdo da noite ou ao descampado e se esse assunto aborrece e enjoa fazendo virar o rosto de enfado sem distinção de gênero de displicente passa-se a conivente

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Carnaval

é de manhã cedo como convém a balsa parte e aquela gorota está sem ninguém veste branco puro em bolinhas salpicado está à caminho do Cordão do Bola Preta sai de fininho ninguém nota é magra passa pela roleta sem deixar vestígio nem resquício de Vinícios não é de Ipanema uma garota qualquer lá do outro lado do Rio na multidão se perde nem sinal da moça sozinha surge flagrada num beijo delicioso naquele moço bem no meio do cortejo

o carnaval se vai fica o gosto da saliva daquele rapaz

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Carta de Amor escrevi escrevi escrevi escrevi

uma carta de amor para você com tinta vermelha uma só palavra amor

depois rasguei, coloquei os pedaços de papel no cinzeiro e queimei percebi que mesmo queimado o papel o amor continuava ardendo enchendo o ar com cheiro de incenso e flor de macieira até despejar o cinzeiro na pia e acabar com a tortura então o salão se encheu de luz pela chama que insistente ainda ardia escorria pelo ralo incendiando a casa inteira saía uma fumaça cor-de-rosa da cor da minha mão que de mansinho estendi a você e você disse não

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Casa-me casa-me ao primeiro de Abril sob o Castelo de Viana no monte erguido por mimosas em primavera dum amarelo estonteante qual Ipê que se destaca noutra linha do horizonte se a brisa sopra como uma bruma de Avalon são as imbricações de uma história contada em contos de contas sem fim quero cravos rubros, vermelhos jogados à passagem cuspidos das baionetas dos soldados as pedras em chamas pelo verão quente ocupadas às primeiras horas de uma manhã abrem as portas às Prisões de Peniche diga-se sim à história diga-se sim, mesmo sem glória que a rua da Passagem assinalada entre Salvato Feijó e Caminha apenas, nada mais é, que uma luta casa-me ao primeiro de Abril sob o Castelo de Viana às margens do Lima ao pé do Oceano Atlântico não me deixes sem nome não me deixes o nome apenas deixa-me a tua alma, a tua vertente que se derrame, aqui já agora, neste instante, em sonho posto que todos estão ausentes casa-me ao primeiro de Abril

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como uma febre intermitente (não como estado mórbido) caracterizado por um aumento de temperatura no sangue e uma aceleração do pulso casa-me ao primeiro de Abril como batismo de um estado civil selando assim num amor cortês o pacto que desdobra o gen anunciado que eu, sem saber ouço, vindo de não sei de onde, os nomes que correm nas linhas da minha escrita penso eu que se não de longe nem de perto ouço-os de dentro, mesmo sem os ter vivido é como um rumor, um som reenviado é um vestígio no qual se repete a última frase de um verso casa-me ao primeiro de Abril com cravos ladeando meus passos com encarnados em tapetes transformados configurando desenhos, linhas e ondulados que não se desmancham ao passar do tempo que nem este destrói a relíquia de um corpo que na mente foi santo como seres de extremada bondade de risos francos de sonhos imaculados tão absolutamente humanos

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Caução estar sem ser de nenhum outro lugar pisando os alfaltos grudentos de um sol inimaginavelmente quente sem nunca ter subido um morro que não sobre as rodas de um auto assim da cidade gentilmente pingando sal e suor a ampuleta mente fingindo um retorno de andamento refazendo ininterrupto o tempo já o relógio maltrata no ponteiro que avança em círculos concêntricos por quanto ainda ouvir a chuva encerrando a tarde afogando moscas e cigarras deixando tudo em apagado murmúrio de como era bom nem em mil dias contados em cânticos chegariam ao transbordar de tanto não sabido nem para outra vez pode ficar, que a existência é singular e não comporta um s sequer no fim da vida é isso aí, que dito soa efêmero qual passatempo enchendo papel branco onde emoções são depositadas em caução pelo tempo perdido

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Chopin a música entra pela janela da sala o vizinho vê a novela a música é boa me prendo na qualidade do que ouço imediatamente a lágrima surge e como serpente desce pelo pescoço digo para mim que canção maravilhosa, que sensibilidade e choro feito criança hunn minhas emoções afloram lembranças de abraços (sempre os abraços) de um específico um acho a música maravilhosa me desfaço em recordações do compositor não me aparto ouço-o dia e noite e com estardalhaço o elejo o melhor hunnnn na poesia tudo é permitido, não é mesmo? até a mentira cor de rosa ou a verdade tão crua hã hã mas a música entra novamente pela janela choro ai que saudade, ai que bom ele chega agora hunnnnnnnn

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não ouço nada é pura impressão sequer ouço a canção comovida vejo apenas a projeção de minha sensação hunnnnnnnnnnnnn assim é qualidade, coisa que qualifica fica sempre escondida se de emoção em emoção me emociono tanto que não percebo o contorno de uma música feita de qualidade hunnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnnn no abandono das emoções que deturpam o que não ouvem a sonata de Chopin se perde para me encontrar me encontro no futuro a música já em si é pura melodia desinvestida de atributos insanamente a ela por mim concedidos mas que qualidade !!!!! só em Chopin

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Comme la Rose I comme la rose que destina minha vida a uma imensa aventura abro-me para de novo sempre novo recomeço minha prova múltipla escolha deixa escapar o que solto corre entre um x e um não sem coragem marco o quadrado em branco no vão pequeno com um beijo II comme la rose a prova sem começo multiplica a escolha marco xs aleatoriamente incentivando a indecisão como lei banal que trará a recompensa aproximo e afasto o que de mim queda na indisciplinada escolha múltipla entre tantos espaços vagos para onde tenderá meu hábito veste que reveste minha livre escolha

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as coisas enlouquecidas na pequena cabeça atormentam e a disciplina como grilhão faz da palavra a ultima provisão a folha completa a falta primeira por horário em atraso fecha-se o portão a lição cabe tanto ao aprendiz como ao mestre o que ficou no esquecimento é mero refinamento

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Conversas com a Alma oi minha querida, quanto tempo … desde nossa última conversa mudou tanta coisa … eu até entendo que você tenha se recusado a me acompanhar, mas senti sua falta sabe, preciso dessa conversa que temos de vez em quando você sempre tem algo a me dizer afinal, você sempre está acima voando sobre o meu mundinho pequeno aí de onde você finca a asa tudo parece distante mas eu, eu olho as coisas aqui de baixo eu vejo tudo a olho no olho e às vezes o que vejo é horripilante deixa eu te dizer, eu quero somente estar no mundo nem sei se isso pode, pode? é nesse momento que morro de inveja de você que sobrevoa e passa se você tivesse me acompanhado na última travessia talvez tudo pudesse estar diferente agora mas você insiste em não se intrometer nesses assuntos pequenos você só se interessa pela redenção, salvação, contemplação, purificação e a vida é mais que isso aliás, venho questionado você ultimamente exatamente por essa sua irredutível atitude aqui neste lugar, neste ponto de linha infinita que corta o universo em fatias e some na eternidade tudo se resume à troca ininterrupta de um monte de moeda a única coisa que a moeda não compra é o tempo excassa mercadoria ultimamente eu queria falar com você em particular sem o eco que amplia o som queria dizer do quanto a luz do dia se irradia pela casa toda, do calor intenso desse meio de verão, da montanha imóvel à minha frente, criando um relevo de curvas sinuosas que acompanha a costa banhada de mar e mais uma vez me desloco, que até penso que ainda não encontrei o meu lugar

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essa inadequação irrevogável, esse principio de fim chegando devagar e você nem dá bola, nem liga, sobrevoa meu mundinho pequeno e passa

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Corpo Presente o meu corpo meu corpo, você pode ter a hora que quiser morto o meu corpo meu corpo, morada onde habita minha alma esse, esse corpo não é de ninguém nem meu também é veículo do espírito em jornada esse corpo, divindade encarnada parte de um todo vida e morte do crepúsculo ao nascente em pó da terra apenas poeira o meu corpo meu corpo, você pode ter a hora que quiser morto o meu corpo meu corpo presente, você terá em aurora boreal durante a noite no final da tarde somente quando você me amar

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Criatura do pescoço nasceram-lhe gravetos estranha criatura deslocada de um ponto os gravetos, saidos em desalinho, tal qual labaredas encobrem seu rosto por inteiro o resto, braços e pernas, indiferente alinhado contra a parede de preto o tecido reveste e em negro os sapatos se convertem sobra o rosado das mãos e canelas como se isto bastasse para qualificar a consistência de um vivo morto expirar sem inspirar para nada alterar dos gravetos uma incógnita brota naturalmente seu reino é vegetal e animal sendo este a viva natureza que de seu corpo se desdobra pela mente de um primata superior também ele em extinsão que os gravetos apontassem na direção de uma centopéia que não possue apêndices ramificados e jamais foi animal aquático vive escondida embaixo de troncos e conchas e rochas o coração é um tubo dorsal e em hábitos noturnos se inscreve livre dos deuses, com um par de pernas por segmento sendo que o primeiro lança veneno está adaptada para correr e cavar, e felicidade! a transmissão dos espermatozóides é indireta por fim, em algumas espécies os olhos podem estar ausentes sem susto … isto é só poema

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da Janela de Cunha da janela não se avista o mar montanhas onduladas cercam a vista crespas como água, deitadas sob o sol, encobertas desde a madrugada encolhem-se ao frio do longo inverno o mar habita ao largo, longe, lá embaixo seu cheiro de iodo e sal desfaz-se ao subir a serra de mata ainda virgem e fria nada indica que há lá adiante um azul esverdeado agitado e errante as águas, acolhidas pelo céu, descarregam sua fúria pelas ribanceiras da montanha esparramam-se em poucos momentos na paz de um hiato até descerem rumo ao destino esperado juntar-se-ão um dia lá embaixo ao profundo verde azulado levarão as manhãs ensolaradas e calorosas recobertas de indistintos gritos de pássaros levarão os raios de estrelas brilhantes de céus inebriantes levarão a terra vermelha dos bois, carneiros, gaviões, cães e andarilhos de velhas trilhas embrenhadas no passado, guiados por índios, subindo rumo ao céu na brisa quente as águas, levando a antecipação da longa noite de verão, despejarão, talvez, um pouco de magia também

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do Mistério para o Mistério I o céu ainda é povoado de estrelas cintilantes – cativas da vontade triangulos, esferas, nomes arcaicos meteoros, monstros, ninfas ondulantes, homens-cavalo desfeitos pela modernidade … mas não me importo jamais renego os passos dados aliás, faço questão de manter meus pés, que ocultam as marcas das mãos, no chão afinal, fui um antropóide jamais renego os passos dados jamais apesar de tudo, continuo tão cego como no passado o nome … jamais poderá ser proferido dentro da realidade brutal que desveste o ouro das folhas da coroa fica um verde ameno, sem cor, desfalecido um tronco de árvore à qual estamos todos condenados sem pai e mãe o filho se desconhece, fruto de um acaso cósmico, rodopia no vago de um universo outrora tido como berço aleitado, maná de todos os lábios os mares, acovardados, mantém-se inalterados e se por acaso se abrem formam ondas descomunais expondo um areal imundo de dejetos obsoletos plastificados o não é proferido por cima de todo sim que jaz oculto e envergonhado no recôndito que expia todo o pecado profecias múltiplas multiplicam o desconhecido transformam tudo em nada

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II entretanto pássaros voam flores encandecem o milho cresce recolhidos em suas essências primordiais tudo à descoberto sem cliques de magia que esta é a própria vida em si desqualificada na ausência de uma paixão que justifique a enormidade do fato se há um projeto que não seja para a lua, que afinal sequer é prata e quem sabe as estrelas nem mais brilhem nem para este pequeno sol desavisado de seu insignificante lugar na via láctea não é metáfora que se confie fica a questão em aberto para algo deconhecido que se expande e contrai conjugação de ignoradas energias pois afinal ainda há verbo … que abolido nos carrega de roldão para o silêncio último reduto construído dentro de outro reduto que sendo em ti mesmo descubra-se neste mundo o centro do círculo encantado que amarra este tudo nada

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Domingo porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque porque

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hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje hoje

é é é é é é é é é é é é é é é é

sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado sabado

faz-se amor tem almoço da família o banho é demorado a preguiça é maior o cinema está lotado tem feijoada a louça fica na pia o armário vai ser arrumado a noite é sem fim há casamentos até a madrugada barba e cabelo aparado a delegacia está abarrotada o dia é consagrado o mundo ficou acabado tem pipoca e filme na tv é véspera de domingo o dia em que não se faz nada


Domingo em Ipanema os olhos do segurança na porta da padaria acompanham todas as bundas que passam diálogo no celular: - amor ... - já tô voltando - é só isso? - só batata frita? mais nada? - já tô chegando e entra no super mercado duas mulheres no café da esquina, observando os homens ao redor - nossa ... esse é materialista - esse só pensa numa rapidinha - o cara tem que vir com passaporte carimbado, assim: “Minha loucura é sã” ou no máximo “Estou entre um neurótico expansivo e um borderline brando” - fora disso é “waste of time” meia idade, um casal da forma que ele a puxava para pegar o sinal aberto via-se que ainda a amava implacavelmente o tempo não passa, passamos nós por ele no presente há apenas cansaço, hora de banhar a alma, cheirar o mar tentar saber prá onde estão indo todas as gaivotas que pairam no ar sobre a praia de Ipanema

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Em Segredo I vou ficar aqui mas eu quero é ir não sei prá onde um lugar longe a árvore alta nem dá sombra o pecado é sair de onde a alma se esconde amar é um segredo que ninguém sabe como II olho pregado em estado de insônia tudo muda de cor do arco-íris ao beija flor sol aparece na lua redonda um colibri uma andorinha um sabiá o galho da árvore balança lança folhas e rebentos tá tudo aqui a jaca a uva o caqui o pomar derrama o aroma da romã demanhanzinha tudo se esclarece a noite só faz dormir da ponta do devaneio desponta o silêncio se fecha em sua concha calar é bom de ouvir cada palavra é um enigma que o mundo guarda em segredo

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Enigmas um continente partindo um ser em seres diferentes para redimensionar o destino próprio numa linguagem que o elabora e dá forma e como prisma o refrata decompondo-o numa miríade de caminhos é preciso ligar com invisíveis linhas os episódios inesperados, fugazes e de todas as surpresas a mais surpreendente, que partindo de uma vagina que o traz à luz, nesse mesmo momento sela o fado do seu desaparecimento, esta vida é somente uma experiência cravada de mistérios e enigmas

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Então eu Digo então eu digo algo anda mal na corte de Adriano voltemos à Atenas pois o que intriga é que jamais saberei os motivos, as razões morrerá comigo esse mistério essa incógnita esse n sem numero? ou surgirá um novo Bar Kochba filho de uma estrela por seu Rabi nomeado que a mim dirá as escolhas são excludentes ou não as há talvez aí resida uma das respostas imagina se é possível o harém de um sultão sem sua preferida .... mas eu, há muito declinei da oferta tentadora de pertencer a alguém que meu corpo diga do afeto que o embala que meu espírito plane sobre o calor de suas quentes ondas que em sendo imperfeito esse afeto me aleite de confiança e da liberdade a plenitude se faça sem nenhuma corrente se nada disso é possível porque haveria eu de conformar-me ao que não acredito? porque haveria eu de submeter-me a algo que envenena um ser? pois por assim desejar mataram-se tantas e tantos foram decapitados em nome de um instinto mal versado que disto é feito o ser eu não me engano desta vez e se mais não revelo não é por covardia é que me é doloroso expor-se tanto é mal pensar que minha insuficiência é a tua vacância, é mal? é mal pensar que me engano se por acaso sinto e reclamo da tua pretensa liberdade que assim dita, anula nossa integridade? é mal pensar que se não me nomeias não existo e se não existo não há qualquer tipo de compromisso

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como é possível fazer planos para um futuro e que lá não me esperes, pois escuro o vislumbro se ao meio do caminho pulas o muro e te expões ao vasto mundo redondo ou julgas que és capaz de controlar o que quer que seja de teu ser? sequer consegues conter-te na avassaladora busca que te condena por te colocares em risco e não prezares a tênue linha da tua própria segurança há ao redor tanto o que se pode querer mas olha querer, querer bem tem um custo tem um preço há-de ser escolhido há-de ser um valor um apreço uma idéia concreta de um novo mundo há-de ser uma fortaleza um bem maior uma certeza que também eu que o mundo vi senti-o na pele fiz minha escolha e talvez aqui neste nodal ponto resida o do que me ressinto sequer tivemos o direito de juntos escolher um caminho que da tua traição, não a da pele nem a do instinto estas são banais entrelinhas mas espiritual, é o que fere mais profundo

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e então te direi do que falo que ao dizer te amo abre-se um nova dimensão sem a dicotomia de um sim ou um não encontrar a harmonia ver crescer novas ramagens na árvore sombrosa e que se não estamos prontos, e nunca estamos, para tal travessia é deste desafio que nossa alegria se expande é ter mais no coração que na mente esse desejo inculpado sem medo do que está sendo deixado de lado e basta um simples já basta dito sem receio sem vergonha sem arrependimento dito antes de um feito, antes do ato consumado, em voz verdadeira para, quem sabe ... escolhas se revertam em respeito

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L. Butterfly Vera Briones, carioca de Santa Tereza, 1946, com formação acadêmica em Artes Plásticas, durante vinte anos atuou na área de design de objetos. Participou de várias exposições no Brasil e Estados Unidos e a partir de 2007 se dedica á fotografia. Após vários livros de fotografia publicados, surgiu a oportunidade de compilar as poesias que vem escrevendo nos últimos dez anos. O resultado é Hipotético Amor, oitenta e sete poesias sob o pseudônimo de L. Butterfly.

Márcio Koprowski Conheço esse ser mutante há 25 anos. E, entre acertos e conflitos, de lagarta para borboleta, nós dois já tecemos muitos casulos e cada um o seu. Este talvez seja o primeiro trabalho em parceria (digo trabalho e não casulo, porque o casulo é dela/d’Elle). L., estava procurando onde colocar seu casulo e me pediu para que eu arrumasse uma boa árvore com folhas verdes, ou coloridas. E, foi o que fiz. Achei uma com raízes profundas, como as de uma longa amizade. Em suas folhas, que a L. comeu quase todas, escolhi algumas onde coloquei desenhos. Prefiro chamar de desenhos, pois quando se fala em ilustração, suas origens vem das iluminuras de escritos sagrados e eu não pensei em ilustrar, em iluminar, em trazer luz às poesias de L., porque isto já está lá! Quis colorir com preto, trazer sombras, proteger a crisálida do sol e chuva... allow her to get lost instead, get nowhere, but... fly. Entre múltiplas coisas, sou paulistano de 1970, pai, artista visual, plástico e metálico, designer, desenhista e sonhador em horas plenas.




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