Marcelo Labes - O filho da empregada

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Blumenau, 2016


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Labes, Marcelo

O filho da empregada / Marcelo Labes – 1. ed. – Blumenau: Hemisfério Sul, 2016. 48 p. – (Antítese). 1. Literatura brasileira – Romance. 2. Ficção brasileira. 3. Literatura catarinense. I. Título. II. Série. CDD 22

B869.3

Impresso no Brasil / Printed in Brazil


Para Maria do Carmo, minha mãe. Para Aquiles Gabriel, que ainda não sabe ler — e espero nunca se encontre nessas linhas.



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Prólogo Estas são umas linhas úmidas que não se envergonham de sêlo. Foram escritas durante aluguéis alternados entre casas de madeira com frestas maiores do que as que ficam entre os dedos quando se olha admirado para a palma aberta da mão e porões úmidos e mal iluminados que as pessoas de bem não supõem haver ainda, já que adentramos cada vez mais no século XXI, o século das mudanças, dizem eles; o século das tecnologias, dizem eles; o século do estado de bem-estar social até mesmo em África, dizem eles; o século da paz em Colômbia, dizem eles; o século dumas outras luzes, agora o led vencerá o neon, dizem eles; chegou a hora da inteligência artificial, dizem eles; o fim do Império Americano está próximo, dizem eles; o século dos bons costumes, à luz de Deus, Nosso Senhor, dizem eles; o século da revolução, dizem eles; o bem vencerá o medo, somos mais fortes do que antes, abaixo a polícia fascista, viva o cidadão de bem, qual é mesmo o nome do presidente?, dizem eles. Eu sigo dizendo que estas são umas linhas úmidas e sem vergonha. Digo que este é ano de El Niño e que suas mudanças já se sentem por aqui, esta cidade que tem os olhos fixos no chão para


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acertar os passos e fixos no céu quando está nublado; ao som do primeiro trovão já se desengavetam rezas e ritos e sonhos que não serão algum dia realizados porque, ora!, amanhã voltará a chover e assim será durante todo este século que se anuncia como um século de merda. Daqui desta poltrona amarela vejo a mesa que não se arrumou depois do café da manhã, um violão quebrado num ataque de fúria (que tanto escondes no teu coração?) e móveis de segunda, terceira mão que se habituaram comigo mesmo que eu não lhes tenha dado a devida atenção. Do lado de fora chove uma chuva fina e insistente que eu podia dizer ser a mesma chuva de aqui dentro, mas não tenho realmente certeza disso. Estas linhas, umedecidas um pouco por lágrimas e um pouco pelo vento de chuva, procuram agredir o agressor, justiciar ofensas, recuperar o tempo perdido pensando em escrevê-las: o tempo que remoí, remoí, remoí, remoí, remoí lembranças que já não tenho certeza de ter vivido.


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Enquanto surgia, o novo século trazia consigo promessas e já lá se passaram quinze anos, o prometido já quase se tornou antigo, mesmo que a espera continue, continuará. E as linhas seguirão úmidas. E a única certeza é que choverá amanhã e depois de amanhã.


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Cenários I - O sacolejar do ônibus, o calor do empilhamento humano às seis da tarde. Verão. Uma mulher carrega os restos, as sobras que irão para o cachorro ou para cima da mesa, tudo isso dentro de uma sacola de papelão estampada com a marca de uma roupa de grife que ela ignora. Ela e todos que ali vão. II - Uns vestidos que precisam alcançar pra depois dos joelhos ralados, sovados depois de horas sobre o carpete, depois de horas ajoelhada pagando pecados, não os seus, pagando pecados como se fossem seus. Ela acredita nisso. II - Muito, muito cedo da manhã. Não dá tempo para o café. Engolir o pão seco, copo de leite seco na goela seca. Vida seca recheada de umidade. III - Entardece e é como se morrêssemos todos, um após o outro. Morreremos também amanhã e depois de amanhã. Morreremos todos, dia após o outro.


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IV - Sexta à noite, domingo à tarde, o que distancia e difere os dias? Onde estaremos quando já não formos mais? Em casa, em feriado prolongado, colhendo as flores que nos depositaram pelo Dia de Finados. Nada mais.


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O filho da empregada Era tudo nublado e quase sempre escuro; acordam cedo os que trabalham, os ônibus estão lotados, há ainda cheiro de orvalho e soa bêbada a manhã. Éramos nós dois, ela e eu ― embora distanciados por todos aqueles anos que nos dividiam. Nunca fomos muito amigos, mas nunca andamos tão juntos como naqueles dias, quando ainda não se podia dizer que fosse de manhãzinha. De tudo que lembro, a única certeza é de que fazia frio. Pelo menos do lado de fora do ônibus que sacolejava enquanto as luzes da noite ainda estavam acesas. Fazia madrugada. A noite como que fugia, desenfreada. No escuro, desaparecem as sombras. Caminhávamos em silêncio enquanto desconversávamos cada um de nossos desalentos: dela, de mulher divorciada na década de hum mil novecentos e noventa; eu, dos meus exageros e da minha condição de ser filho dela, de ser filho da empregada. Despejava silêncios quando a mãe entrava na casa a passos lentos para não acordar antes do tempo quem a empregava: seria


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injusto esperar que a patroa fizesse o café ou tivesse aquecido água para um chá que talvez nos esquentasse. Acendia lâmpada por lâmpada, servia a mesa, dispunha a manteiga ou a coalhada e me dizia que me dispersasse de debaixo de sua saia: não era mais mãe ou mulher separada: enchia-se de coragem e empunha sua espada para matar dragão-por-dia, empunhar foice e espada e lavar os pratos, arrumar a cama desarrumada, engomar a roupa passada e olhar para baixo na hora certa e atentar o ouvido na hora errada: do quanto o patrão gastou com o carro novo ou com a viagem de férias que não podia mais ser adiada, mesmo se isso custasse o atraso no aumento, outra vez. Mesmo que o discurso dissesse ser mais que o suficiente aquele salário de empregada. Cuidava das flores como se fossem suas. Cuidava das coisas. Cuidava dos filhos como se fossem os seus. E nisso de confundir os filhos acabava por maternizar o filho alheio, tenho certo que por receio de que crescesse sem mãe como a ela própria sucedeu. Acontece que era a empregada, e empregada não pode ser mãe, nem madrasta, talvez teta alugada: empregada limpa o chão e varre a calçada, passa a roupa que um dia será sua — se mantiver a espinha ereta e a cabeça sempre baixa.


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Se era inverno ou verão, não importava: a prataria tinha de ser limpa com água gelada. A empregada era quem fazia a economia que se necessitava ― não de comida nem de trabalho, que fique claro como era clara a luz que iluminava o chão onde eu pisava. Esse eu que não era meu, era do filho da empregada. E como trabalhava! Geria uma artrite enquanto a poeira baixava, beliscava a tendinite enquanto a água escorria; quando a patroa telefonava fazia lista de recados, de obrigações, de mandatos, mas ninguém nunca lia a lista que a empregada escrevia e que dizia: "Devia ter estudado, que a vida não seria tão difícil!", mais nada. Vi a mãe optar por ser madrasta quando, no dia-a-dia ― e não sei se sabe que o fazia ―, apontava o filho da patroa e me comparava; deu muito certo dentro do incerto que era o pedido e que o dinheiro não pagava: quero disso aqui, quero daquilo ― e sabia que ganhava: para fazer parte do mundo não bastava, Drummond, ser Raimundo, mas fazer parte daquilo que a TV de hora em hora propagava. Vi a mãe se esconder de todo e qualquer vitimismo: o curso de corte-e-costura na casa Kolping e o xamanismo de gosto


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duvidoso em fundo de quintal de chão lodoso que dizia sempre e de novo: agora vai melhorar! (Certa vez, uma cigana. Certa vez, a mãe e a grana: deixa eu ler a tua mão? A mãe estendeu ― e a nota! ― rasgada ao meio e ao meio, junto duma premonição: ―Inda vais ter muito dinheiro!‖) Se de dinheiro se tratasse! As empregadas vivem um limbo de donos e donas de casa que escrevem em seus livros contas, receitas, piadas ― que viveram com as diaristas. Dou uma pista apenas de que o eufemismo mais que maltrata, ele esconde. Que o sorriso de dentes maciços se sobrepõe às cáries e pontes. Empregada, é este o ofício! Obrigada!, que se não fosse por isso, estaria limpando e cuidando de sua própria calçada. Que caras que me faziam eles: sabiam do futuro reles a que estava condenado; fingiam preocupação quando estavam era preocupados em não ter obrigação de se sentirem culpados. E estavam certos, eu vejo: sabia que o meu desejo por certo estaria enganado e que hora mais hora aceitaria meu lugar numa cadeira da segunda mesa; (a mãe me servia da mesma comida e enquanto o


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fazia pedia pelamordedeus, que eu permanecesse em silêncio para que não afetasse a digestão alheia, não insistisse em destruir a teia que fora construída com tanto custo: a empregada e o filho distantes, mesmo que cristianamente por perto. Amém.) Como não haveria revanche quando tratado com a avalanche cotidiana da separação? Aprender a partilhar o pão, mas o melhor pedaço é do outro e se puder, come pouco! ― ainda que, se sobrar, sobre pra ele, para o filho do patrão. Um momento sublime e que talvez complique mais que explique toda a minha satisfação: brincávamos e era numa dessas manhãs cinzentas, mal havíamos entrado nos anos noventa. Eu de brinquedo na mão, brinquedo que não era meu, claro que não. Vieram duas outras mãos e agarraram com tanta força que me desequilibrei, talvez até os dias de hoje. Esse caminho entre o corredor e a cozinha seria para sempre amaldiçoado, o sono já estava estragado quem sabe até ainda esses dias. Ele gritava, e enquanto gritava, ele ria: ―Tu só quer o meu brinquedo porque tua mãe não tem dinheiro pra comprar um igual!‖


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Foi com sete ou oito anos que soube da condição a que pressupunham que eu estava condenado. Não olhavam os próprios pés cheios de merda enquanto eu me perguntava de onde teria vindo tanto mal. E o alvoroço que se seguia, o constrangimento de minha mãe que observava tudo e sofria: ―Ele não quis dizer isso!‖, ―Onde será que ouviu?‖, ―Nem parece nosso filho!‖. Só quem viveu foi que viu. Como podiam ser tão frios aqueles dias? Vale dizer que nunca esquentou, até hoje. E é por isso que fica difícil acordar cedo nestes dias cinzas, nestes tempos nublados, os dedos estão congelados e o inverno ainda nem chegou. E daí se os futuros nos são alheios quando o tempo ainda é distante? E daí se chegávamos tão cedo para acordar aquelas pessoas para quem não éramos visitantes, para quem éramos passagem, que o café estivesse pronto às sete horas, não importava se chovesse ou se nevasse.


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Serão realmente as mesmas oportunidades? O patrão tinha uns olhos azuis que me acertavam em cheio. Eu desviava. E ocupava o menor espaço possível, sempre que dava, para evitar ser notado, acredito; para evitar ser percebido: o que já tinha para dizer não poderia ser ouvido ― e eram perguntas sinceras sobre que horas seriam aquelas, onde tínhamos ido parar, por que dera errado a nossa história e para quem, um dia, poderíamos vir a contar. Foi o servilismo bastardo vivido por tantos anos que me fez desassossegar da condição de suburbano que precisa trabalhar duro em nome de algum futuro que talvez não desse jeito de apagar tanto buraco no estômago, tanto disfarce incômodo: ―A gente precisa conversar‖ ― e era algo que o filho da empregada havia feito, era algo que a empregada não havia limpado direito, era o horário que precisava ser em dobro às terças e quintas-feiras, era o convite pra festa de aniversário onde chegávamos primeiro ― e sempre havia tanta coisa pra arrumar. Ser servil e ser ordeiro. Reclamar, só se for do governo que não reconhece nunca o duro que a gente dá. Reclamar, só se do


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portão pra fora: a gente trabalha feito uma escrava e ainda a patroa reclama, a casa limpa!, na troca da roupa de cama tu podias me ajudar! Claro que o emprego era bem vindo, mesmo que às vezes não houvesse domingo, mesmo que passássemos mais de mês habitando a casa do rico pra ele poder viajar: ―Toma cuidado e não quebra nada!‖. Era como estar morando numa casa, mas sem estar lá. Muitas opções não tinhas enquanto moça de periferia: a fábrica de segunda a segunda ou limpar apartamentos todos os dias. Isso naquele tempo em que tanto faz, tanto fazia. Quantas de ti te habitavam? Aquela tua obstinação medonha, teu cansaço que se tornava em gana, os teus sonhos que te tiravam o sono. Cadê? Os anos que passaram de outono a outono roubaram de ti aquele brio, o brilho nos olhos de quem tirita de frio, mas tem o coração quente. De qual calor? Foram todas as vassouradas, todos os panos de chão, todas águas na calçada, todo cloro no banheiro, todas receitas fritas, cozidas e assadas; todas manhãs de chuva e tu


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dos pés à cabeça molhada ―, deve ter sido tudo isso o que te tirou o vigor duns teus anos de juventude em que não cheguei a te saber. Onde ficamos nós, os teus, o que nunca te pagaram tão bem como o cheque de fim de mês com que pagavas nossas contas? A lógica tão germânica de trabalhar sempre mais que o necessário e passar os finais de semana protegendo a segunda-feira. A lógica transoceânica de levantar os braços em busca de salvação que não somente não chega como se promete sempre em vão. Nunca me tornei um dos teus méritos paridos: crescido, desisti de antemão de tornar competitivo para ser meu próprio campeão na corrida para me manter vivo: nem peão, nem patrão ― nem por isso bandido: um pouco poeta, um pouco veado, nem político nem bastardo, diferente em tudo de ti: não há Deus no altar das lembranças mais doídas, nem sempre faço questão de lembrar e faço desta, todos os dias, a minha vida. Compreensível, de toda forma: estranho é fugir à norma, certo é crer no correto, no silêncio e na absoluta falta de ciência.


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O frio do ar úmido dessa cidade úmida, o frio dos olhos secos de quem nunca teve a alma gelada por aquele nosso cotidiano repetitivamente iluminado por lâmpadas incandescentes de watts sempre muito baixos: a insistência deles nos nomes compostos (um nome, outro nome, o primeiro e o segundo sobrenomes) como para mostrar a estirpe a que pertenciam, as famílias importantes que já a ninguém mais importava de onde tivessem vindo. Quanto a nós, nossos nomes interessavam às prestações dos crediários e a ninguém mais. De nossa rotina, adivinhavam somente um esboço e não sei o quanto fomos de fato reais para cada um daqueles donos de casa, apartamento e escritório: a empregada junto do filho, a concessão tão cristã com que nos abraçavam e nos embalavam pelo tanto de horas pelas quais então depois te pagariam as notas sempre sujas do dinheiro que ganhavas limpando. O quanto limpaste de mofo e de desgosto que te encardiu a pele e até mesmo os meus sonhos de menino? Espelho: a gente se via naquela gente, ela e eu, e enxergávamos quase nada que nos dissesse respeito ― a nós mesmos, como eram estranhas aquelas rotinas sofisticadas, aqueles


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silêncios constrangedores quando o assunto era mais sério e aparecia a empregada. Éramos nós e eles, éramos nós e eles e quem. Fez mal, fez muito mal acreditar que bastava crer para chegar lá um dia, mãe. Onde é esse onde que se alcança depois de muito se esforçar? Eu não passava dum menino que até podia ser alegre, dependendo de onde se via. Mas era evidente que chegaria o dia em que tudo ficaria claro como o banheiro infestado de cloro que te queimava as narinas: havia aí mais do que agradecer a Deus por ter força para trabalhar, havia aí mais do que o olhar de agradecimento em falso por uma roupa do inverno passado que já não lhes cabia mais ― em falso, não falso, certamente que não, porque do jeito que o frio nos doía, qualquer trapo, qualquer blusa, edredom ou casaco, muito, mas muito obrigado! Só que não. Era uma questão de mão de obra e alguém com dinheiro de sobra para gastar: eram teus anos de menina jogados fora e um quase esquecer-se de ti por completo. Para trabalhar e para perder o que dinheiro algum te devolveria um dia, mãe.


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Percebi ainda muito cedo que a empregada muito se parecia com aquela escrava que ela se auto-proclamava quando lhe doíam as costas e os joelhos começavam a fritar: que futuro estava reservado para cada uma daquelas mulheres, daquelas mães já logo cedo, daquelas filhas de empregadas que dormiam pensando no príncipe que, chegaria o dia, lhes iria empregar. Que fim levamos? Ela se vestia humilde, quase nunca com roupa presenteada; essas ela lavava com carinho e repassava para quem tivesse ainda menos do que o pouco a que gente se acostumara. Domingo, na igreja, era outra; nos cafés de aniversário em dezembro era toda uma mulher presenteada pelos filhos, pelos amigos, pela dor de ser mulher e desgastada no exercício de seu ofício. Sorver diária e interminavelmente a ausência de poesia me fez anti-máquina capaz de atravessar os dias; os domingos em que era mais fácil receber para o café da tarde a loucura do que esperar por alguma calmaria: dia de dormir cedo era afinal todo dia, mas o domingo tinha em si o esquisito que é encerrar um ciclo e abrir as janelas para o início de outra tempestade, de outras ventanias.


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Dos domingos, recordo das sombras onde me escondia, dos programas de auditório, da sonolência e do silêncio que até mesmo os mais distantes ouviam, que ensurdeceu a nós mesmos e não conseguimos nos escutar. Aprendi bem e para sempre: o silêncio é um sinal de respeito que devemos a quem nos manda; o silêncio e os olhos baixos que miram o chão são o mínimo que podemos ofertar a quem nos emprega, pois demonstram respeito e atenção de nossa parte, da parte dos empregados: foi assim que a ela ensinaram e como a mim sucedeu. Uns recortes: decerto não compreendiam como vivíamos e nos aturávamos dentro daquela nossa casa de alvenaria e destroços que acumulamos com o passar dos dias, ao som do teu ranger de ossos. ―Que casinha tranquila‖, se dizia, mas eu sabia que ignoravam os silêncios, os domingos, as madrugadas mais frias e a calmaria que vinha quando também domingo e fazia sol, quando os morros do bairro distante reluziam enquanto dirigíamos nossos corações ao coração de Nosso Senhor, que aparentemente sempre deu de ombros.


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Quebra-cabeças: como assumir que não fui uma criança feliz e iludida dentro daquilo que comumente se considera a felicidade, o entorpecimento diante de tantos brinquedos e aventuras de toda sorte que, sabia, nunca viveria e era sempre tão custoso sentar para escutar? Como negar a felicidade prometida pelas passagens transemocionais se nos anais da tua vida acumularam-se nomes, sobrenomes, endereços e recordações que sempre fizeste questão de recordar. Eu não entendo como ― nem creio que ainda seja possível ― olhares atrás agradecida das rédeas que te domaram e limitaram a tua vida: tu mulher, tu-mãe, tu-esposa e tu-sofrida. Gostava

daquele

compromisso

cabisbaixo,

daquele

alheamento, dos presentes de Natal que a fábrica garantia (um carro do Jiban que se retorcia e logo arrumava), do retalho que vinha se o pai não se atrasava, se faltava nem um dia: gostava de ser criança no meio de crianças que se tornariam o adulto que eu jamais seria. Silêncio, lá na casa da patronada também havia, mas era um silêncio tranquilo: fosse por conta de um inventário mal resolvido, fosse por conta dum caso de pedofilia: o silêncio silenciava qualquer


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demonstração de agonia. Acontece que eu notava, eu estava lá. E apesar de nunca ter passado de somente o filho da empregada, eu anotava, eu omitia o que notava, tudo quanto fosse possível sentir, eu sentia. (Te digo que esta noite vai chover e vai ser noite de trovoada que ronda, em silêncio, e a cada raio caído dirás meu bom jesus de guape e encobrirás os espelhos com toalhas e dirás para irmos para tua cama, que não pode haver lugar mais seguro; a lia, o mano, tu e eu, enquanto o pai que se cuide na fábrica, tomara não chova muito por lá, ainda não acharam o corpo da menina que caiu no canal, ouviu dizer?, ainda não achamos o corpo de nossa avó no cemitério, ninguém sabe onde foi parar a sepultura depois daquela reforma, que gosto daria encher o túmulo de flores quando chegar finados, se é que finados vai chegar depois de tanta trovoada, de tanta angústia, de tanto) Fizeram leis pra te defender do abuso, ainda fazem leis e abusos, mas há algo que não se proíbe com um decreto, seja a bizarrice de uniformes alinhados, seja o desprezo imodesto de quem nunca tira tempo para saber da tua história, para te visitar no rincão onde moras, para simplesmente te saber para além do teu nome e do


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controle das tuas horas: ―Falta limpar aqui, se não brilhar não vais embora‖. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA faço saber que o CONGRESSO NACIONAL decreta e eu sanciono a lei: Art.1º Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família no âmbito residencial destas, aplica-se o disposto nesta lei. (...) Art. 7º, de minha autoria: faz saber que a humilhação diária permanece garantida, por mais direitos que hajam ou venham haver algum dia. Parágrafo único. A janela do quarto da empregada permanecerá permanentemente fechada: ali não haverá luz do dia nem possibilidade de se cogitar encontrar a saída. Brasília, 11 de dezembro de 1972 e Aquimesmo,19 de maio de


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2015. Emílio G. Médici e eu próprio, nesta ordem, sempre que for possível. Mas então, pra que lado se corre?, se para jesus ou para a sorte, que é do que mais necessita quem tem de driblar a morte e evitar adoecer ― porque quem fica em casa não come, mesmo que se invoque o santo nome, mesmo que aquele antigo vigor desapareça no envelhecer. Se a igreja e a esquerda se assemelham no discurso; se na igreja contam histórias e não as contam em russo! Porque é preciso ser estudado para compreender o que escreveram os ilustrados que já morreram e todas suas derivações. É tanta palavra vazia que ainda prefiro teus sermões: se algum dia, meu filho! Se algum dia puderes ajudar a um pobre, se puderes repartir o pão, se tiveres alguns trocados para ajudar o teu irmão ― eu compreendi quando trouxeste pra dentro de casa os rapazes do caminhão de lixo (se não era Natal era Ano Novo); trouxeste os que Casoy chamou de escória do povo para sentar à mesa conosco e todos comermos em paz. Eu era somente um rapaz, tão distante de me sentir latino-americano, mas


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pude compreender lá-se-vão-tantos-anos do que era capaz a empregada que no dia-a-dia lutava, e do que eu mesmo era capaz. Daí então a poesia, capaz de responder e de esconder cada revolta, capaz de olhar atrás da porta e revirar o que ali se escondia. Da mesma forma a música, da mesma forma a fotografia. E isso porque havia um hiato de tempo entre a escola e a nossa casa; havia ali um espaço onde ensinavam arte de graça!, mas mãe, tenho certeza que dentre aqueles meninos todos, entre todas aquelas meninas, somente eu era o filho da empregada. Algum amor pela literatura, poder trocar o vivido pelo ditode-outra-maneira; prefiro a janela aberta, escancarar a porta e deixar o vento entrar. Haverá sujeira, sim. Dará uma trabalheira colocar tudo no lugar ― mas pelo menos não terá sido água com cloro e desinfetante: a casa estará reluzente depois de tomar um banho de ar. Por isso esse meu desprezo por como me porto: claro que me importo, mas completamente ao contrário. Eu me lembro do cheiro dos perfumes fortes e baratos que se usavam para esconder o odor de tantos produtos de limpeza (o ônibus cheirava a isso todas aquelas manhãs); me lembro dum respeito ao sentar-se à mesa, dum


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excesso de bijuterias e da tristeza ― que era a forma de cada menina e de cada mulher dizer não à própria pobreza: um não-usar guardachuvas que até hoje me encanta; levar na bolsa o papel com que se limpará a lama dos calçados pisados para que não se possa dizer de onde viemos, para que ninguém suspeite para onde voltaremos no anoitar. Sozinha, ela caminha com a bolsa a tiracolo, protegida: ali está seu ordenado. Franzina, gasta o dia limpando o que é dos outros e volta pra casa com o cabelo seboso e o pensamento emaranhado: o que fizemos para merecermos tão pouco? Apertavas tua mão na minha enquanto andávamos por ruas hoje desconhecidas. Dói o estômago pensar em refazer os trajetos daqueles anos. Por isso meu mapa é curto, além de plano: há uma lembrança escondida logo após a próxima esquina, em alguma bifurcação, e é preciso saber escolher pra que lado. Sei onde vive cada um dos meus fantasmas. Relembro de cor e salteado o endereço onde está localizada cada casa de patrão. As tuas feridas ou uma ferida só em que se tornou a tua vida?


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Um reclame baixinho de que podia ter havido uma carona depois do tanto que havia chovido durante toda aquela semana. Eles não sabiam como era difícil carregar as sacolas, eles não sabiam como era preciso negar uma esmola para se mostrar reto, quando na verdade se estava indeciso; se doíam as costas, se doíam os braços, as pernas ou o coração, era preciso estar bem para ir pra casa e retornar no dia seguinte, sem sequela nem reclamação. Da janela se avistava outra janela e outra, mais outra, ainda outra depois dela e em todas elas, tu bem sabes, haviam marcas de mão. Entrei na contramão quando me prometi não habitar o outro mundo, aquele de ares servis ― era necessário escolher de que lado ficar, era necessário correr para não ter nunca a oportunidade de explorar e assim me fiz. Quem dera!, eu disse. ―Quem dera esta moça se liberte, tenha força para sair deste rumo de serventia incalculada‖. Isso tantos anos atrás, quando o mundo era ainda mais confuso. Ela, filha de empregada também, íamos juntos na matina: sorria mais do que eu. Quando a vi depois, num desses descaminhos, já não me reconhecia:


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tinha a cara toda marcada pelas rugas e por desenganos que acometem quem se perdeu do rumo que, um dia, havia acreditado poder ser o seu. Eu me dizia: não serei vítima da minha vida. Eu não sabia. Eu não. Observava a mobília lustrada e nunca reconhecia a poeira das estradas em que eu seguia. Habitávamos dois mundos: o dos meninos de apartamento, do não-põe-o-pé-pra-fora, de poucas perdas e muitas vitórias; e habitávamos bem aqui, onde reconhecem-se as senhoras com seus meninos que, se espera, encontrem por seus destinos um ofício que lhes assegure, ao qual se agarrem com as duas mãos por quinze, vinte, trinta anos e que seja mais do que somente um ganha-pão: que seja trabalho honesto e que dignifique o homem ― e que este seja o filho que deu mais certo. Deus nos ajude! E ajude a vendedora de Avon que nos vende, a prestação, os perfumes que lhe engordam a situação e permitem que todos se aturem por perto. Onde ficou o amor? De onde a tua solidão? Que frase te ilustrará a vida e que palavras serão ditas quando estiveres num caixão?


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― Tão honesta e comprometida! ― Sempre adiantada na chegada e sempre atrasada na partida! ― Fazia boa comida, mas não sabia limpar o chão! Não? Eu ainda não sei se vale a pena desconfiar ou se entregar à crença do incerto, mas sei dos pequenos desastres que arrasam os incautos, sei de mulheres que não souberam usar salto alto porque não largavam da segurança dos chinelos de dedo. Vi e vejo, nas manhãs, o medo do que está por vir: se muita chuva, se crise entre Estados Unidos e Rússia, se o mau humor do patrão não infestará de bile e merda uma manhã que se anuncia sonolenta e sã: quando o bom dia não é respondido, quando acabou a banana caturra, não engraxaste direito os sapatos, sua burra. Histórias

de

consultórios

médicos

nos

hospitais

de

atendimento público contam que a vida só pode dar certo, já que deixamos o interior e viemos aqui pra perto do progresso e do pastor, embora não saibas, irmã, que tua alma não repousará enquanto teu corpo levar esta dor.


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Foi de tanto que te vi competindo contigo que me nego toda competição; foi por viver tua entrega à realidade mais doída que tenho quase sempre os dois pés fora do chão. Aqui habito. E renego aquele passado infame de olhos baixos e silêncio sepulcral; o rádio que falava das notícias sempre antigas desta Blumenau ocupada com segredos e com mentiras aos quais já ninguém dava a devida importância naqueles dias. Duma vida de pés descalços, a empregada refaz suas memórias de órfã em busca de pai e de mãe: ―Aquela patroa era como uma mãe pra mim!‖ Não era. Ou seria uma dessas mães que se constrangem de embarcar num mesmo avião em que também voa a empregada, as duas de férias; ou uma mãe que segura o nervosismo embaixo da roupa cara quando a empregada resolve reclamar que só não tem direito ao saldo do PIS porque não lhe foi depositado o valor do FGTS, agora a senhora vai ter de pagar mais um salário porque se não posso acionar o sindicato. Gente pobre e folgada!


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De tantas mães, cadê uma delas que te massageie agora as costas, essa massa de ossos e carne e lembranças carcomidas? Cadê uma mãe que estacione o carro diante da tua casa e te pergunte: ―Como vai, minha filha?‖. Mentira! Duma relação de patroa e empregada, além do empréstimo (sem devolução) da tua vida (muito mal remunerada), resta um antigo vínculo empregatício. [Porém, as políticas igualitárias (que nunca se sabe se reais ou realmente muito bem midiatizadas) sugerem que o direito de resposta seja possibilitado, portanto]: DIREITO DE RESPOSTA AO FILHO DA EMPREGADA Não tem muito a ver com a realidade. Sempre tratamos muito bem a tua mãe e deveríamos merecer algum respeito por isso. De qualquer forma, o mundo se organiza deste jeito e não fomos nós que criamos a pobreza.


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E tudo que a gente podia, a gente ajudava. Pagávamos, inclusive, melhor que outros patrões, de outras empregadas que a gente conhecia. O fato de ela ter envelhecido: até tentamos continuar, mas ela sentia muita dor e reclamava todo tempo disso. As pessoas notavam. Falando nisso, como ela está? RESPOSTA À RESPOSTA ENSAIADA Agradecemos o bom tratamento, o respeito ― muito embora o preconceito e o perfeito vazio sempre tenham se mostrado bem diante de meus pés. Ótima observação. E quem, porventura, trate de organizar diferente o mundo deve ser tratado como criminoso. Ou será que não? Que outros? E que é pagar bem? Existe, por acaso, uma tabela onde se indique o justo? E o injusto?


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Se não para a velhice, para onde teria ido: depois de tanta subserviência, depois de tudo, depois de tantas manhãs cinzentas, o mais normal era ter envelhecido. Mal, não muito bem; se arrastando, eu diria. Mas quem, se não vocês, vai bem hoje em dia? À empregada nada foi perguntado ― e também não responderia: encontrava-se enfadada por suas lembranças não-idas, sua vida desvivida, por suas horas mal pagas. Onde foi que a esqueci? Talvez exatamente onde ela tenha se esquecido de si em busca do melhor atendimento (o sorriso enfurecido em cada madrugada ― ou no silêncio infalível de tudo que um dia quis ter dito mas, sóbria [sua maior virtude], manteve-se calada). Recordação: Somos retrato numa parede antiga: um passo em falso e retornamos à armadilha de uns outros anos, de voltarmos a ser quem já não somos; fomos para nunca mais.


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Um caminho de terra ou de asfalto, dependendo da década há o permanente e o inesperado; em cima do morro a escola, a igreja, o salão de baile e o cemitério onde já estão alguns, onde repousaremos todos, lado a lado, de braços dados, me dá tua mão? (Uns olhos azuis na pele marcada pela vida, pelo sol de cada dia, ela nos recebia com seu vestido de renda e um boné do candidato a vereador ou deputado ou da melhor oficina mecânica do estado e fazia reverência sempre que se referia a Deus, Nosso Senhor, muito obrigada, Carminha, ela dizia, e recebia a sacola de roupa e carregava a sacola de comida, depois provava um sapato roto e sorria como se fosse novo, mas andava mesmo era de pé no chão). Se éramos pobres — eufemismo: humildes — inda assim arrancávamos sismos dum ou outro coração, sem contar que era aqui dentro o terremoto mais profundo. Era dentro, embora não se possa dizer que fora não. Os silêncios se fazem de tormentos e talvez somente entenda quem já se viu encarcerado no ambíguo movimento em que a cabeça diz, mas a língua está parada. Coitada? Criou três filhos, divorciada,


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chorando o pai falecido, chorando a vida vivida entre o frio das manhãs de inverno e a volta, já tarde, pra casa. As lembranças de farinha com café preto fizeram-na forte, porém desconcentrada. E conta histórias de há cinquenta anos como se tivessem se passado semana-e-meia passada. Como ela, tantas mulheres; como ela, há meninas, as miniempregadas, que não se pensa que vida poderiam ter vivido, em que vida deveriam ter nascido para nunca passarem por isso: um descaminho necessário, um trem descarrilado numa serra prateada onde nascem outros filhos, em vagões de veludo e brilho, em mansões quase sempre supérfluas e desencontradas. Um inventário de pequenos danos, de pequenos erros, valeria a pena, mãe? Reclamar que dói a alma e dói o corpo cada vez que vem a lembrança do teu corpo torto, da tua coluna vertebral descentralizada, que carregou como pôde a si mesma, a nós, a todos nós, filhos de empregada? Um inventário de quê, pra quem, reclamar como se não fosse teu sacrifício: estaríamos ainda ali, menino, procurando um fiapo de luz pelo caminho que nos permitisse uma vida iluminada.


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A vida é foda, mãe. Se não os recortes, as lembranças. Se não a memória que cai do alto, rodopia e dança pra gente lembrar com nostalgia de um tempo que não era bom, afinal quando foi bom?,um tempo em que não dormias mas também não despertavas — não se podia dizer morta porque lutava como podia, não se podia dizer viva porque não abria mão da jornada. Uma jornada que doía. E que ainda dói sempre que vejo os meninos de tênis velhos, de calças esfiapadas, cabelos em desalinho e penso que eram eu esses meninos, como queria que fôssemos mais humildes diante da vida, mais pobres, mais francos: habitávamos um limite em que não ficava claro de que lado realmente estávamos. Por certo, dávamos o melhor que podíamos para não sermos nós mesmos, para nos afastarmos daquilo que carregávamos dentro: eu vestia roupas bonitas e meus tênis eram bonitos e meu cabelo era bonito, eu era um menino feliz. Mas nunca me perguntaram como era ser um menino humilde que lutava para conseguir. Eu não vou mais tentar conseguir, mãe. Eu desisto em nome da gente! Eu desisto em nome de quem faz de conta que não veio do mesmo lugar que a gente. Eu desisto em nome de quem faz de conta que a vida foi outra, que foi outro o passado, que foge pra todos os lados quando a lembrança bate na porta. Eu desisto em


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nome duma lembrança de escola pública, de hospital público, de vida pública quando com a porta aberta, quando com a cortina arreganhada, o ônibus, a janela. Eu lembro como se não fosse: uma casa cheia de pulgas, uma casa de algodão-doce que não sobreviveria ao vento. Eu me lembro de um dodginho marrom. Tio Maneca, Tio Quintino, Tio Arno, Tio Quido, Tia Maria, Tia Maurina, Tio Lorinho, Tia Rosa, Tio Evaldo, Tio João. Eu queria me chamar João e ter os teus cabelos pretos de índio, teus olhos antigos, tua pele de beira de praia que não envelhece mesmo quando a tarde chega, mesmo quando a vida tarda. João em nome dos campesinos que comiam pouco, comiam farinha no café e no almoço, farinha que vocês mesmos produziam; carne pouca, carne quase nunca; algodão colhido no pátio pra coser as próprias roupas; o chão de terra em que punhas teus pés de menina no frio da estação gelada. Quem és tu, mãe? Onde habita aquela menina que corria na beira da estrada em busca do colo certeiro do pai? Cadê teu pai?


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A gente faz de conta que sempre soube, a gente finge que sempre sabe quando passam a perna na gente. Aquele olhar desconfiado de quem levantou e caiu tantas vezes. Era o mínimo, se diziam, que limpasses a casa, que cuidasses dos filhos, que encerasses o chão e escovasses o ladrilho em troca dum colchão, em troca dum abrigo. E não fizeram somente contigo: fazem ainda todos os dias com todas mulheres e meninas que não tem onde dormir, que não tem como fugir da condição de pobres, meninas e mulheres pobres. Se eu tenho uma pergunta, mais que tantas perguntas, ou se tenho uma resposta, que já me bastam as perguntas, o que quero saber é o que pode ter havido com todas as meninas pobres, com todas as mulheres que foram pobres e se diz no noticiário que mudaram de vida, que cresceram pra cima, que agora usam saltomais-que-alto, se tem ali consigo suas próprias empregadas, se não falam com elas com a mesma soberba, se não se escondem atrás duma soleira a espionar se não roubam nada, se capricham na limpeza, se a gente tira os olhos essa gente pobre, essa gente preta, nunca sabemos o que vai fazer, são assim mesmo, afinal, por isso que chafurdam na miséria, na ignorância e na pobreza.


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Quantas vezes terá de ser ouvido por quem receia ser humilhado que o agressor é obrigado, dado seu status, dado seu estilo, que também já esteve ali, infeliz e magoado, mas que subiu por todos os lados desse poço sem fundo e antigo que parece ser o sucesso, que parece ser o caminho para que deixem de ser empregadas humilhadas e passem a ser patroa que destila mágoas com a pobre coitada que não entende muito bem de porcelana, que não sabe como fazer luzir a prata, que desencanta porque a dor que sente nas costas já lhe perturba a fala, entorpece as ancas, esconde por trás de si aquele sorriso de empregada solícita que aguenta de tudo, mesmo que a dor se sobreponha quando se abaixa, quando se levanta. Mas hein? Que memória têm? Dessas histórias de luta e vitória, tenho já livros escritos na memória: lutei e cresci, eles dizem; senhora de bem, elas reclamam; há que lutar se quer ter algo, há que esmagar o menor e o mais fraco em troca dessa soberania: quem manda aqui sou eu, essa é a minha casa, essa é a minha cozinha!,e a empregada que pensa na sua casa, na sua cozinha, em tudo quanto poderia fazer com essa dor nas espaldas, com seus próprios abortos — a menina que mata a menina


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e que então é mulher, não olha pra trás e caminha —, a empregada olha fixo nos olhos de quem manda e pensa numa vida outra, num discurso que não seja de ladainhas tão amargas, tão mesquinhas. ―Eu cheguei aqui porque consegui, mas tu não hás de chegar. Tenho nome e sobrenome, e tu, que me tens pra dar? Lugar de pobre é na garagem, no quarto escuro e na cozinha‖. Então que é preciso sabotar, é preciso esconder da visita, proibir de sair e estudar, manter na rédea curta essa gentinha — porque mesmo o mal que não cometeram, por ele têm que pagar. Como sair daqui? O texto liberta o que já há muito deveria ter sido dito e não encontrou brecha. A palavra, tomara que fira como flecha, tomara que sirva de fachada para um sorriso amarelo numa cara amarelada, que diga ―Não é comigo!‖. É contigo, é comigo, é com todas as manhãs ensanguentadas em que a mulher que não tem onde deixar os filhos esquece por uns momentos os seus para viver na família emprestada, a família da patroa, a família-desfamília que humilha o tanto que ama, que engana e que destrata. ―Separei aqui umas roupinhas pra ti e pros teus meninos. Separei o resto do almoço. Separei ali as crianças: as tuas estão


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destinadas a viver pra servir os meus filhos, que serão os teus novos patrões, que por sua vez terão os seus filhos e todos, todos os meus, serão servidos por ti e pelos que vierem depois de ti: tua estirpe está condenada!‖. A servir? Ela ainda não sabia o quão enganada estava.


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Posfácio Em 2015, ano em que foi escrito, O filho da empregada encontrou eco e disposição em outras várias manifestações. Pergunto-me, agora, o que terá havido para que, afinal, se tenha levado em conta o tema do emprego doméstico por aí afora. Depois de Domésticas, o filme, de Fernando Meirelles (2001), pouco ou quase nada se produziu no que fugisse do mais do mesmo midiático encabeçado pela Rede Globo e afins, onde as empregadas ou fazem rir ou não passam de males necessários dentro das casas de classe média. Talvez somente Chance: los trapos sucios se lavanen casa, filme panamenho dirigido por Abner Benaim (2010) e La Nana, filme chileno de Sebastián Silva (2013), tenham avançado na discussão da situação em que se encontram empregadas domésticas em terreno latino-americano. Isso até 2015. Neste ano, foram lançados dois documentos importantes da situação de empregadas e empregados domésticos em solo brasileiro. O primeiro de que tive notícia foi o videoclipe Boa Esperança (2015), de Kátia Lund e João Wainer sobre rap-tema de Emicida. Quando Odirlei me enviou o link do vídeo, foi para reforçar que O filho da empregada não estava sozinho. Percebi que


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realmente não e continuei sua escrita. Apesar das diversas pausas, dos parênteses, das reticências e hiatos, chegamos a assistir Que horas ela volta, filme de Anna Muylaert (2015), com Regina Casé representando o conflito entre sua vida de empregada e de mãe. Este relato encontrou, portanto, seu espelho. Narcisos que somos todos, houve dúvidas quanto ao que poderia ser escrito e o que deveria ser lido posteriormente. Com relatos tão fortes como os de Meirelles, Silva, Benaim, Lund, Wainer e Muylaert, talvez que este opúsculo não necessitasse mais ser lançado ou não encontrasse mais seus porquês. Não fosse o natal de 2015 e a fotografia reverberada de Regina Casé, a empregada de Que horas ela volta?,em noite onde, supõe-se por aqui, todos deveriam estar regozijando-se da companhia de suas famílias, aparecer posando com cinco de suas empregadas domésticas, talvez que O filho da empregada permanecesse emperrado à espera de momento melhor, mais silencioso em relação ao tema. No entanto, aqui está. Regina Casé foi uma ótima empregada no filme, que é sim um retrato oportuno de como a exploração do trabalho doméstico se dá sob moldes antiquados e escravistas, muitas vezes. Mas Regina Casé não é empregada; ao contrário, é


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servida pelas que contrata e que, se viu, não recebem dispensa nem em noite de natal. Em que situação de aceitação vivem? Em que situação de exploração vivem milhares de meninas e mulheres que, sem oportunidade, se entregam à tutela de quem lhes explora? Não fosse a fotografia de Casé, talvez que esta publicação prescindisse de significado. Bizarro, sem dúvida, mas fica a ela o agradecimento por fazer gritar aos nossos olhos o quanto de hipocrisia nos acostumamos a ver e, sem nem pensar, nos acostumamos a repetir.

Marcelo Labes Janeiro de 2016.


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