O POETA PERIFÉRICO
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MARCELO LABES
O POETA PERIFÉRICO
EDIÇÃO DO AUTOR 2018 2
NÃO TEM EDITORA nem marca registrada portanto não adianta buscar endereço sito à Rua Que Não Há, no. Inexistente – Bairro, CEP etc.
O autor é Marcelo Labes mas sem ISBN nem ficha catalográfica CDD e afins.
Não há Conselho Editorial tampouco Editor a quem puxar o saco
Capa também não há Por isso não há contracapa Era isso, vamos adiante.
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Glossário: Centro – onde as regras são ditadas seguidas temperadas mastigadas deglutidas ruminadas e expelidas Poeta Central – sujeito muito culto perfumado antenado bem-vestido bem-calçado estudado e divertido Periferia – o oposto Poeta Periférico – tal e qual
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parte hum
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prólogo Um epitáfio que dissesse : jaz aqui a poesia brasileira acreditaríamos, certamente órfãos que somos do cânone (who? HAHAHAHAHAHAH ) por isso andamos emagrecidos pisando a esmo sobre palavras que não dominaremos por nos faltar teoria epistemologia e alimento
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o poeta central a vida na cidade, filhinho desviando de mendigo, filhinho e tendo de ter saco para poesia marginal [do alto dessa estante quarenta séculos vos contemplam] o fantasma do poeta o fantasma da viúva do poeta café espresso e água-e-sal [por uma questão de direitos autorais alertamos que a próxima edição será anulada, pois] feijão com arroz e saladinha batata frita e carne picadinha quinze reais na esquina da biblioteca 8
mário de andrade, sp SP – sampaulo mete no GPS para ver onde vai dar a vida? café com pão café com pão café com pão Prezado Senhor, acreditamos que por motivo de esquecimento, alertamos para o vencimento do boleto programado para o dia 5 do mês retrasado. Prezado Senhor, não nos obrigue a tratá-lo como um coitado. Prezado Senhor, eu já não disse ao senhor que não sou senão poeta? Atenciosamente e na esperança sempre na esperança da recompensa 9
vernissage/lançamento : o poeta central bebe champagne cerveja caipirinha o poeta central bebe vermute bebe cinzano bebe campari o poeta central bebe cicuta acende um cigarro e diz escuta que eu tenho tanto pra te falar fim de noite e o poeta central bebe mijo de mendigo poção fÊtida / composto rico para fazer poesia social 10
centro/cetro : a poesia real imperial sacerdotal e maldita a poesia surrealista acadêmica sistêmica encomendada a poesia de rua falada colada em muros em postes nas costas a poesia fácil e simples das músicas que a empregada assobia [o poeta toma o elevador dirige-se ao subsolo aciona a ignição do carro e sorri: pobre gente que não sabe, nunca saberá] o poeta central escreve um poema para benedita ou carminha ou inácia ou ana ou vilma ou r 11
disse o senhor: vinde a mim os pobres os feridos os falidos os fodidos vinde a mim vós que estais angustiados endividados vinde a mim vós que não sabeis que sois poetas [menores pequeninos insignificantes vinde a mim as criancinhas vinde a mim é só passar pela recepção puxar a senha acompanhar no monitor seu código alfanumérico [24 horas de senhor glória glória aleluia 24 horas de senhor ilumina-se a terra aleluia] o senhor não vai bem, criancinha o senhor está com gases pffffffffffffffffffffff
/desculpa, meu benzinho 12
não cabe no papel a nossa felicidade em receber para este evento para esta mesa para este simpósio para esta festa para este colóquio para este debate para esta leitura para este encontro para para para [terminada a leitura da biografia do autor a plateia dividia-se entre admiradores ainda mais [admirados desconhecedores da obra, mas potencialmente [curiosos ansiosos em busca do significado de tantas siglas] não cabe no papel a curiosidade genealógica deste humilde pesquisador em descobrir quem é o pai e quem é a mãe quem são os irmãos e os primos quem as avós bisavós tetravós do ilustre autor nacional qual seu nome? olhemo-nos no espelho 13
o poeta periférico estranha figura cicatrizada nos rincões do país ainda deslumbra-se com a paisagem paulistana com os acidentes geográficos cariocas mas bah!, eles dizem, querendo dizer ôxe! eles dizem querendo dizer arre! eles dizem querendo dizer ave caesar – entretanto o poema desvanece procuramos emprego qualquer emprego procuramos ocupação qualquer ocupação procuramos espaço OI? hahahahaha qualquer espaço procuramos ajuda para fazer vazar a produção literária deste nosso hemisfério mistérios à parte (...) os poetas periféricos procuramos emprego aceitamos inclusive servir café aos poetas estes sim, poetas estes sim 14
o poeta mundial o poeta continental o poeta mesorregional o poeta nacional o poeta estadual o poeta municipal o poeta distrital e ainda o poeta do bairro o poeta da rua o poeta do prédio o poeta do apartamento o poeta do banheiro saíram de férias / greve não, me passa o azeite? / restou à literatura nacional conviver com seus espectros resistir à sua falta repensar sob sua sombra – absolutamente nada mudou, diziam os incautos as manhãs permanecem as mesmas o inverno ainda as horas compridas o cenário de guerra na televisão e a política a política a política 15
edital/temos vagas necessita-se escritor redator revisor e outros afins para adular bajular lambuzar o nosso ilustre requisitos básicos: fluência metalinguística & boa [aparência não serão aceitos currículos sem fotos adicional noturno + VT + VA + plano odontológico (que sorriso amarelo, bebê) Prezado Senhor, vimos que por ignorância por vaidade, quem sabe por irritação ou despeito o senhor mandou seu CV completamente cagado (sentimos o cheiro, obrigado) e temos para lhe dizer que o senhor está contratado! 16
a academia engoliu poetas ilustres e ignorados – imenso buraco deixado no chão a academia faz da poesia seu quintal sua fazenda seu milharal e sobrevoa como num aeroplano com acrobacias de pesticida dizem que antigamente dizem que / de novo: dizem que antigamente dizem que / continuando: o centro é o onde e o quando da poesia brasileira o onde e o quando cadê meu relógio 17
em 1815 ou em 1823 ou em 1854 ou em 1877 ou em 1881 ou em 1896 ou em 1902 ou em 1917 ou em 1922 (!!!) ou em 1935 ou em 1946 ou em 1950 ou em 1954 ou em 1959 ou em 1961 ou em 1964 ou em 1967 ou em 1973 ou em 1988 ou em 1995 ou em 2004 ou em 2018 18
carlos já disse meu amigo, não te cites amanhã é terça e depois de amanhã a gente vai se danar vejamos, porém, o tamanho da oferta meu amigo, o mundo é tão grande que deve caber nós dois nossos egos e o de quem mais a gente chamar vi na revista, meu amigo a questão é clara e límpida a poesia brasileira mora dentro da minha barriga (isso são fezes isso é um ultrassom do teu intestino) – carlos já disse, não prestas 19
ouvi dizer de fonte segura que o tio do primo do irmão daquela anda saindo com um povo esquisito [a poesia tem cor e nome, minha senhora a poesia tem cor e nome e classe social a poesia tem cor e nome classe e ranço a poesia tem lattes largo a poesia tem os olhos fechados – eu não disse ao senhor que não sei quem sou?/ a poesia foi morta à faca (era de outro, era de prata) e saiu no jornal: noticiamos com profundo pesar a morte de fulana que fará muita falta] – eu não disse ao senhor que não sou senão atleta? a academia maltrata a dita ou a ama mais pela falta que se supõe ela faria? 20
cruz e sousa o poeta negro morreu pobre e negro e assim foi e será lembrado num escritório muito limpo um pesquisador muito importante relembra a história o mair simbolista que a terra já viu [por isso, marcos, aquela lágrima por isso aquele abraço por isso, marcos, o mundo vai mal e te maltrata] cruz e sousa o poeta negro morreu pobre e negro e assim foi enterrado [eles tentam enquadrar o mundo e não veem – eles não veem eles não sabem – nem saberão qual dos buracos é mais em baixo] 21
– todos de pé! (de toga, ele entra de toga – não, ele entra de armadura, espada e escudo – não, ele entra voando – não, ele aparece de susto) a grande questão maior de todas as questões que deve tomar nossa maior atenção é (silêncio na plateia) incomodado pelo silêncio, o intelectual volta ao voo incomodado pela presença do negro o intelectual cessa o voo incomodado pela postura do negro o intelectual até ameaça falar / volta atrás e declara – eu sou a maior referência no assunto (pausa para pesquisar, silêncio na plateia) é verdade, é sim [por isso, marcos, por isso] 22
vê?, é preciso lamber muita bota lamber muita bola engolir muito osso atravessado tenho cá minhas pulgas minhas feridas minhas verrugas sifilíticas e tenho a palavra – completamente adoentada – ainda respira, coitadinha eu gosto é dos fogos de artifício eu gosto é dos doces de mãezinha é carnaval, é carnaval é o bloco da literatura apocalíptica
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lua lua lua lua (cânone ou quase / aspirante a planeta) lua lua lua lua houston, we got a problem
poesia fora do cânone outra poesia outros cânones outros ídolos outras leituras asteroides meteoros lixo espacial quando muito cometas 24
o poeta central não se difere do poeta periférico por quanto dinheiro tenha na [carteira mas no olhar sim no olhar ou na falta dele (miopia astigmatismo hipermetropia daltonismo glaucoma q?) o poeta periférico por sua vez compreende que o espaço é pouco que o mundo é grande e os livros os livros custam tão caro (do alto destas estantes quarenta séculos vos sustentam diz o poeta periférico ao poeta central na praça central de uma cidade qualquer do país) 25
um dia quem sabe se compreenda o continente – brasília, um exagero modernista onde o centro – central do brasileira onde o centro – o cerrado onde o centro – downtown [santa catarina é um estado de interiores sem norte/nordeste sem eira nem beira e a ilha as ilhas somos todos] um dia quem sabe se compreenda o limite entre aqui/acolá entre para dentro do deslimite tome um café, escritor sirva-se desse croissant o poeta lhe servirá o almoço e massageará seus pés [o poeta periférico, diga-se de passagem] acabou a primeira parte. 26
parte dois 27
tinha a bolsa pesada de livros metrô linha verde sentido vila prudente sentido tamanduateí sentido santo andré – distopia, meus caros, é a paisagem tinha a bolsa pesada de livros não vendidos de contas a serem pagas de enganos de engôdos tinha a barriga cheia do pf a cabeça cheia de [poesia então o beat ecoa entre as pessoas e suas faces [cansadas e o rapaz se apresenta negro como cruz e sousa como marcos como marinalva e aproveita a batida para rimar livre para mandar a letra para pedir trocado enquanto eu o poeta das mil cópias o poeta das duas mil duas e quinhentas conforme a última medição tiro da carteira uma nota de dois reais e hesito [a hesitação, meus caros, está na paisagem] 28
dou-lhe o trocado como quem se desculpa entrego-lhe o livro como quem se desculpa [a literatura agradece todo senão todo sermão toda palavraria] – e esse poema de metrô que nunca entrará numa livraria a não ser com estranheza? – a esquisitice dessa gente não caberá nunca no que a academia prejulga como obra de arte? obra literária? obra lírica? abaixo os olhos enquanto o rapaz rima trapaça com política – eu queria dizer com abraço mas caiu tão bem – e se eu tivesse dito meu amigo vamos saudar o messias vamos cantar as maravilhas do nepotismo acabaram de publicar em livro que 29
o messianismo, meu amigo, há de nos salvar – mesmo que os pobres sejam ainda [pobres mesmo que os dias as manhãs a azia meu amigo, poesia é coisa de trem embora a burguesia embora a burguesia embora a - mém, seja louvado o deus dos funcionários públicos e dos advogados
(…)
santo andré e seus portais a paisagem de filme apocalíptico a igrejinha a pracinha o calçamento histórico o quixote e o escudeiro vou-me embora para casa tomar banho lavar a asa caí do céu – eu, poeta periférico e desempregado caí do céu – meus amigos, a poesia é um compadrio [desgraçado e saí todo quebrado 30
como num zoológico mas as entradas são gratuitas – excursão de escola (os jovens já não dão atenção – os universitários também não) então quem responderá à cruel dúvida – animal faminto – de se a questão tem ou não solução tem ou não saída – esse buraco sem luz e tão úmido – é o itajaí ou o anhamgabaú ou a ba(h)ía – pescadores alertam para o marulho para a ressaca para o rebojo – mas as pérolas – o senhor nos apresente sua credencial, o senhor apresente sua credencial de poeta filiado ao partido dos poetas filiados a partidos para então – quantos centros formam um centro formam um todo? quantos avessos formam um avesso formam o novo? qual a distância da palavra povo para aquilo aqueles / o povo mesmo de verdade sem enganação sem metáfora ou hermetismo ou 31
o pai de pedro é sucateiro ele me diz entre um gole e outro do cigarro como teu pai – o meu – é operário se acabar a sucata do mundo, não sei que é dele pedro trabalha num banco pedro milita no partido socialista pedro escreve poesia – e ele sabe de poesia pedro mora na cohab 2 em carapicuíba a cohab do pagode, ele afirma e a lanchonete não é lanchonete é a padaria carolina pedro, eu não sabia, tem um coração de tamanho que nenhuma teoria nenhuma nenhuma nenh pedro sabe das pessoas e das agruras da vida das distâncias entre o centro e a periferia – a verdadeira periferia, diriam etimologistas se tivessem sido consultados. não foram. então : os olhos de pedro, de joaquim, de blanco, de rafael, de ian, de paulo, de bruno o olhar de nathalia mãe de tereza paira sobre todos nós 32
no jardim paulista criadas empurram crianças sobre rodas acompanhadas por suas patroas de pele muito alva e olhar ordenador ali, na alameda casa branca, 815 carlos marighella foi assassinado por sérgio paranhos fleury (beija o anel do papa, beija!) em novembro de 1969 no jardim paulista é possível tomar um cafezinho a 2,50 o melhor preço da cidade até agora
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no alto da ladeira, na avenida paulista, centenas de pessoas se ocupam de atravessar a rua no momento em que o semรกforo lhes aponta tal possibilidade.
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o taxista não sabia onde a universidade se escondia [pegadas analisadas o sotaque francês tudo indica que o o nada – daniela passou no vestibular daniela, isso tem que pagar? benzadeus, minha filha daniela estuda idiomas filha da mulher-a-dias daniela precisa cantar para que sua voz seja ouvida em cada gabinete onde se decide o que é – ou não – poesia em cada parada de ônibus em toda cidade vazia
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[o indivĂduo foi diluĂdo por essa fila espessa] daniela tem sim muita pressa de se fazer na vida [daniela precisa cantar]
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aos poetas corresponde a imensa responsabilidade de olhar o mundo e traduzi-lo [com quais dicionários, meu amigo leia a bibliografia recomendada leia a ancestralidade mumificada meu amigo, poesia é para iniciados mestrados doutorados castrados] não haverá nisso ironia? escrever poesia para o povo que está no frio e na chuva escrever poesia de novo como quem se maquia e se arruma para um banquete que de noivado? a poesia escrita de dentro dum carro blindado tem lá o direito de se querer poesia de se querer poesia d?
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chega ao fim esse desmonte esse barranco essa [tristeza nalgum lugar, rafael, somos meninos e não há [surpresa nisso de querer-se vivo querer-se homem forte altivo quanta miséria há no patamar da escadaria que se sobe sem olhar pra trás que se desce como se mais um dia que se esquece como se fosse nunca se fosse nada se nunca fosse chega ao fim essa angústia imposta por esse limite resposta que não admite não como resposta resposta que abre portas para sempre – engoliremos as chaves engoliremos as portas chega ao fim, rafael, a caminhada [eu não te disse que o caminho antigo poderia ter sido encurtado? quarenta anos caminhando para o eterno lado errado – quem desenhou os mapas?] 38
ponhamos assim: a poesia está viva seja acadêmica orgânica intuitiva mecânica ou quem sabe apenas uma luz específica sobre o dia uma forma de olhar nos olhos uma sombra uma delicadeza uma pequena delicadinha? ponhamos assim: eles por eles e seus privilégios seus candidatos seus sonhos de nobreza no alto clero literário desse país que não lê ou se lê o faz errado ou se lê é porque o adversário ou se lê é porque não sabe ler direitos ponhamos assim: como diz carlos – eu não disse ao senhor que não sou senão um poeta desempregado? 39
eles que abaixem os olhos em negação eles que se engalfinhem se mordam eles que se saciem com o pouco que lhes cabe – ouve a rua, rafael ouve a rua [eles nos dirão bom dia se nos virem pedindo trocado? nos diriam bom dia se não estivéssemos perfumados com as cores da noite? com o pisar dos dias?] digo pra mim: não tenho nada que me permita nem nada que me obrigue a desistir se a poesia ou a polícia se os amigos se as notícias 40
Prezado Senhor, lamentamos informar que seu limitado conheciment o das escolas literárias dos termos algorítmicos os n omes dos poetas as formas as firmas o ritmo prezad o senhor não nos interessa não nos comove não ace nde em nós qualquer chama não nos provoca não n os proclama sua poesia não se ilumina não se decla ma prezado senhor nosso interesse não se determin a não se determina sua companhia prezado senhor suas figuras de linguagem as metonímias prezado s enhor lamentamos muito que não haja novidade qu e não existam novas palavras que o cânone não se r eplique no que escreve prezado senhor que o senhor reclame que o senhor esperneie que o senhor nos xin gue de palavras rudes prezado senhor os feudos ain da sobrevivem a província ainda se sustenta a cidad e não é grande o bastante para todos nós prezado se nhor queira compreender sem prejuízo para nossa a mizade sem prejuízo para ambas as partes aqui está o contrato assine aqui prezado senhor para ser igno rado para ser desvisto a poesia essa musa cega essa musa velha essa música inaudita é toda nossa prez41
Para Luiza, pelo tanto. Para Bruno, Caio, Cรกssio, Daniela, Dico, Eduardo, Gabriel, Gustavo, Henrique, Janaina, Joaquim, Lilian, Marcos, Marinalva, Matheus, Nathalia, Paulo, Pedro B., Pedro V., Ricardo, Rafael, Tomaz, Willian e quem mais.
Escrito de uma vez sรณ em agosto de 2018.
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