Era uma casa - Marcelo Labes

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Era uma casa Marcelo Labes


Edição do autor Copyleft da Silva 2022 Fotos e texto e diagramação: Marcelo Labes Perdoem-me as/os poetas, que poesia, sabemos, é coisa de gente séria Eu não sou.


Nossa casa não tem telhado O céu é estrelado Enquanto a chuva é ótima pra amar Não tem cortina, o sol bate de quina por todo lado Rodrigo Antônio da Silva e Gabriel Nazário


i. o pai e a mãe nos queriam perto mas tão perto que fizeram laje em vez de deixar arejar a casa a laje fez fazer calor mas tanto calor que cozinhávamos aos poucos congelávamos aos poucos e víamos no teto tudo de impossibilidade (a casa de cima que não veio (os filhos que nos fomos embora depois o pai foi embora dentro da casa reforçada e porque não podia subir direto por causa da laje sua alma se espalhou pela casa à procura de uma janela aberta.




ii. na subida da rampa do colégio debatíamos se era branca por causa do flash ou era branca porque era branca, a porra a mãe trabalhava de tarde e por isso subia no escuro atrás da coleção de playboy que vinicius assinara para ver e rever as mulheres e no fiapo de luz debater comigo se era ou não era branca, a porra não era, ainda mas subia, escada em riste, pela janelinha para conhecer os corpos das mulheres porque os corpos de homens eu já sabia como eram.





iii. acima da casa uma casa outra sem paredes nem degraus sem as lágrimas da mãe que anos depois ainda chorava os mortos que nunca viemos a conhecer - impossível chorar por um morto nunca visto acima da casa uma casa outra sem paredes nem degraus ou portas com o suor da massa que a mãe fazia depois do trabalho os tijolos que o pai assentava depois do trabalho sábado vinha todo mundo em volta ajudar os meninos crescíamos entre a areia o cimento os ferros as ferramentas a sujeira da casa que nunca absolutamente nunca estaria de fato limpa porque há buracos nunca descobertos por onde a sujeira sempre insiste em entrar.



iv. a mãe lembra em quantas vezes o telefone foi pago quando era FHC vendemos, o advogado embolsou a parte dele. foi ali que disse a lígia que tide tinha morrido, direto assim, "tide morreu". foi ali que vieram todas as notícias ruins, uma depois da outra, embora não servisse para pedir ajuda e eu também não sabia pra quem ligar.


v. quantos anos tem a casa e quem diria que o pai morreria sob o teto que ele ajudou a firmar quantos anos tem a casa e agora uma despedida dessas, pior que perder parente é perder memória quantos anos tem a casa ou quem sabe pudéssemos ter sido felizes se não ousássemos ser felizes quantos anos tem a casa ou isso é lá pergunta que se faça.





vi. ainda tinha carpete porque ninguém dizia carpet ou não, porque faz tempo púnhamos times em campo - bola de meia, um chute por pessoa - de repente engalfinhados a mãe dizia pra que parássemos suados rindo à larga todo poema que eu escreva ainda para vinicius virá da estreiteza maracanal daquele corredor estreito e no peito ainda soará, mesmo depois de finalmente ferido, a ovação da torcida, o milagre de seu riso.



vii. perguntava onde era, ela me dizia : quem sabe, ouro preto, : quem sabe, um lugar não conhecido ainda a arte vinha humilde e distante num disco emprestado de mozart num disco emprestado de tchaikovsky no disco do RPM que me fere e já feria. só depois, muito tempo depois, conheci tom jobim e seu refrão tão simples, tão simples, tão solucionado e tão sem solução. ele dizia: ligia, ligia, ligia.


viii. de segunda a sexta, a mãe limpava a casa alheia com dedicação e presteza - pra não dizer servilidade sexta de tarde e sábado era o dia de limpar a nossa - água por todo lado, creolina onde ficavam os bichos, sabão no piso fosse de concreto fosse de granito a pior parte, compartilhei com rodrigo, era recolocar as cortinas limpas no trilho fino de alumínio. trepado na cadeira os braços pra cima por dias e dias e dias encaixando rodas e trilho num trem que nunca apitava desejoso de sair de seu lugar.





ix. o lavabo chamava-se banheiro pequeno mas era um depósito de escada e rolos e pincéis e caixas. um dia virou lavabo : onde lavar a cara para o trabalho : onde mijar antes do ônibus (ainda era escuro) a escola e suas orações subordinadas a escola e suas crianças pobres o beijo que não beijei em ana paula esperava a mãe sair (no escuro) e me metia ali, travesseiro e edredon a porta forçada por meus irmãos : lavar a cara, mijar antes do ônibus para viver depois minha efêmera vida burguesa de leite com nescau e bolacha-maria.



x. a planta quem deu foi o engenheiro da prefeitura ora se pobre tem dinheiro pra pagar planta construíram todos juntos, cada um um pouco e lá estarão os ossos para comprovar e lá estarão as mágoas para comprovar : a nespeeira cortada quando ainda antes : a amoreira cortada quando ainda antes : o limoeiro e o ipê-amarelo ele foram dois, depois três, depois quatro cinco quando apareci, inesperado quatro quando o pai se atirou no escuro entre o que era tosse e o que era pigarro e os cinco absolutamente sozinhos os cinco absolutamente desesperados à procura de si mesmos à procura de nossos retratos.





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