o nome de meu pai marcelo labes
marcelo labes
o nome de meu pai
edição do autor
não tem ficha técnica porque não houve técnica tampouco houve tempo para processar o que houve e o que deixou de haver - para sempre ainda que eternidade e finitude sejam conceitos sempre um tanto confusos. não tem ficha técnica porque não há técnica para passar pelos momentos de falta e de ausência que a morte nos põe diante da cara, ocupando o sono, ocupando o estômago, ocupando os passos cansados dados em direção a onde. não tem ficha técnica porque isso não é um livro nem um necrológio, não é uma despedida nem um bilhete de passagem de retorno. às vezes, não há retorno. é preciso aprender a lidar com isso.
estes poemas foram escritos até janeiro de 2020.
como é pesado carregar um museu nas costas como é difícil carregar o morto nas costas como é estranho o caminho que se faz com peso nas costas - meio pra cá, meio pra lá, como se bêbado, mas não; os joelhos que aguentem a coluna que se esforce os ombros que suportem e a cabeça saiba sempre pra onde mirar venha ver o grande museu de sutilezas a entrada é grátis limpe os pés antes de entrar e fique à vontade, por favor.
1.
talvez tenhas comemorado meus primeiros passos - quanto tempo faz? pé ante pé, um tombo, então o levantar-se para redescobrir a caminhada. eu comemoro teus passos, pé ante pé, e te evito a queda - porque nunca se sabe o que é chão e o que é debaixo do chão e te admiro os pés e te admiro as mãos e te admiro teu sorriso de pai que diz meu filho sem utilizar os lábios num aceno de olhos azuis que me abraçam como se para a vida inteira para a minha vida inteira - ainda que sim, mesmo que - pois é - mesmo que não.
2.
o primeiro homem que amei foi meu pai - seu cabelo ondulado seu relógio no pulso seus braços carregados de força e sujeição outros vieram, porém: o chefe do trabalho que morreu com um tiro na cara : o pintor de rua que morreu de infarto : o pai de uma ex-namorada hoje meu grande amigo amei-os pelos homens que eram mas eram apenas homens o último homem que amei foi meu pai - seu olhar de terror e graça, sua voz comida pelo câncer, nossa eterna conversa feita de olhares, calares amor e fumaça.
3.
de que a vale a poesia sabemos que de nada embora que ironia (é preciso pontuar) que a vida pereça ao revés da permanência que se espera dela. como diz sábato: absurda fome de eternidade em um corpo miserável e mortal. e a esperança dúbia entre a vida que seja eterna e a terra que lhe seja leve. que não sofra mais e padeça rápido; que fique perto e seja eterno. de que a vale a poesia pensamos senão para pedir e pedir e pedir ao deus surdo em gritos vorazes.
4.
o ensaio sempre dói mais que a despedida - a escolha das p alavras dos gestos o olhar em direção à porta da saída ante vendo a caminhada até ali co m uma mala uma sacola uma mochila - para depois as esca das a calçada a rua e a vida. quanto terá havido de prepa ração é um mistério que sem pre nos ronda diante de um ato impensado. porém tudo é calculado: a lua para as marés como o vento para as ondas.
5.
houve o tempo do rodízio 3 x 1 dos trabalhadores da indústria têxtil e foi também por isso que fizeram aquela greve linda que ainda vou escrever em livro. três dias de trabalho por um em casa os operários não gostavam. o pai fazia rodízio também aparecia depois de três dias como um deus que ressurge dos teares. intocável e poderoso como um deus. mas em 89 eu ainda não sabia eu achava que deus morava nas nuvens.
6.
eu já coube inteiro no teu abraço forte - se fecho os olhos, sinto as cócegas sinto o cheiro de tua barba. já te invejei os olhos azuis, a obstinação operária - esposa, filhos, casa embora tenha te copiado no cigarro e na cachaça - aprendemos os dois a andar em linha reta, pai, apesar de tanta fumaça. aprendi a chorar contigo aprendi a sorrir contigo sei de pássaros e outros bichos, sinto a hora da trovoada embora tenha me mantido longe da fábrica, embora não tenha feito família, embora só tenha a escrita por morada te carrego nesse meu peito
7.
fraco dizendo que sinto tua falta talvez desde o nascimento, mas sempre é tempo, pai, sempre é tempo de a gente voltar pra estrada, de a gente dizer que se ama, de a gente fazer do que foi melhor do que o que está por vir porque toda história nasce sempre inacabada - a tua mão na minha, teu rosto no meu, as cócegas da tua barba.
nenhuma palavra dita no dia de hoje - talvez nenhuma a ser dita até o anoitecer : quem sabe o que pode acontecer quando se acostuma a engolir palavras. digo bom dia para minhas gatas e não espero que respondam, reclamo de uma ausência e não es pero que tu saibas, lembro de quando pensei que o pai fosse me contar tudo o que não havia dito mas a radioterapia. há o câncer que surge nas células e o que não se dissolve na água fria.
8.
em 1994 eu não abri a porta pro pai entrar em casa e disso resultaram dez anos de casa sem pai - a culpa deve ter sido minha - e a sensação estranha de que o pai existia mas tinha ido embora sem despedida em 2001 enquanto meus amigos nos despedíamos de três anos de internato (choramos dores que ainda não tínhamos, inauguramos uma dor nova aquele dia) eu descobria que se despedir dói mas serve pra escrever hoje eu queria que esse dia durasse o tanto daqueles dez anos sem o pai, o tanto daqueles três anos de poemas, violões e beijos de língua sob as árvores na praça central da escola evangélica mesmo que disso resultasse escrever mais nada porque o texto pode esperar porque o texto pode esperar porque o texto pode esperar enquanto a vida se alarga.
9.
o pior é despedir-se ou talvez eu não tenha superado a cadela atropelada que o motorista deixou do lado de dentro do portão - porque o resto também não superei, então é tudo a mesma coisa, uma despedida só que não tem fim porque a lei diz que - momento solene, todos de pé a lei diz que é sempre um adeus atrás do outro e o importante é que nos recuperemos cada vez mais rápido e sintamos cada vez menos cada perda e cada falta. outra lei diz que - de pé, todos de pé para ouvir a lei - que a vida é mesmo uma merda e que estamos todos fodidos. já podem sentar-se para ouvir a oração. as leis não falam de deus, e eu espero deus sentado. quando deus foi embora eu também senti o que sinto agora, mas isso já faz muito tempo e, sim, repito, as despedidas não terminam nunca e são sempre a mesma falta, a única, desde a cadela atropelada que vi portão adentro e pensei que tava dormindo, mas tava morta.
10.
o pai já não ouve e por isso me furto e lhe perguntar se se ele percebeu em algum momento como tudo existe/ reside entre o lá maior e o lá menor - os amores as p erdas a saudade os reenc ontros as esperanças des avenças as certezas as in certezas a saudade da mo rena. talvez que fizesse si m com a cabeça talvez nã o dissesse nada talvez ne m mesmo entendesse o q
11.
o pai pisou os pés naquelas estradas de terra e mato por todos os lados - morro morro morro morro morro e riacho passou calor em volta do tacho de cozinhar carne de porco, suou diante dos teares da fábrica, puxando carroça, carregou o pai morto, mas hoje, quando me visitou, quando atravessávamos a rua de casa, o pai reparou no vento, comentou sobre o vento e sorriu. o ar que se agita nos move a todos, pai, de dentro pra fora. nos move a todos como nunca se viu.
12.
o pai nunca deixou faltar nada em casa, apenas o pai: havia comida, luz, telefone, água encanada e o muro de arrimo para deter o ribeirão, "mais de mil sacos de cimento", ele dizia quando ainda falava. o homem por trás da casa trabalhava à noite na fábrica, de manhã na roça, e se esvaía entre a cachaça e a carroça. o pai nunca deixou faltar nada, apenas o pai.
13.
aprendemos a falar de amor faz pouco (o espanto diante da ausência agita as palavras e a importância de dizê-las) mas depois o pai perdeu a voz e tudo que comunica. antes dele perder a audição ouvíamos música juntos - o mesmo zezé di camargo & luciano, o mesmo leandro & leonardo - e eu nunca perguntei qual era sua canção preferida para que hoje, seu aniversário, eu pudesse cantá-la baixinho enquanto abraço uma saudade, enquanto abraço o pai e o menino que fui (nos braços do pai) como naquela fotografia em que eu chorava, ele sorria.
14.
sentava na calçada esperando as visitas tinha coca-cola gelada tinha pastelão e salgadinho mas as pessoas demoravam tanto que pensava ter de passar o aniversário sozinho eu era apenas um menino esperando presente esperando visita a mãe trabalhando o dia inteiro por alguns anos o pai não veio depois os amigos foram mudando depois os amigos foram morrendo eu mesmo mudei e foi tanto eu mesmo morri e foi muito só a calçada permanece lá.
15.
meu pai tinha uma carroça mas não tinha cavalo e a puxava ele mesmo comigo em cima ao lado do trato para os bichos - vacas com nome. a mãe fervia o leite. meu pai tinha uma carroça e era ele próprio o cavalo puxando a madeira sobre rodas comigo em cima. eu achava que guiava, pai. eu achava.
16.
se eu pudesse voltar naquelas tardes amarelas deixaria igual o peito ardido de cachaça o peito ardido de cigarro deixaria igual o medo do pai (pneu subindo a calçada) o medo da mãe as patroas o patrão deixaria igual o álbum molhado de ping pong amazônia as figurinhas que vinícius me roubava deixaria igual a cadela atropelada deixaria igual a falta de sono o medo da morte e aquele desespero de acordar mais cedo e ver a casa vazia. se eu pudesse voltar naquelas tardes amarelas apenas daria jeito de devolver os passos ao barrerito para que menino nenhum pudesse ouvir outra vez mais uma canção tão triste, tão triste.
17.
memória: em 91 o pai enxotou a chica - se era esse o nome da cachorra e a ofensa marcou tão fundo que chorei para a professora
18.
memória: quando na mudança de casa perguntavam-me se tinha certeza rhenius me deu cinquenta reais de ajuda para a mudança: chorei com clóvis memória: sempre que abro a caixa de cartas e me deparo com quem eu era choro nos braços imaginários de meus amigos agora isso: um tumor grande e vários tumorezinhos, fotografias que não se movem, um trem a pilha que nunca veio.
enquanto os dedos passeiam por teus braços sem pelos à procura de ossos e tendões me digo que me seguraste e me deste um nome. enquanto tateio teus ossos à procura do que neles levas me digo que permanecerei por nós dois. enquanto te acarinho a cabeça e te beijo me digo que a vida é toda uma falta seguida duma presença incontida. e quando te digo Pai, ganhei um prêmio, e teus olhos vagam pelo vazio me digo que já sabias, e tenho certeza quando me mandas, desajeitado, um beijo que se perde pelo ar pesado do quarto.
19.
é do amor entre os homens o silêncio os olhares obtusos as palavras presas nas bocas com dentes ou sem com palato mole ou sem com gosto de café e cigarro, como me ensinou meu pai recendendo a desodorante spray com álcool e a álcool que se dissipa na respiração.
20.
- os etilômetros não nos saberiam porém - os grupos de apoio não recebem nossas visitas porém (aprendemos a nos virar com a embriaguez do contato) hoje lia poesia e pela primeira vez talvez em toda a vida repousei minha cabeça em seu ombro e ele recostou a sua na minha talvez pensássemos na morte ou admirássemos juntos o fim da vida (é dos homens que se amam se tocarem com respeito então no meio da tarde um carinho na perna, um consolo no braço um beijo roubado na testa ou nas bochechas
porque os homens que se amam aprendem a amar para muito alÊm do pouco que lhes foi ensinado) e porque a vida se torna rarefeita talvez aquele poema tenha que ser reescrito para dizer em definitivo : um abraço de pai como quem diz meu filho - e realmente quer dizer o que diz.
outro dia sonhei que o pai fumava e sorria a boca cheia de fumaça no meio do sorriso enquanto contava uma história logo ele, que nunca foi de falar muito. quando voltou a fumar foi um tempo depois da radioterapia (serviram óleo de girassol no hospital para curar as queimaduras e pensei que nos hospitais só servissem química) mas o pai faz tempo não sorri o pai agora toma morfina.
21.
talvez tenhas comemorado meus primeiros passos - quanto tempo faz? pé ante pé, um tombo, então o levantar-se para redescobrir a caminhada. eu comemoro teus passos, pé ante pé, e te evito a queda - porque nunca se sabe o que é chão e o que é debaixo do chão e te admiro os pés e te admiro as mãos e te admiro teu sorriso de pai que diz meu filho sem utilizar os lábios num aceno de olhos azuis que me abraçam como se para a vida inteira para a minha vida inteira - ainda que sim, mesmo que - pois é - mesmo que não.
22.
de que a vale a poesia sabemos que de nada embora que ironia (é preciso pontuar) que a vida pereça ao revés da permanência que se espera dela. como diz sábato: absurda fome de eternidade em um corpo miserável e mortal. e a esperança dúbia entre a vida que seja eterna e a terra que lhe seja leve. que não sofra mais e padeça rápido; que fique perto e seja eterno. de que a vale a poesia pensamos senão para pedir e pedir e pedir ao deus surdo em gritos vorazes.
23.
aguentar o peso do homem e quanto pesam seus medos (da queda, da altura, da morte) amá-lo sempre e medicá-lo a cada quatro horas. [hoje levei o sorriso do pai para escovar tão raro um sorriso caber na palma da mão, tão imenso] medir com as mãos cada centímetro do homem cada pelo cada pele amar cada cheiro do homem cada curva cada crosta beijar a testa do homem e sempre evitar as palavras que nessas horas têm pouca ou nenhuma serventia.
24.
conta tia male que naquele tempo não tinha ceia ou festejos muito acalorados, era uma noite como todas as noites, mas com um copo de leite com achocolatado para cada um dos sete irmãos. depois o silêncio do vale e algum sonho intranquilo, a estridulação de um grilo, a água correndo no ribeirão. hoje o pai perguntou se era natal, respondi que era véspera e apesar de ter querido e ter lutado não conseguiu ficar acordado para esperar a hora dos abraços de feliz natal.
25.
quanto pesa um homem no fim será que o peso de todos os homens de todas as mulheres que pariram estes homens será que pouco será que nada? quanto pesa um pai será que o peso de cada filho será que o peso de uma família será que muito será que mais do que estamos acostumados a carregar? quanto pesa para o homem no fim todo peso que levou nas costas todo silêncio que segurou no peito toda lágrima contida toda garrafa entornada quanto pesa uma vida quase quase quase acabada?
26.
enquanto ainda respira é um homem mesmo que não tenha visto os fogos mesmo que não saiba que o ano terminou para recomeçar outro, este em que estamos enquanto ainda respira é um homem é um pai é um avô é um ser humano cheio de falhas e belezas como nós todos enquanto ainda respiramos enquanto ainda respira é um homem mesmo que depois, mesmo que depois enquanto ainda respira enquanto ainda respira, mas e depois? por enquanto respira entre ofegante e tranquilo, mas e depois, e depois
27.
o homem morreu em meus braços como quem descansa como quem exausto dispensa água ajuda abraço o homem morreu em meus braços mas antes olhou as horas no relógio de pulso; operário, sabia do valor de um dia útil para si e para os seus não morreu dormindo, porém, mas desperto, entre o sábado e o domingo (quando finalmente o esperado descanso). voou antes que eu lhe dissesse Voa, pai, que o céu é grande e também a eternidade. voou como pássaro que era, um canário da terra.
28.
edu barreto me disse que os pais continuam na gente através do que vemos pensei de que forma veria o mundo se não tenho os olhos de alfredo, os olhos azuis de alfredo e se faria sentido o que eu tivesse visto. até hoje. porque hoje eu vi o mar e ele era tão azul tão azul quase meu pai a me dizer : de salgada basta essa água guarda tuas lágrimas pra ti pra hora mais oportuna porque a vida somente acaba. porque a vida também continua.
29.
quando senna bateu forte estávamos em curitiba os meninos no quarto jogan do video game os adulto s na sala acompanhando o ocorrido a prima veio d izer o senna tá mal no ho spital e depois cabrini an unciou o fim, a notícia qu e nós nunca gostaríamos de dar. o pai nem aí, leva va consigo outra dor, da perda do próprio pai, e eu aqui me pergunto quant o tempo demora.
30.
carreguei o pai desmaiado até o quarto puxando-o pelos pés sobre um tapete encardido era tão pesado que o arrasto tirava lascas do piso. depois carreguei-o doente do quarto à varanda e dali à cozinha. a cadeira de rodas tirava lascas da parede que se amontoavam sob as rodas de borracha. depois ainda o carreguei sobre o lençol do quarto à sala para dentro da caixa da funerária para que que montassem o boneco de cera que exporiam no velório : velas acesas e deus nenhum. depois o carreguei dentro do ataúde no espaço curto do carro à capela da capela ao carro. o pai cada vez mais magro cada vez mais magro cada vez mais cada vez mais cada vez cada vez mais magro cada vez mais magro cada vez pesava mais.
31.
I wish I could eat Your cancer when you turn black Kurt Cobain
a primeira vez que vi sua nudez foi numa noite difícil no isolamento do hospital - também foi quando dei a ele meus passos para alcançar o banheiro na madrugada foi também quando me impressionei com as ampolas de coleta de sangue arterial - tudo tão rápido depois tomamos banho juntos: limpa aqui o pirulito, levanta o braço preu limpar o sovaco, também as pernas as unhas cortadas, aparar a barba tirar da volta dos olhos a ramela para que eles brilhassem somente azuis - tudo tão limpo os chinelos alinhados ao andador o relógio marcando as horas sempre em ponto a morfina das 7 das 11 das 15 das 19 das 23 o criado mudo na primeira gaveta cigarros na segunda gaveta dinheiro na terceira os papeis que trouxe comigo - tudo tão certo -
32.
depois do último suspiro (mais um, mais outro) depois do erro nos aparelhos feitos para medirem a pressão arterial dos vivos, depois dos beijos todos que dei no morto, de sentir seu calor ainda sentir o que havia de vida ainda foi que abri sua boca para ver o buraco no céu da boca [desse tamanho] maior que um tiro dado no céu da boca maior que um tiro dado para se libertar da dor de morrer aos poucos - tudo tão morto e agora isso: o filho que procura o pai morto que encontrou o pai ainda vivo que encontrou o pai quase se indo e que disse Pode ir, pai, que aqui nos cuidaremos todos, Pode ir, pai, que aqui nos abraçaremos e nos vigiaremos para que não nos aconteça tomar um tiro na boca cuja explosão não mata na hora e faz a vida pesada e pouca - tudo tão nó, tão nó, tão nó que pra isso nunca faltou corda.
é sobre não ter alguém para tomar café preto e observar pássaros enq uanto o cigarro queima lentamente é sobre não ter alguém para dividir silêncios olhares suspiros sorrisos e sgares ou tranquilezas verdades ou incertezas obscuridades ou clarezas que me acometem no meio da tard e é sobre não ter alguém para beija r o pescoço sem pudor algum algué m para amar como se para além do que vai aqui posto. este não é mais um poema sobre meu pai morto m as poderia ser, poderia ser também.
33.
retirar do poema a palavra pai e construir com outras palavras outros poemas - assim o pai não perde o sono e não me olha como se pedisse afogamento. retirar do poema a palavra pai e substituir por outras: vento, fogo, foto, circo, relógio dourado. retirar do poeta a palavra pai para deixar no lugar a areia fina duma praia baiana, o encontro das águas dos rios amazônicos, a tristeza-neblina do rio de janeiro. retirar do poema a palavra pai e deixar em branco o poema retirar palavra por palavra assim o pai dorme direito e não me olha como se pedisse água : o copo nas mãos e a dúvida. retirar do poema também a palavra dúvida. retornar à folha em branco, ao início repentino de tudo,
34.
ao fim que soa sempre a reencontro. retirar do pai a palavra poema : talvez seja esse o procedimento mais justo.
Alfredo me foi pai aos trinta e três. Foi de novo depois que voltou pra casa. Depois de novo, quando acabou o álcool. Outra vez quando eu não dormia e ele me acompanhava. Mas tive outros : Vinicius me foi pai aos dezoito, na ausência do outro. Depois de novo quando fui embora. Depois de novo quando retornei. Sempre e de novo quando me abraça. Barone me ensinou Rimbaud e Polanski. Theobaldo me ensinou dos números.
35.
Elias me ensina das plantas e dos bichos. Hรก ainda outro, de nome Marcelo Labes, que sempre abraรงa o menino que fui e diz que vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem. Tudo dรณi, mas tudo passa.
Alfredo Labes nasceu em 10 de janeiro de 1952 e faleceu na madrugada de 3 de janeiro de 2020. Nesse meio tempo, foi trabalhador rural, operário da indústria têxtil, vigilante, ajudante de obras na construção civil, pai e avô. Também foi alcoólatra, mas se tratou. Pegou câncer na boca, na garganta e nos pulmões. Fumava menos que eu. Dele, agora sei, herdei os dedos baqueteados das mãos e dos pés. Também herdei o pau. Herdei o nariz e a melancolia. Herdei o alcoolismo, mas parei faz tempo. Herdei uma saudade inominável, por isso indescritível. Herdei quatro relógios de pulso. Também um par de chinelos de pano, dois pares de tênis, duas calças de moleton, dois casacos, três pijamas, uma camisa listrada de que ele gostava muito e uma camisa branca do Fluminense, falsificada, e alguma quantia em dinheiro, que não contei e gastei sem contar. Alfredo Labes passou dez anos distante, entre 1994 e 2004. Fui eu quem fechou a porta para a sua despedida. Alfredo Labes também me levou ao circo, talvez em 1992. Essas lembranças, a mais bonita e a mais terrível, eram somente minhas; ele já não lembrava. Alfredo Labes teve coragem de interromper os terrores da rádio e da quimioterapia. Morreu como quem dorme, e lhe dei o beijo de boa noite.
Estes poemas foram antes publicados no perfil deste autor no Facebook, depois transportados para o blog http://mmlabes.blogspot.com e agora estĂŁo aqui para que depois virarem outra coisa.