Marcelo labes - Porque sim não é resposta.

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Blumenau, 2016


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Labes, Marcelo

Porque sim não é resposta / Marcelo Labes - 2. ed. Blumenau: Hemisfério Sul, 2016. 31 p. – (Antítese). 1. Literatura brasileira – Poesia. 2. Literatura Catarinense. I. Título. II. Série. CDD 22

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Impresso no Brasil / Printed in Brazil


AGRADECIMENTOS Este poema foi escrito ao longo de trinta dias, no outono de 2014. Agradeço a todos os primeiros leitores, que já não lembro quem são. E a todos os leitores de poesia que ainda insistem em afirmar que ela não está morta.



Para Luiza.



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Porque tenho medo do escuro desde talvez quando ainda não era tão escuro assim. Porque vi morrerem os velhos já loucos e vi enlouquecerem, pouco a pouco, os que ainda engatinhavam. Porque reclamaram tanto da pouca chuva foi que choveu em dez dias uma chuva de dez anos e que arrastou casas, escombros, casais de namorados e televisões sintonizadas no popular programa de calouros e tortas na cara e bailarinos afeminados com maquiagens brilhantes e luzidias que ainda nauseiam quem recorda. Faltou corda para os enforcados e se cogitou proibir publicamente que se matassem os tristes, traídos, tratantes, fosse com veneno, fosse sob os tratores dos campos destruídos pelo granizo; se cogitou que se proibisse o suicídio das crianças e, sobretudo, das moças teuto-brasileiras, que sempre deu tanta dó ver desaparecer sob o peso da terra. Porque os que buscavam com a maior pressa foram os primeiros a encarar o muro, o poste, o caminhão carregado na contramão de direção. Porque depois que os poetas fizeram as malas e se foram, as fossas entupiram e as gargantas secaram e as mãos foram cortadas pelas unhas ansiosas de mãos mais ansiosas que se buscavam até quase dilacerar. Meu carinho pelas empregadas domésticas ainda meninas que sonham com o príncipe encantado, mesmo que ele ronque alto e vá dormir cedo e fedido a boteco e confunda seu nome simples de mulher simples e roupas simples e jeito simples e sonhos simples, porque realizáveis; os filhos simples de roupas simples e sonhos simples: os pés que doem sem sapato pra calçar. Fazia frio, e nunca se soube se o frio que matava o pasto e matava o gado e matava porque matava chegaria a matar almas, até que se


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descobriu o inevitável, mas já não havia amor que esquentasse, que bastasse ou que existisse. Porque os olhos de um menino pobre não param nunca de brilhar até que finalmente secam e não há aridez comparável aos olhos secos de um menino pobre que se esqueceu – porque nunca soube – reclamar. Porque a televisão anuncia uma vida nova e plausível e possível dentro do impossível que a vida é. Porque enlouqueceram jovens com gotas d’água sobre chapas de zinco e os jovens enlouquecidos foram profetizar nas matas uma revolução que nascera morta. Porque respiramos fumaça acreditando ser arco-íris. É preciso amar os velhos que se arrastam de cansaço e os jovens que se arrastam de cansaço: esses porque não evitam; aqueles, por ter evitado. Já não se pergunta mais até mesmo o mais simples porque a resposta não se sabe se se suportará: dentre as escolhas às alternativas nunca se sabe se toda pergunta já não nasce respondida. Porque mataram a um policial e a um jornalista e expuseram seus corpos em praça pública para que fossem olhados pelo povo, estudados pela academia e ressuscitados por um pastor evangélico charlatão que prometia curar doenças, curar das drogas, curar das dores até de ser cristão e ter fé alguma no que fosse, essa esperança que faz levantar e ir trabalhar e recomeçar no mormaço dos dias porque se chegará lá algum dia, eles dizem, o pastor, o policial e a televisão. Porque não se constroem prédios tão altos quanto os anseios dos homens. É preciso ir dormir cedo para acordar rangendo dentes.


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Meu carinho pelas mocinhas de subúrbio que se apaixonam por motoristas de ônibus, por vigilantes noturnos e por qualquer sorte de homens que vestem uniformes puídos e amarrotados de domingo a domingo, uniformes amassados, uniformes engomados; o corpo que se parece com um uniforme e no lugar dos mamilos há insígnias e nos braços, bandeiras de países distantes, porque afinal somos todos filiais de uma empresa que produz não se sabe exatamente o quê, nunca se soube. Porque as manhãs perderam o cheiro doce da madrugada e a luz do sol – claro que não! –, e o cinza-escuro deu lugar ao cinza-claro: somente varia em tons o gosto sem gosto dos dias. Porque não se sabe dos velhos, a vida de merda que tiveram e ainda assim não soa justo terem envelhecido trabalhando e terem de trabalhar até o fim de seus dias, quem sabe cavando a própria cova. Porque as canções mais simples e mais importantes são as que se compõem na própria cabeça; não importa quanto asfalto tenhamos aspirado, sempre haverá voz para cantar. Há que se pensar, sobretudo, no futuro, e fingir gravidade e espanto e perplexidade diante dos descaminhos do mundo e encontrar soluções sérias: casar com uma mulher, ter um ou dois filhos e guardar dinheiro para sobreviver à crise, à guerra ou à aposentadoria. Porque já nascem iguais os dias – com pequenas variações de temperatura e luminosidade. Porque chamam de viciados aos bêbados e aos cocainômanos como se não fossem viciados seus acusadores em drogas tão ou mais pesadas como a moral e os bons costumes. Os jovens pararam de morrer de amor e morrem agora de acidentes de motocicleta, os ossos expostos e um fiapo de sangue para cada orifício da cabeça.


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As putas serão sempre mais dignas de respeito do que as donas de casa e seus bolos de laranja cobertos com açúcar de confeiteiro e seus abortos escondidos sob crucifixos e bíblias sagradas. Não importa o relevo, haverá sempre uma escadaria por onde descerá eternamente uma mulher desamada, com lágrimas nos e olhar baixo para que não se perceba a tristeza e não se ouçam seus soluços de viúva jovem. Porque há pessoas famintas que não sonham. Porque há pessoas que não sonham. Porque há pessoas famintas. Não impressionam os suicidas que se atiram dos prédios outono após outono: é sempre tanto medo de se estar só no inverno, sempre tanto medo, os pés gelados e a geladeira repleta de promessas vagas de amar sem culpas nem angústias nem demônios, como parece que tem que ser. Porque os caminhoneiros fizeram greve e atestaram sofrer de vício em cocaína, vício em arrebite, vício em álcool, vício em putas e vício em sentir saudade de casa, a esposa e os filhos, e um altar humilde com a virgem e nosso senhor jesus cristo. Em algum lugar, um menino vai dormir dolorido sugerindo sua própria versão do que é justiça e não há neste pensamento heróis nem príncipes nem robôs nem armas de raio laser. Meu carinho pelos cancerosos que vasculham nos lixos dos hospitais em busca de qual mágoa teria engasgado na garganta, qual lembrança teria se infiltrado nos pulmões, bem no fundo de seus ossos, que teriam lhe gerado um tumor inextirpável porque inexistível. Porque foram perdoados todos os jovens que ficaram em casa em sábado à noite entre fumaças, vinhos e Rogério Skylab, como um louco,


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representando a sanidade ou exatamente o contrário, dadas as proporções dos contrários: os jogos de tabuleiro. Porque os homens que arrotam suas próprias carências tem o estômago vazio de amores e tomam pastilha para agüentar a azia de uma vida sem caminhos. Porque os animais de estimação não cabem na análise de Ariès sobre o surgimento do sentimento de infância, enquanto neste exato momento um menino pobre morre de fome, de frio, de fogo ou coisa ainda pior, de esperança. Meu carinho pelas mulheres loucas que perderam seus filhos cedo demais e sequestram crianças entre gôndolas de supermercados e videolocadoras. Porque o rádio anuncia preços de produtos que não interessam a quem ainda não descobriu como vai pagar o aluguel e/ou conseguir tomar um ônibus para chegar ao trabalho amanhã cedo. Todos os outonos contém em si o anúncio do inverno e ignora-se que a primavera demorará muito a chegar. Criam-se memórias para apagar traumas, criam-se memórias para se criar outras memórias, mas lembrar mesmo não se sabe direito como é. Porque uma mulher olhou profundamente nos olhos de um homem, que retribuiu olhando diretamente nos olhos desta mulher e decidiram ambos abolir as palavras. Porque não importa a temperatura que faz lá fora, desde que se esteja aquecido por dentro, seja de conhaque, seja de vontade, seja de ódio. O sorriso sincero dos desdentados sempre dirá mais do que as cartas de amor escritas às cegas e com as frases prontas que nos acostumamos a repetir.


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Porque de tanto dar nome aos bois, apegaram-se a eles como irmãos e pastaram juntos e para sempre no campo das nominações. Encontraram um homem carbonizado embaixo de uma árvore e discutem não o raio, mas seu remetente e a agilidade do serviço postal recentemente privatizado. Porque os cinzeiros enchem-se de silêncios. Porque por mais distante que se procure ir, um dia se defronta com a primeira liberdade da infância, embora aquela rua não seja do tamanho do mundo, as crianças já não brinquem como anos atrás e o ranger das bicicletas sejam agora dois joelhos cansados. Os cães raivosos, os morcegos, as baratas e as rãs. Meu carinho pelos casais especialmente infelizes que se dispõem a fazer compras em domingo de manhã e o fazem explicitamente infelizes, embora sorriam o sorriso amarelo dos fingidores. Os poemas mais belos são certamente os mais doloridos, assim como as canções, assim como as fotografias que se esquece de jogar fora. Porque taxistas alucinados invadiram as madrugadas com pneus cantando e buzinadas que faziam doer os tímpanos, mesmo que não transportassem ninguém a não ser sua própria insônia. Meu carinho pelas professoras muito velhas e sua presunçosa humildade diante do terror que a escola é: o estábulo que se pretende limpo e organizado. Porque os shoppings centers anunciaram que dali em diante não comercializariam mais futilidades e tornaram-se sombrios, porque desocupados. Porque a última luz a se apagar revelou um mundo distinto dentro e fora dos homens, que se deram as mãos e se amaram pelo menos uma


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noite, embora jamais tenha sido esclarecido se o que sentiam era mesmo amor ou um medo filho-da-puta do escuro e dos fantasmas a que damos lugar dentro de nós mesmos sempre que a luz se apaga. Porque no jantar, em vez de bifes, serviram flores coloridas e todos se alimentaram de cores, e pelo menos nesta noite não houve pesadelos no sono de quem dormia fazendo a digestão. Porque se olhou para o alto e o céu fora escurecido pela sombra de dezenas de centenas de milhares de paraquedistas que simplesmente erraram seu local de pouso e que, para não perder tempo, começaram aqui mesmo uma guerra sanguinária em nome de não se sabe ainda o quê. Porque desenterraram um casal de amantes e todos ficaram surpresos com os sorrisos doces e triunfantes de suas caveiras asquerosas. Nunca se soube se é pior morrer de água, de fogo ou de eletricidade e, por via das dúvidas, optou-se por morrer de cotidiano e dúvidas às quais não se obtém respostas, mesmo que se procure. Porque os loucos, os viciados e os retardados mentais abraçaramse num abraço infinito e foram finalmente percebidos, pois eram a enorme maioria dos que habitavam a face da terra. Porque de tanto esperar a campainha soar, já não se sabia mais se algum dia soaria ou se algum dia já a haviam acionado, se alguém já havia entrado por aquela porta ou mesmo se havia alguém porta afora que viesse em algum momento querer adentrar. Porque as flores floresceram nubladas e fizeram chover sobre os quintais que as apreendiam. Porque foi realizado o primeiro congresso mundial da saudade e o fracasso adveio mais do silêncio constrangedor e dolorido de seus participantes do que pela explicação aos não falantes do português a respeito de que, exatamente, quer dizer essa palavra.


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Meu carinho pelos que se auto-imolam em sua busca silenciosa e ardente. Meu carinho pelos depravados e pelos constrangedores da lei e da ordem. Meu carinho pelos bêbados das sarjetas, que não se pode supor o que sonham. Porque as manhãs absolutamente deliciosas são as nubladas, com risco iminente de chuva e sabor algum de lembrança. Porque se em algum momento houve um hino nacional brasileiro, este não passa de uma canção de Vital Farias a que ninguém dá a devida importância. Porque os homens compraram automóveis cada vez maiores, cada vez mais velozes e cada vez mais confortáveis para ir do trabalho para casa e da casa ao trabalho quando lhes faltava tempo até mesmo para visitar a própria mãe. A verdade é que as distâncias medem-se antes em tempo do que em quilômetros; um reclame de avós que lembram a idade dos netos, embora não saibam exatamente por onde andam. Porque fizeram rodovias cada vez maiores para ligar o nada a lugar-nenhum e assim rodar eternamente em círculo. Porque é de expectativas que se vive, mesmo que não se saiba, ainda que não se assuma: uma canção de Léo Fressato que não toca no rádio, mas lá dentro da cabeça e que fala de domingo de manhã e de ter o que não se pode, simplesmente porque não. Porque uma parcela da juventude, aquela que não assume que vai trabalhar até se lhes doerem os ossos, cantou mais alto que o ronco das máquinas e todos pudemos dormir em paz certa noite de domingo. Certos generais de cu na mão apareceram em horário nobre interrompendo a novela, trazendo flores nas mãos e pedindo


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compreensão pelo que houve lá se vão tantos anos. Foram aplaudidos e ovacionados e prometidos candidatos para a próxima eleição. Meu carinho pelos velhos doloridos de raiva que mastigaram os próprios dentes sem coragem de falar. Porque o anúncio de mais petróleo só faz é doer as costas. Os varredores de rua, os limpadores de fossa e os arrumadores de cadáveres. Porque os mendigos recusaram qualquer proposta de vida digna que não fosse a vida digna que já viviam debaixo dos olhos da lua. Porque os cães uivaram para a lua cheia ignorando, por serem cães, que não obteriam resposta e foram sumariamente assassinados pelos homens que perderam o sono. A lua compreendeu, com preguiça, a atitude dos homens que, por homens serem, nada sabem da íntima e antiga relação que a lua mantém com os cães. Porque as olheiras no rosto de um homem já lhe alcançavam a barriga. Há que se temer os portos, aeroportos e os terminais rodoviários, não pelo poder que têm de levar adiante quem se ama, mas de trazer de volta quem já não se enxerga mais com os olhos amorosos, senão temerosos como os de quem já disse adeus. Porque nas reuniões familiares de domingo, pelo menos uma vez não se discutiram lembranças embaçadas, e depois do almoço todos foram dormir leves, nada angustiados e sinceramente satisfeitos. Porque se aceitou ecumenicamente a impossibilidade de haver um céu, um inferno, deus, diabo e purgatório e teve que se aceitar que é aqui que se vive a vida, enquanto ainda vivo se está.


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Porque os marinheiros com olhar de peixe morto foram compulsoriamente aposentados por não trazer nos olhos o brilho que o mar exige. Foi há muito, muito tempo: depois de séculos de carnaval, silenciaram os foliões a bala, e desde então se relembra o fato todos os anos, por pelo menos três dias. É impossível, comprovadamente, dois corpos ocuparem o mesmo lugar no espaço, mas nunca se cansa de somar quantas pessoas podem caber numa só pessoa: o qual de nós que merece ser identificado como sendo eu. Porque as palavras que não se dizem formam emaranhados de gritos abafados nos pulmões. Meu carinho pelos empacotadores das lojas de departamentos que não dão importância para os presentes que embrulham e o fazem como se para si, carinhosamente. O outono sempre acudirá a fotografia e os retratos serão sempre janelas abertas a machadadas anos além, outonos além, depois de outras janelas. Porque um jovem tentou o convencimento inconvincente de um abraço e foi pisoteado pelos cavalarianos da polícia convencida. Se letra ou música; se sonho ou transe. De uma lista a ser encontrada anos depois de ter sido escrita e guardada para nunca mais: - a música que tocava enquanto ela vinha; - o movimento dos olhos, as pálpebras fechadas; - o que se pensa enquanto o pé falseia, o degrau que deveria estar ali e que não está.


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Porque a última vez que rezou a nosso senhor jesus cristo foi para evitar a guerra do Iraque e arrepende-se com vergonha até hoje e não sabe quando se perdoará por isso. Porque enquanto uns querem ser marceneiros e outros astronautas, há os que simplesmente amargam insônias desde os primeiros anos. Porque à meia-luz e em silêncio pode-se ouvir o sangue correr nas veias. Porque era impossível saber o que era sêmen, o que era cérebro, o que era amor e o que não era. Os grilos, as gaivotas, as garças e os gambás. Porque se percebeu que a vida andava agitada de mais, corrida de mais, cansada de mais e se procuraram novos arranjos para se tocar a mesma música. Os ratos de laboratório se mijam de rir da cegueira dos homens. Porque heroicizou-se o acovardamento coletivo e na grande cerimônia anual de despedida, todos os que partem ganham a chave da cidade que deixam – se não para encontrar o caminho de volta, para encorajar quem ainda se contenta em cultivar raízes. Porque o sentimento diante dos velhos que de sol a sol continuam na labuta como faxineiros, motoristas e vendedores de quinquilharias nas praças definitivamente não é pena, mas um medo desgraçado de estarmos ali nós mesmos quando chegarem as penosas horas. É no pôr-do-sol que mais se cometem suicídios, mas ignora-se a que horas é mais custoso nascer. Meu carinho pelos doentes terminais que o que queriam era ouvir música e já não suportam mais os ganidos dos que ficam, nem as


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palavras de conforto, e se riem das ameaças que a agiotagem lhes remete. As moças solteiras que só se casam para ter uma vida feliz. antes.

Porque o importante é acelerar no amarelopara tentar chegar

Porque as cartas acumularam-se e já não soube mais por onde começar a responder, nem o que dizer que não soasse arrogantemente mal. Porque um jovem negro, muito mal vestido, os farrapos fedidos a cola e orfandade, esbarrou num policial e tomou tantos chutes que foram necessárias horas para separar o que era menino e o que era calçada. Porque os homens fizeram fila para entrar no chuveiro enquanto outros homens aqueciam os fornos. Porque os homens constroem muros tão altos quanto a maldade dos homens. Porque os jornais anunciaram à venda um mundo que sabíamos impossível – e pedimos mais. Meu carinho pelos subempregados que recebem seus salários com vergonha de tão pouco e amanhecem caídos de bêbados, as calças todas mijadas. Porque os sonhos não realizados fazem fila nos porões da alma e sobem lentamente os degraus da memória logo que começa a anoitecer. Pior no inverno. Porque não sabendo o que fazer com nossos mortos, os mantemos assustadoramente vivos, esperando que apareçam para nos assustar a cada silêncio, a cada arrumação de gavetas.


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Porque se descobriu que não se ama alguém, mas o que este representa – e se te afirmo que já não te amo é porque não representas mais, senão no incansável teatro da vida. Os homens muito ricos são, às vezes, os mais inocentes. Os pobres que somos, e que entre nós nos digladiamos na tentativa de sermos ricos – impossivelmente ricos – são as criaturas mais assustadoras dos mundos conhecidos. Um lar, percebe-se, é onde não se sabe direito o que é televisão e as pessoas se olham nos olhos. Pão de feira, nata e schmier de banana. Porque nossas calvícies denotam uma outra juventude agora, já que não nos tornaremos os adultos que tanto querem que sejamos. Abraçar a própria mãe é experimentar o gosto de se tocar o ontem, o antes de ontem e assim, sucessivamente, até o início do mundo. Porque os catadores de lixo se riem todas asmanhãs das pessoas enlatadas nos ônibus, assustadas no trânsito, desmaiadas de sono. Porque se eu não fosse eu, daria um jeito de me ser. Porque se admirou com curiosidade as montanhas recobertas por tapetes e se decidiu que era hora de parar de esconder a sujeira. Porque o tempo somente para nas produções cinematográficas hollywoodianas, numa música de Raul Seixas e quando encostas tua mão na minha - e o que há para dizer, havia. Porque a guerra que vai começar é uma guerra jamais terminada. Os tubos de esgoto deixarão de ser subterrâneos e pelos encanamentos transparentes passará toda a merda da cidade para as pessoas finalmente entenderem qual a razão da condição humana.


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Porque o bafo quente da sinceridade congela se houver ali medo. Porque na chapa de raio x se podiam ver mentiras, angústias e naufrágios; tumor não havia. Porque queimamos as fotografias, mas não sabemos o que fazer com nossos olhos. Os homens que procuram por mulheres fora de casa. A culpa não é somente deles, mãe. Porque o rock não pode fazer sentido pra quem se acostumou com o ritmo do medo, do descaso e da truculência. Porque há muito pouco de mais belo para se ver do que uma mulher chorando. Porque o silêncio consegue ser mais arrogante do que um discurso conservador. Porque não permitem mais que se encontre a fim de somente compartilhar vida, pois o tempo é curto, tempo é dinheiro e ambos andam em falta. Meu carinho pelas pessoas muito jovens que nasceram antigas e não admitem que envelhecer seja um golpe da vida. Meu carinho pelos tresnoitados, que o que querem é uma cama confortável, um abraço quente e um pouco mais. Porque já não permitem às crianças sonhar como sonhamos; aos jovens, amar como amamos e aos adultos, querer voltar atrás. Porque fizemos fazer calor no inverno mais duro do século. Porque os poemas tomam rumos desconhecidos e é preciso desapegar-se deles: já não são teus quando invadem a alma de outrem.


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Porque sonhar acordado pode ser perigoso para a saúde dos dentes, para os prazos a serem cumpridos e para a própria realidade, que necessita de ti. Naquele pasto em que caminhamos agora há prédios, mas no rio em que nos banhamos, Nicolle ainda alimenta os peixes, chamando-os para vir comer como nos chamavam nossas mães na hora de tomar banho. A infância é um eterno fim de tarde. Porque não sei dançar. Porque cheiro de casa limpa nada tem a ver com o aroma artificial dos produtos de limpeza. Porque éramos tantos há tanto tempo e hoje não sabemos sequer quem somos. Repetir-se é reencontrar-se consigo ontem e não permitir que o amanhã se faça pleno e sem defeitos. Meu carinho pelos casais que caminham de mãos dadas sob o profundo silêncio de quem sabe que não vale a pena dizer o que está pensando. Pombo-romano, pombo-correio, pombinho. Porque depois do maquinário instalado para a duplicação da rodovia, as prostitutas tiveram que encontrar novos postos de trabalho. Nessa noite, ele ligou para casa e disse à esposa que sentia saudade. Porque não se pode resumir toda carência a uma lua em peixes. Aparentemente não. Porque no dia em que se casariam fez tanto vento e tanto frio que os automóveis congelaram, as flores se despedaçaram e cada coração secou.


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A canção certa no momento certo faz a vida sorrir, o peito esquentar e bloqueia toda e qualquer tentativa de poesia. Porque ela se olhou no espelho à procura de si mesma e telefonou para os amigos a fim de lembrar quem ela era. Porque quando se quer silêncio, quando finalmente chega a hora de se aquietar é que os enganos enganam a si mesmos e a verdade abrese numa enorme labareda sobre o mar. Não adianta varrer as folhas de outono, como não adianta querer saber-se: encontra-se sempre no outro. (As folhas, aqui, são meramente decorativas). Porque a polícia desistiu das bombas de gás e optou pelo esquartejamento público com a ajuda de cavalos. Um episódio de Snoopy e centenas de cruzes brancas sobre os campos verdes da Normandia. Pra que isso, Schulz? Porque os anos nos chegam devagar enquanto planejamos a melhor maneira de lidar com isso. Porque preciso te resumir a um poema. Porque as cicatrizes no rosto de um menino pobre permanecerão para sempre lhe exigindo que se lembre, mesmo que não queira, mesmo que consiga escondê-las. Porque a vontade de viajar não pode ser fuga: para onde quer que vás, estarás sempre aqui. Os economistas decidiram rapidamente o quanto seremos felizes no ano que vem e ficamos todos decepcionados. Porque não se dorme e se acorda a mesma pessoa, sobretudo se ela ainda dorme do teu lado.


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Fazia sol. Ou não fazia. A água que escorre pelas sarjetas da cidade jamais deverá ter vindo das lágrimas dos teus olhos. Porque são tempos de barbárie, de violência – remar para sobreviver ou pagar por querer estar vivo. Porque sextas-feiras são a droga mais forte e, sob certos pontos de vista, menos prejudiciais a que um homem pode ter acesso. Porque se descobriu que os automóveis transitam melhor e confortavelmente sobre carne humana, tantas pessoas foram atropeladas que o cheiro de carne podre invadia os dutos de ar-condicionado e alcançava as raízes dos dentes, de modo que em muito pouco tempo já não se viam mais carros nas ruas. Porque inventam de tudo, menos o novo. Porque afirmaram que descobriram os rostos dos assassinos, torturadores, sádicos e manipuladores, e quando fomos ao grande auditório reconhecer os pulhas no que seria uma grande celebração seguida de um linchamento público exemplar, recebemos todos um espelho cada um – e diante do fato inusitado ríamos nervoso até as gargalhadas, até arrancar os cabelos. Porque era impossível revelar a verdade enquanto não houvesse o que dizer. Meu carinho pelos psicopatas que matam em nome do amor e pelos suicidas que deixam a vida por falta dele. Porque somente sentimos saudade dos mortos, pois não sentimos o cheiro que exalam seus corpos, mal se terminou de enterrá-los. Porque arte é fuga, instrumento de dominação e assunto para se tratar durante o cigarro do pós-coito.


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Enquanto corremos, enquanto somos perseguidos, não nos damos conta de que quem corre à nossa frente foge com medo de nós. Porque ele se orgulhava do emprego no banco e achava plausível contar em apenas uma tarde tanto dinheiro como nunca ganharia em toda a vida. Porque é preciso tratar as crianças como se tratam os animais de estimação. Porque então veio a fome, depois veio a dor, depois a falta de ar – e tudo ficou no mais absoluto silêncio. Porque o que tinha de bela era carregado de tristeza e vazio. Porque é preciso dormir cedo para acordar cedo; ir trabalhar cedinho e, cedo, ter feito o que precisava ser feito; é preciso viver cedo para morrer cedo e, cedo, ser esquecido como todos aqueles de quem nos esquecemos. Porque as noites de domingo precisam de uma descrição que alcance tanta cerimônia, este velório dos dias leves em que se respira. Porque exclusivamente hoje foram poupados à fogueira os desajustados, os veados, os loucos, os pobres, as putas, os velhos, as mães solteiras, os mendigos, os drogados, as crianças famintas, os negros, os japoneses, os colonos de Santa Catarina, os índios, os garimpeiros, os seguidores do monge São João Maria, os sem-terra, os cancerosos, os atropelados, os amputados, os bêbados, os depressivos, os órfãos, as faxineiras dos banheiros públicos, os masturbadores, os epiléticos, os sonhadores, os poetas, os grevistas, os torturados, os fugitivos, os esquecidos e os desamados. Porque não souberam o que fazer conosco ontem , temem tanto o que podemos vir a fazer amanhã.


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Deveria ter sido ontem, mas parece que não terá fim: quem sabe a que horas nasce o sol? e a que horas melhor se morre? a hora em que a chuva escorre e atravessa o teu jardim, qual é? A agulha desapontada que rasga a pele da nossa loucura. A rotina e suas garras: com que sonhas nas noites geladas em que o que falta é direção? Uma estudante de aparelho nos dentes rasga as tripas e procura dentro do ventre o seu mistério. É preciso ter calma por simplesmente a vida toda; é preciso ter calma por um tempo: toda a vida; é preciso ter calma ou te ataca o coração. Os meninos de preto, a bandeira do Brasil, os trabalhadores e uma guerra civil que nunca teve trégua e hoje ousam passar na televisão. Porque é de se comer restos que se valoriza um prato quente e sem frescura, como arroz e feijão; é de chegar perto que se angustia com a procura: por onde se anda quando se tem que correr? Uma corrida de mancos contra cegos, de segunda a sexta-feira, nas principais avenidas da cidade. Os afogados recorrentes que finalmente alcançaram a paz enchendo os pulmões de água, esvaziando-os de dor e de ar. (Uma carta não enviada porque se esqueceu o endereço, porque congelaram os dedos e, atrofiada a memória, não vale a pena escrever: ler é lembrar). Tudo não passa de uma questão de episteme. Será? Depois do incêndio, quando lavaram o prédio, pelas escadas escorriam cinzas, sangue e merda - e todos nos constrangemos por presenciar o que por fim resta duma casa de gente comum.


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As ratoeiras disparando nos pés de quem não possuía sapatos. Nossos pés sangravam, doloridos, e seguíamos avançando. Do outro lado do muro há um mundo exatamente igual a este - e os de lá também se perguntam. Sempre se perguntaram. Vieram os choques, os cortes e as pauladas: não supunham o quão profunda fosse nossa dissimulação ao responder-lhes que sabíamos tudo e não contaríamos nada. Porque uma coisa distinta é um homem saciar-se de loucura e deixar de lado o gin, o conhaque e o vinho. Já se passou tanto tempo; do que tens medo? Porque colecionamos despedidas como colecionamos livros e a sedução reside em sempre adiar a leitura das primeiras páginas. Porque sempre me assustaste e ainda o fazes quando descreves vida na vista duma janela infértil. Porque as praças foram decoradas com abraços, beijos, cores e música, e caminhávamos sorrindo - embora se tivesse de desviar dos dejetos dos cães policiais. Empurraram os pobres morro acima e nem desconfiaram de que um dia fossem eles mesmos querer usufruir das melhores vistas e dos frequentes ventos; agora amargam raivosos seus canais de tv a cabo com paisagens e aparelhos de ar condicionado produzidos na China. Porque somente depois de muito tempo é que se consegue enxergar quem está mais perto, embora seja sempre custoso o cálculo das perdas e dos danos. As árvores que plantamos, cortaram pela raiz; os livros que escrevemos, somaram cinzas nas fogueiras da predileção: restam os nossos filhos, que somos nós mesmos vinte anos atrás - de quem é


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preciso cuidar, alimentar e querer bem, mesmo que isso não faça muito sentido na realidade sensata, imediata e triste. Porque ainda que se silencie a alma, continua se ouvindo os barulhos dos motores. Já é tempo de esfriar e talvez por isso a angústia coletiva com este calor que não tem fim: vive-se a primavera como se não precisássemos nos recolher para dentro de nós mesmos para nos protegermos do frio do ar e dos olhos gelados das pessoas. Porque é preciso levar a sério a vida, nos dizem, enquanto respondemos com uma gargalhada contorcida, porque verdadeira, e cheia de expectativas de que se permitam eles também, um dia. Porque quando faz 15 graus não se pergunta onde dormirá quem não tem onde dormir. Também não se pergunta quando faz 10 graus. Também não se pergunta quando faz 5. Quando faz zero é muito há muito menos possibilidades de que se perguntem algo e se chover já estarão todos dormindo. Porque somente o olfato permite que permaneça aqui quem já não está. Porque às segundas-feiras se pausa a vida à espera de que voltemos todos à sanidade preguiçosa dos domingos de manhã. Porque o que era pra ser, já era - diz um poema que tenta rimar angústia com maçã e que ainda não foi escrito. Meu carinho pelos casais muito velhos que se conversam por hábito, por cada um ter cansado de ouvir a própria voz.


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Meu carinho pelos nostálgicos excepcionais que se vestem como na juventude de décadas atrás: é a melhor forma de cagar para o hoje. Meu carinho pelas mulheres muito loiras, muito finas e muito tristes que choram mordendo o travesseiro para não acordar o fantasma que dorme ao lado. Porque à hora da despedida, me despeço sempre como se fosse para nunca mais. E os cigarros empilham-se num cálculo de silêncios impossível de se fazer. Porque a cama chama, o dever chama, os livros, os escritos e as canções chamam, e são tantas as vozes que já não consigo escutar minha própria voz. Porque não avisaram que a vida era isso. Porque nos omitiram até mesmo o mais simples - e quando descobrimos nos sentimos ofendidos, porque enganados. Porque se passares os dias com os pés molhados talvez possas compreender quem tem a vida inteira úmida. igual.

São outros os tempos, embora a contagem dos dias permaneça

Porque foi tanta chuva e tanta lama que pensávamos poder ser diferente dali pra frente; nos enganamos: as ruas, as casas e os cadáveres limpos, mas da alma continuava jorrando o lodo espesso. Porque não sabemos o que esperar daqui pra frente que não repita tudo quanto já vimos, mas de maneira mais cruel. Porque ainda se permite sonhar e quase não se cobra por isso. Os cães de rua que não morrem atropelados: nós.


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Os beija-flores, as cambacicas e os sabiás. Os olhos azuis de meu pai. Porque não se espera quase mais nada além do que poderias esperar e ainda te surpreendes com como pode te agradar tua vida. Porque é e continuará sendo somente isso: a vida. E porque saudade é um prato pra se degustar na madrugada. E porque as fotografias se acumulam e se espalham. E porque as unhas crescem se paramos de roê-las. E porque desperdicei em tantos cantos meu nariz, em tantas noites - que foi uma mesma noite - não supunha ser possível vir até aqui, assim, e te perguntar o porquê. E é isso que respondo por mim e pelos insones que conheci, pelos bêbados com quem bebi, pelas mulheres que amei, pelos irmãos de quem parti; por cada passo não dado em direção a - quem sabe?;porcada poste de luz partido, por cada ato amordaçado no labirinto aqui de dentro. Uma canção devota, uma derrota e um adeus. Porque é muito pouco tempo que se vive e já não temos mais tanto tempo juntos: continuarás nos teus filhos, mas e eu, continuarei onde? Porque os teus olhos me olham com tanto quando o que te ofereço é tão pouco. A pergunta, quem sabe jamais apareça e se aparecer será tarde porque é sempre mais tarde do que parece ser, é sempre mais frio. É sempre mais escuro do lado de cá.


32

Uma carta-testamento que escrevo a mim mesmo e te ofereço como forma de agradecimento. Porque sim simplesmente não faz sentido. Porque não também não e talvez não funciona.


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