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Johnson
múltiplas relações que estabeleceu, a compreensão de muitos aspectos de sua vida. Percebe-se, contrapondo e aproximando os depoimentos, as várias maneiras de encarar a realidade social, entre semelhanças e diferenças que a mesma produz. Ainda assim definiram-se enquanto grupo, pois através de sua atuação num determinado contexto, construíram-se como sujeitos, frente a perspectivas semelhantes.
Johnson
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Meu nome é Orlando Silva. O apelido "Johnson" surgiu porque fui "boxer", isso há muitos anos. Nós tínhamos um lutador americano que chamava-se "Jack Johnson" e numa disputa ele levou uma pancada e morreu. De forma que fiquei como Johnson E não saiu mais.
Maria Antônia da Silva foi minha mãe. Meu pai, Avelino dos Santos. Não lembro mais os nomes de meus avós. Não lembro daquela gente... A família era de Porto Alegre.
Nasci em 24 de Outubro de 1910, na Avenida Cauduro, em Porto Alegre. Meus irmãos eram Aristides e Maria Isabela. Eram mais velhos que eu.
Eu morei em tantos lugares! Morei na Cristóvão Colombo, na Comendador Coruja, ali onde tem a fábrica de cerveja. Muitos lugares morei em Porto Alegre. Não deixei Porto Alegre. Andei em alguns lugares do interior, como Pelotas, Rio Grande, em excursões de apresentação como músico. Tínhamos amigos no interior que vinham visitar a gente. E já nos levavam prá localidade que moravam. E a gente participava disso tudo. Rui Neto, já ouviu falar? O Netinho, não nos largava... Era um fazendeiro aí. Não lembro de que lugar. Filho da família Zeca Neto. A gente ía para a casa do Netinho.
Freqüentei a escola, mas gazeava muito. Tinha uma turma... Ao invés de ir prá escola, nós íamos prá um negócio de madeira que tinha na Voluntários da Pátria. Eu morava na Comendador Coruja, estudava num colégio perto. Aí tinha aquele negócio de madeira e nós íamos prá lá, a gurizada, brincar. Eu tinha uma raiva daquele colégio. Eu queria brincar com os amigos na praia... Um dia quase que um jacaré me pegou... Ficava próximo do rio, andávamos em cima daquelas madeiras... Esqueci o nome da escola. Sei que era na Voluntários da Pátria, numa esquina. Era um colégio grande. E do outro lado da rua tinha aquela serraria grande. Maravilhoso aquele tempo. Não dava muita bola para o ensino.
Trabalhei na Frederico Mentz, era uma fábrica, também ali. O meu irmão trabalhava lá e me levava prá trabalhar com ele. Ajudava meu irmão a carregar os trens. Era uma fábrica muito grande que tinha na Voluntários da Pátria. Toda espécie de material. Não recebia salário, apenas ajudava meu irmão. Era criança, recebia por fora. Os Mentz eram muito amigos, sabe. O filho do Mentz, aquele guri, era agarrado
comigo. Um rapazolinha. Esqueci o nome. Nos dávamos muito bem. Passava mais a vida na praia ali e na casa dele. Ajudava mais ou menos. Fazia miséria. Gente poderosa...
Não casei. Graças a Deus! Tive muitas amizades, sabe. Mas nunca me entusiasmei. Não tive filhos. Adorava demais a minha mãezinha. Vivi com minha mãe até quando ela disse adeus. Por isso eu deixei muita coisa, abandonei muita coisa. Não me importava com namoro, sabe. A única coisa errada que eu fiz na minha vida foi conseguir manter a minha vida solitária. Sem casamento. A falecida minha irmã fazia gosto que eu casasse. Casar nada! Não deu. Não saiu casamento. Sempre apareceu alguém, mas a gente controla muito, sabe. Eles me chamavam muito de "safadão". Mas, eu não era não. Se eu fosse safadão hoje 'tava casado, né?
Minha mãe era lavadeira. Lavava, e eu entregava as roupas. A família Parreira me queria muito bem, sabe. Chegava lá e entregava a roupa para a dona Alzira, que sempre tinha um presente para me entregar. Doutor Manoel Parreira foi lá em casa e disse "olha, esse guri agora tem que fazer alguma coisa, ô Maria". E minha mãe respondia, "o senhor é que sabe". Eu era muito bem quisto porque, graças a Deus, era bem educado. Tratava bem essa gente. Nossa Senhora! Cada vez que ía levar uma roupa lá, já vinha com um presentão prá gente.
Meu primeiro emprego mesmo foi no Mercado Público. Naquelas bancas. Numa daquelas fábricas. Minha mãe lavava roupa para uma família, dona de uma daquelas fábricas. De maneira que me levou prá lá e não me soltou mais. Na fábrica de Frederico Mentz. Quanto a profissão, além da fábrica, fui boxer. Havia boxe aqui, muitas lutas de boxe. Recebia alguma coisinha pelas lutas. Uns tostões. Mas depois que morreu Jack Johnson a mamãe pedia e chorava... Fiquei no boxe enquanto rapazola. Mas, quando morreu Jack Johnson mamãe ficou desesperada. Ela fez eu largar o boxe. Depois trabalhei na Secretaria de Educação. O Lupicínio trabalhava na faculdade de Direito e eu na Secretaria de Educação. Nos conhecemos e aí não acabou mais nossa amizade. Sempre juntos.
Nunca compus. Coisa interessante, nunca tive condições de compor. Executava o que era dos compositores. Eu conheci Lupicínio. Ficamos amigos. E ali veio aquela nossa vida até o adeus dele. Lancei quase que todas as músicas dele. Não tive parceria com o Lupicínio. Só lançava as músicas dele.
Eu era o crooner de uma orquestra que tinha aqui em Porto Alegre. Ingressei cedo na orquestra. Eles me procuraram. Nessa época eu já andava com o Lupicínio. Eu cantava em festinhas, em bares, nas rodas de amigos. Ficávamos nos divertindo. Aqui tinha o Salão Rui Barbosa, onde davam bailes. E eu fazia parte da orquestra. Era eu, Pedro Raimundo... Eram todos os irmãos lá... Grande musicista! Era uma orquestra muito boa. Trabalhávamos muito em bailes e outras festas.
Andávamos muito. Por toda a cidade. Muitos lugares. Colônia Africana então... A Colônia Africana era uma zona onde tinha lá um cara que mandava. Um capitão não sei do que... Coronel Farula! O famoso Coronel Farula! Ele não era dono das terras, era quem comandava aquela zona, mandava lá. Esse velho gostava da gente que era um assunto sério. Nós não saíamos daquela zona, né. Os que viviam lá era tudo misturado. Negros, brancos... Lá não tinha preto nem branco. O pessoal era muito unido, sabe. Depois tinha uma grande sociedade bailante ali. Também fazia parte, né. Eu era o crooner da orquestra. Naquele tempo eu já cantava.
A gente andava em tudo que era lugar. Eu gostava muito de passear. O Lupicínio já era famoso nessa época. E eu estava no mesmo estilo dele.
Não toquei nenhum instrumento. Nem Lupicínio. Não tive qualquer estudo dentro da música. Sempre de ouvido. Os irmãos Ruschell, uma família grande que tinha aí, eram de televisão, eram de tudo... Eles me queriam muito bem.
Nós fomos dois amigos muito ligados. Unha e carne como se dizia. De forma que o Lupicínio quando estava inspirado e dizia "meu camarada, fiz mais uma porcariazinha aqui". E ele cantava prá mim. Já lançava na Gaúcha, naquela época. Estourava. Eu era contratado pela Gaúcha. Eu cantava Lupicínio e cantava diversos compositores. Tinha a liberdade de chegar e lançar a música. Ao vivo, direto da rádio. Com orquestração da própria rádio. Naquela época nós tínhamos lá um conjunto, o Piratini. Bem conhecido pelo nome. Foi muito famoso. Eu cantava junto ao Piratini e outros conjuntos. A rádio Gaúcha marcou época. Tinha muitos amigos. Incríveis. A Gaúcha era um colosso! Me consideram o "lançador de Lupicínio". Porque o Lupicínio fazia uma música e dizia "olha aqui meu camarada". Eu já no outro dia, lançava na rádio. Trabalhei na Gaúcha e na Farroupilha. Naquela foto eu estou cantando na Farroupilha. Sabe o que é rádio, né. Tinha gente bacana. Era uma turma muito grande de cantar. Depois uns amigos daqueles, de laço...
Tinha uma cantora muito minha amiga. Do tempo da Farroupilha. Esqueci o nome dela. Como cantava... Gostava de cantar. Eram homens e mulheres. Eram cantores, sem diferenças de salário por serem homens ou mulheres. Não tenho em mente o nome delas todas. Nós tivemos cantoras aqui que era uma coisa louca. Essas mulherezinhas cantavam, sabe. E eram bonitas! Lindas! Cantou em rádio já está no cartaz. Não existia preconceito porque elas criavam seu nome. Daqui a pouco aparecia uma cantora aí... A Farroupilha ou a Difusora, seja qual for a emissora, já caçava ela e levava prá la. Já era um sucesso da rádio. A emissora tal lançava fulana, a outra lançava siclana... E os caras 'tavam aparecendo. Inclusive gente de posição, sabe. Gente rica. Mas, eles queriam aparecer. Queriam cantar. Davam uma chance, se iam
Não cheguei a gravar disco. Não me importava muito com isso. Eu gostava mais de chegar... Visitas que a gente fazia nas casas. Levávamos os violões, tudo... As famílias conhecidas... Nós íamos lá cantar prá eles... Faziam comidas, coisas boas.
Uma vida assim eu acho uma beleza! Esses encontros... Antigamente as famílias faziam muita festa.
Trabalhei na SBACEM(Sociedade Brasileira de Compositores e Escritores de Música). Aquela SBACEM me explorava muito. Fazia fiscalização. Todas as casas musicais noturnas tinham que pagar direitos autorais. E eu era da parte de fiscalização. O Lupicínio era o representante, o presidente, dos direitos autorais. Eu era o auxiliar e tinha mais o Altamiro de Souza. Ganhávamos por esta fiscalização. Éramos gratificados, constando como atividade na carteira de trabalho. O Lupicínio era o "dono do campinho".
Não fui sócio ou proprietário de nenhuma casa noturna, nem em companhia de Lupicínio. Nas casas que Lupicínio abriu com Rubens Santos, freqüentava. Ía lá, as famílias pediam... A gente ía. Tinha que largar uma cantadazinha. Visitava apenas, não atuava como profissional. Aceitava um whisquezinho.
Mas, eu vivi muito bem. Muita amizade. Os judeus são meus amigos prá chuchu. Perdi há pouco um grande amigo. Dono da Casa Lú, Abraão Lerrer. Não faz muito tempo. Não sofri nenhum tipo de discriminação. Nem por ser boêmio, nem pela cor da pele. Minha mãe também nunca se queixou. Ela se dava com aqueles judeus todos, da Avenida Cauduro.
Continuo cantando, no barzinho da esquina. Tenho que cantar, porque não me deixam... Todas as quartas-feiras fazemos reuniões e dê-lhe chorinho. Também no Glória.121 Sem remuneração, apenas pelo prazer. Canto sempre. Porque não me deixam parar. Eu adoro a música. Depois, me habituei a cantar e aí não teve mais jeito.
Por que cuidar da voz? A voz é uma só. O fumo não tem nada a ver com a voz... Todo cantor tem uma maneira de cantar e aquela vozinha não perde. Fumo desde rapaz. Não sou muito alcoólico. Desde muito que eu bebo, né. É muito difícil eu beber, sabe. Mas, as vezes numa roda de amigos, a gente não pode dizer não. Não gosto muito de cerveja. Um wiskizinho, uma coisa assim... Leve, sabe. Isso eu tomo, sabe. Não me faz mal não. A única coisa que pode me fazer mal é esse cara aqui (referindose ao cigarro). Esse me persegue. Mas, não fumo muito.
Se eu me dedicasse só à música podia viver com esta atividade. Sempre aparecia um dinheirinho. Sou aposentado apenas pela Secretaria de Educação. Não recebo nenhum direito autoral ou qualquer outro rendimento relacionado à música. Mas eu sou muito bem aposentado.
Eu era funcionário da Secretaria de Educação, numa função administrativa. Estive ali toda a vida. A Secretaria eu adorava. Tinha amigos incríveis. Tinha a Doutora Diná, advogada, que todo dia tinha uma safadeza para me contar. Não trabalhava oito horas.
121 Glória Tenis Clube em Porto Alegre.