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Jaime
vida ficou ruim, pelo meu sentimento. Eu queria deixar a música, não queria cantar mais. Fiquei muito triste quando ele morreu. Porque ele era meu amigo. Demais. Eu fiquei desamparada sem ele. Depois quem me amparou foi o Maurício Sobrinho. O Maurício Sobrinho me amparou, de coração. Ele era humano, era gente.
Eu gravei um disco todo, só de músicas do Lupicínio. Porque eu prometi prá ele em vida que um dia eu iria gravar músicas dele. Lupicínio dizia que eu era a cantora preferida dele, que quem sabia interpretar com o coração as músicas dele era eu. Quando eu fazia um show, ele era o primeiro a estar ali na frente, parado, prá me ver cantar.
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Eu sou uma quase feliz. Mas falta muita gente me ajudar... Porque a mídia faz cantoras, às vezes, que não cantam nada. Deixam aquelas cantoras que cantam direitinho. Não entendo o porquê dessa "panela porca". Tem que dar valor a quem tem. E não existe isso. Eu 'tou envelhecendo. Mas quero deixar alguma coisa bem feita. Vou me dar valor... Os grandes que tão sentados nas poltronas, estão tratando de arrumar muito dinheiro. Aqueles homens não se importam com a Zilá Machado que é cantora, que faz tanta coisa bonita em Porto Alegre. Nós somos as flores de Porto Alegre. Eles não fazem nada. Porque não se vê, sair de Porto Alegre, uma cantora mais.
Eu não sou aquela cantora pedante, não. Deus me deu esse dom de graça. Só não posso cantar de graça porque eu tenho que comer e viver, né. Todo mundo ama cantor.129
Jaime Lubianca
Meu nome é Jaime Lewgoy Lubianca. Sou nascido em Porto Alegre, 10 de Novembro de 1922. Estou com 71 anos.
Meus pais eram: José Lubianca e Paulina Lewgoy Lubianca. Todos dois tocavam piano. Meu pai tocava piano e violino. Era uma família que gostava de música. Tínhamos piano em casa. Toda a família se reunia para tocar música, num espaço pequeno. Nem todos os filhos tocavam. Como éramos muitos filhos, foram nove ao todo, raramente estavam todos em casa. Meu pai era médico e, quando estava em casa, tocava um pouco prá gente. Então, geneticamente, fui instruído a gostar de música.
Meu irmão Willy, também gostava e gosta muito de música, até hoje. Ele também tocava piano. Estudou um ano, ou dois. Por isso ele ficou com o piano depois que faleceram os velhos. Ele até continuou um pouco... Participava de um conjunto, viajava... Depois passou a tocar contrabaixo. Com aquele conjunto ele foi até a Argentina.
129 Entrevistas realizada nos dias 25/11/93 e 3/12/93.
Meus irmãos foram nove ao todo. O mais velho, chamava-se Sócrates, era advogado. Também foi cantor, era crooner da orquestra de Paulo Coelho, apelidado de Ted Roberts porque ele cantava em inglês. Na mesma ocasião em que o Alcides Gonçalves estava lá, como cantor de música brasileira, junto com Sadi Nolasco da rádio Farroupilha. Chegou a cantar na orquestra do Mamed, depois que a orquestra do Paulo Coelho terminou, no Cassino Farroupilha, no Centenário Farroupilha. Não teve uma formação mais específica, cantava de ouvido. Nós tínhamos um tio-avô, que morava nos Estados Unidos. Sócrates mantinha contato e, recebia dele, as partituras de orquestra, dos clássicos todos, depois emprestava pro Paulo Coelho. Isso depois se perdeu quando queimou a rádio Farroupilha. Queimou tudo junto.
O Zélio é funcionário aposentado da Prefeitura. Trabalhava executando projetos. Como músico ele tinha aquele conjunto dele, que viajavam, levavam prá outros estados. Mas não tinha a intenção de se profissionalizar. Ficou na Prefeitura, depois se aposentou e, hoje, está cuidando dos netos.
Eu estudei música só no colégio, com o professor Camilo Cossati. Ele tinha uma cadeira lá, que era opcional, de música. Estudei só a parte de solfejo, leitura, né. Os fundamentos da música, né. A escala musical... Coisas bem primárias, nada mais do que isso.
Eu tenho formação universitária, sou engenheiro agrônomo, formado pela UFRGS.130 Estudei no IPA,131 entre 1930 e 1940. Era a educação protestante americana, muito bonita. O colégio tinha uma filosofia de liberdade total ao aluno. Talvez no colégio eu tenha sido muito mais de escrever, no tempo de adolescente, aquela poesia de adolescente, do que de fazer música. Eu só comecei a fazer música de 45 em diante. Passei a gostar mais de fazer música do que a poesia.
Eu cursei o "Julinho",132 o curso técnico noturno. Quando eu fiz vestibular prá Agronomia, nessa fase de adolescente, pré-universitário e universitário, tive a oportunidade de conhecer instrumentistas da música. Fiz contato com pessoas que eram efetivamente ligadas à música. Então passei a ter uma outra ambientação no gostar da música. Era um aprendizado mais prático no gostar da música. Aprender melodia vendo os outros tocar. Apreciando também a capacidade de cada um deles em tocar seu instrumento. Desta fase, destaco como instrumentista o "pretinho" Gervásio. Grande músico! Ele tinha muito pouca instrução. Mas como músico era excepcional. Tocava violão como pouca gente sabia tocar violão.
Nessa época eu estudava e trabalhava, né. No pré-técnico do "Julinho" eu entrei prá Secretaria de Segurança, onde fui datilocopista do Instituto de Identificação. O
130 Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 131 Instituto Porto Alegre da Igreja Metodista. 132 Colégio Júlio de Castilhos, da rede estadual, em Porto Alegre. Assim como o IPA, considerado um dos estabelecimentos de educação tradicionais na história da cidade.
meu pai era um dos diretores do Instituto de Identificação. Logo que eu entrei no ginásio, eu rodei um ano, no pré-técnico diurno. Aí o meu pai disse, "agora tu vais saber o quanto custa a gente viver e se auto-sustentar". Então ele me conseguiu um emprego no Instituto de Identificação como "tomador" de impressão digital. Dali eu passei a exercer o ofício de datilocopista. Isso foi lá por idos de 41, 42. Por isso que eu passei pro técnico noturno. Então, foi que eu comecei a fazer os contatos com o pessoal da noite. Vinha muita gente ali e eu comecei a conhecer muita gente da noite. Isso me possibilitou o maior contato com esse pessoal. Começou, então, a crescer a minha vontade de ouvir e fazer música, de gostar da música.
Fui crescendo e tendo a minha independência, pois já trabalhava e me sustentava. Ao mesmo tempo passava uma semana na casa de amigos meus, colegas. Uma casa de pensão, na Siqueira Campos. A medida que me tornava mais independente de minha família, abriam-se as possibilidades de freqüentar mais a noite.
Para ingressar nesse meio musical, era necessário comparecer permanentemente nos lugares que esses músicos tocavam. Então, ia acontecendo o entrosamento. Daí se tocava de ouvido, se aplaudia, se incentivava. O músico vive do incentivo, da presença das pessoas que assistem. Então ficava-se comum à eles, vai ficando conhecido e no fim se está no grupo. Assim foi se formando esse grupo, assemelhando-se nas coisas que tocavam e gostavam. Criava-se uma mesma "mecânica" de musicalidade da época. O cantar da época, tendia muito pro romântico. Então, tudo que se escutava lá, tinha um toque de romântico, salpicado do maxixe. Do maxixe veio o samba. No fundo, no fundo, tinha uma linha melódica de romantismo, abreviado um pouco mais a velocidade do ritmo. Ficava o toque de uma linha melódica romântica.
Eu ouvia muito rádio. Aqueles programas da Rádio Nacional... Aquilo me induziu muito também a gostar mais da Música Popular Brasileira. Eram aquelas valsinhas, chorinhos, samba... Na época eram programas bastante difundidos, muito ouvidos. As rádios daqui eram muito pobres, no sentido de fazer programações daquela natureza. No Rio eles tinham um volume muito grande de instrumentistas. Naquela época, o Rio era o centro do Brasil. Todos os compositores, do norte, do centro e do sul, iam pro Rio. Então as rádios da época tinham oportunidade de fazer seleção. Por isso eles tinham a capacidade de fazer os melhores programas. Tinham programas que a gente escutava até meia-noite, meia-hora, na Rádio Nacional. O programa Serenata, com César Ladeira, na Rádio Nacional, por exemplo... Entrava a madrugada. Naquele tempo, aqui a gente ouvia aqueles programas da madrugada. Eram programas muito bons. Tinha muito pouca propaganda. Era mais a música mesmo. Faziam comentários das músicas, havia competições... Faziam comentários descrevendo tudo o que era relativo aquela música que seria interpretada. Tinha os melhores cantores, os melhores instrumentistas, compositores, também. E, tinha os melhores comentaristas.
Alguns conseguiam se educar, musicalmente falando, através de programas e contatos com gente com mais capacidade de instrumento. O violonista Jessé é um deles. Aprimorou-se no contato que teve em São Paulo e no Rio, com outros instrumentistas.
Entre os compositores, nesta época, saídos de Porto Alegre para o Rio de Janeiro, pode-se destacar, além de Lupicínio Rodrigues, o Alcides Gonçalves. Foram os dois que se destacaram.
O Alcides era efetivamente um profissional da música. O Lupicínio não era um profissional da música, era bedel da faculdade, trabalhava na portaria, uma coisa assim... Efetivamente ele era um funcionário da faculdade de Direito, ao passo que o Alcides vivia da música. Trabalhou na rádio Farroupilha muitos anos, como Paulo Coelho, a orquestra de Paulo Coelho... Então, ele vivia da música. Então, quando cessou a orquestra de Paulo Coelho, ele foi embora pro Rio. Saiu daqui como contratado num navio, tocava piano no navio que ia até o norte... Depois ele cansou de ser pianista no navio e desembarcou no Rio de Janeiro e lá, começou a aventurar como músico, como cantor, né. Tocava também violão, se defendia. Como seus irmãos, vivia efetivamente da música. Eles tinham um conjunto... Eram cinco ou seis irmãos. No final da vida dele, conseguiu um emprego na Assembléia Legislativa, onde aposentouse. Até então, vivera sempre da música. Antes de fazer a parceria com Lupicínio ele já tinha várias composições suas.
Conheci minha esposa na repartição, pois ela trabalhava na Polícia Técnica e eu trabalhava no Instituto de Identificação. Um era do lado do outro. No tempo em que a Central de Polícia era na Duque de Caxias, esquina com a Marechal Floriano.133 Um prédio que queimou. Ali que eu a conheci.
Minha esposa nunca freqüentou os bares em que eu ouvia música, naquela época. Praticamente não estudou música. Nunca se importou que eu freqüentasse a noite. O nome de solteira de minha esposa era Maria Helena Figueiredo Pinto de Souza. Adotou o nome Lubianca depois de casada. Tivemos quatro filhos, mas perdemos um. Quatro homens. O Roberto, que faleceu, tocava um pouco, mas não como profissional. O Renato começando a tocar num conjunto. É roqueiro. Toca violão. Agora se registrou na Ordem dos Músicos. Eu não sou registrado lá.
Fui amigo de Lupicínio. Tenho até fotografia com ele, onde aparece me abraçando, na inauguração de um barzinho que teve aqui na Cristóvão Colombo. Faziam uma galeria de fotos dos compositores... Ali então, quando inauguraram com o pessoal que era compositor, me chamaram. Numa churrascaria da Cristóvão Colombo... Hoje é um rodízio de pizza. Era um bar que inauguraram prá boêmia Bar, restaurante, churrascaria. Inauguraram ali a fotografia do Lupicínio.
133 As ruas Duque de Caxias e Marechal Floriano ficam na área central de Porto Alegre.