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Entre Arnestos e Ernestos Valdir Mengardo
R M
Pastiche Crônicas de Adoniran I
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Entre Arnestos e Ernestos
Valdir Mengardo
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Onome de Ernesto Paulelli não significava nada para mim, até que o Kanec, dono de um famoso espaço musical na Vila Madalena, me procurou: “Nosso próximo homenageado vai ser o Adoniran e você precisa fazer um roteiro bem redondinho porque o seu Arnesto vai estar presente”. Fiquei surpreso e nem de longe imaginava que o inspirador de um dos maiores sucessos do Adoniran ainda estivesse vivo, em pleno século 21. “É, o velhinho tá firme e forte, com mais de 90, e ainda mandando brasa na cervejinha. O Nando conhece a figura e vai trazê-lo para ser homenageado”, completou Kanec. De repente um filme começou a passar pela minha cabeça, um filme que começava numa sala antiga, com uma enorme rádio-vitrola num canto. Era só girar o botão e o disco caía; um disco pesado, daqueles de 78 rotações, tão frágil que só de vê-lo cair do suporte me dava medo de que ele espatifasse no prato que não parava de girar. E se ele se partisse, pronto! Lá se iam pro espaço o “Samba do Arnesto” e “Conselho de Mulher”, um dos primeiros discos que
passou pelas minhas mãos, não sei se comprado pelo meu pai ou meu avô, que se divertiam demais com a fala italianada do Adoniran.
O Arnesto nos convidou pra um samba Ele mora no Brás, Nois fumo, não encontremo ninguém, Nois vortemo com uma baita de uma reiva Da outra vez nois não vai mais.
A memória percorria os caminhos de um Brás que hoje não existe mais, onde talvez num sobrado amarelo, perto do Gasômetro, entre o Balila e o Castelões (quem sabe?), um certo Arnesto preparava uma presepada monumental com o Charutinho (vulgo Adoniran Barbosa) e seus amigos de maloca. E agora o Kanec me contava que o Arnesto estaria em carne e osso na minha frente, talvez para reparar aquela mancada indescritível de convidar a cambada para um samba e ir embora sem nenhuma satisfação. Pois é, mas de qualquer maneira eu tinha que preparar o roteiro, e rapidinho porque o Kanec sempre avisa essas coisas em cima da hora. Mas enfim chegou o domingo da homenagem. Casa cheia, apesar do futebol na telinha, e lá me plantei na frente do palco esperando o Arnesto chegar. Por mais que a lógica tente nos dizer que já se passou meio século entre o samba do 78 rotações e aquela tarde de domingo, era impossível deixar de imaginar a figura malandra do sujeito que enganou Adoniran. E quando o seu Ernesto entrou no bar, consegui vislumbrar em seu rosto envelhecido alguns traços daquele memorável sambista. Quem é do samba sabe bem a magia de se encontrar pelo caminho algum pedaço de história, e agora estava na minha frente um baita pedaço da música popular brasileira. Abracei Ernesto Paulelli e perguntei para o dono da casa o que iria acontecer. “Ah! o seu Ernesto é nosso convidado e vai assistir todo o show ali sentadinho na primeira fila.” Mas o repórter que ainda sobrevive ao professor me cutucou pelas costas e lá fui eu saber se podia fazer umas rápidas perguntinhas ao seu Ernesto. “É claro que sim, pode me perguntar que eu respondo com o maior prazer”. E era a pura verdade. Mal desci do palco para fazer a primeira pergunta e o Seu Ernesto se apossou do microfone e ficou falando um tempão com um desembaraço e uma carreira; foi logo depois que ele passou por aquele programa de calouros cantando “Filosofia”, do Noel Rosa. Fui com a cara do sujeito e dei o meu cartão pra ele. Adoniran olhou bem e falou em voz alta ‘Arnesto’. ‘Não, Ernesto’ retruquei. Mas ele, nem aí, disse: ‘Fui com a sua cara Arnesto e vou fazer um samba pra você’”. Ernesto Paulelli não acreditou no papo do sambista e continuou tocando na rádio, por vezes acompanhando Adoniran. Até que no ano seguinte encontrou a mulher de sua vida que, muito ciumenta, queria casar-se com ele, mas exigiu que ele largasse a música. O músico rendeu-se à amada, e Ernesto virou auxiliar de contador numa fábrica de cera, ironicamente também chamada Record. A música ocupava então um espaço bem menor na vida de Ernesto Paulelli quan
lucidez pouco comuns em pessoas de sua idade. Logo de cara fui perguntando sobre o entrevero entre ele e Adoniran: “Mas como o senhor foi dar uma mancada dessas com o Charutinho?” “Bom, a história não é bem essa que ele conta. Eu conheci o Adoniran em 1938, quem nos apresentou foi a Nhá Zefa, cantora de primeira daquelas modas de viola. Eu tocava violão na Rádio Record e o Adoniran estava no começo da do, lá por volta de 1955, sua mulher ouve assustada uma canção de Adoniran Barbosa. “Minha mulher me chamou correndo dizendo ‘Olha aí o que o Adoniran fez pra você’. E eu comecei a ouvir e a chorar junto com minha mulher, ao ver que 17 anos depois de nosso primeiro encontro o Adoniran cumpria a sua promessa, fazendo aquele ‘Samba do Arnesto’, do mesmo jeitinho que ele me chamou um dia.”
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Valdir Mengardo entrevista Ernesto Paulelli, o famoso Arnesto de Adoniran Barbosa.
“Mas quando o senhor fechou a casa para o Adoniran...”, insisti. “Mas essa história que o Adoniran conta nunca aconteceu. Eu não toco violão faz muito tempo e nunca fechei a minha casa pra ninguém.” “Pois é, mas a música é bem descritiva, conta que o senhor morava lá no Brás...” Seu Ernesto, meio surpreso, emendou: “Mas eu nunca morei no Brás; a maior parte da minha vida passei na Mooca, que é perto do Brás.” Naquele momento a conversa parecia ir para outro lado. Eu procurava o personagem que povoou minha infância e animou boa parte das rodas de samba de que eu participara, mas seu Arnesto, ou melhor, Ernesto Paulelli, insistia em apresentar o lado real de uma história que um dos maiores compositores paulista ousou modificar. “Nada do que o Adoniran contou aconteceu. Eu gostei muito da história, me emocionei demais com a lembrança dele, mas tudo era só imaginação do Barbosa.” O relato do homenageado era tão cativante que a descoberta de que Adoniran teria inventado a história do samba soava deliciosamente. Mas naquele momento o inesperado aconteceu: enquanto todos riam das histórias daquele lúcido sambista, apareceu lá no fundo da plateia outro senhor, tão idoso quanto Ernesto, uma boina marrom jogada no lado da testa, e pôs-se a retrucar a fala do nosso homenageado. “Olha Arnesto, você sabe que a história do Adoniran é pura verdade. Eu estava lá na sua casa no Brás e presenciei tudo.” Houve um silêncio geral na plateia e seu Ernesto arregalou os olhos, estupefato. Primeiro perguntou baixinho para mim: “Mas quem é o sujeito?” Depois, vendo que eu estava tão surpreso quanto ele, desandou a responder: “Olha, meu senhor, primeiro eu nem sei o seu nome e depois eu já tenho bastante idade para vir aqui e falar mentiras. Se eu disse que o Adoniran, meu grande amigo Adoniran, inventou essa história é porque isso aconteceu, queira o senhor ou não.” Lá do fundo o outro velhinho retrucou: “Arnesto, meu nome é Joca, você deve saber bem. Eu estive lá no Brás em 1955, quando você nos convidou para aquele samba na
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Ernesto aos 93 anos.
sua casa. Lembro-me bem que fomos, eu, o Adoniran, a Iracema e o Laércio. Tocamos e tocamos a sua campainha e você não atendeu. Seu cachorro começou a latir e você nem apareceu. Aí eu fiquei revoltado e disse para o Adoniran: ‘Poxa! Pelo menos ele devia ter deixado um recado na porta!’ “Poxa digo eu!”, retrucou seu Arnesto meio indignado.– “O cidadão vive 94 anos, para depois, numa tarde de domingo, descobrir que tinha um cachorro e que fazia rodas de samba em sua casa, que era num bairro em que ele nunca tinha morado!” “Senhor apresentador, se me permite, eu gostaria de ler só um pedacinho desse depoimento do Adoniran que está aqui neste livrinho”, insistiu Joca. O velhinho sacou de um pequeno livro laranja, que eu conhecia bem: era um exemplar da coleção A música brasileira deste século, que reproduzia os shows que o grande Fernando Faro produzia. Meio apreensivo, mas em nome da democracia, falei para o Joca continuar. “Pois é, neste depoimento o Adoniran diz o seguinte: ‘O Arnesto existiu, morava no Brás o malandro, irmão do Nicola Caporino, Ernesto Caporino. Ele convidou a gente para o samba. Eu fui lá com os meus maloqueiros, com fome. Disse que tinha comida e chegando lá não tinha nada. Ele marcou ao meio-dia, nós chegamos à uma. A panela estava com a casca do arroz embaixo.’” Percebi que seu Ernesto começava a perder a calma diante do discurso do estranho personagem, e então decidi interferir: “Bom pessoal eu acho que o Joca poderia vir aqui numa outra oportunidade e contar as suas histórias com o Adoniran − que, tenho certeza, devem ser maravilhosas. Hoje o homenageado é o Seu Ernesto e ainda tem muita gente para cantar. Por exemplo, tem uma figura aqui na casa que canta este samba maravilhoso do Adoniran, que é o Roque. Vamos lá, Roque, mande o Samba do Arnesto, para homenagearmos o Seu Ernesto.” Roque pegou o microfone e começou a cantar, eu me senti um pouco como naquele samba do Billy Blanco, o “Piston de Gafieira”: “E nessa altura, como parte da rotina, o piston tira a surdina e põe as coisas no lugar”. Desci do palco enquanto o sambista fazia o público delirar e fui atrás do Joca. Procurei na entrada do Clube, mas nada dele, saí pela Fradique e nem sombra do velhinho, o cara devia andar bem depressa. Perguntei então para a Meirinha, que ficava passando a régua nas nossas despesas, quem afinal era aquele sujeito. “O Joca? Ah ele é um tipo muito estranho. De tempos em tempos ele aparece por aqui, senta naquela mesinha onde ele estava sentado, fica quietinho, e se alguém puxa conversa ele fica contando histórias do tempo em que ele conheceu Adoniran. Depois vai embora e fica um tempão sem aparecer. Acho que agora vai demorar mais tempo ainda, porque ele não gostou muito do que o seu Ernesto falou. Mas em se tratando do Joca...” Tive que interromper a Meirinha porque o Roque já estava terminando o seu número e eu tinha que chamar o meu parceiro, Nando Távora, que ia cantar seu grande hit, o “Barraco Apertadinho”, que fizera em homenagem a um tal de Rubinato, que se estivesse presente ia estar rachando o bico. cc
Valdir Mengardo é professor do departamento de Jornalismo da PUCSP e editor do jornal PUCviva.
Nota do autor
Boa parte do que foi dito acima é fruto da entrevista que realizei com Ernesto Paulelli, em 31 de maio de 2009, no Clube Etílico Musical, na Vila Madalena; a outra parte talvez esteja perdida nos pedaços daqueles 78 rotações, tão frágeis, que foram se quebrando com o tempo. Talvez um dia consiga achar e juntar todos os cacos dessas lembranças e a partir daí pode ser que as duas realidades se transformem numa só.