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História das histórias de Noel e Adoniran Valdir Mengardo
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História das histórias de Noel e Adoniran
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Valdir Mengardo
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Filosofia
Mas, a filosofia Hoje me auxilia A viver indiferente assim. Nesta prontidão sem fim, Vou fingindo que sou rico Pra ninguém zombar de mim E m 1933 Noel Rosa procurou André Filho (compositor que mais tarde se imortalizaria com “Cidade Maravilhosa”), com uma letra bem característica de Noel. “Filosofia” guardava os atributos de um Noel triste pela sua pobreza e pouca beleza, mas que, ao mesmo tempo, mostrava o orgulho de sambista que esquece os bens materiais e vive da boêmia. Noel procura Mario Reis tarde da noite e mostra o samba, pedindo para que o cantor o gravasse. “Nem preciso ouvir, Noel. Se é seu, eu gravo”, disse o cantor. O samba, à época, não foi nenhum sucesso, mas seus desdobramentos é que foram interessantes. Um ano depois, em 1934, um certo João Rubinato, cansado de levar gongadas em programas de calouros, escolhe “Filosofia” para sua apresentação no programa de Jorge Amaral,
Capa do LP Sinal Fechado, no qual Chico Buarque regravou Filosofia, samba de Noel Rosa.
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na Rádio Cruzeiro do Sul. João consegue a aprovação ( mais tarde ele dirá que o homem do gongo deveria estar dormindo), e muda de vida, trocando o nome de batismo por Adoniran Barbosa. Depois de várias regravações, em 1974 Chico Buarque regrava o samba, com uma nova ginga, diferente daquele andamento bem marcado que caracterizou a gravação de Mario Reis. Em um LP, Sinal Fechado, com a maioria das músicas de outros compositores, porque as músicas de Chico eram sistematicamente censuradas, ele emplaca com um delicioso arranjo de flauta que deixa a música de Noel ainda mais tristonha. Curiosamente é essa marcação que hoje persiste na noite paulistana quando um sambista interpreta “Filosofia”.
Bom Dia Tristeza
Se chegue tristeza Se sente comigo Aqui nesta mesa de bar. Beba do meu copo, Me dê o seu ombro Que é pra eu chorar Chorar de tristeza, Tristeza de amar
“Bom dia, Tristeza” apresentanos uma das mais improváveis parcerias da música brasileira: Vinicius de Moraes e Adoniran Barbosa. A história da parceria é mais insólita ainda. Vinícius, em 1957, fazia parte da delegação diplomática brasileira na Unesco, em Paris, e ao escrever a letra de “Bom Dia, Tristeza” teve a feliz ideia de enviá-la a Aracy de Almeida, com uma única recomendação: “Faça com ela o que você quiser”. Aracy colocou o poema na mão de seu amigo Adoniran, que fez uma das mais primorosas canções da música brasileira. Curiosamente Vinicius, alguns anos antes, andara falando mal de Adoniran, pelo seu jeito característico de fazer samba, usando um português falado na periferia de São Paulo, totalmente diferente do português castiço usado por Vinícius em suas poesias. Para muitos a melodia soou como um tapa com luva de pelica em Vinicius. Aracy foi a primeira a gravar, mas depois vieram inúmeras grava
Vinícius de Moraes teve a sua letra Bom Dia Tristeza musicada por Adoniran.
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Divulgação
ções, com Maysa, Maria Bethânia, Elis, e o próprio Adoniran. Na gravação de Roberto Ribeiro, Adoniran imprime sua característica ainda mais profundamente, ao declamar, na abertura, um texto bem ao seu estilo: “A tristeza é um bichinho que pra roer tá sozinho, e como rói a bandida, parece rato em queijo parmesão”.
Iracema
E hoje ela vive lá no céu E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor De lembranças guardo somente suas meias e seus sapatos Iracema, eu perdi o seu retrato
Em 1956 Adoniran compõe um dos seus sambas mais tristes. Iracema, uma moça atropelada na Avenida São João, aparece na canção como um grande amor na vida do compositor, que morre inesperadamente. Porém Adoniran desfez, alguns anos depois, num programa de televisão essa primeira versão: “Iracema foi o que eu vi no jornal, e não foi na São João, foi na Consolação. E falei, aqui vai dar um sambinha. Foi o primeiro samba errado que eu fiz. Iracema”. Mas existe outra versão sobre Iracema. Segundo o biógrafo de Adoniran, Celso de Campos Jr., o compositor vivia tentando se aproximar de uma mulher muito bonita, que frequentava a noite paulistana, mas a dona só fazia ignorar Adoniran. Um dia, ele partiu de dedo em riste para cima da mulher e disse: “Eu vou te matar”. No dia seguinte, chegou com a letra e a melodia de
Iracema, e disse à mulher: “Tá aqui, ó. Te matei”.
Conselho de Mulher
Quanto tempo nois perdeu na boemia Sambando noite e dia Cortando uma rama sem parar Agora escuitando os conseio da mulhê Amanhã vou trabaia Se Deus quiser (breque) Mas Deus não qué
“Conselho de Mulher” marca uma das primeiras parcerias entre Adoniran e Oswaldo Moles. Oswaldo foi o roteirista de um dos mais deliciosos programas de rádio da década de 1950: “História das Malocas”. Adoniran fazia o Charutinho que, juntamente com Maria Tereza, a Terezoca, incorporava tipos da periferia paulistana. Nos diálogos do Charutinho estavam as raízes do falar “errado” que tão bem caracteri
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Adoniran era Charutinho, personagem do programa de rádio Histórias das Malocas. Foto: Adoniran Barbosa- anotações com arte 2009.
zariam as músicas de Adoniran. Ele costumava dizer que falar errado era uma ciência, era preciso saber o correto para inventar todas aquelas frases “erradas”. Mais tarde a dupla Moles e Adoniran comporia outros sucessos da música brasileira, como “Tiro ao Álvaro”, gravado magistralmente por Elis Regina. Na primeira Bienal do Samba a dupla inscreveu “Mulher, Patrão e Cachaça”, que não chegou às finais. Mas “Conselho de Mulher” é também a precursora de uma série de sambas que analisarão o desenvolvimento alucinante que marcará as décadas de 1950 e 1960 e que terão a sua maior expressão em “Saudosa Maloca” e “Abrigo de Vagabundos”: “Pogressio, pogressio/que eu sempre iscuitei falá/ Se o pogressio vem do trabaio /Intão amanhã cedo nóis vai trabaiá”.
As Pastorinhas
Linda pastora Morena da cor de Madalena Tu não tens pena De mim que vivo tonto com o teu olhar Linda criança Tu não me sais da lembrança Meu coração não se cansa De sempre e sempre te amar
Em 1934 João de Barro, o Braguinha, propôs a Noel uma parceria: “Noel, vamos fazer uma música que fale daquelas pastorinhas que saem nos ranchos da Vila Izabel no dia de Reis?”. Noel aprovou a ideia e não demorou muito tempo para vir à luz a marcha “Linda Morena”. A música foi gravada por João Petra de Barros, mas não chegou a alcançar nenhum sucesso. Em 1938, depois da morte de Noel, Braguinha inscreveu-se em um concurso de marchinhas carnavalescas no Rio de Janeiro. Junto com Alberto Ribeiro emplacou “Touradas de Madri”, mas não levaram porque a comissão julgadora achou que “Touradas” era um passodoble e não uma marcha. Foi marcado um novo concurso, dali a duas semanas. Braguinha não se fez de rogado: inscreveu, com pequenas modificações, a música que havia composto com Noel, e que agora passava a se chamar “As Pastorinhas”. Não deu outra: a música ganhou o concurso e foi gravada por Silvio Caldas, transformando-se num enorme sucesso, que é lembrado até hoje nos carnavais. Mas “Touradas de Madri” teve a sua vingança: em 1950, quando o Brasil goleou a Fúria espanhola por 6 x 1, um público de mais de cem mil pessoas saiu pela avenida Maracanã cantando “Touradas de Madri”. Braguinha, que estava no meio da multidão, não se conteve e começou a chorar. Um gaiato, que não reconheceu o compositor, perguntou: “Uai! Por que você está chorando, por acaso você é espanhol?”
Último Desejo
E às pessoas que detesto Diga sempre que eu não presto Que o meu lar é o botequim E que eu arruinei a sua vida Que eu não mereço a comida Que você pagou pra mim
Dos amores que passaram pela vida de Noel certamente o mais marcante foi a bailarina de cabaré Ceci, Juraci Correa de Moraes. “Último Desejo” foi uma espécie de
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Aracy de Almeida gravou o samba de Noel Rosa Último Desejo.
despedida de Noel, entregue a Ceci pouco antes de sua morte por um amigo em comum. O samba resumia bem o romance atribulado que os dois tiveram e que agora, às vésperas de sua morte, Noel via já de muito longe, pois Ceci enamorara-se de outra lenda da música brasileira: Mario Lago. Não como a letra original dizia. Tão logo o samba é composto, Aracy de Almeida se prontifica a gravá-lo, mesmo sem Noel saber. Quando ele ouve pela primeira vez a interpretação de Aracy, corrige dois erros que considera graves: um deles é que Aracy canta “que o meu lar é um botequim...” e não como a letra original propunha “que o meu lar é o botequim”. Noel falou então a um amigo que “pode parecer a mesma coisa, mas não é”. De fato, quando Noel explicita o botequim, está se referindo a uma instituição que é própria da vida boêmia de boa parte dos brasileiros, ao passo que dizer um botequim pode significar uma casa qualquer onde o acaso fez o boêmio parar. Mesmo assim, gravações consagradas da canção, como a primorosa de Nelson Gonçalves, vão consagrar o equivocado “um” perpetrado por Aracy.
Trem das onze
Não posso ficar Nem mais um minuto com você Sinto muito amor Mas não pode ser Moro em Jaçanã Se eu perder este trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã.
Adoniran nunca morou em Jaçanã. Conhecia bem vários bairros de São Paulo, como o Brás, onde morava, ou o Bixiga, onde frequentava os bares da noite paulistana. Vila Esperança também era conhecida do compositor pelo seu carnaval. O Jaçanã era meio como uma passagem nas viagens que o ator/compositor fazia para apresentar-se em circos da periferia. É bem provável que
Trem das onze, samba de Adoniran, virou um sucesso da gravação feita pelo conjunto Demônios da Garoa (capa de LP).
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em meio a uma dessas viagens, ele tenha composto “Trem das Onze”. Uma história simples, idealizada por Adoniran, sobre o moço que precisa voltar para casa para não desagradar a mãe mas, mais do que isso, alicerçada numa rima deliciosa “amanhã/ Jaçanã”. Interessante é que esse mote (o do rapaz que precisa voltar cedo para casa) já fora usado pela dupla Luiz Vieira e Arnaldo Passos em 1953. Nesta música, a rima em “ã” também é marcante: “É tarde, já vou indo / Preciso ir embora / Até amanhã. / Mamãe quando eu saí / disse: menino não demora em Braçanã”. O fato, porém, é que Adoniran e os Demônios da Garoa, lá pelos idos de 1964, andavam à procura de um novo sucesso. Quando Adoniran lhes mostrou a música, somente Arnaldo a achou interessante; os outros três demônios acharam a história um tanto piegas. Mesmo assim, o samba foi gravado e virou sucesso nacional. Primeiro em São Paulo, onde depois de ser lançado em compacto virou LP, pela Chantecler. Depois foi a vez do Rio se render ao samba paulistano: interpretada no programa do Chacrinha, a música foi inscrita no concurso de músicas do carnaval do Quarto Centenário do Rio de Janeiro, ganhando o primeiro lugar. Mas nem o sucesso de “Trem das Onze” evitaria a desativação da estação Jaçanã um ano depois, em 1965, assim como, mais tarde, foi desativada toda a linha do chamado Trem da Cantareira, uma das principais ligações da Zona Norte de São Paulo que hoje, em boa parte, é substituída pelo metrô.
Feitio de Oração
Quem acha vive se perdendo Por isso agora vou me defendendo Da dor tão cruel de uma saudade Que por infelicidade meu pobre peito invade
Talvez as melhores parcerias de Noel tenham sido aquelas em que aparece o nome de Oswaldo Gogliano, o Vadico. Nascido em São Paulo, Vadico passou boa parte de sua infância entre o Brás e o Belenzinho e, depois de algum sucesso com gravações de Francisco Alves, começou a tocar na gravadora Odeon, contratado pelo maestro Edmundo Souto. Em determinado momento, Vadico começa a dedilhar uma canção sua e Edmundo pergunta se ela já tinha letra. Após a negativa de Vadico, Edmundo vai até a sala ao lado, onde estava Noel Rosa, e apresenta-o a Vadico. O maestro pede a Vadico que toque a
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Emma D’Ávila, atriz gaúcha, inspirou Noel Rosa a criar o samba X do Problema.
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O pianista Oswaldo Gogliano, Vadico.
música que ele havia composto. Na hora Noel pega um papel e começa a rabiscar uma letra. Despedem-se e, dois dias depois, Noel aparece na Odeon, onde Vadico tocava piano e mostra-lhe a letra de “Feitio de Oração”, que, segundo alguns historiadores, teria sido feita para uma sua namorada de nome Julinha, e que mais tarde se transformaria num dos maiores sucessos da música brasileira.
X do Problema
Já fui convidada para ser estrela do nosso cinema. Ser estrela é bem fácil, Sair do Estácio é que é
Em 1935 Noel encontra-se no Teatro João Caetano com a atriz Emma D’Ávila, jovem atriz gaúcha que mais tarde faria sucesso inclusive na televisão. Vendo a atriz triste, Noel quer saber o porquê, e ela explica que, às vésperas de estrear uma peça ali no Rio de Janeiro, ainda não tinha uma música para seu quadro. Emma contou que o seu quadro era sobre o Estácio e Noel prometeu que no dia seguinte lhe levaria uma canção. Cumprindo a palavra, ele aparece no dia seguinte com “X do Problema”. Pega o violão e a mostra para Emma, que leva a canção para a sua peça. Dias depois, Noel encontra Aracy num bar do Rio de Janeiro e ela lhe pergunta se ele não tem um samba novo para mostrar. Noel pega um maço de cigarros Odalisca e prontamente escreve “X do Problema”, que Aracy levará para sempre como feito em sua homenagem. cc
Valdir Mengardo é professor do departamento de Jornalismo da PUCSP e editor do jornal PUCviva.
Referências
Este artigo teve por base o livro Noel Rosa: Uma biografia, de João Máximo e Carlos Didier (Editora da Universidade de Brasília, 1990), publicação que hoje sofre um impedimento em virtude de processo movido pelas sobrinhas de Noel Rosa. Roteiro de entrevistas publicado pelo SESC – São Paulo como encarte da obra A música brasileira deste século por seus autores e intérpretes.
CAMPOS JR., Celso de. Adoniran: Uma biografia Editora Globo.
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