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Mal traçadas linhas de um sambista no território da metrópole mais moderna do país Francisco Rocha
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Mal traçadas linhas de um sambista no território da metrópole mais moderna do país Pastiche Crônicas de Adoniran II
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Adoniran Barbosa passou por muitas profissões até ingressar no meio radiofônico, no começo dos anos 1930. Nasceu em 1910, no interior de São Paulo, em Valinhos. Batizado com o nome de João Rubinato, foi o sétimo filho de um casal de imigrantes italianos. Em 1918, mudou-se com a família para a cidade de Jundiaí (SP). Ainda criança, trabalhou com o pai no carregamento de vagões da São Paulo Railways. Nessa cidade também frequentou o grupo escolar, como ele próprio relata: “...naquele tempo não tinha jardim de infância, eu freqüentava era as ruas da infância. Bunito! Dá samba, não? Durou pouco a brincadeira, pois daí a uns par de meis mudamos pra Jundiaí e lá me enfiaram num grupo escolar. Fiquei lá dentro a muque, só até o terceiro ano. As aulas eram de manhã, e de tarde ia ajudar meu pai a carregar vagão na Estrada de Ferro São Paulo Railways”. 1 Depois foi entregador de marmita e, posteriormente, tornou-se varredor em uma fábrica de tecidos.
Com quatorze anos, em 1924, juntamente com a família, mudou-se para Santo André (SP). Então, exerceria a profissão de tecelão, encanador, pintor e garçom. Nessa época ingressou no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, onde aprendeu a profissão de metalúrgico-ajustador. Mas o trabalho com esmerilhamento de ferro fundido acabou prejudicando seus pulmões e novamente ele se viu desempregado. Outros empregos vieram: loja de ferragens, uma agência da Ford, vendedor ambulante de meias e entregador de uma loja de tecidos da Rua 25 de Março, no centro da cidade de São Paulo, para onde se mudou no início dos anos 1930. Quando saía para as entregas, passava pela Rádio Cruzeiro do Sul, e ali tomou contato com o meio radiofônico e passou a participar de programas de calouros. Por fim, cantando o samba “Filosofia”, de Noel Rosa, conseguiu não ser gongado e foi contratado como cantor da emissora. No início dos anos 1940, ingressa na Rádio Record e passa a trabalhar como radioator, inicialmente no programa “Serões Domingueiros”. Posteriormente, ainda nessa emissora, conhece o produtor e escritor Osvaldo Moles. A parceria com Moles traduziu-se nos personagens mais populares do radioteatro paulista. Inúmeros tipos foram protagonizados pelo compositor, em peças humorísticas, tais como Zé Cunversa, um tipo malandro; Jean Rubinet, galã do cinema francês; Moisés Rabinovic, judeu das prestações; Richard Morris, professor de inglês; Dom Segundo Sombra, cantor de tango-paródia; Perna Fina, chofer italiano, entre outros, mas o ápice de sua carreira de radioator deu-se no programa “História das Malocas”, onde interpretou um malandro, avesso ao trabalho, sambista e morador da favela do Morro do Piolho, o Charutinho. Líder de audiência em São Paulo, o programa foi ao ar entre 1955 e 1967, ano em que morreu Osvaldo Moles. A radiopeça era inspirada em seu samba “Saudosa Maloca” (1951) que, em 1955, interpretado pelo grupo musical Demônios da Garoa, tve grande êxito junto ao público e projetou o nome do artista como compositor. A parceria com Moles também haveria de render composições como “Tiro ao Álvaro” (1960) e “Conselho de Mulher” (1953). Foi nessa mesma década de 1950 que Adoniran passou a compor os sambas que demarcariam seu estilo e o consagrariam como o mais autêntico representante do samba paulista, a exemplo de “Samba do Arnesto” (com Aloncin, 1953), “Iracema” (1956) e da própria “Saudosa Maloca”, entre outros. A partir de então, tal estilo apresenta-se em toda sua obra e deságua no seu maior sucesso, “Trem das Onze” (1965). Empregos e lugares por onde Adoniran passou, antes de ingressar no rádio, foram úteis ao desenvolvimento de sua profissão de radioator e compositor. Ele, “caipira”, quase analfabeto e sem nenhum conhecimento no meio artístico e radiofônico, veio se aventurar em São Paulo, no início da década de 1930. Gostava de samba: Sinhô, Noel Rosa, Luís Barbosa, entre outros. Este último se destacou pelas suas interpretações de samba de breque e foi também o introdutor do chapéu de palha como acompanhamento rítmico, nos programas de rádio e em gravações. O Barbosa do pseudônimo de Adoniran foi inspirado nesse sambista e Adoniran, veio do nome de um amigo que trabalhava nos correios. João Rubinato, dizia ele, para cantor de samba, não ia pegar. Ouvia rádio, sintonizava as estações do Rio e sonhou ser artista. Seja como intérprete dos textos de Osvaldo Moles ou como compositor de sambas, é no âmbito de sua relação com rádio – e com determinada linguagem que aí se desenvolvia na época – que se revelam os elementos fundamentais de sua obra. É essa espécie de fusão entre as duas faces (radioator e compositor) que assinala o estilo de Adoniran, um artista que exercitou sua poética como uma espécie de ponte entre a rua e o rádio, em um contexto configurado pelo radical processo de urbanização da metrópole paulista que, na primeira metade do século 20, tornou-se o maior polo industrial do país, atraindo o grande fluxo migratório brasileiro do período. O compositor, vivendo em São Paulo até 1982, ano de sua morte, teve sua biografia inscrita neste mapa em constante transmutação. Diante do cenário urbano que dia a dia se transformava, impondo novas relações aos seus habitantes, sua poética investiu em certa narrativa do cotidiano da grande cidade.
Um sambista no território da modernidade
Para cantar São Paulo, eu resolvi aproveitar tudo que a cidade oferecia. Então entram na letra gíria,
ruas, bairros, muita coisa do cotidiano da cidade. Adoniran Barbosa
Nos anos 1940 e 1950, a cidade de São Paulo projetou-se como o centro mais dinâmico do Brasil. Tal processo resultou de sua explosão demográfica, a população salta da casa de um milhão e trezentos mil habitantes, na década de 1940, para quase três milhões no final dos anos 1950; da dinâmica de sua indústria, nessa década São Paulo era responsável pela metade de toda produção nacional e da reconfiguração radical de sua fisionomia, em função da expansão da mancha urbana e da verticalização, sobretudo em sua região central. Progresso e trabalho forjaram o discurso laudatório, respaldado no crescimento vertiginoso da capital paulista, quando esta se transformou no maior centro socioeconômico brasileiro. De fato, a expansão em curso na cidade era intensa e dava ares de uma civilização avançada nos trópicos. Para o ufanismo dos setores dominantes, São Paulo ascendia ao patamar das grandes metrópoles modernas do capitalismo. As vozes dos personagens que habitam tanto os seus sambas quanto os programas de rádio em que o artista atuou revelam as contradições desse processo de transformação, em curso na metrópole paulista. Em seus sambas deparamos com a possibilidade de redescobrir os traços de uma cidade, ou melhor, de um estilo de narrativa do enredo urbano no contexto da modernidade. Uma poética afinada com as vozes daqueles que neste contexto habitavam o “espaço da exclusão”. Em suma, a arte
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Adoniran e seu principal parceiro, Osvaldo Moles.
de Adoniran é, sobretudo, a crônica da cidade que ele vivenciou. Sua escrita subverte a ordem imposta pelo esforço de modernização na medida em que narra através do olhar do excluído. Nesse sentido, legitima a experiência dos grupos que sofrem as contradições decorrentes dessa ordem. Tal narrativa nos parece fundamental para dar um sentido à história desses grupos e para construir formas que legitimem sua memória que, neste caso, se traduzem pela própria obra do compositor. Como dissemos, Moles teve importância fundamental na carreira de Adoniran, sobretudo pela criação de inúmeros personagens que, na interpretação deste, atingiriam um sucesso extraordinário. O mais importante sem dúvida foi Charutinho, da “História das Malocas”. Diferentemente do que ocorria na produção cômica do rádio carioca,
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“A cidade que vem crescendo num ritmo vertiginoso, apresenta atualmente um bonito panorama urbano, moderno e aprazível. Grandes avenidas, logradouros, teatros edifícios públicos, estádios esportivos, grandes hotéis, cines e boites, tudo ali se encontra, de acordo com os padrões mais mo dernos e elegantes. [...] à altura das maiores cidades do mundo.” (Revista Sombra, out. 1950.)
Ao lado, foto aérea da região central de São Paulo.
voltada para a sátira política, Osvaldo Moles explorou com maestria o campo da sátira social. Suas histórias transitaram pelo território da metrópole de São Paulo, na época proclamada como ícone do desenvolvimento nacional, o modelo inconteste do projeto de modernização da nação. A sátira de Osvaldo Moles traduz um flagrante das contradições intrínsecas a essa geografia em gestação. Aí o progresso vira progressio e a maloca é um ponto de contraste no mapa da modernidade da urbe.
Esta é a minha maloca, manja. Mais esburacada que tamborim de escola de samba na quarta-feira de cinza. Onde a gente enfia a mão no armário embutido e encontra o céu. E o chuveiro é um buraco de goteira no teiado de zinco (...) Maloca onde a riqueza é... um jacá de vaziesa..., uma cesta de fome... e um pacote de gemido. Maloca onde as crioulas usa gilete no cabelo, pa fazê barba na barriga dos entrometido. Maloca onde eu cresci de teimoso que eu sou. Aqui tão tuas histórias, tua gente e tua paisagem humana. 2
Nesse cenário Osvaldo Moles aclimata o sambista. Em um diálogo de “História das Malocas”, entre dois personagens da radiopeça, Charutinho e Dona Terezoca, temos indícios das prerrogativas de sua arte.
- Me diga uma coisa, Charutinho? O qual que é a receita para fazer uma letra de samba? - Bom, pá escrevê uma boa letra de samba, a gente tem que ter uma condição principal. - É saber fazer as rimas, é ? - Não. Pá escrevê uma boa letra de samba, sentida... humana... A gente tem de sê, em primeiro lugal... narfabeto. Só se for narfabeto, escreve bem.
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Uma homenagem da indústria Dober & Irmão à obreira gente paulista, nos quatrocentos anos da “cidade que mais cresce no mundo”. Trabalho e progresso subscrevem o discurso laudatório do IV Centenário da cidade de São Paulo, em janeiro de 1954.
Se por um lado a condição de analfabeto traduzida em premissa para a boa escrita da letra de samba engendra o humor, por outro lado tal receita pode nos dar um indício do campo da arte do compositor de samba. De fato, o letramento não é imprescindível à arte do sambista. Sua poética resolve-se na oralidade, ou seja, a canção não pode prescindir da fala, a matéria prima com a qual trabalha o cancionista, cuja arte é redesenhar sua sonoridade, a entoação coloquial, no corpo da melodia. 3 Tal pressuposto possibilita ao sambista mobilizar uma escuta sensível a determinadas vozes e dicções que se esgueiram no território controlado e ordenado pelo sistema escriturístico, este que resulta da conquista da economia que, como analisa Michel de Certeau, a partir
Publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 25 jan 1954.
da modernidade se titularizou sob o nome de escritura. 4 Na contramão daquilo que comumente identificamos ser o lugar da “cultura popular”, onde a oralidade apresenta-se viva, ou seja, fora das fronteiras que delineiam o mapa de nossas cidades modernas, Certeau argumenta que: “essas vozes não se fazem mais ouvir, a não ser dentro dos sistemas escriturísticos onde reaparecem. Elas circulam, bailando e passando, no campo do outro”. 5 Mas se assim é, e a ideologia do progresso pressupõe a dicotomia entre a escrita e oralidade, exatamente como forma de colonizar e vigiar o campo dessas vozes, o gesto daqueles que se afinam com a oralidade instaura uma estratégia de resistência. Pois, ainda dentro dessa linha de análise, se a linguagem do poder assume a cidade como tema,
apropriando-se dela como objeto de sua intervenção; ele o faz por tomála como construção de um sistema organizado pela escrita, enfim como espelhamento do triunfo da conquista da economia moderna que, em última instância, traduz a hegemonia da escritura sobre a oralidade em nossa sociedade urbano-industrial. Não por acaso, as letras dos sambas de Adoniran Barbosa e os textos produzidos por Osvaldo Moles foram alvo daqueles que atribuíam a essa poética uma forma de deseducar a audiência; ou mesmo julgavam aqueles tipos uma propaganda negativa do linguajar do povo paulista, no momento em que o discurso dominante empenhava-se em forjar a identidade de São Paulo referenciada numa cidade civilizada e moderna. Mais tarde, nos anos 1970, tal discurso ainda reverbera e a censura empreendida pelo governo militar encarregou-se de cercear as composições de Adoniran. Nesse sentido, não é mera coincidência a gravação de “Saudosa Maloca” por Elis Regina, na época. Além do conteúdo de crítica social presente na letra do samba, espécie de hino dos despejados pelo processo de remodelação do tecido urbano, a composição é permeada pela dicção da fala popular. Diferentemente da interpretação dos Demônios da Garoa, que enfatizam o humor desse traço da oralidade, Elis o sublinha para ressaltar seu aspecto crítico. Vale dizer que as mudanças patrocinadas pelo golpe militar refletem-se no cenário da Grande São Paulo de forma singular. A capital paulista se tornou sede do “milagre brasileiro” e a gestão do espaço urbano é marcada por uma política de intervenção enquadrada nos pressupostos do modelo econômico orquestrado pelo regime militar. Tal projeto, ao viabilizar a maximização do lucro, a partir de ações nitidamente elitistas e excludentes, promove na metrópole um padrão de modernização que intensificou a tradicional segregação socioeconômica já existente em períodos anteriores.
Adoniran Barbosa: poeta da oralidade
Uma cidade, diz Certeau 6 , respira quando nela existem lugares da palavra, pouco importando sua função oficial – o bar da esquina, a praça ato). Tal observação vai ao encontro do que afirmou Antonio Candido, referindo-se ao compositor como um poeta da cidade de São Paulo, ao inventar um jeito de ser paulistano. Tal invenção está no ato de dizer a cidade, possível no samba quando ele é a expressão de um jeito de ser que dela se apropria e nela habita. Adoniran é, sobretudo, poeta da oralidade. Como ator afinou sua escuta para apreender determinadas vozes e moldar os tipos que foram protagonizados por ele em programas radiofônicos. Como compositor de sambas apurou seu ouvido para recolher na entoação coloquial a matéria-prima de sua arte. Neste sentido, reiteramos, o artista define-se
do mercado, o ponto de ônibus, etc. Os sambas de Adoniran Barbosa insinuam a memória de determinados lugares da palavra. A cidade aí “respira” através de uma narrativa. Ela está no samba através daquilo que é dito (um conteúdo), mas também se inscreve pela maneira de dizê-la (um por uma prática inscrita no campo da fala. Em Adoniran, o ator e o sambista fundem-se em sua voz, assumem a mesma máscara. Diz respeito a uma poética construída por sua sensibilidade que escavou na paisagem sonora da metrópole paulistana o sentido de sua arte.
Em outras palavras, sua percepção ateve-se a polifonia de vozes no cenário de intensa urbanização que transmutou a cidade de São Paulo em uma metrópole. Aí, ele pratica sua arte, surpreendendo na fala do homem comum o sentido de um cotidiano, a impressão de um lugar e de seus sujeitos. Nessas vozes ele capta o dito, mas, sobretudo, liga-se à maneira de dizer. Tal prática compõe o cerne de sua profissão de radioator, bem como de compositor de sambas. Nessa estratégia poética, o compositor flagra o popular na modernidade; pois considerar a cultura como ela é praticada, não naquilo que é valorizado pela representação oficial ou pela ordem econômica, implica atentarmos para a oralidade que, juntamente, como a criatividade prática e os atos da vida cotidiana a sustentam e a organizam. Tais aspectos evocariam determinadas práticas que, em nossa sociedade urbana e industrial, são tidas como ilegítimas ou negligenciáveis pelo discurso da modernidade. Ou seja, o que está em jogo aqui é a criatividade das pessoas comuns. Uma criatividade que se exerce nas práticas diárias, em que se combinam a astúcia, a sutileza, a flexibilidade do espírito, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, enfim habilidades diversas que se depreendem de uma experiência longamente adquirida. Eis como no campo de uma ideologia irredutível da escrita, da produção e das técnicas especializadas, movimenta-se uma cultura fundamentada na oralidade e na criatividade prática da vida cotidiana do homem comum. 7 Em muitas falas Adoniran se pronuncia no intuito de demarcar
Adoniran no samba em uma birosca na periferia se São Paulo, 1956.
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o seu estilo, recorrendo a determinada ideia de “povo” para identificar a sua poética e mesmo legitimá-la. Aqui, dois aspectos se destacam: a forma como ele constrói as letras e os temas abordados por esses textos. O compositor reiteradamente diz inspirar-se no “linguajar do povo”, recriando a partir dessas falas as letras de seus sambas. Assim, ele justifica em sua música expressões como: nóis fumus e não encontremos ninguém, nóis peguemus, din din donde, etc. Aliás, ele observa que o encanto da “arte popular” estaria relacionado à maneira como o artista se reporta à fala característica do “povo”. Sobre os temas de seus sambas, eles estariam, segundo o compositor, articulados às histórias e acontecimentos com os quais o “povo” se identifica. Nesse sentido, Adoniran diz buscar uma temática muito próxima da vida da gente comum.
Meus sambas não nascem com horas marcadas, não são consequências de inspirações. Eles nascem por si, por mim, pelas coisas. Contam de uma São Paulo grande, falam das gentes simples, humanas, das malocas, dos malandros, de gente boa. Não pretendo agredir ninguém com meus sambas... Eles não falam de grandes paixões, mas mostram os problemas e o cotidiano das pessoas da cidade grande, das muitas lutas e poucas vitórias. Sei que sou uma pessoa diferente – até os títulos das minhas músicas são diferentes – e sei também que ninguém me conhece. É que não tive nenhuma instrução. O que sei hoje aprendi na vida. Meu jardim de infância foi a rua. 8
É esse o mapa que o compositor oferece a nossa escuta, de tal forma a conduzi-la na paisagem sonora, onde ele diz transitar a sua poética. Para o compositor, seus sambas voltam-se para uma audiência: o “povo”. Em muitas de suas entrevistas ele insiste: “faço samba
para o povo. Por isso, faço letras com erros de português, porque é assim que o povo fala”. No entanto, essas frases pouco nos revelam dos caminhos que se insinuam no plano de suas composições. Aliás, abrem demasiadamente o foco, perdendo de vista as trilhas que poderiam nos aproximar de sua arte. Mas há outra frase que, entendemos, representa a síntese de seu estilo: “Pra falar errado, é preciso saber falar errado”. Ou seja, para nós, Adoniran não se resume a um transcritor da fala cotidiana, da gente comum. Para além desse gesto, está implícito um conhecimento que se depreende de certa maneira de fazer, articulada à inventividade desse compositor. Nesse sentido, menos do que produzir um “arquivo da fala do povo”, ele interage nestes lugares da palavra, onde circulam conversas, histórias portadoras de experiências, que aí são intercambiadas pelo homem comum. Tais ideias fundamentam a nossa reflexão sobre a obra desse sambista. Nelas percebemos a expressão de seu gesto poético. São movimentos reveladores de uma inteligência e inventividade capazes de criar, a partir de uma bricolage de vozes, determinadas narrativas. Histórias que guardam uma relação de cumplicidade com o “lugar”, onde sua arte buscou seus ouvintes. Cabe ainda observar que, através da análise da obra de Adoniran, observam-se certas práticas inscritas no universo da cultura popular. Tais práticas representam determinadas formas da construção do sentido do cotidiano experimentado pelas classes subalternas, neste contexto da metrópole paulista. A poética desse compositor traduz a construção de certa memória que nos remete à narrativa das práticas do homem comum, cujo sentido se reveste de estratégias de resistência, isto é, a criação de outras representações da cidade e da experiência do moderno frente ao discurso oficial que representava São Paulo como a cidade do progresso e do trabalho. cc
Francisco Rocha é Doutor em História Social – FFLCH – USP. Autor do livro “Adoniran Barbosa Poeta da Cidade: a trajetória e obra do radioator e cancionista – O s anos 1950”. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002.
Notas
1. Extraído de Nova História da Música Popular Brasileira – Adoniran Barbosa & Paulo Vanzolini. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 2. 2. Vinheta de abertura da radiopeça História das Malocas, interpretada por Charutinho. Extraído do LP Saudade de Adoniran: Na Interpretação de Demônios da Garoa, Wilson Miranda e Adoniran Barbosa. São Paulo: Alvorada, s/d. 3. Luís Tatit analisa a produção da canção popular no campo da oralidade. Nesse sentido, a arte do cancionista é representada como “uma gestualidade oral, ao mesmo tempo contínua, articulada, tensa e natural, que exige um permanente equilíbrio entre os elementos melódicos, linguísticos, os parâmetros musicais e a entoação coloquial” (TATIT, Luís. O cancionista: Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp,1996. p. 9.) 4. Cf. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 1998. 5. Idem, p. 222. 6. Idem, op. cit. 7. Cf. CERTEAU, Michel de. Op.cit. 8. Fala de A. Barbosa em BENICCHIO, Marlene.Samba do Metro. Última Hora, São Paulo, 20 jun. 1975. p. 5.
Referências
CANCLINI, Nestor. Culturas híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Edusp, 1998. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1998. ________________. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. Petrópolis: Vozes, 1997. CHATIER, Roger. A história cultural. Entre práticas e representações. Lisboa/Rio Janeiro: Difel/Bertrand Brasil, 1990. KOWARICK, Lúcio & BONDUKI, Nabil. Espaço Urbano e Espaço Político: do populismo à redemocratização. In: Lúcio Kowarick (org.). São Paulo, passado e presente – As lutas sociais e a cidade. 2.ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. KRAUSCHE, Valter. Adoniran Barbosa – Pelas ruas da cidade. Col. Encanto Radical. São Paulo: Brasiliense, 1985. MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Hucitec, 2000. MORAES, José Geraldo Vinci de. Metrópole em sinfonia – História, cultura e música popular em São Paulo nos anos 30. São Paulo: USP. 1997. Tese de doutorado. ROCHA, Francisco. Adoniran Barbosa Poeta da Cidade: a trajetória e obra do radioator e cancionista – Os anos 1950. São Paulo: Ateliê Editorial, 2002. SALIBA, Elias Thomé. Histórias, Memórias, Tramas e Dramas da Identidade Paulistana. In: PORTA, Paula (org.). História da cidade de São Paulo: a cidade na primeira metade do século XX. São Paulo, Paz e Terra, 2004, v. 3. SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole: São Paulo, sociedade e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Cia. das Letras, 1992. TATIT, Luís. O cancionista: Composição de canções no Brasil. São Paulo: Edusp,1996.