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Gírias, provérbios e frases feitas na canção “Com que Roupa?”, de Noel Rosa Caio de Almeida Bassitt
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Gírias, provérbios e frases feitas na canção “Com que Roupa?”, de Noel Rosa 1
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DE AL MEIDA BASSITT
Agíria é um vocabulário especial utilizado por comunidades sociais restritas. Desta forma, podemos concebê-la, segundo Preti (1984:3), “como um signo de grupo”. Entretanto, muitas vezes, não nos preocupamos em saber como esse tipo de linguagem se constitui em determinada comunidade, assim como não nos preocupamos em verificar a importância e a finalidade que os provérbios e as frases feitas têm para a comunicação popular. Neste artigo, a nossa atenção está voltada para esses aspectos comunicativos da canção “Com que roupa?”, de Noel Rosa.
Manifestações linguísticas populares
Particularmente, ouço com muita atenção as músicas da década de 1930 e sempre gostei e me interessei pela linguagem empregada por artistas como Wilson Batista, Ary Barroso, Lamartine Babo e, principalmente, por Noel
Rosa, pela força de expressão moderna e pela multiplicidade linguística que seus textos abrangem; apesar de nunca ter me predisposto a analisar com profundidade os provérbios, as frases feitas e esse tipo de vocabulário específico: a gíria. Talvez, este seja um dos motivos pelo qual me interessei pelo tema. Além disso, trabalho com expressões populares em algumas letras de música que componho e que, de certa forma, têm influência e dialogam com as produções do Poeta da Vila. No processo criativo, porém, essas linguagens populares costumam surgir de forma intuitiva, na ausência do raciocínio ou de técnicas linguísticas, servindo, muitas vezes, de expressão estilística, para cada autor, na construção de rimas e aliterações, por exemplo. As manifestações linguísticas populares são constantes no nosso dia a dia e estão presentes na maioria das comunidades. Comunicam ideias, informações e sentimentos de indivíduos da mesma classe ou da mesma sociedade. Como melhor explica Jespersen, em Preti (op.cit.:1):
quanto mais vulgar for um pessoa, tanto mais sua linguagem leva o selo da comunidade; quanto mais forte e original a sua personalidade, tanto mais peculiar e próprio será o colorido de sua linguagem.
Tendo em vista isto, tentamos compreender em que medida e como a gíria, os provérbios e as frases feitas contribuem para que saibamos identificar as peculiaridades da linguagem do brasileiro − no caso, do malandro carioca e, especificamente, de Noel Rosa.
Noel Rosa: Uma breve biografia 2
Durante a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, de um parto tenso e árduo, a fórceps, no dia 11 de dezembro de 1910, no chalé 130 da rua Teodoro da Silva, no bairro de Vila Isabel, nasce um dos maiores compositores de samba de todos os tempos: Noel de Medeiros Rosa, mais conhecido como Noel Rosa. Esse parto deixou no rosto do compositor um defeito que o acompanhou pela vida inteira, tornando-o um rapaz muito tímido, pois tinha vergonha até de se alimentar na frente dos outros. Noel aprendeu a tocar bandolim com a mãe, Martha de Azevedo Rosa, e foi introduzido ao violão (seu principal instrumento) pelo pai, Manuel Medeiros Rosa. Com a mãe prendeu também a ler e a escrever e, segundo Almirante, cursou o primário no colégio Maisonette. Em 1927, voltava de uma noitada quando encontrou sua avó paterna enforcada no quintal de sua casa. Ela havia se matado, repetindo o gesto de um bisavô de Noel. Noel Rosa era muito mais ligado à música que aos estudos (chegou a cursar um ano de medicina por vontade do pai). Em 1929, junto com Almirante e João de Barro − o Braguinha −, colegas de Vila Isabel, formou um conjunto que foi muito importante para ele: o Bando dos Tangarás. O repertório do conjunto era composto de cantigas de inspiração nordestina de acordo com a moda do momento. Nesse mesmo ano de 1929, Noel começa a se tornar compositor, com a em-
Foto: Encarte de LP Música Popular Brasileira - Noel Rosa
Noel, aos sete anos, com a sua família.
bolada “Minha Viola” e a toada “Festa no Céu”. Martha Rosa vivia preocupada com a saúde do filho, pedindolhe que não demorasse na rua e que voltasse cedo para casa. Sabendo, certa vez, que ele iria a uma festa, em um sábado, escondeu todas as suas roupas. Quando seus amigos chegaram para apanhá-lo, Noel gritou de seu quarto: “Com que Roupa?”. Em 1931, compôs o samba de título inspirado nessa sua indagação: “Com que Roupa?” (Agora vou mudar minha conduta...). O samba virou o maior sucesso daquele carnaval. Sobre ele, Máximo & Didier (1990:117) comentam:
Uma composição irretocável, de melodia simples e direta, saborosa e exata, cada estrofe terminando com o mesmo estribilho, no qual, aliás, repousa grande parte da comunicabilidade do samba, sobretudo pelo emprego da expressão popular “com que roupa?”, muito usada no sentido de “como?”, “de que modo?”, “com que dinheiro?” (...) Há, ainda, o humor. Noel transpõe para a música popular a singularidade tão carioca de tratar com graça e irreverência os assuntos mais sérios, de escarnecer da própria desgraça.
O samba era a válvula de escape de sentimentos amorosos e a arma ferina de Noel, pelo qual versava sobre as angústias e euforias do amor e, ao mesmo tempo, denunciava os vícios e excessos da sociedade de forma sarcástica e irreverente. Em 1933, por exemplo, compõe o samba “Onde está a Honestidade?”, que faz uma crítica irônica à acumulação de capital e à ascensão social repentina dos aristocratas e políticos. No mesmo ano, faz, com Ary Barroso, “Estrela de Manhã”, samba de teor lírico-amoroso, que fala sobre a saudade. Essa pluralidade expressiva se revela em toda sua obra. Vale considerar também que no início de 1934 começava uma das maiores polêmicas da música brasileira. Noel Rosa compôs “Rapaz Folgado”, uma resposta a “Lenço no Pescoço”, do então jovem sambista mangueirense Wilson Batista. Este respondeu com “Mocinho da Vila”. Noel rebateu com “Palpite Infeliz”. Wilson Batista apelou com “Frankstein da Vila” − uma alusão ao defeito na face do outro compositor. Em seguida, Noel compôs o grande sucesso “Feitiço da Vila”. Para finalizar a polêmica, Wilson fez “Conversa Fiada” e “Terra de Cego”, não respondidas por Noel; porém desta última canção, o “Filósofo da Vila” aproveitou a melodia para fazer outra letra, consumando, assim, uma parceria entre os dois. Na primeira música, Noel criticava o malandro cantado por Wilson, pois não concordava com a forma com que ele expusera sua vadiagem. Por trás das canções, o que havia, porém, era um desentendimento entre eles por causa de mulher. Noel conheceu, na noite de São João de 1934, a dançarina Juraci Correia de Moraes, então com 16 anos, que serviu de inspiração para, pelo menos, oito sambas do Poeta da Vila. A relação durou apenas alguns meses. No dia 1º de dezembro daquele mesmo ano, ele se casou com Lindaura. Noel continuava boêmio, fraco e debilitado, frequentando os bares nas madrugadas da Lapa. Ali
mentando-se mal e vivendo com excessos de bebidas e cigarro, acabou contraindo tuberculose. Em 1935, viajou para Belo Horizonte, onde fez um tratamento especial; mas voltou em estado grave de saúde. No dia 4 de maio de 1937, faleceu em sua casa, em Vila Isabel. Sua trajetória na música popular é única, além de muito curiosa. Partindo do bairro de classe média em que residia, Noel conseguiu, por meio de sua arte, tipicamente brasileira, representar e conquistar a empatia e o respeito de diferentes classes sociais, desde os bares da cidade até os becos recônditos das favelas, onde fez parcerias memoráveis; levando-se em conta, ainda, a rivalidade e a divisão que existia entre as escolas de samba e a música do morro e da cidade naquela época.
O samba e a época de Noel Rosa
O início do século 20 foi repleto de profundas modificações e novidades no Brasil e no mundo. As principais transformações foram: A Primeira Guerra Mundial (1914-1918); a Revolução Russa (1917); a quebra da bolsa de Nova York (1929); o aparecimento e a popularização do automóvel e do cinema, além de outras consideráveis mudanças no painel sociocultural das sociedades. No Brasil, em 1916, foi gravado o primeiro samba, “Pelo telefone”, por Mauro de Almeida e Donga. Além disso, aconteceu a revolucionária Semana de Arte Moderna (1922). Houve, também, muitas mudanças no cenário político com a Revolução de 1930 e o Estado Novo de Getúlio Vargas. (cf. Filho, 1988: 9). A história do negro e do samba começou a se desenvolver no Rio de Janeiro (Capital Federal à época) devido aos seguintes começavam a se erguer nos morros) e nas reuniões nas casas das “tias” baianas. Os primeiros desfiles de escolas de samba e os encontros dos compositores e malandros mais conhecidos (como Donga, Sinhô, João da Baiana, entre outros)
fatores: a chegada dos habitantes de Canudos em busca de melhores condições de vida na cidade; a migração, para a cidade, dos negros perseguidos após o término da Guerra do Paraguai (1870); a maior seca da história, ocorrida no Nordeste (1877), que fez com que os negros fossem vendidos para as principais cidades (São Paulo e Rio de Janeiro), e a abolição da escravidão (1888) (cf. Lopes, 1992:3). Os repentistas nordestinos levaram à capital seu canto e, a partir daí, nasceu, primeiramente, o samba de partido-alto, cantado em versos de improviso pelos grupos marginalizados nas favelas (que já aconteceram na casa da baiana Tia Ciata, na Praça Onze. Depois, o samba − tomando novas formas e roupagens com as influências que veio sofrendo de outros ritmos e estilos musicais −, começou a se espalhar pelos bairros da cidade por meio do carnaval e das rádios, como veremos adiante. Quanto ao malandro – palavra derivada do italiano malandrino, que significa “salteador”, “assaltante de viajantes” −, tipo social relevante da época, é o sujeito que “age entre a cidade e o campo (morro) (...); sente-se atraído pela cidade, mas como lá vige a legalidade, tem por bem manter-se um pouco dis
tante dela pelo tempo necessário à sua segurança” (Silva, 1999:50), assim, só retorna à cidade para gastar o dinheiro que conseguiu por meio do jogo ou até mesmo roubando. As ações do malandro carioca, porém, diferenciam-se das atitudes criminosas do malandrino salteador. Por um lado, o malandro procura sempre passar uma boa impressão aos cidadãos, vestindo-se bem ou agradando as pessoas para obter o que deseja; por outro lado, tinha aversão ao trabalho, visto que a maioria dos malandros foi escravo ou descendente de escravos e, por esse motivo, o descompromisso era uma forma de resistência ao “patrão” ou qualquer outro tipo de chefe. Para garantir seu sustento, ganhava dinheiro por meio do samba e do jogo. A linguagem criada pelo malandro também é um fator relevante, pois contribuiu muito para a formação do português brasileiro, com a criação de gírias e expressões populares. Como muito bem aponta Noel Rosa na letra do samba “Não tem tradução”, “as gírias que o nosso morro criou, bem cedo a cidade aceitou e usou (...), tudo aquilo que o malandro pronuncia, com voz macia, é brasileiro, já passou de português”.
Com que Roupa?
1. Agora, vou mudar minha conduta 2. Eu vou pra luta 3. pois eu quero me aprumar 4. Vou tratar você com a força bruta 5. Pra poder me reabilitar 6. Pois esta vida não está sopa 7. E eu pergunto: com que roupa? (Refrão) 8. Com que roupa que eu vou pro
samba que você me convidou?
9. Com que roupa que eu vou pro samba que você me convidou?
10. Agora, eu não ando mais fagueiro. 11. Pois o dinheiro não 12. É fácil de ganhar 13. Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro 14. Não consigo ter nem pra gastar 15. Eu já corri de vento em popa, mas agora com que roupa?
16. Eu hoje estou pulando como sapo 17. Pra ver se escapo 18. Desta praga de urubu 19. Já estou coberto de farrapo 20. Eu vou acabar ficando nu 21. Meu paletó virou estopa e eu nem sei mais com que roupa
22. Seu português agora foi-se embora 23. Já deu o fora 24. E levou seu capital 25. Esqueceu que tanto amava outrora 26. Foi no Adamastor pra Portugal 27. Pra se casar com uma cachopa.
Esse samba foi inspirado nas dificuldades econômicas que o Brasil estava passando com a crise da bolsa de Nova Iorque, em 1929 (cf. Máximo & Didier, 1990). Na letra, percebemos a atitude do eu-poético em busca de fácil” ou “esta vida está difícil”. A novidade está também na arquitetura poética, isto é, no ritmo e, principalmente, nas rimas, as quais dão coerência ao texto e reforçam a ideia de “se endireitar” do eu-poético: conduta/luta/força
uma mudança de comportamento e estilo de vida, referindo-se, ironicamente, à sua postura de malandro descompromissado e vadio frente aos cidadãos trabalhadores que lutam e labutam com seriedade pela “evolução” e “reabilitação” do país. A canção trata da miséria do Brasil, sendo construída, basicamente, com frases feitas, provérbios e gírias, ou seja, expressões características da oralidade, para uma comunicação mais fácil e direta com seu público: o povo brasileiro. As ideias dos versos acima são proferidas constantemente em nosso cotidiano, porém de diferentes maneiras. Encontramos frases feitas nos versos 1, 2, 3, 4, 5; e, no verso 6, a gíria “(não) está sopa”, formada por verbo polissêmico 3 , que significa, segundo Houaiss (op. cit.:2609), “coisa fácil de ser feita, vencida ou resolvida <esse negócio foi uma sopa> (...) ser (uma) sopa. B infrm. Ser muito fácil, ser pinto, ser (uma) canja ”. Nesse caso, portanto, “esta vida não está
bruta, aprumar/reabilitar e, por fim, sopa/roupa que, além de criar uma imagem da situação pelos ditos populares, “está sopa” e “com que roupa?” encadeiam o refrão (versos 8 e 9). Este, por sua vez, revela a situação crítica do malandro que não tem dinheiro nem para ir ao samba a que foi convidado. Como sendo um cabra trapaceiro”, em outras palavras, mesmo arranjando algum dinheiro por meio da malandragem − e não por meio do trabalho de cidadão honesto −, o eu-poético não consegue se sustentar. “Cabra trapaceiro” é uma gíria formada pelo processo metafórico relacionado com bicho:
já explicitamos, o próprio título da canção, “Com que roupa?”, nos sugere um eufemismo das expressões populares “com que dinheiro?”, “de que modo?”. Veremos, na próxima estrofe (versos 10 a 15), que essas últimas rimas exercerão a mesma função. Para justificar sua “força bruta” (verso 4), o eu-lírico retoma a ideia de que não anda mais fagueiro, ou seja, não anda mais carinhoso, agradável (10) e, por meio de frases cristalizadas (10 e 11), explica o motivo de sua postura rude: “Pois o dinheiro não é fácil de ganhar”. Temos aí um diálogo com o verso 6 (pois esta vida não está sopa), relevando a dificuldade da vida de trabalhador em ganhar dinheiro. E continua: “Mesmo eu
cabra = Indivíduo determinado; sujeito, cara (cf. Houaiss, op. cit.: 546) e trapaceiro = que ou o que faz trapaças, ou seja, “contrato fraudulento feito com quem empresta dinheiro”; caloteiro, esperto, furtador. (cf. Houaiss, op. cit.: 2754). Essa gíria tem sentido depreciativo e é utilizada pelo compositor para figurar, sarcasticamente, o malandro do Rio de Janeiro daquela época, que sobrevivia do jogo ou de empréstimos. Com essa imagem, consequentemente, o compositor enriquece sua crítica à miséria do Brasil. O último verso (15) conclui a ideia da estrofe com o emprego do provérbio “de vento em popa”, que significa, segundo Prata (1996: 60), que “o negócio está indo muito bem”, ou, de acordo com Serra & Gurgel (1998:192), “as coisas estão se desenvolvendo”. No contexto, porém, Noel Rosa nos mostra que “já correu de vento em popa”: a partícula já e o verbo no pretérito, corri, revelam um tempo passado, quando os negócios iam bem; além disso, a conjunção adversativa mas, seguida do advérbio agora, que exprime o tempo presente, nos mostra que os negócios não estão indo bem, ou seja, o eu-poético continua sem dinheiro. O provérbio também exerce uma função sonora para rimar popa e roupa para encadear o refrão. Na estrofe seguinte (versos 16 a 21), o eu-poético revela sua desventura social. Novamente, por meio de frases feitas e gírias, expressa sua situação de adversidade na sociedade. Os versos 16, 17 e 18 exprimem sua dificuldade para sair da crise em que se encontra, tendo em vista que o sapo se locomove aos pulos. Além disso, a imagem do sapo em nossa sociedade tem um valor depreciativo. No conto da Bela Adormecida, por exemplo, esse anfíbio representa o estado ‘negativo’ do príncipe, assim como no poema “Os sapos”, de Manuel Bandeira, o sapo simboliza os parnasianos “alienados” e passa a ser alvo de sarcasmo dos modernistas. Portanto, a figura do sapo, no verso 16, representa o eu-lírico tentando ‘escapar” de sua desdita. Por conseguinte, temos a gíria popular “Praga de urubu”, sendo praga, de acordo com Houaiss (op. cit.:2276), uma “desgraça coletiva de grandes proporções; calamidade” e urubu com a conotação
de algo negativo ou, segundo Serra & Gurgel (op. cit.:450), “pessoa sem sorte”. Logo, “praga de urubu” representa a crise econômica nacional que, por sua vez, reflete a crise financeira do eu-poético, o qual está “coberto de farrapo”, ou seja, vestindo trapos e, por isso, pode acabar “ficando nu”, sem roupa alguma, sem dinheiro nenhum. O último verso da estrofe (21) revela, por fim, toda degradação do narrador, pois seu “paletó virou estopa”. Para dar maior abrangência a essa crise, o narrador apresenta um acontecimento paralelo que relata, talvez, o fim de um relacionamento como consequência dessa conjuntura econômica instável. Para isso, exclui a primeira pessoa do discurso e passa a dirigir a voz a uma mulher brasileira, utilizando o pronome “seu” em vez de “meu” ou “minha”. O português, no caso, é um imigrante colonizador e usurário que veio ao Brasil para enriquecer e desfrutar de seu poder financeiro. Muitas obras de Noel denunciam este tipo de explorador; em especial, uma das operetas radiofônicas do compositor, “O Barbeiro de Niterói” 4 , trata claramente dessa questão. Os primeiros versos da última estrofe (22 a 27) traduzem a atitude interesseira do português que, provavelmente, foi embora do país porque seus negócios não estavam mais indo bem devido à crise, levando todo seu dinheiro e deixando sua mulher sem nada. Para enfatizar o descompromisso do português, Noel utiliza a gíria “deu o fora” (23) que, além de revelar a desistência do compromisso profissional do galego, significa, por conseguinte, a desistência do namoro. Nos versos seguintes (25, 26 e 27), o compositor, de forma irônica, esclarece o interesse do português que “esqueceu que tanto amava outrora” (25); em outras palavras, nos mostra que, em um momento de dificuldade, ele não se lembra do amor e que, na realidade, nunca a amou. O verso 26 faz alusão ao navio Adamastor, citado por Camões, em Os Lusíadas, e apresenta o português regressando para sua terra natal. cc
Caio de Almeida Bassitt é graduado em Letras pela Pontifícia Universidade Católica.
Notas
1. O presente artigo é trecho do trabalho acadêmico As gírias, os provérbios e as frases feitas na letra de Noel Rosa, realizado em 2008, na PUC-SP, para a disciplina Estudos Individuais, ministrada pela Professora Doutora Ana Rosa Ferreira Dias. 2. Disponível em <http://www.samba-choro.com.br/artistas/noelrosa>. Acesso em: 08 set. /2008. 3. Conferir processo de formação de gíria por verbos polissêmicos (pág. 16). 4. Máximo & Didier, 1990, 379.
Referências
BECHARA, Evanildo. 2006. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna. FILHO, João Antônio Ferreira.. Literatura Comentada: Noel Rosa. São Paulo: Nova Cultura, 1988. HOUAISS, Antônio.. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2007. LOPES, Nei. O negro no Rio de Janeiro e sua tradição musical. Rio de Janeiro: Pallas, 1992. MÁXIMO, João & DIDIER, Carlos.. Noel Rosa: Uma biografia. Brasília, DF: Universidade de Brasília, 1990. MOISÉS, Massaud.. Dicionário de termos literários. São Paulo: Cultrix, 1974. OLIVEIRA, Clenir Bellezi de.. Arte Literária: Portugal-Brasil. São Paulo: Moderna, 1999. PRATA, Mario.. Mas será o Benedito? São Paulo: Globo, 1996. PRETI, Dino.. A gíria e outros temas. São Paulo: Queiroz, 1984. SALOMÃO, Maria do Carmo Rennó da Costa.. Os provérbios e as frases feitas no discurso jornalístico. Dissertação de Mestrado. São Paulo. PUC-SP, 2001. SERRA, J.B. & GURGEL.. Dicionário de gíria. Brasília: Mania de Livro, 1998. SILVA, Antônio de Oliveira.. A língua portuguesa literária do modernismo brasileiro e a constituição do malandro no discurso poético de Noel Rosa. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 1999. TINHORÃO, José Ramos. História social da música popular brasileira. São Paulo: Editora 34, 1998. VENEROSO, Paula Cristina.. A divulgação da gíria na imprensa: A descaracterização de um signo. Dissertação de mestrado. São Paulo. PUC-SP, 1999.
<http://www.samba-choro.com.br/artistas/noelrosa>. Acesso em: 5 set. 2011.