23 minute read

Rosa e Rubinato: histórias e discursos João Hilton Sayeg-Siqueira

R M

Rosa e Rubinato: histórias e discursos Pastiche Crônicas de Noel Rosa e Adoniran Barbosa I

Advertisement

João Hilton Sayeg-Siqueira

Quando do descobrimento do Brasil, no século 16, a música dos índios era executada em solos e coros, acompanhados pela dança, pelo bater das palmas, dos pés, de tambores e de varetas, harmonizados por flautas, apitos, cornetas e chocalhos. A essa manifestação tribal, os jesuítas tentaram, nos cursos de evangelização, introduzir noções elementares de música europeia. A influência indígena na formação da música brasileira foi muito pequena, pois, maltratados e escravizados, os índios passaram a evitar uma convivência muito próxima com o branco e dificultaram a aculturação. Teve-se, de fato, quase que a dizimação da cultura indígena, o que levou a praticamente desaparecerem do cenário nacional suas peculiaridades musicais, a não ser o cateretê, que sobreviveu timidamente em festas populares que eram organizadas pelos jesuítas sob a forma de rituais religiosos. Desses rituais surgem as primeiras manifestações folclóricas populares dos habitantes locais, como o reisado e o bumba-meu-boi. O acompanhamen

to musical mantinha características de música sacra, que eram somadas às melancólicas baladas e modas portuguesas, configurando os primeiros traços miscigenados da constituição da música brasileira. A chegada da cultura musical africana com os escravos trouxe para o cenário do Brasil colonial danças religiosas como a da macumba e a do candomblé que, por se distanciarem dos cultos religiosos dos brancos, foram desprezadas e consideradas de categoria inferior. Os escravos passaram, então, a ser educados musicalmente dentro dos padrões portugueses, o que possibilitou o surgimento de novas formas musicais afro-brasileiras como o afoxé, o jongo, o lundu, o maracatu, o maxixe e o samba, desenvolvidas principalmente nos quilombos, como forma de preservação da integridade cultural. As reuniões de músicos nos quilombos fomentaram a formação das irmandades constituídas somente por afrodescententes que passaram a monopolizar a escrita e a execução de música em boa parte do Brasil, utilizando não só o ritmo mas também vocábulos da língua de origem. Os portugueses, no processo de colonização africana, entram em contato com uma dança sensual e humorística, o lundu, à qual acrescentam algum polimento musical pela incorporação do bandolim, o que lhe dá um caráter urbano e a torna popular como dança de salão. Assim o lundu chegou ao Brasil colônia antes mesmo dos escravos. Mas, com estes, principalmente com os bantos vindos do Congo e de Angola, revelou sua faceta de dança lasciva com umbigada. Aí estava o gene do samba. Enquanto no Brasil prevalece a música sacra, na Europa surge, no século 17, a ópera, peça melodramática musicada, o que provoca a proliferação de escolas de formação mugos, dobrados, quadrilhas, lundus e polcas. A vinda da família real, no início do século 19, muda as feições do Brasil, que passa a se urbanizar. O processo de urbanização, por um lado, intensifica a produção musical religosa e, por outro, favorece a in

Os portugueses, no processo de colonização africana , entram em contato com uma dança sensual e humorística , o lundu...

sical. O reflexo disso, no Brasil, só ocorrerá no século 18. A estrutura institucional e educacional favoreceu o surgimento de pequenas orquestras que se somaram às irmandades que ainda sobreviviam intensamente ao lado de uma rica variedade de músicas sacras e do surgimento de tímidas bandas de corporações militares. As bandas militares e as de coreto ganharam reforço a partir do aparecimento dos divertidos grupos musicais dos barbeiros, compostos de escravos do Rio de Janeiro e da Bahia com tempo para se dedicarem ao aprendizado de velhos e desgastados instrumentos musicais doados. Eram pequenas orquestras ambulantes, de entretenimento público, chamadas de charangas, constituídas por flauta, cavaquinho, viola, rabeca, trompa, pistão, pandeiro, tamborim, machete, que interpretavam fandantrodução de outros gêneros como a modinha, qua ganha grande popularidade. Era uma música com feição sentimental, marcada pela melancolia e pelo romantismo, podendo ser executada em ocasiões as mais diversas, pela simplicidade de sua estrutura, que possibilitava apenas o acompanhamento de uma viola. Já mais elaborada, com acompanhamento de flauta, tornou-se presença frequente nos saraus dos aristocratas. A modinha era tão apreciada que até os músicos da corte criaram algumas peças no gênero, musicando alguns textos de poetas expressivos da época. Mesmo assim, a corte tentava manter o requinte musical da metrópole. D. João VI trouxe músicos de Lisboa e da Itália e construiu o suntuoso Real Teatro de São João, que divulgava o trabalho de importantes autores europeus. Além da distinção entre a música popular e a

sacra, agora entrava no páreo a música erudita. Havia três instâncias de produção musical, uma sacra e duas profanas, a erudita e a popular, com prestígios sociais diferenciados: Durante o Primeiro Império, as festas se multiplicaram no Paço Imperial e novas tendências musicais entraram em cena: valsas, polcas, schotschs e tangos. A modinha permaneceu e, somada a esses novos gêneros, deu origem ao choro, que recebeu esse nome por seu tom plangente, de mágoa e nostalgia, marcado pelo uso de flauta, cavaquinho e violão. Dada a diversidade de gêneros que entraram na formação do choro, sua forma composicional favorecia bastante a presença subjetiva do improviso. O choro tinha sua expressão mais genuína em meio a pequenos grupos instrumentais formados por modestos funcionários dos Correios e Telégrafos, da Alfândega, e da Estrada de Ferro Central do Brasil, que se reuniam nos subúrbios cariocas. As festas das quais os chorões participavam já eram chamadas de pagodes, reuniões informais já referidas a festas organizadas nas senzalas pelos escravos. A fácil mobilidade encontrada no uso de instrumentos como a flauta, o cavaquinho e o violão propiciou o surgimento de uma nova maneira de manifestação popular por meio da música, que foram as serenatas de fim de noite. Os seresteiros solidificaram a presença da modinha e do choro na cultura musical do Brasil. Outro ritmo que ganhou grande popularidade foi a dança de salão de origem centroeuropeia, o schotsch, palavra alemã que significa escocesa em referência à polca escocesa, que em Portugal ficou conhecido como chotiça e, no Brasil, foi cognominado xote ou xotis. Os escravos aprenderam alguns passos da dança e acrescentaram sua maneira peculiar de bailado com variações ritmicas. A diversidade musical ampliava. A polca, dança rústica da Boêmia, atual província da República Tcheca, tornou-se popular como dança de salão e foi largamente divulgada por grupos de choro e por grupos carnavalescos. Tornou-se, também, gênero básico de apoio para outras fusões musicais como o lundu, o fadinho e os motivos militares. No Segundo Império, em decorrência da grande popularização Ao lado da ostentosa pompa da corte, intensificou-se cada vez mais a popularidade do samba, derivado do ritmo africano, umbigada, agora somado às nuances bastante aceitas da modinha, do maxixe e do lundu, o que lhe deu variações como o miudinho, a tirana espanhola, o fado batido e a chula. O samba ainda era um tipo de música identificado com as pessoas de estratos mais humildes. Cabe destacar que o maxixe nasceu nos lendários cabarés da Lapa do Rio de Janeiro, como uma dança de par, extremamente sensual, misturando o lundu com o tango argentino, com a abaneira cubana e com a polca. Quando tinha letra, era recheada de gíria carioca.

...intensificou-se cada vez mais a popularidade do samba , derivado do ritmo africano, umbigada, agora somado às nuances bastante aceitas da modinha , do maxixe e do lundu...

dos bailes pela diversidade de ritmos, foi realizado o primeiro baile de máscaras em 22 de janeiro de 1840, uma tentativa da alta sociedade da época de importar o estilo do carnaval de salão de Veneza. As manifestações populares ganharam uma dimensão mais espontânea com o surgimento do entrudo, de herança portuguesa, que era um bloco de foliões de rua, formado pela população migratória ru-

ral nordestina que antecedeu e prenunciou o surgimento dos blocos de carnaval, inicialmente conhecidos como cordões. No bairro carioca da Saúde, organiza-se o primeiro rancho carnavalesco, de nome Dous de Ouro, formado por nordestinos, antigos escravos e filhos de escravos baianos. Em decorrência, os sergipanos e alagoanos, rivais dos baianos, fundam o Rancho da Sereia. Os ranchos carnavalescos surgiram inspirados nas procissões folclóricas, religiosas, dos reis nordestinos. Esboçaram-se, com a apresentação dos ranchos, os primeiros traços do samba de desfile por meio de um batuque mais compassado. Já na República, surgiu o frevo em Recife, PE. Nasceu da polcamarcha como dança de multidão, com ritmo frenético e contagiante, de coreografia individual improvisada e inspirada na capoeira, apoiada no uso de sombrinhas e guardachuvas. No Rio de Janeiro, por solicitação dos integrantes do cordão Rosas de Ouro, em 1899, Chiquinha Gonzaga compôs a primeira marcha carnavalesca da história da música brasileira, chamada “Ô, Abre Alas”, um enorme sucesso que veio contribuir para a consolidação das bases iniciais da música popular do Brasil. Cada vez mais frequentes nos rituais religiosos dos ex-escravos, os ritmos de candomblé e de umbanda passaram a ser oficialmente aceitos como parte integrante da cultura brasileira. Deles, preservaram-se as músicas, as escalas musicais, os instrumentos como agogô, cuíca, atabaque e suas ricas bases polirrítmicas. A partir de 1900, novas influências culturais desembarcam no Brasil com a chegada de imigrantes europeus e asiáticos, como italianos, alemães, japoneses, libaneses, que aumentaram a miscigenação e a influência de compasso, de harmonia, de ritmo em nossa música. O grande marco musical do início do século 20 foi o nascimento de dois sambistas de grande expressão nacional. Em 1910, no bairro de Vila Isabel, no Rio de Janeiro, nasceu Noel Rosa. De família de classe média, teve uma infância farta, estudou no tradicional Colégio São Bento, entrou para a faculdade de Medicina e casou-se com uma moça da alta sociedade. Em 1912, na cidade de Valinhos, SP, nasceu João Rubinato. De família imigrante da Itália, sem grandes posses, estudou pouco e começou a trabalhar cedo, na imprópria idade de dez anos, por isso a alteração da data de seu nascimento para 1910. Foi entregador de marmitas, varredor, tecelão, pintor, encanador, serralheiro, mascate, garçom e ajustador mecânico. Casou-se duas vezes com moças de pouca posse. Na época, no interior do estado de São Paulo, passou-se a registrar uma modalidade tipicamente paulista de batuque, chamada samba-de-pirapora, samba-de-campineiro ou samba-de-bumbo. A cidade de Pirapora foi o mais importante centro de encontro e de fusão do samba paulista nas festas do Bom Jesus, no mês de agosto, com a reunião de numerosos músicos, predominantemente afrodescendentes, de Campinas, Barueri, Tietê e cidades vizinhas. Na cidade de São Paulo, no mesmo mês de agosto, acontece, na Bela Vista (bairro do Bixiga) a festa de Nossa Senhora da Achiropita. Por coincidência ou por tradição romeira, o samba-de-batuque, começa a ganhar popularidade urbana. Os encontros de sambistas se popularizaram e começaram a se organizar em agremiações. Em 1914, foi fundado o grupo carnavalesco

Chiquinha Gonzaga, aos 85 anos. Foto: Particular

Barra Funda, precursor da escola de samba Camisa Verde e Branco que, também, ia regularmente, aos encontros e festejos de Pirapora. O pioneiro grupo paulistano tinha apenas doze integrantes; vestidos de camisas verdes, calças brancas e chapéus de palha, tocavam um pandeiro e chocalhos de madeira com tampinhas de garrafa de cerveja. Embora tenham surgido das rodas de samba, diferentemente do que ocorreu no Rio de Janeiro, os cordões e ranchos paulistas não usavam o samba para os desfiles de carnaval, mas sim as marchas-ranchos e o choro. Os paulistas, somente no fim da década de 1920, aderiram ao samba no carnaval. Das incursões pelo interior popularizaram-se, entre as classes média e alta, as canções sertanejas, ritmos rurais que abrangiam modas, toadas, cateretês, chulas, batuques e emboladas. O desenvolvimento da região Sudeste e o crescimento das cidades começaram a provocar um êxodo rural não só do interior dos estados mas também de outras regiões, como o Norte e o Nordeste. Dessas regiões vieram o xaxado e o baião. Era o florescimento das músicas caipira e regional. 1917 foi estipulado como o ano do nascimento oficial do típico samba carioca, que misturava maxixe com frases rítmicas do folclore baiano. A manifestação musical própria das rodas de improvisações e criações conjuntas dos morros cariocas foi alçada à condição de representante da música popular brasileira. Surgiram as primeiras escolas de samba cariocas, miscigenan

Grupo carnavalesco Barra Funda, fundado em 1914.

do características dos entrudos, dos ranchos carnavalescos e dos cordões fantasiados. A primeira escola de samba, Deixa Falar, surgiu no Largo do Estácio. Essa também foi a época de ocupação dos morros do Rio de Janeiro, pela classe humilde de habitantes que cultuava o samba. Era o nascimento do Samba de Morro. O samba se espalha por todas as localidades, do centro das grandes capitais para a periferia e para o interior do país. Nos salões de baile e nas insurgentes gafieiras, o samba disputa lugar com o maxixe, a marcha, o jazz, a valsa e o bolero. Da

mistura deste com o samba, surgiu o samba-canção, um tipo mais lento, melancólico e romântico. O samba ganhou, também, o teatro, ao ser aplicado ao modelo das operetas, e ao ser utilizado para retratar os costumes vigentes. A influência veio das revistas europeias, uma mistura de teatro, música e dança, abordando os principais fatos da época de forma crítica, humorística, despojada e irreverente. Os números apresentados eram, em geral, canções populares ou paródias de obras célebres. No Brasil, o Teatro de Revista ou Rebolado ganhou grande popularidade, tanto que, a partir dos anos 1930, as encenações tornaram-se luxuosas e apresentavam as vedetes como estrelas, em trajes sumários. Com suas grandes e bem aceitas produções, foi um veículo importante de difusão da música popular brasileira. As peculiaridades culturais do Brasil não se restringiram ao Teatro de Revista, presentificaram-se, também, nas obras eruditas. Após Carlos Gomes, passou-se a prestar mais atenção ao que poderia constituir uma música autenticamente brasileira. O rico folclore nacional foi a peça-chave para compositores utilizarem seus temas em canções. Eram resgatados ritmos e melodias do folclore em uma síntese inovadora e efetiva com as estruturas formais de matriz europeia. Na Semana de Arte Moderna, em 1922, reformulou-se o conceito sobre a arte nacional. Heitor Villa-Lobos, a figura maior do nacionalismo musical brasileiro, resgatou a riqueza da cultura indígena, reabilitando a configuração melódica de cerimônias como o Kuarup, o Ouricuri e o Umbu, em que a música e a dança desempenham um papel de grande relevo. A fusão da música popular com a erudita, desencadeada pela valorização do folclore, impulsiona o aparecimento de uma nova concepção de escola de formação musical que respeita a individualidade do aluno e estimula a livre criação antes mesmo do conhecimento aprofundado das regras tradicionais de composição. A partir de 1927, começou a se efetivar a força do rádio como veículo de informação e de entretenimento. Mas foi no final dos anos 1930 que o rádio assumiu importante papel de divulgador de música, por meio de populares programas de auditório, com música ao vivo. A conhecida Era do Rádio tornou-se um fenômeno de massa e marcou o declínio do choro, gênero que, por ser marcado pela improvisação, não se prestava a gravações elétricas. Em 1930 teve, efetivamente, início a carreira artística de Noel Rosa, com a música “Com que Roupa?” Já se revelava seu talento proverbial, com verve crítica e humorística sobre a vida carioca, marca registrada de toda a sua obra. Em 1932, Noel conhece o compositor Vadico, um dos seus mais importantes parceiros, com quem faria alguns de seus maiores sambas. Noel revelou-se um talentoso cronista do cotidiano. Boêmio ao extremo, frequentava com assiduidade os bares e cabarés da Lapa, pois era apaixonado por uma prostituta, sua amante, que ali vivia; e, assim, tornou-se observador arguto dos acontecimentos diuturnos. Uma peculiaridade interessante na vida artística de Noel foi a batalha musical que travou com Wilson Batista, jovem sambista, a partir da provocação que este lhe fez na música “Lenço no Pescoço”. Em resposta, compôs “Rapaz Folgado”, música em que, estranhamente, critica o malandro carioca, uma vez que era apologista da malandragem. Lutando desde muito moço contra a tuberculose, em 1937, aos 26 anos de idade, Noel faleceu na Vila Isabel, deixando um acervo de 193 músicas. Em 1939, ocorreu o primeiro importante sucesso da música brasileira no exterior, com “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso, expoente do gênero samba-exaltação. O estado novo ditatorial e nacionalista de Getúlio Vargas, que muito apreciou esse novo tipo de samba, por motivos óbvios e pelo alcance internacional, passa a recomendar aos compositores populares que abandonem o tema da malandragem carioca em suas músicas. Embora o samba fosse a representação emblemática da música brasileira, outros gêneros não paravam de surgir. Na década de 1940, eclodiu a música de raízes rurais e folclóricas nordestinas, como o baião de Luiz Gonzaga; e, nas boates de Copacabana, a bossa nova, mistura de jazz e samba, que encontrou seu apogeu nos anos 1950. Foi em maio de 1955, com

a gravação de “Saudosa Maloca” pelo grupo Demônios da Garoa, que a carreira de compositor João Rubinato, cognominado, Adoniran Barbosa, se firmou. Com um estilo peculiar no uso da linguagem, procurou retratar o registro dos diferentes grupos de imigrantes, predominantemente o italiano. Não só as letras, como também a melodia são marcadas pelo ritmo da fala paulistana. Na contramão dos sambistas cariocas que procuravam sublimar o discriminado samba, por meio do tom elevado das letras, e dignificar a origem miserável de excluídos em busca da inserção social, Adoniran retratava a linguagem despojada das camadas mais simples da população, como os despejados das favelas, os engraxates, a mulher submissa que se revolta e abandona a casa, o homem social e existencialmente solitário. O drama das pessoas solitárias e desvalidas é tratado com um tom tragicômico, um tratamento bem humorado da tragédia de um país que subtrai dos cidadãos a dignidade e da vida em uma metrópole que tem um canto rangido de sacrifício e de desigualdade. Nas composições de Adoniran encontra-se o retrato da vida do típico paulistano, personagem de suas músicas. Com enfisema pulmonar, decorrente da vida boêmia, Adoniran morreu em 1982, aos 72 anos de idade, pobre como nasceu. Mas deixou um rico legado de composições que o tornaram reconhecido como o mais fiel cronista das camadas populares paulistanas. Foi e é tido como o maior compositor popular da cidade de São Paulo e os seus sambas são reverenciados pelos cariocas. Tanto Noel Rosa como Adoniran Barbosa, cada um à sua época e em sua cidade, foram considerados cronistas de sua época e de suas cidades. Embora tenham nascido na mesma época, a atividade de compositor de cada um começou em tempos diferentes: Noel em 1930 e Adoniran em 1955. Pela família e pela formação recebida, Noel revelou uma veia poética mais elaborada, mais lírica, diferentemente de Adoniran, que incursionou pelas veredas da narrativa, gênero mais próximo da tradição popular de manifestação artística, desde a antiguidade. Para exemplificar esse contraponto, seguem algumas letras dos dois compositores.

NOEL ROSA

Mentiras de Mulher

São mentiras e mulher, Pode crer quem quiser. Que eu tenho horror ao batente, E não sou decente, Poder crer quem quiser, Que eu sou fingido e malvado, E até que sou casado, São mentiras de mulher. (bis) Quando no reino da intriga,Surge uma briga, Por um motivo qualquer, Se alguém vai pro cemitério, É porque levou a sério, As palavras da mulher. (bis) Esta mulher jamais se cansa, De fazer trança, Na mentira é um colosso, Sua visita tão cacete, Que escrevi no gabinete: “Está fechado para almoço”. (bis) Esta mulher, de armar trancinha, Ficou magrinha, Amarela e transparente, Quando vai ao ponto marcado, De um encontro combinado, Dizem que ela está ausente...

ADONIRAN BARBOSA

Apaga o Fogo, Mané

Inez saiu dizendo que ia comprar um pavio pro lampião Pode me esperar Mané Que eu já volto já Acendi o fogão, botei a água pra esquentar E fui pro portão Só pra ver Inez chegar Anoiteceu e ela não voltou Fui pra rua feito louco Pra saber o que aconteceu Procurei na Central Procurei no Hospital e no xadrez Andei a cidade inteira E não encontrei Inez Voltei pra casa triste demais O que Inez me fez não se faz E no chão bem perto do fogão Encontrei um papel Escrito assim: − Pode apagar o fogo, Mané, que eu não volto mais

Noel dá um tratamento generalizado sobre o procedimento da mulher; é toda e qualquer, tanto que não usa um determinante definido antes do substantivo. Esse caráter é próprio da configuração lírica, ou poética, da crônica, com uma abordagem mais universal que retrata episódios da vida com um tom mais sentimental ou nostálgico. Adoniran, por sua vez, traz um fato cotidiano mais particular, com a presença marcante da primeira pessoa, o que caracteriza

uma crônica narrativa comprometida com fatos banais, comuns que lhe permitem as pinceladas de humor.

NOEL ROSA

Envio Essas Mal Traçadas Linhas

Cordiais saudações! Envio estas mal traçadas linhas Que escrevi a lápis Por não ter caneta Andas perseguido Para que escapes Corta o teu cabelo E põe barba preta Em vão te procurei Notícias tuas não encontrei Mas ontem te escutei E este bilhete ao Fígaro entreguei Sem mais para acabar Recebe o beijo Que eu vou mandar Eu amo, com amor não brinco Niterói, trinta de outubro de trinta e cinco

ADONIRAN BARBOSA

Vide Verso Meu Endereço

Falado: “Seu Gervásio, Se Dr. José Aparecido aparecer por aqui Cê dá esse bilhete a ele Pode lê, num tem segredo nenhum Pode lê seu Gervásio”

Venho por meio destas mal traçadas linhas Comunicar-lhe que eu fiz um samba pra você No qual eu quero expressar toda a minha gratidão E agradecer de coração Por tudo que você me fez E o dinheiro que um dia você me deu Comprei uma cadeira lá na praça da bandeira Alí vou me defendendo Pegando firme dá pra tirar mais 1.000 por mês Casei, comprei uma casinha lá no Ermelindo, Tenho três filhos lindos Dois são meu, um é de criação, Eu tinha mais coisas pra lhe contar Mas vou deixar, pra uma outra ocasião, Não repare a letra A letra é de minha mulher Vide verso meu endereço Apareça quando quiser

Na letra de Noel fica bem clara a tentativa de sublimação do samba, para retirá-lo da condição de desprestígio social, e isso pelo uso da segunda pessoa do singular, com a conjugação adequada. Esse é um traço que diferenciou bastante o samba carioca do samba paulista. Em Adoniran, a descontração linguageira é peculiar, pois mesmo a formalidade traz marcas do registro cotidiano nas formas de tratamento. Ressalta-se que o samba paulista teve suas raízes no interior do estado e nas festas religiosas da comunidade italiana. A maneira de falar, de designar as referências do discurso, de articular a sintaxe do texto ganhou peculiaridades inusitadas. Nesse contexto se deu a formação de Adoniran, nascido no interior do estado de São Paulo e criado na convivência de imigrantes italianos. Além do mais, as diferenças entre os dois compositores pode ser evidenciada pela formação escolar que tiveram. Noel nasceu em família bem, com mãe professora e chegou a frequentar curso superior. Adoniran mal terminou o estudo primário, nascido em família pobre com pais operários.

NOEL ROSA

Meu Barracão

Faz hoje quase um ano Que eu não vou visitar Meu barracão lá da Penha Que me faz sofrer E até mesmo chorar Por lembrar a alegria Com que eu sentia Um forte laço de amor Que nos unia Não há quem tenha Mais saudades lá da Penha Do que eu, juro que não Não há quem possa Me fazer perder a bossa Só saudade do barracão Mas veio lá da Penha Hoje uma pessoa Que trouxe uma notícia Do meu barracão Que não foi nada boa Já cansado de esperar Saiu do lugar Eu desconfio que ele Foi me procurar Não há quem tenha Mais saudades lá da Penha Do que eu, juro que não Não há quem possa Me fazer perder a bossa Só saudade do barracão

ADONIRAN BARBOSA

Saudosa Maloca

Si o senhor não está lembrado Dá licença de conta Que aqui onde agora está Esse edifício arto Era uma casa veia Um palacete assobradado Foi aqui seu moço Que eu, Mato Grosso e o Joca Construímos nossa maloca Mais um dia Nem nóis nem pode se alembrá Veio os homi coas ferramentas

O dono mandô derrubá Peguemo todas nossas coisas E fumos pro meio da rua Aprecia a demolição Que tristeza que nóis sentia Cada tauba que caía Duía no coração Mato Grosso quis gritá Mas em cima eu falei: Os homis tá coa razão Nós arranja outro lugar Só se conformemo quando o Joca falou: “Deus dá o frio conforme o cobertor” E hoje nóis pega a paia nas grama do jardim E prá esquecê nóis cantemos assim: Saudosa maloca, maloca querida, Dim dim donde nóis passemos os dias feliz de nossas vidas Saudosa maloca, maloca querida, Dim dim donde nóis passemo os dias feliz de nossas vidas.

É a poesia em forma de crônica. A presença de figuras de linguagem retrata bem a poeticidade de Noel. A figura mais marcante é a prosopopeia que eufemiza a derrubada do barracão. O barracão não foi derrubado, mas “Já cansado de esperar / Saiu do lugar / Eu desconfio que ele / Foi me procurar...” Uma curiosidade é registro da gíria carioca bossa, em 1933. É essa gíria que começa a ser usada a partir da década de 1940 para designar um estilo meio jazístico do samba que se consagrou definitivamente nos anos de 1950, é a bossa nova. Já, em “Saudosa Maloca”, primeiro grande sucesso de Adoniran Barbosa, em 1955, é apresentado um fato cotidiano de excluídos sociais que veem sua rotina alterada por interesses que alteram suas vidas. Mesmo assim, o drama se eufemiza em máximas e provérbios do repertório popular e ganha comicidade pelo tratamento linguístico dado. É antológica a expressão “Dim dim donde nóis passemo...”.

NOEL ROSA

Maria Fumaça

Maria Fumaça Fumava cachimbo, bebia cachaça... Maria Fumaça Fazia arruaça, quebrava vidraça E só de pirraça Mata as galinhas de suas vizinhas Maria Fumaça Só achava graça na própria desgraça Dez vezes por dia a delegacia Mandava um soldado prender a Maria Mas quando se via na frente da praça Maria sumia tal qual a fumaça Maria Fumaça Não diz mais chalaça, não faz mais trapaça... Somente ameaça que acaba com a raça Bebendo potassa Perdeu o rompante Foi presa em flagrante roubando um baralho Não faz mais conflito Está no distrito lavando o assoalho

ADONIRAN BARBOSA

Trem das Onze

Não posso ficar nem mais um minuto com você Sinto muito amor, mas não pode ser Moro em Jaçanã, Se eu perder esse trem Que sai agora às onze horas Só amanhã de manhã. Além disso, mulher Tem outra coisa, Minha mãe não dorme Enquanto eu não chegar, Sou filho único Tenho minha casa para olhar E eu não posso ficar.

Nessa letra de Noel fica patente sua veia poética. Seu poema em muito se assemelha a outros que também apresentam um trabalho poético com a linguagem para retratar o compasso rítmico de um trem. Manuel Bandeira fez uma composição com essas características em “Trem de Ferro”: “Café com pão / Café com pão / Café com pão / Virge Maria que foi isto maquinista?...”. De Adoniran, tem-se o samba mais popular do Brasil. Não há quem não o cante inteiro ou, pelo menos, partes. De outros compositores, como também de Noel, algumas frases são lembradas, mas não com a abrangência de “Trem das Onze”, grande campeã de execução e laureada no carnaval do Quarto Centenário da Cidade do Rio de Janeiro. Bastava este samba para Adoniran se eternizar. cc

João Hilton Sayeg-Siqueira é Professor Doutor Titular e Coordenador do Programa de Estudos PósG raduados em Língua Portuguesa da PUC-SP.

Nota

Colaborou na elaboração deste artigo o Prof. Dr. Emanuel CardosoSilva.

Referências

CÂNDIDO, Antônio. A vida ao résdo-chão. In Para gostar de ler 5 – Crônicas. São Paulo: Ática, 1998. Copyright © − 2000 − Brazilian Music UpToDate. MARIZ, Vasco. História da música no Brasil. 6.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

This article is from: