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Kant e o Ideal de uma Paz Perpétua entre os Homens

KANT E O IDEAL DE UMA PAZ PERPÉTUA ENTRE OS HOMENS

Francisco Adriano R. Uchôa1

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Resumo: Escrito em 1795, o opúsculo kantiano, À Paz Perpétua, tinha como objetivo principal servir como a forma de um tratado imaginário para se alcançar e, ainda mais importante, manter a paz na Europa, por conseguinte, no mundo. Kant acreditava que a natureza, se aproveitando da maldade dos homens, seria responsável por conduzir a humanidade para um estado de direito pacificador. Através dessa noção, o pensador alemão formula uma série de artigos para a paz perpétua. Esse trabalho tem como objetivo analisar como seria possível ao homem a saída de um estado de anarquia para o estado de paz; além de expor, ainda que rapidamente, as noções de direito público apresentadas por Kant em À Paz Perpétua.

1. Introdução

Zum Ewigen Frienden, traduzido para o português como À Paz Perpétua, é o título dado por Kant ao seu pretensioso opúsculo escrito em 1795, e que tinha como principal objetivo lançar as bases para a implementação da paz na Europa. De acordo com a proposta kantiana, a paz seria alcançada por meio de uma união europeia que se efetivaria através da organização de uma federação de Estados, fundamentada por um tratado que tem a missão de eliminar não somente a guerra, mas também seus preparativos; dessa maneira, Kant acreditava que somente assim seria possível assegurar ao homem um futuro digno.2 A expressão “paz eterna” ou “perpétua” possui um caráter ambíguo, e Kant indaga a respeito dessa ambiguidade. Dela podemos inferir a ideia de morte e descanso eterno, ou realmente da conquista de um estado de paz na humanidade. Realmente a construção de um número maior de cemitérios parece ser a solução definitiva para o alcance da paz, pelo menos segundo a concepção de muitos líderes de Estado. Entretanto, o filósofo deve agarrar-se na esperança de viver esse “doce sonho” que é a paz entre os homens. É importante salientar ainda que nós não devemos nos deixar enganar pelo pequeno ‘porte físico’ da obra de Kant, pois, a sua grandeza, certamente, se faz ver na maneira genial que Kant apresenta suas ideias, o que confere ao

1 Bolsista CAPES 2010.01. E-mail: adriano-uchoa@hotmailcom 2 Cf. MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. A Paz Perpétua (Zum Ewigen Frieden) de Kant. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 61, 01/02/2000.

opúsculo lugar entre as maiores obras da história da produção intelectual do Ocidente. Nem tampouco devemos cair no erro de taxar o ideal kantiano de ingênuo ou como sinal de um otimismo exacerbado por parte do filósofo alemão. Vejamos, então, como Kant formula seus princípios necessários para a paz perpétua.

Num tempo como o nosso, quando as trombetas da filosofia parecem terem umedecido no coração dos homens, a paz europeia continua a ser uma tarefa importante para a sobrevivência dos homens em geral. Tal como os demônios, da célebre imagem de Para a paz perpétua, estamos condenados a fazer a paz, não por sermos moralmente bons, ou sequer por nos empolgarmos com semelhante tarefa, mas simplesmente porque até para qualquer vulgar demônio parece a vida conter maiores virtualidades do que a morte.3

2. Status naturalis x Contrato social

Segundo Höffe, o corpo e a vida são constituintes da liberdade de ação, e o Estado é determinante para a garantia de tal liberdade, pois é ele quem assegura a paz através da utilização de estruturas jurídicas institucionais4 . É a partir daí que podemos afirmar o caráter estrutural que os conceitos de guerra e paz têm para Kant, pois, num Estado sem leis, ou seja, num Estado nãojurídico, encontraríamos num estado de natureza5 (status naturalis). Tal estado não é de paz, mas sim de guerra, uma guerra de todos contra todos, mesmo que, de fato, não haja guerra, pois, como não há leis (sem a lei não existe injustiça6), todos podem reivindicar aquilo lhe melhor convir e subjugar o outro apenas pela desconfiança que possa ter de ser atacado por ele. Portanto, é impossível a existência de quaisquer garantias de segurança, e prevalece, assim, o sentimento de medo entre as pessoas e os povos. Nesse

3 Cf. SOROMENHO-MARQUES, Viriato. História e política no pensamento de Kant. MiraSintra: Europa-América, 1994, p. 106. 4 Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 251. 5 Vale salientar que, em Kant, o estado de natureza adquire o status de mera ideia da razão, portanto deve ser qualificado como uma hipótese, e não como um dado histórico. Ele “representa a construção puramente racional de uma convivência com falta total de relações estatais, a anarquia no sentido literal da ausência de mando estatal” (Idem, p. 253). 6 É preciso entender que como não existe a esfera jurídica para efetivar as leis e os limites da sociedade a noção de justiça possui uma conotação arcaica, onde o direito da força e da violência é imposto. Entretanto, é necessário que se saiba que esse caráter de injustiça estabelece como dever, tanto dos indivíduos como do Estado, a saída dessa situação de selvageria (cf. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 254-255). Trataremos um pouco mais a respeito desse assunto no tópico sobre os artigos para a paz perpétua.

estado de natureza reina a liberdade ilimitada, porém extremamente selvagem, onde cada um pode agir como lhe parecer mais apropriado, independente de suas ações serem boas e servirem para si, para todos ou para ninguém. Para um melhor entendimento, deixemos que o filósofo da Crítica da Razão Pura fale por si mesmo. O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é um estado de natureza (status naturalis), que é antes um estado de guerra, isto é, ainda que nem sempre haja uma eclosão de hostilidades, é, contudo, uma permanente ameaça disso. Ele tem que ser, portanto, instituído, pois a cessação das hostilidades ainda não é garantia de paz e, a menos que ela seja obtida de um vizinho a outro (o que, porém, pode ocorrer somente em um estado legal), pode um tratar o outro, a quem exortara para tal, como um inimigo.7 Essa situação de constante terror e insegurança nos conduz logicamente a crer que só se é possível alcançar alguma segurança através da instituição do estado jurídico, ou que, em outras palavras, o direito publico8 é o alicerce que garante a saída de um estado de natureza para a entrada num estado civil, onde todos os indivíduos se relacionam uns com os outros. Sendo assim, o Estado seria a completude desses indivíduos, e, devido ao desejo de todos de permanecerem no estado jurídico, passa a ser chamado de comunidade, ou como afirmou Kant, das gemeine Wesen, res publica latius sic dicta (república em sentido amplo). O Estado também recebe a alcunha de potência (Macht, potentia), quando se trata de sua relação com outros povos, e, por sua união possuir um caráter pretensamente hereditário, de nação (Stammvolk, gens).9 Esse estado de paz seria, então, obtido por meio de um contrato social.10

7 Cf. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 23. 8 “O direito público é definido na ‘Doutrina do direito’ como ‘o conjunto de leis que precisam de uma proclamação universal para produzir um estado jurídico’, um sistema de leis destinado a um povo ou a uma multiplicidade de povos em relação de influência recíproca, que precisam de uma constituição (Verfassung, constitutio) para participar do que é de direito” (cf. NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant: Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 38). 9 Idem, p. 39. 10 O contrato social em Kant está desvinculado de um possível caráter empírico-antropológico, isto é, independe da experiência, sendo assim ele seria uma ideia da razão prática pura a priori, o que faz com que ele seja classificado unicamente como uma ideia racional do estado de direito (cf. MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. A Paz Perpétua (Zum Ewigen Frieden) de Kant. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 61, 01/02/2000.). Assim, podemos afirmar (ao analisar os argumentos de Bobbio) que Kant foi partidário de uma “história profética” –dita como a “história dos filósofos” – que é oposta à história empírica – esta seria a “história dos historiadores” (cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992,

Assim como alguns pensadores que o antecederam, Kant encontra o fundamento para a concepção desse estado jurídico nas teorias contratualistas de outros pensadores, tais como Hobbes, Locke e Rousseau. Entretanto, o filósofo de Königsberg elabora uma derivação e combinação das teorias de seus antecessores. De Hobbes, ele absorve o estado de natureza como fundamento racional para a instituição de um Estado, de Locke, a ideia dos direitos humanos inalienáveis e da divisão dos poderes, já de Rousseau, Kant é adepto da tese de que somente a vontade geral pode ser constitutiva do principio crítico-normativo supremo de toda legislação11 . Mas o que seria realmente uma teoria contratualista? Acredito ser muito clara, apesar de sintética, a definição apresentada por Höffe: As teorias do contrato partem de pessoas livres que vivem numa situação sem relações estatais, a saber, no estado natural; mostram que este estado é insustentável para todos os participantes e só pode ser superado por meio de uma limitação mútua da liberdade, isto é, por meio de um contrato. Por isso, derivam o Estado legítimo do contrato originário entre pessoas livres.12

3. A natureza e o ideal pacifista de Kant

Como já afirmamos acima, os conceitos de guerra e paz possuem papel fundamental na teoria do Estado em Kant e estão diretamente ligados à concepção dos artigos para a paz perpétua; e também pela formulação do direito público kantiano. Entretanto, antes de discorrermos a respeito dos artigos é necessário que entendamos como de fato chegaríamos a essa paz almejada pelo pensador de Königsberg. Essa tarefa estaria nas mãos da razão prática, isto é, seria confiada ao senso de moralidade do ser humano? Ou devemos esperar alcançar a paz perpétua por meio do amor e da sabedoria do homem? O que, de fato, conduz o homem ao contrato? Na verdade, segundo a teoria de Kant, a resposta estaria “na ação sábia da natureza que se aproveita do antagonismo dominante entre os homens para levá-los, nolens volens [querendo ou não querendo], ao fim almejado” . 13 Sendo assim, a natureza estaria imbuída da tarefa de conduzir a humanidade a um fim almejado, mesmo que os homens não percebam tal movimento. Kant nos diz isso claramente em:

p. 133). Entretanto, a nossa intenção é discorrer um pouco mais a respeito deste assunto num dos pontos seguintes desse trabalho, quando abordaremos sobre como a natureza se aproveitando da maldade dos homens os conduziria para um estado de paz. 11 Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 255. 12 Idem, p. 252. 13 Cf. ROSENFELD, Anatol. O Problema da paz universal: Kant e as nações unidas. In: A paz perpetua: um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 92.

Os homens singulares, e até os povos inteiros, só em medida reduzida caem na conta de que, ao perseguirem cada qual o seu propósito de acordo com sua disposição e, muitas vezes, em mútua oposição, seguem imperceptivelmente, como fio condutor, a intenção da natureza, deles desconhecida, e concorrem para o seu fomento, o qual, se lhes fosse patente, sem dúvida lhes importaria pouco. 14

Em sua obra A Era dos Direitos – mais precisamente no capítulo intitulado “Kant e a Revolução Francesa” – Bobbio demonstra que Kant pode ser enquadrado como um partidário de uma história profética. Essa história profética tem como fim descobrir a tendência de desenvolvimento da história humana. Somente ela é capaz de colocar em xeque a ambiguidade do movimento histórico, respondendo de maneira ousada se a humanidade caminha rumo ao fracasso, ou se está em constante progresso para o melhor. Em suma: ela tenta pressagiar a respeito do que irá acontecer, porém, faz isso sem se remeter à ideia de causalidade (exceto em alguns casos). Entretanto, não é seu papel fazer previsões, pois para isso seriam necessárias proposições enunciativas do tipo “se isto, então aquilo” , enquanto que, por outro lado, a profética se fixa sobre um evento ocorrido efetivamente, e a partir daí pressagia a respeito do que poderá ocorrer. Desse modo, podemos realmente aproximar Kant dessa concepção de história. Isto fica claro quando ele estipula que a humanidade possui uma tendência para o melhor utilizando como evento inicial as guerras para pressagiar que a natureza suscitará por meio dos conflitos e toda destruição e tristeza, consequências da luta extrema, a necessidade de rompimento com o estado de caos e anarquia, fazendo com que a humanidade evolua no âmbito das suas relações sociais. Um sinal claro dessa afeição de Kant para a possibilidade de que a natureza é capaz de conduzir o homem para uma evolução histórica e política pode ser observada na oitava das nove proposições elaboradas por Kant, em seu opúsculo Ideia de uma história universal com um propósito cosmopolita, escrito em 1784. Vejamos, então, a oitava proposição: Pode considerar-se a história humana no seu conjunto como a execução de um plano oculto da natureza, a fim de levar a cabo uma constituição estatal interiormente perfeita e, com este fim, também perfeita externamente, como único estado em que aquela pode

14 Cf. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 22.

desenvolver integralmente todas as suas disposições na humanidade.15 Kant acredita que, assim como o homem selvagem, o homem moderno será capaz de, num determinado momento de sua história, abrir mão mutuamente de sua liberdade em vistas de se conseguir a paz e a segurança numa constituição legal. Um contrato entre todos os homens de um Estado, entre todos os Estados, e, para além de seu próprio tempo, Kant sonhou com a instituição de um contrato geral entre todos os homens do mundo.

4. Os artigos para a paz perpétua

A saída do estado de natureza e de guerra exige, segundo o próprio Kant, o estabelecimento de algumas condições indispensáveis. Bobbio nos diz que Kant fundamenta a teoria apresentada em seu opúsculo de 1795 – À Paz Perpétua – em quatro aspectos basilares, quais sejam: 1) os Estados nas suas relações externas vivem ainda num estado não-jurídico; 2) o estado de natureza é um estado de guerra e, portanto, um estado injusto; 3) sendo esse estado injusto, os Estados são obrigados a sair do mesmo e fundar uma federação de Estados; e 4) esta federação não é investida de um poder soberano sobre os outros Estados, nem tampouco deve ser um “superestado” , pelo contrário, ela aparece com uma associação onde todos os Estados aparecem como iguais e a nível de colaboração mútua. O direito (moral) dos povos postula uma federação global de tipo especial, “a que se dar o nome de federação da paz (foedus pacificum)” . À diferença do pacto da paz (pactum pacis), o instituto da federação pretende não apenas finalizar uma guerra, mas “encerrar todas as guerras e para sempre” .

16 Para se chegar a esta federação é necessário o atendimento de alguns artigos postulados por Kant.

4.1. Artigos preliminares17 Primeiramente, o filósofo alemão apresenta seis artigos preliminares que visam dar conta das principais razões de conflito entre os Estados. Esses artigos representam as condições negativas para a paz e não decorrem de um princípio, mas simplesmente de uma análise pragmática. São eles:

15 Idem, p. 33. 16 Cf. HECK, José Nicolau. Princípio da publicidade Estado/República e Civitas Civitatum em Kant. In: Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia: UCG, 2009, p. 128. 17 Para encontrar todos os artigos preliminares e definitivos basta cf. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008.

1. “Nenhum tratado de paz deve ser tomado como tal se tiver sido feito com reserva secreta de matéria para uma guerra futura.” 2. “Nenhum Estado independente (pequeno ou grande, isso tanto faz aqui) pode ser adquirido por um outro Estado por herança, troca, compra ou doação.” 3. “Exércitos permanentes (miles perpetus) devem desaparecer completamente com o tempo.” 4. “Não deve ser feita nenhuma dívida pública em relação a interesses externos do Estado.” 5. “Nenhum Estado deve imiscuir-se com emprego de força na constituição e no governo de um outro Estado.” 6. “Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir hostilidades tais que tornem impossível a confiança recíproca na paz futura; deste tipo são: emprego de assassinos (percussores), envenenadores (venefici), quebra da capitulação e instigação à traição (perduellio) no Estado com que se guerreia etc.”

4.2. Artigos definitivos Num segundo momento, nos deparamos com os artigos definitivos, que são necessários para a manutenção perpétua da paz. Essas são as condições positivas para a paz.

1. A constituição civil de cada Estado deve ser republicana livres [ou o que se chama de direito estatal ou direito interno] Já é bastante claro para nós que no estado de natureza reina o conflito constante. Por isso, se o direito é a forma racional de relação entre os indivíduos, como afirma Kant, pode-se pressupor uma necessidade racional de superação onde o estado jurídico público é alcançado; um Estado que deve se realizar como república, onde o poder encontra-se fundado a partir de leis justas. Esse é o estado de direito que instaura a paz em detrimento da guerra e que, de maneira equivalente, valida a formulação de que o direito racional só pode ser realizado através da paz. A república “garante melhor do que qualquer outra, internamente, liberdade, e externamente, a paz ”18 . Para Kant, a liberdade jurídica é aquela que determina que devemos obedecer uma lei externa somente se pudermos dar nosso consentimento a respeito dela.19 Assim, fica evidente que a autonomia é fundamental, posto que é à vontade do povo que cabe o poder legislativo. Está nas mãos dos cidadãos decidir se

18 Cf. BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000, p. 258 19 Cf. NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant:Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 40-41.

uma guerra deve ou não ser feita. Essa concepção kantiana de pacifismo democrático20 bate de frente com as teorias absolutistas, onde imperam a vontade de um soberano. Segundo Kant, a paz seria alcançada somente se houvesse uma transformação dos Estados absolutos em Estados com soberania popular.

2. O direito internacional deve se fundar em um federalismo de Estados [ou o que se chama de direito externo ou direito das gentes]. O direito racional público, além de constituir internamente um Estado, também é responsável pela efetivação das relações jurídicas externas entre os Estados, pois nestes, caso não exista o contrato, reinará o estado de natureza e de guerra iminente, onde, da mesma forma em que acontece com as relações entre indivíduos em estado natural, reina a lei do mais forte.21 Dessa maneira, o pacifismo político de Kant se alia a uma concepção de pacifismo jurídico, que postula como condição para a paz a limitação da soberania, que só pode existir num sistema federal de Estados. Sendo assim, o estado de natureza internacional só é superado a partir da instauração de uma sociedade das nações, ou seja, uma federação de todos os Estados fundamentada segundo a ideia de um contrato social. Por conta disso, “o projeto kantiano Zum ewigen Frieden [à paz perpétua] tem a forma de um tratado que desenvolve o fundamento de legitimação e os princípios da livre federação de todos os Estados, exigida pela razão”22 , contudo, não podemos confundir essa concepção kantiana com a ideia de um simples tratado de paz, pois, enquanto este propõe o fim de uma guerra, aquele tem por objetivo eliminar todas as guerras.

3. O direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospitalidade universal. O direito, até Kant, possuía apenas duas dimensões: o direito interno e o direito externo, porém o pensador alemão acrescenta um terceiro direito, qual seja, o direito cosmopolita. Segundo essa concepção, os habitantes de todos os Estados passam a ser considerados cidadãos do mundo. Assim, surgem duas máximas relativas aos cidadãos: 1) nenhum estrangeiro que adentra ao território de outro Estado não deve ser tratado com hostilidade; e 2) os homens não podem se dispersar ou se isolar, por outro lado, devem procurar coexistir numa sociedade universal. A partir desses dois deveres dos cidadãos do mundo derivam outros dois deveres, porém esses pertencem aos

20 O pacifismo democrático é um pacifismo político, posto que prevê a instauração da paz somente através de uma transformação política. 21 Cf. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 261. 22 Idem, p. 261.

Estados: 1) é previsto que os Estados devem permitir ao cidadão estrangeiro a entrada em seu território; e 2) o hóspede possui o dever de não se utilizar do seu direito de visita com o intuito de realizar uma conquista territorial. Com essas relações entre o direito de visita e o direito de hospitalidade, Kant conclui a configuração do direito de homem a ser cidadão do mundo, ou dessa cidade mundial que se transformaria a terra com a instituição do direito cosmopolita.

Já que agora a comunidade (mais estreita, mais larga), difundida sem exceção entre os povos da terra, foi tão longe que a infração do direito em um lugar da terra é sentido em todos, não é assim, a ideia de um direito cosmopolita nenhum modo de representação fantasioso e extravagante do direito, mas um complemento necessário do código não escrito, tanto do direito de Estado como do direito internacional, para um direito público dos homens em geral, e assim, para a paz perpétua, da qual se pode aprazer encontrar-se na aproximação contínua somente sob esta condição.23

Conclusão: “Que não triunfem os inertes!”

Ao final desse trabalho, parece ficar claro que Kant realmente acreditava (nutrido por ideais pacifistas) que a natureza é, de fato, capaz de “forçar” o homem a elaborar um modelo estatal política e juridicamente organizado internamente (relações entre indivíduos e Estado) e externamente (relações entre Estados), possibilitando, assim, ao homem sair do estado de guerra constante. Contudo, Kant ainda introduz um terceiro direito original para a garantia da paz perpétua: o direito cosmopolita. Com a instituição desse terceiro direito, Kant acreditava que seria possível a eliminação de todas as formas de guerras entre os homens, posto que todos seriam cidadãos da mesma Cosmópolis. Dessa forma, possivelmente o desejo impetuoso de conquista dos grandes governantes estaria fadado ao fim. Contudo, Kant sabia que somente o conflito pode conduzir ao progresso. Acreditamos, porém, que não somente o conflito, em seu caráter negativo de guerras e destruição, seja um meio de fazer com que a humanidade perceba que a necessidade de mudança de atitude diante das calamidades e das guerras, estas fruto da vontade dos próprios homens, sejam eles muitos, ou um conselho de soberanos ou mesmo somente um grande ditador. Entretanto, é necessário também o conflito subjetivo, onde cada homem deve lutar contra a inércia imposta pelo medo ou mesmo pela maldade premente em todos os homens. Nesse sentido, é preciso uma

23 Cf. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008, p. 41.

mudança de costumes. Talvez realmente a humanidade nunca alcance a paz perpétua pressagiada por Kant, porém muito mais próximos dela estaríamos ao combater essa ideia de niilismo que nos persegue. Bobbio acreditava que algum sinal de mudanças poderia ser sentido devido ao interesse de eruditos, e mesmo de instâncias internacionais, por um reconhecimento crescente dos direitos do homem. Enquanto pensarmos que não há saída, de fato, não haverá. Um sinal premonitório não é ainda uma prova. É apenas um motivo para que não permaneçamos espectadores passivos e para que não encorajemos, com nossa passividade, o que dizem que “o mundo vai ser sempre como foi até hoje”; estes últimos – e torno a repetir Kant –“contribuem para fazer com que sua previsão se realize” , ou seja, para que o mundo permaneça assim como sempre foi. Que não triunfem os inertes!24

Referências Bibliográficas

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. ______. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000. HECK, José Nicolau. Princípio da publicidade Estado/República e Civitas Civitatum em Kant. In: Ensaios de filosofia política e do direito: Habermas, Rousseau e Kant. Goiânia: UCG, 2009. HÖFFE, Otfried. Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2005. KANT, Immanuel. À Paz Perpétua. Porto Alegre: L&PM, 2008. ______. À Paz Perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 1995. MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. A Paz Perpétua (Zum Ewigen Frieden) de Kant. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, 61, 01/02/2000. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/indez.php?n_link=revista_artigos_lei tura&artigo_id=5941> Acesso em: 10/06/2010. NOUR, Soraya. À paz perpétua de Kant: Filosofia do direito internacional e das relações internacionais. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ROSENFELD, Anatol. O Problema da paz universal: Kant e as nações unidas. In: A paz perpetua: um projeto para hoje. São Paulo: Perspectiva, 2004.

SOROMENHO-MARQUES, Viriato. História e política no pensamento de Kant. Mira-Sintra: Europa-América, 1994.

24 Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p.140.

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