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Kant e o Esclarecimento
KANT E O ESCLARECIMENTO
João Paulo Miranda1
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Resumo: É sabido que o século XVIII é caracterizado por um efervescente movimento (artístico, literário, filosófico, científico etc.) que se propagou por toda a Europa e que tinha como principal objetivo solapar todo e qualquer obstáculo que oferecesse uma resistência nociva à ilustração do gênero humano. Tal movimento tinha como alvo de suas críticas as esferas detentoras de poder que imputavam ao homem uma condição de vassalagemintelectual, em que a indagação, o questionamento e a averiguação científica ainda não eram bem vistos e aceitos por alguns líderes e governantes de postura reacionária e dogmática. Sendo assim, o uso da razão tornou-se uma questão decisiva para que as ideias desse movimento em questão fossem efetivadas e, assim, fizessem com que o progresso e a emancipação do gênero humano se tornassem algo possível, mesmo diante de uma situação conflitante de repressão e obscurantismo. É sob o prisma desses ângulos que Kant nos oferece suas posições que, por sua vez, estão contidas num pequeno artigo, mas de suma importância, porquanto abrangia a maior aflição do homem letrado oitocentista: a necessidade de aniquilar a barbárie e o obscurantismo através da razão, da liberdade e do esclarecimento, constituindo, desta maneira, os ideias do Iluminismo.
Introdução
Em 1784, é publicado, pela Berlinische Monatsschrifft, um opúsculo kantiano intitulado O que é o Esclarecimento? Kant, assim como outros ilustres pensadores do século XVIII, preocupava-se com a emancipação racional, moral e política do homem e sua libertação dos grilhões do dogmatismo e da superstição que o mantinham refém do obscurantismo que, por sua vez, apenas contribuía com a não-ilustração do gênero humano. Esse período histórico de efervescência intelectual, de intensa produção filosófica, literária e científica, caracterizado por inúmeras críticas às diretrizes da igreja e ao despotismo totalitário e absoluto vigente na época, ficou conhecido como Iluminismo, Ilustração ou Esclarecimento (Aufklärung). Grandes nomes como Rousseau, Voltaire e o próprio Kant, e “déspotas esclarecidos” como Frederico II, da Prússia, e Catarina, A Grande, e obras magnânimas como a Encyclopédie, são alicerces emblemáticos deste período
1 Bolsista CAPES 2010.02. E-mail: jpdoors_@hotmail.com Pós-Graduando Filosofia UFC Bolsista CAPES/REUNI.
histórico, cuja estrutura é constituída por pensamentos diversos e muitas vezes conflitantes, porém, que sustentam um espírito comum, um ideal necessário para a evolução coletiva e individual do homem. Com efeito, se este momento da história pudesse ser representado por um edifício, sua estrutura seria composta por letras e no seu cume estaria escrito, de forma clara, distinta e bem iluminada, para que todos pudessem avistar a máxima: “Sapere aude!” , porque nenhuma autoridade deveria encontrar-se acima da razão. É neste contexto que Kant escreve seu artigo, que, aqui, pretendemos abordar.
Kant e a Aufklärung
Para o filósofo alemão, existem duas condições nas quais os homens se encontram, que são, respectivamente, a menoridade e a maioridade. A primeira é nociva e prejudicial ao esclarecimento e a segunda é a qualidade na qual deve se encontrar um homem ilustrado e livre. Sendo, pois, a covardia e a preguiça, fatores que contribuem enormemente para que o homem permaneça na sua menoridade, que: “é por culpa própria se a sua causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de coragem e de decisão em servir-se de si mesmo sem a orientação de outrem”2 . É por considerarem a passagem à maioridade assaz perigosa e difícil que os homens acomodam-se e consentem para si próprios a superintendência do que Kant batiza “tutores de boa vontade” , que tomam para si, com maiúscula facilidade a batuta intelectual, religiosa e política da orquestra social, regendo-lhe de forma gregária, com autoridade totalitária e absoluta. O filósofo alemão, embora critique de forma contundente esse estado inferior da condição humana, intitulado menoridade, reconhece a complexidade da questão: “é, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tornou quase uma natureza”3 . Opiniões e preceitos mal formulados, através do uso deficiente da razão, também contribuem para manter o homem preso às amarras obscuras de sua condição inferior. Porém, para o autor, um povo pode esclarecer a si mesmo, mas para que isso venha a ocorrer, faz-se premente o uso da liberdade que, tão somente, é o direito de usufruir livre e publicamente da razão em todos os segmentos sociais, sendo, assim, o livre usufruto público da razão, o principal responsável pela ilustração do homem. Kant elabora, portanto, uma diferenciação entre o que chama de uso público e privado da razão:
2 KANT, I. “O Que é o Esclarecimento?”. In: KANT, I. À Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 09. 3 Id. p. 10.
Por uso público da razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudito, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele confiado.4 A razão pode e deve ser expressa livremente, no entanto, o autor assinala uma maneira de como se deve utilizá-la, pois, um mau uso da liberdade racional pode gerar desordem e caos, colocando em risco os fins públicos a ponto de destruí-los, isto é, para que a ordem dos assuntos referentes à comunidade seja mantida, deve haver uma espécie de passividade dos seus membros. Entretanto, caso se faz na condição de erudito ou perito uma manifestação pública, por escrito, redigida de maneira clara e bem analisada, pode-se dispor de total liberdade para a exposição de opiniões, que, neste segmento, não deturpam a passividade dos membros e não afetam, consequentemente, os fins públicos de caráter comunitário. Um soldado, por exemplo, deve obedecer a ordem de seu superior que lhe ordena a execução de uma determinada tarefa, no entanto, nada o impede que faça uma declaração pública, que satisfaça aos pressupostos supracitados, para expor sua opinião acerca da funcionalidade, relevância ou irrelevância de determinada tarefa. Da mesma forma com o cidadão, que deve obedecer às leis do Estado, mas pode manifestar publicamente, na qualidade de erudito, suas opiniões referentes a quaisquer assuntos, inclusive aos que remetem ao próprio Estado. Logo em seguida, embora a relação da Aufklärung com o protestantismo não seja tão conflitante como a relação do Iluminismo francês com a Igreja Católica5 , Kant direciona sua atenção e crítica aos “tutores do povo em coisas religiosas”6 . Não obstante à liberdade de que goza o clérigo no usufruto público da sua razão, pois, para o filósofo, até mesmo o clérigo pode manifestar-se publicamente, inclusive acerca das coisas religiosas (contanto, evidentemente, que sua manifestação pública não contradiga sua fé interior, pois isso o proibiria de exercer o ministério). É inaceitável e impossível, segundo o próprio Kant, que a tutela religiosa seja mantida sobre gerações e épocas ulteriores, como pretendem os eclesiastas, pois, assim, estariam gerando barreiras intransponíveis à ilustração humana. Nada pode restringir o progresso da geração vindoura, podendo esta, com todo o seu direito, recusar as determinações estabelecidas anteriormente a seu respeito, se estas implicarem numa estagnação ou regressão do
4 Ibid. p. 12. 5 FORTES, L. R. S.. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. p. 16. 6 KANT, I. “O Que é o Esclarecimento?”. In: KANT, I. À Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 16.
esclarecimento do homem. Esta crítica kantiana concentra-se no símbolo imutável da religião, que pode ser entendida desta maneira: como algo imutável e inexorável que não está sujeito a nenhum tipo de ponderação ou flexão, e que tem o intuito de infundir valores éticos, intelectuais e até mesmo políticos no homem, pode estabelecer os mesmos paradigmas à posteridade, quando esta, por sua vez, deve estar sempre em profunda transformação, buscando a todo custo o esclarecimento e o progresso, ou seja, a sua maioridade? Parece que aqui nos encontramos diante de duas posturas inconciliáveis e até mesmo paradoxais e, para reforçar essa impressão, vale ressaltar que o autor deixa transparente que a maioridade não é outra coisa senão a capacidade do homem de servir-se do seu próprio entendimento sem a orientação de tutores e qualquer obstrução a esta condição seria “um crime contra a natureza humana” . 7 Porém, para que as respectivas mudanças ocorram progressivamente e que se mantenha a ordem pública, Kant determina um procedimento a ser seguido: as observações críticas aos dogmas vigentes devem ser manifestadas publicamente, apresentadas aos cidadãos e aceitas consensualmente, posteriormente devem ser apresentadas ao rei, para que só então sejam efetivadas de maneira positiva e legal. O artigo kantiano tem como objetivo mostrar a necessidade de despertar os espíritos acomodados para que estes se libertem do domínio dos seus tutores, a fim de que possam fazer o pleno usufruto da sua razão, não dependendo, senão de si, para o próprio esclarecimento, dando, somente desta forma, cabo à Ilustração da humanidade. No referido opúsculo, o filósofo alemão reverencia o governo de Frederico II da Prússia, com elogios à sua conduta política e como este governo se relaciona com a religião. É válido lembrar que, segundo o próprio autor, para que se execute plenamente a liberdade e a razão o homem deve se valer da qualidade de erudito e de clareza e discernimento, que, logicamente, não são atributos ainda conquistados de forma geral e sua carência implica na característica principal dos povos aprisionados na menoridade. Se, pois, se fizer a pergunta – Vivemos agora numa época esclarecida? A resposta é: não. Mas vivemos numa época do Iluminismo. Falta ainda muito para que os homens tomados em conjunto, de maneira como as coisas agora estão, se encontrem já numa situação ou nela possam apenas vir a estar para, principalmente em matéria de religião, se servirem bem e com segurança do seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem. Temos apenas claros indícios de que se lhes abre agora o campo em que podem atuar livremente, e diminuem pouco a
7 Id. p. 14.
pouco os obstáculos à ilustração geral, ou a saída do homem da sua menoridade de que são culpados.8
Conclusão
Após analisarmos as ideias de Kant presentes no referido opúsculo, chegamos à seguinte conclusão: o Iluminismo possui uma proposta necessariamente prática, em que toda e qualquer ação do homem, seja ela de caráter público ou privado, deve ser orientada pela luz do esclarecimento e da razão, devendo culminar, portanto, nos mais diversos tipos de progresso: intelectual, social, científico, econômico etc. É somente através da boa utilização da ratio que podemos sobrepujar a menoridade que nos aflige e nos nega efetivamente. A razão é, portanto, condição imprescindível para que possamos obter a tão almejada maioridade que, por seu turno, pode nos conceber a volição necessária para direcionar a nossa práxis a um melhoramento de toda condição humana.
Referências Bibliográficas
DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FALCON, F. J. C. Iluminismo. São Paulo. Ed. Ática, 1986. FORTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1991. KANT, I. À Paz Perpétua e Outros Opúsculos. Lisboa: Edições 70,
2008.
SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e História: o pensamento sobre a história no iluminismo francês. São Paulo: Discurso Editorial, 2001.
8 Ibid. p. 16.