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A Dimensão Político-Moral da Prudência em Aristóteles e Kant

A DIMENSÃO POLÍTICO-MORAL DA PRUDÊNCIA EM ARISTÓTELES E KANT

Pedro Bernardino Nascimento Filho1

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Resumo: O presente artigo trata da relação entre o momento ético da prudência (areté ethiké) e o momento propriamente político dessa atividade (areté politiké) em duas obras de Aristóteles – Ética a Nicômaco e Política. Pretendemos investigar, também, as conexões da prudência aristotélica com concepções posteriores que a consideram um conhecimento prático, entre as quais a de Immanuel Kant – Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Verificaremos, ainda, se essas concepções – kantiana e aristotélica – podem se relacionar com uma atividade política. Palavras-chave: Aristóteles, Kant, prudência, ética, política.

Introdução

De maneira bem geral, podemos dizer que, ao apresentar o conceito de prudência (phrónesis) no livro VI da Ética a Nicômaco (EN), Aristóteles mostra que ela – a prudência – é aquela virtude capaz de direcionar a ação humana em função do bem, em função da ação moral, é a escolha moral propriamente dita, escolha sobre o mutável que está aberto ao homem2. O filósofo faz isso analisando o que, no homem, pode ser caracterizado como prudência, ou seja, é analisando a ação do prudente que podemos chegar ao conceito de prudência. Uma “virtude intelectual” (areté dianóia), aquele cálculo no qual o prudente (phronimos) delibera (bouleutikós), entre uma diversidade fundamental de caminhos a serem seguidos, o caminho – fim secundário – que é melhor à atualização do fim (telos) desejado. Mas, a prudência não poderia ser apenas um cálculo mental, uma mera inteligência, pois isso reduziria seu papel decisivo à felicidade humana, uma vez que Aristóteles considera a realização da natureza humana como inseparável do lugar próprio do homem: o mundo do “no mais das vezes”; o mundo contingente exige uma atividade própria, uma atividade que não pode corresponder ao estudo das formas como a atividade do pensamento por si só, o pensamento dos primeiros princípios. Ou seja, o intelecto nada move por si só; se o intelecto fosse o único responsável pela ação, o caráter prático do mundo humano seria eliminado.

1 Bolsista CAPES 2012.02. E-mail: pedrobernardino66@gmail.com Estudante de bacharelado em Filosofia na UFC. 2 AUBENQUE, Pierre. “Cosmologia da Prudência”. In:______. A Prudência em Aristóteles. Trad. de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003, p. 107-173.

Assim, pelo menos indiretamente, já que está certo para Aristóteles que virtude intelectual é diferente de virtude moral – esta é a excelência das disposições (héxis) que tem por finalidade a ação boa –, como responsável pela ação ética propriamente – são campos distintos, são partes diferentes da alma que controlam esses campos –, devemos pensar numa relação extremamente íntima entre virtude moral e virtude intelectual, para que a prudência ganhe importância decisiva, como sugere Pierre Aubenque3: a ação é determinada por uma das “virtudes intelectuais” e pela “virtude moral”. Aristóteles mostra que a prudência não poderia ser pensada sem essa relação direta com a virtude moral, sem o correto desejo sobre um fim, o qual a escolha corretamente deliberada poderá atingir. Ela também é uma virtude prática, quando “determina”, por meio do conhecimento do “desejo” (héxis) humano, quais fins devem ser perseguidos, assim, ela é virtude moral. Além de definir propriamente o que é a phrónesis, outro objetivo desse artigo é apresentar a relação entre virtude moral e virtude intelectual tendo o conceito de prudência como chave de leitura fundamental no pensamento político de Aristóteles. Num momento posterior, quando começarmos a dialogar com o conceito de prudência proposto por Kant, que concebe os juízos da prudência como imperativos hipotéticos, é fundamental apresentarmos, também, o ponto de encontro e de afastamento entre as concepções do Estagirita e do filósofo de Königsberg. Finalmente, depois desses pontos, poderemos perceber se a prudência pode ser pensada como uma atividade política levando em conta o que esses dois autores apresentaram sobre o assunto. Sendo assim, este texto possui quatro momentos fundamentais: 1) determinação do conceito de prudência em Aristóteles, 2) relação que tal conceito possui com a divisão aristotélica entre virtudes morais e intelectuais, 3) apresentação do conceito de prudência em Kant e 4) o tipo de relação que as ideias desses autores sobre a prudência podem ser úteis a uma atividade política.

A Prudência em Aristóteles

O conceito de prudência – phrónesis – em Aristóteles é remetido diretamente ao livro VI da EN4 , e é a principal virtude intelectual prática. Ora, tem-se como característica do homem prudente ser ele capaz de bem deliberar sobre o que é bom e proveitoso para si mesmo, não num ramo em particular – por exemplo, o que é bom para sua saúde ou vigor –mas o que é vantajoso ou útil como recurso para o bem-

3 AUBENQUE, Pierre. Op. Cit. 4 Existem indícios também de que o conceito de phrónesis esteja posto na Ética Eudêmia, mais precisamente: EE 1222b7-8, 1249a21-23. Mas, nosso intuito aqui não é tratar dessas discrepâncias.

estar em geral. Isso fica patente pelo fato de também nos referirmos às pessoas como sábias quando são capazes de deliberar bem com vista a obter algum fim particular valioso (distinto daqueles fins que são objetos de uma arte), de sorte que o homem prudente em geral será o homem que é eficiente na deliberação em geral (EN; VI –5, 1140ª, 1-25). Aristóteles partirá dos exemplos particulares para definir a prudência, e é do homem prudente que surge o conceito de prudência; melhor ainda, é das ações do prudente e da sua disposição subjetiva que podemos definir o que seria a prudência. Aristóteles define as virtudes não apenas a partir de um contexto interior – os desejos/hábitos (héxis) –, mas também de como as ações se atualizam e ganham matéria; “Uma disposição se define por seus atos ou por seus objetos (…)” (EN; IV – 1, 1122b, 1). No que diz respeito ao prudente, podemos dizer que ele é aquele capaz, racionalmente, de escolher sobre os bens para si e para a comunidade. Mais precisamente, a prudência é: “Disposição prática acompanhada da regra verdadeira concernente ao que é bom ou mal para o homem” (EN; VI – 5, 1140b, 20). A prudência é uma virtude intelectual, mas não a que se refere ao conhecimento do necessário. Para Aristóteles, a alma possui dois movimentos próprios originários, um racional e outro “não-racional”. E, por sua vez, a parte racional possui outras duas partes ou faculdades: “uma pela qual especulamos as coisas cujos primeiros princípios são invariáveis e a outra, mediante a qual especulamos aquelas coisas que admitem variação” (EN; VI – 1, 1139a, 6-9). A prudência está exatamente neste ponto: naquilo que não podemos ter o conhecimento necessário, ela é a faculdade excelente. Uma faculdade científica e uma faculdade calculadora constituem o todo do que há de racional na alma, mas cada uma com seu telos específico; o conhecimento intuitivo com o necessário e a prudência, sabedoria prática, a deliberação, com o contingente. Mas, não podemos pensar que a deliberação é apenas resultado da parte racional do homem, pois, já que ela se utiliza da ação para se atualizar, também precisaria dos elementos não-racionais da alma: o desejo. “Ora, há três elementos na alma que controlam a ação e o atingimento da verdade, ou seja: a sensação, o desejo e o intelecto” (EN; VI – 2, 1139a, 18-19). Assim, ao relacionar razão e desejo (héxis), Aristóteles nos mostra que a razão especulativa não é capaz de efetivar o bem-estar individual ou coletivo, mas sim que a razão deliberativa, precisamente com o correto uso da razão e do desejo, pode produzir tal bem-estar, a vida boa. “O atingir da verdade é, efetivamente, a função de toda parte do intelecto, mas a da inteligência prática é o atingimento da verdade correspondente ao correto desejo” (EN; VI – 2, 1139a, 29-31). Este correto desejo se dá pelo

conhecimento da própria condição humana de ser de pulsões, que tem como fim de toda ação a realização de um desejo, pois é o próprio fim desejado que opera no início da ação em função da sua atualização. A ação também utiliza do intelecto na medida em que este favorece a escolha no direcionamento e conhecimento do desejo.

Por conseguinte, a escolha pode ser qualificada ou como o pensamento relacionado ao desejo ou o desejo relacionado ao pensamento, e o ser humano, como gerador de ação, é uma união de desejo e intelecto (EN; VI – 2, 1139b, 4-7) A origem fundamental de qualquer ação reside na dimensão desiderativa – desejante – da alma do indivíduo, mas, ela só é capaz de ganhar valor moral na medida em que é capaz de seguir o direcionamento próprio da prudência. Assim, Aristóteles consegue conciliar razão e desejo, na medida em que compreende a prudência como esse saber experiencial que é capaz de julgar a particularidade sem deixar que a avaliação sobre os contextos particulares sejam reduzidos a uma mera relatividade; pois a decisão do prudente sabe ser universalmente eficaz em cada contexto. Portanto, parece ser possível concluirmos que, como também sugere Pierre Aubenque (2003), a prudência será o conhecimento do maior número de causalidades, da natureza do desejo humano; será também o resultado da educação racional e “emocional” do indivíduo e da união entre desejo e intelecto. Tudo isso com a excelência humana como objetivo.

A Prudência: Virtude Moral ou Virtude Intelectual?

Quando começamos a falar da prudência no ponto anterior, tivemos oportunidade de falar especificamente sobre a virtude intelectual prática: raciocínio sobre o particular/contingente, aquela atividade responsável por bem deliberar sobre como poderemos atingir o que nossa faculdade desiderativa aponta como fim de nossa ação. Logo, é importante definir, também, propriamente o que significa virtude moral para Aristóteles. De maneira bem geral, podemos dizer que virtude moral é a capacidade de escolher a ação que esteja em consonância com o que o é dito pela reta razão: é escolher o que está prescrito pela reta razão. Aristóteles diz: “escolher o meio termo, o qual está em conformidade com o que enuncia a reta razão” [EN VI – 1, 1138b, 19-20] ou mesmo: A virtude é uma disposição para agir de forma deliberada, consistindo em uma mediania relativa à nós, a qual é racionalmente determinada e como determinaria o phronimos [EN II – 6, 1106b, 36-1107a, 1]. A prudência representa a excelência de uma das partes da alma racional, sendo ela mesma uma virtude intelectual. Podemos dizer isso pela

própria natureza desta atividade, por ser fundamentalmente um “cálculo”, ela ganha o status de atividade intelectual, além do seu próprio campo de ação que, mesmo não pertencendo ao reino das “coisas necessárias”, ainda pode receber sua pitada de inteligência e conhecimento, pois é possível sim conhecimento sobre as coisas que pertencem ao reino do “no mais das vezes”. O prudente só existe em função de um mundo que não está resolvido necessariamente, ou seja, não podemos deliberar sobre o necessário, mas só sobre o contingente. Escolher qual ação melhor atinge o bem moral corretamente desejado é a função fundamental da prudência, é sua própria natureza. Caracterizando a phrónesis como cálculo sobre quais ações devemos ou não realizar para atingir o bem, só percorremos metade do caminho, pois, como poderíamos agir simplesmente pelo conhecimento das ações corretas? Se não tivéssemos o correto desejo correspondente aos fins que as escolhas devem atingir, nosso conhecimento seria inútil. Esse cálculo não pode ser o todo da prudência e sua própria razão de ser reside naquilo que não é racional propriamente. Pois a “virtude moral”, enquanto excelência da parte desiderativa da alma, ou seja, “o desejo segundo a reta razão”, mostra que o desejo – hábito ou mesmo a “habilitação” (héxis), está diretamente ligada à atualização de uma ação ética, como pretende o prudente. Assim, não é difícil notar a sugestão de que a prudência está diretamente ligada ao correto desejo. Ela só faz sentido diante do correto desejo. Pois, para Aristóteles, a simples escolha racional não caracteriza o prudente, mas, tal escolha em função do bem moral, ou seja, a escolha que tem como substrato o correto desejo. A deliberação – ou simples escolha, sem o caráter prudencial, virtuoso – pode direcionar o homem ao vício; também podemos escolher o vício, basta não termos a correta disposição moral, o correto desejo. Na esteira do que apresenta Aubenque, podemos pensar em uma “determinação recíproca” entre virtude intelectual prática e virtude moral. O desejo correto que corresponde à mediania entre o excesso e a carência das disposições da parte desiderativa da alma tem sua principal razão de ser na eficiente escolha do phronimos, que buscará as ações corretas, relativas a nós mesmos, a fim de atingir o bem também relativo a nós.

A Prudência em Kant

Enquanto, para Aristóteles, a fundamentação da ética, a fundamentação universal da ação humana não existe de maneira fixa, pois cada contexto determina qual meio-termo será bom para ser atualizado pela ação do phronimos; na filosofia de Kant, a fundamentação da ética é bem mais rigorosa seguindo os ditames do dever/boa vontade em si mesmo. Ou seja, enquanto a ética aristotélica constitui um projeto teleológico, uma ética dos fins, a ética kantiana é definida como uma ética deontológica, uma ética do

dever. Enquanto Aristóteles determina sua ética com vistas a um determinado fim – o sumo bem –, este enquanto determinante nas escolhas particulares do phrónimos, que buscará interpretar cada contexto para aplicar a ação correta naquele tal contexto, Kant, por outro lado, afirma a pureza do imperativo categórico, que não depende de nenhum fator contingente para justificar o bem da ação prevista pelo mesmo imperativo, constituindo uma ética fundamentada apenas numa boa vontade pura, que, por definição, não pode querer o mal. A concepção ética desses dois autores é fundamentalmente oposta, levando em conta o modo como eles fundamentam as leis dadas pela razão; enquanto Aristóteles busca um meio-termo que se adeque a uma situação particular, Kant busca uma resposta ou lei máxima que a razão nos dá sem que, para isso, precise de nenhuma interferência contingencial. Claro que o pensamento desses dois autores se distancia em muitos outros pontos que não nos cabe tocar nesse texto, mas essa distância não invalida a possibilidade de um debate entre tais visões, pois também existem aproximações entre eles: ambos possuem seu tipo de “universalização” e “fundamentação” no que diz respeito ao agir. Enquanto, como já foi dito, Kant utiliza o imperativo categórico para fundar o bem moral de uma ação universalmente boa, pois basta que esta seja deduzida daquele para que estejamos agindo moralmente, Aristóteles fundamenta racionalmente a ação na medida em que esta precisa seguir uma regra básica para ser moral, ou seja, a ação precisa seguir a decisão da reta razão que deliberará sobre o melhor naquele contexto específico, encontrando, assim, a única ação moral para aquele contexto específico. A correta ação só existe em função de um lugar específico, de um momento específico. A decisão do phronimos tem que seguir essa contingência fundamental para poder ser moral. O que Kant dirá especificamente sobre a sua doutrina da prudência é encontrado na segunda seção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), quando ele fala dos imperativos técnicos. A ação humana leva em consideração, na execução das ações morais, a representação de leis, o ser humano não é movido do mesmo modo que os fenômenos da natureza que se atualizam por leis objetivamente necessárias. Enquanto ser racional, o homem precisa, a partir da razão, determinar a sua vontade. A razão, por sua vez, encontrará os princípios universais da ação a partir de si mesma. Podemos entender por imperativos: “aquelas fórmulas que exprimem a relação das leis objetivas da vontade em geral com a imperfeição subjetiva de tal ou tal ser racional, por exemplo, da vontade humana” (AUBENQUE, 2008). Os imperativos são necessários onde as leis gerais da moralidade não podem interferir de maneira direta, por isso precisam de uma “mediação” que viabilize a uma subjetividade limitada de “compreender” os mandamentos da moralidade. De maneira sumária, podemos dizer que existem três tipos de

imperativos: os da habilidade, os da prudência e os da moralidade. Esta distinção é meramente didática para viabilizar a exposição, pois, ao detalhar mais a terminologia kantiana, encontramos dois tipos fundamentais de imperativos: os categóricos e os hipotéticos; estes se separam em três tipos de princípios relativos à ação: os hipotéticos se dividem em dois tipos de fins, isto é, fins possíveis e fins reais: O fim em vista do qual ordena um imperativo hipotético, pode ser possível ou real: no primeiro caso, o imperativo será um “princípio problematicamente prático”; no segundo, um “princípio assertoricamente prático” (AUBENQUE, 2008). O imperativo categórico é um “princípio apoditicamente prático” (Idem, 2008), pois ele é aquele “que declara a ação objetivamente necessária nela mesma” (Ibidem). Os dois primeiros tipos são, respectivamente, os imperativos da habilidade e da prudência, já o terceiro é o imperativo da moralidade. Os imperativos da habilidade são fórmulas que podemos utilizar para atualizarmos uma realidade formal específica. Quando um construtor precisa saber das regras básicas para construir uma casa, ele está se servindo dos imperativos da habilidade. Este tipo de imperativo possui clareza analítica, pois viabiliza de maneira objetiva o que o construtor deve fazer para construir a casa. Do ponto de vista da moralidade, esse tipo de imperativo é “neutro”, pois não avaliamos se o fim é bom ou ruim; eles só prescrevem as ações básicas para que possamos atingir o fim desejado. Já os imperativos da prudência, tem como fim último a felicidade humana, sendo assim, são os encarregados de prescrever as ações para atingi-la. Mas, para Kant, a felicidade, por mais que seja perseguida por todos os homens, sendo, por isso, um fim real, não é objetivamente determinada. Pois, se é possível compreender que um ser, ao mesmo tempo racional e sensível, busca necessariamente a felicidade, visto que a felicidade não é diferente da unidade das inclinações da sensibilidade requerida pela razão. Esta imbricação da razão e da sensibilidade no homem, que Kant chama a “finitude” do homem, depende de uma facticidade fundamental que impede atribuir aos imperativos da prudência uma modalidade distinta da assertórica (Idem). Assim é que Kant coloca a prudência num patamar inferior ao da incondicionalidade da razão prática pura, como a única capaz de direcionar o homem ao que é necessariamente bom. A prudência tem lugar acessório diante da incondicionalidade apodítica dos imperativos categóricos. A prudência em Kant estará sempre submissa a uma vontade heterônoma, pois é incapaz de preencher os quesitos da moralidade; já que a prudência não

consegue excluir a “finitude” humana do seu cálculo. A infinidade de elementos empíricos que precisam ser considerados no cálculo do que seria a felicidade torna a exatidão dos imperativos da prudência quase impossível. Kant, assim, coloca a prudência num nível bem próximo dos imperativos da habilidade.

Phrónesis & Klugheit: O Lugar Político da Prudência Ao definir o prudente, Aristóteles determinou seu campo de ação fundamental; o prudente é necessário onde o julgamento é mais difícil e importante: não é o julgamento que decide sobre o futuro do oikós, da instância meramente privada, mas sim aquele julgamento capaz de direcionar toda uma comunidade. A finalidade do prudente é o mundo político em geral. O mundo onde os cidadãos livres de necessidades imediatas decidirão sobre o futuro da comunidade fundada na soberania da lei. Na Política, ao definir o cidadão, Aristóteles mostra que o tipo de cidadão necessário à comunidade dependerá de que tipo de governo que rege essa comunidade. “Ora, o que constitui a comunidade é a forma de governo. É preciso, pois, que a virtude do cidadão esteja em relação com a forma política” (Pol; III – 2, 1276b, 29-30). E, como a forma política não é universal, vários serão as virtudes dos cidadãos relativas a cada forma de governo. Não existe um homem de bem para todas as comunidades, mas sim um homem que emerge da própria comunidade com poder suficiente para decidir sobre o futuro desta: o cidadão. Pode ocorrer facilmente que, dependendo da forma de governo dessa comunidade, o cidadão não seja o mesmo que o homem de bem, embora Aristóteles admita que isso seja desejável. As virtudes do homem de bem e do cidadão são diferentes, enquanto o homem de bem tem a excelência da virtude perfeita, o bom cidadão tem a virtuosidade e a prudência para mandar e obedecer. Não se trata de um saber universal que o cidadão terá de executar na prática, mas algo que ele, a partir da sua experiência mandando e obedecendo, conhecendo o maior número de causalidades possível, conhecendo a dinâmica fundamental do desejo humano, poderá aprender e incorporar como sabedoria a sua virtude fundamental: a phrónesis. Esta, como entendemos, parece ser realmente a virtude fundamental, que possibilita aos homens a objetividade e acuidade na resolução dos problemas colocados pela polis. Assim, encontraremos um conceito de prudência especificamente voltado para os problemas humanos, ou seja, para a esfera “sublunar”, para o mundo contingente, para o mundo político. Um conceito de prudência que está além de uma mera inteligência calculadora, mas que poderá, a partir da própria comunidade, saber quais os melhores caminhos a serem seguidos, colocando, assim, as decisões políticas no centro da cena do prudente. Aqui a prudência se manifesta como saber eficiente e imprescindível na resolução

dos dilemas fundamentais da política; em direção à atualização da essência humana, como ser racional e político. No que diz respeito ao conceito de prudência de Kant, não parece que ele seja muito útil a uma atividade política, muito embora compreenda a finitude humana. O que está em jogo aqui é muito mais como Kant construirá sua filosofia política. Ligando a prudência ao meramente contingencial, Kant não reconhece à prudência um papel de destaque na teoria política. O que é muito mais importante à política parece ser os imperativos categóricos; eles sim podem ser considerados pontos firmes a partir dos quais uma nação ou comunidade poderá se constituir moralmente. É lógico que a prudência, enquanto determinação dos meios para atingir a felicidade humana, ainda esteja presente aí, mas não é o ponto de partida; não passa de um mero meio secundário, sendo útil somente pelo fato da finitude humana impossibilitar uma consideração realmente pura das ações. Para concluir, esperamos que não seja difícil notar que as duas concepções de prudência – aristotélica e kantiana – possuem implicações importantes no que diz respeito a uma atividade política. Apesar de perceber que a posição aristotélica rende mais elogios à prudência do que a posição kantiana, não devemos esquecer que cada um desses filósofos possui pretensões teóricas particulares que dizem respeito ao seu contexto intelectual.

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