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A Ideia da Filosofia no Interior da Crítica de Hegel a Kant

A IDEIA DA FILOSOFIA NO INTERIOR DA CRÍTICA DE HEGEL A KANT

Marcelo Victor de Souza Gomes1

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A pesquisa que venho desenvolvendo trata sobre a essência da crítica filosófica, tendo como texto fundamental, o artigo escrito por Hegel, mas publicado juntamente com Schelling no Jornal Crítico de Filosofia de Iena, em 1802, intitulado Sobre a essência da crítica filosófica em geral e sua relação com a filosofia atual em particular2 . A coautoria mostra que nesse período Hegel e Schelling possuíam o mesmo ponto de vista, a saber, a filosofia da identidade. Essa pesquisa partiu da hipótese de que já nesse texto existe um quadro geral que apresenta a ideia de filosofia segundo Hegel. Esse quadro geral aparece nesses escritos, chamados críticos, compostos basicamente em polêmica com a filosofia da época de Hegel, de modo que a apresentação das teses hegelianas acerca da Ideia de filosofia não deixa de passar por um diálogo com os seus contemporâneos. O presente trabalho visa a mostrar o conceito de crítica filosófica, com base na crítica de Hegel endereçada à filosofia kantiana. O texto hegeliano fundamental onde se encontra essa crítica a Kant é o Fé e Saber3 , também publicado em 1802 no Jornal Crítico de Filosofia. Nesse sentido, essa comunicação se propõe, ao apresentar a concepção de crítica filosófica de Hegel, a extrair do interior de sua crítica a Kant a concepção hegeliana da Ideia de Filosofia. Diferentemente do conceito de crítica em Kant, a determinação hegeliana do conceito de crítica se baseia em proposições explicitamente metafísicas, com um caráter fortemente especulativo articulando uma teoria não meramente do conhecimento, mas sim uma teoria da apresentação (Darstellung) do absoluto. Assim, a crítica como tal não se vê refém de uma dicotomia entre sujeito e objeto. Segundo “Sobre a essência da crítica filosófica” , o padrão de medida da crítica filosófica é tanto independente do julgamento como do julgado, e nem é retirado do fenômeno individual nem da determinidade do sujeito, senão da Ideia, concebida como o eterno e imutável modelo originário da Coisa mesma 4 . Noutras palavras, a crítica

1 Bolsista CAPES 2010.02. E-mail: morandonafilosofia@hotmail.com 2 HEGEL. G. W. F. Einleitung. Über das Wesen der philosophischen Kritik überhaupt und ihr Verhältnis zum gegenwärtigen Zustand der Philosophie insbesondere. _______ . Werke 2. Frankfurt: Suhrkamp. p. 171-187, 1986. Doravante abreviar-se-á por WPK. 3 HEGEL, G. W. F. Fé e Saber. Trad. de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007. Doravante abreviar-se-á por FS. 4 WPK, p. 171.

busca pela determinação conceitual da coisa em sua estrutura racional, ou seja, ela apresenta o modo fundamental de onde a coisa pode expressar-se tal como é na sua totalidade, ora como sujeito-objeto objetivo, ora como sujeito objeto subjetivo. Nesse sentido, a crítica não se reduz a um mero julgar subjetivo, mas deve abranger a apresentação da coisa nas suas estruturas conceituais imanentes. Assim, pode-se dizer que a crítica atua como exame, mas não no sentido de uma preparação para o pensamento, como em Kant. Para Hegel, o exame se dá na própria atividade de pensar, pois é tão impossível pensar antes do pensamento quanto querer aprender a nadar antes de entrar na água5 . Logo, a crítica em Hegel é exame, no sentido de explicitar os limites e as contradições da própria coisa, que por sua vez, são limites e contradições imanentes, ou seja, não são emprestados de fora como se sua origem estivesse meramente em uma deficiência subjetiva. Segundo Fé e Saber, a cautela e o receio das limitações subjetivas que operavam justamente a fixação da subjetividade nessas limitações eram aquilo que caracterizava a filosofia da subjetividade, da qual a filosofia kantiana é um exemplo6 . Assim, a filosofia subjetivista de Kant não pôde mais do que apresentar uma crítica que ao incluir pressupostos epistemológicos tanto começa quanto resulta na separação do conceituar e do verdadeiro. Hegel denomina “externalista” essa postura própria das filosofias da subjetividade, pois não tem a coisa mesma como ponto de partida do desenvolvimento conceitual e está, desde o princípio, orientada no sentido de uma cisão (Entzweiung) entre o todo, que, para Hegel, é o racional, e a consciência do todo, que, para ele, é a razão7 . Tal orientação levada às últimas consequências resultou na negação da imanência da razão no mundo e a formação de um formalismo subjetivista que não tematizou os nexos lógicos da realidade mesma. Este tipo distorcido de crítica vinha sendo administrada, predominantemente, pelas filosofias da época de Hegel, influenciada em particular pelas obras de Kant. Para Kant, a crítica se caracterizava por uma avaliação das faculdades do entendimento humano para atingir a objetividade. Para Hegel, “toda a tarefa e conteúdo dessa filosofia não é o conhecimento do absoluto, mas o conhecimento dessa subjetividade ou uma crítica da faculdade de conhecer”8 . Noutras palavras, em Kant, a crítica se desenvolveria apenas no sentido de investigar uma faculdade subjetiva, e esta, era mesmo fixada como exterior ao objeto avaliado. Para Hegel, seguindo a filosofia da identidade de Schelling: “a filosofia na identidade absoluta não reconhece como sendo para si nem um nem outro dos contrapostos na sua

5 HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), v. I. Trad. de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995, p. 109. 6 FS, p. 35. 7 WPK, p. 172. 8 FS, p. 36 e 37.

abstração do outro, mas apenas a ideia suprema, considerada indiferentemente, diante de ambos ou de cada um isolado, ela não é nada e é idealismo”9 . Para Hegel, Kant teria tomado a identidade absoluta por um postulado subjetivo não realizável, embora esta identidade seja a única realidade verdadeira para a filosofia especulativa. Kant faz da filosofia justamente o lado negativo (o limite), puramente idealístico (vazio) ou apresenta o positivo como conceito vazio que reaparece como subjetividade absoluta, ou seja, como [consideração do entendimento humano finito tal como em Locke]10 . E esta é justamente a tarefa do idealismo de Kant. Para Hegel, as filosofias da subjetividade resultaram em uma absolutização do limite, de modo que seu resultado foi um dualismo. Esse dualismo da filosofia de Kant é, na verdade, a expressão da máxima cisão operada no próprio espírito. No Prólogo de Fé e Saber, Hegel determina de modo brilhante a crítica imanente. Para ele, a imperfeição de uma filosofia pode ser vista nela a partir dela mesma. Isso porque a imperfeição atende a uma necessidade empírica, ou seja, exterior, não essencial. O empírico se encontra junto com o essencial, com o espírito, nas filosofias11 . Nesse sentido, é preciso ver no dualismo, e nas cisões que estão na base da filosofia de Kant, um elemento não meramente exterior, mas resultado de uma cisão operada no próprio espírito. O que se deseja mostrar na sequência dessa apresentação é como Hegel desenvolve, nessa crítica ao pensamento de Kant, também um aspecto elogioso à filosofia kantiana, entendendo que esta alcança algo positivo para a filosofia verdadeira, ou seja, é com base nela que uma perspectiva realmente especulativa pode ser formulada de uma forma absoluta. Para Hegel, com a filosofia kantiana, o espírito chegou a sua máxima cisão, e esta filosofia é, por sua vez, a expressão dessa máxima cisão. E como Hegel afirma no Escrito da Diferença, a máxima cisão é, para o espírito, a expressão da necessidade suprema da filosofia12 . Para Hegel, a ideia da razão foi expressa pela filosofia kantiana, verdadeiramente na seguinte fórmula: como são possíveis juízos sintéticos à priori?13 Mas, para ele, essa tarefa da filosofia de explicar a síntese do cindido de modo originário não foi compreendida por Kant em sua universalidade e foi insuficientemente determinada sob um significado subjetivo e exterior à questão. Nesse sentido, aconteceu com Kant aquilo que ele censurou em

9 FS, p. 36. 10 FS, p. 36 e 37. 11 FS, p. 21. 12 HEGEL, G. W. F. Diferenças entre os Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling. Trad. Carlos Morujão. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002, p. 38. Doravante abreviar-se-á por DFS. 13 FS, p. 37 e 38.

Hume, de modo, que ambos acabaram por concluir que um conhecimento da razão (ou seja, racional) é impossível. Não existe um conhecimento da razão, mas de sua redução ao entendimento. Como vimos, segundo a filosofia kantiana, o fim absoluto da filosofia –ou seja, a identidade da oposição – é o puro limite. Mas, para Hegel, isto é exatamente a negação da filosofia, já que esta tem como sua tarefa verdadeira a resolução das oposições. Nesse sentido, a tarefa da filosofia “é resolver as oposições que se apresentam e que ora são apreendidas como espírito e mundo, como alma e corpo, como eu e natureza etc.”14 . Como visto, a cisão se expressou das mais variadas formas. E somente com base na máxima cisão a especulação chegou a um nível em que ela pode atuar livremente, ou seja, é somente quando se dá a máxima cisão entre o saber e a verdade, que se pode especular sem ter nenhum medo. Nesse sentido, somente quando se pôde tornar explícita a rejeição da postura de se fixar e absolutizar formas finitas do conhecimento, ou seja, somente quando a filosofia pôde aniquilar a pretensão própria da consciência natural de se prender ao finito é que se dá o advento do saber absoluto. Então, o que está em jogo aqui, como uma Ideia de filosofia surge com base e no cerne de um espírito de uma época, de uma época que alcançou a máxima cisão. E por outro lado, a crítica da filosofia kantiana tem a ver também com as formas em que Kant pôde avançar a filosofia, mas se conteve e em vez de chegar realmente à Ideia de filosofia se fixou em alguns pressupostos de modo a tornar a subjetividade em o absoluto. Voltando ao “Sobre a essência da crítica filosófica” , Hegel considera duas formas pelas quais a ideia não encontra o seu reconhecimento na filosofia15 . A primeira forma se dá porque a ideia ainda está presa à autoridade ou a alguns domínios que não permitem que ela seja entrevista, contemplada e intuída claramente. Então, é preciso que haja todo um desenvolvimento do espírito para que a Ideia se apresente em sua forma plena e realizada (que, em obra posteriores, Hegel afirmará que é o conceito16). O segundo caso em que a ideia não foi reconhecida pela filosofia se dá quando a subjetividade reconhece a ideia, ou seja, ela tem a ideia muito clara para si, mas resolve se defender, porque reconhece que ao ter que apresentar a ideia, o próprio movimento de exposição acaba por aniquilar alguns pressupostos dos quais a subjetividade está acostumada. Então, a subjetividade para se preservar, defende-se da ideia e acaba por se fixar em pressupostos que não permitem que vá adiante, quer dizer, que ela realize a tarefa da filosofia de apresentar a ideia. Esse segundo caso, é particularmente o caso de Kant. Em

14 FS, p. 36. 15 WPK, p. 175. 16 Cf. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2005. Prefácio. p. 25-70.

Kant, a subjetividade é posta como o próprio absoluto e a ideia mesma é esvaziada de todo conteúdo. Então, o primeiro ponto da crítica a Kant é justamente essa compreensão de uma subjetividade finita que se arvora em pilar, em âncora do saber. Ao mesmo tempo, tentar compreender como a ideia está explicitada no sistema kantiano de tal modo em que ela é esvaziada de todo significado, em que ela é empobrecida pela abstração. O segundo ponto da crítica de Hegel a Kant seria o fato de Kant não ter estabelecido de uma forma coerente o princípio próprio da razão, o princípio que unifica, que é ativo, que é produtivo e que sintetiza e produz o diverso de forma originária. Para Hegel, Kant apresentou essa ideia de unidade originária nos conceitos de imaginação transcendental17 e de apercepção transcendental. A imaginação explicitaria a unidade no sentido da autoprodutividade. E a apercepção, que para Hegel se mantém no domínio empírico, busca também explicitar uma atividade própria do eu que originariamente unifica o diferente. No entanto, é preciso mostrar em que forma subordinada se deu essas concepções tão caras à filosofia como a razão ativa e a unidade originária do saber. E isso passa por tentar mostrar que o idealismo, que Kant formulou no final das contas, é um idealismo formal, porque as categorias, o pensamento, não possuem nenhum conteúdo, são meras formas vazias que recebem, que receptam, no seu interior, a multiplicidade e a sensibilidade. Esse idealismo também tem um caráter psicologista, no sentido de que já estabelece de antemão, a ideia de um entendimento finito, ou seja, de um entendimento que não deve e não pode ir além desse conhecimento finito. E, por fim, esse idealismo é um idealismo subjetivo, porque a unidade que ele propõe também é originária embora relativa, mas não é um sujeito-objeto objetivo, nem um sujeito objeto absoluto, e sim um mero sujeito-objeto subjetivo, um nada em-si, porque ancorada no mero entendimento, no eu que está restrito ao entendimento18 . Para Hegel, em Sobre a essência da crítica filosófica, a defesa de um monismo na filosofia é irrecusável e isso se dá porque a unidade da filosofia se justifica pelo seu próprio objeto de conhecimento: a razão. Para a crítica, a razão tanto tomada em absoluto, a Ideia, como tomada como consciência de si, ou seja, em seu próprio conhecimento, que é filosofia, é una e consequentemente unida a tudo aquilo feito idêntico a ela própria19 . Portanto,

17 “Não devemos, por conseguinte, atribuir o mérito de Kant ao fato de que ele pôs as formas, que são expressas nas categorias, na faculdade humana de conhecimento como o mourão de uma finitude absoluta, mas ao fato de ele ter colocado a ideia de verdadeira aprioridade mais na forma da imaginação transcendental, e também, por isso o começo da ideia da razão no entendimento ele mesmo” (FS, p. 50). 18 “... o entendimento consciente é nada em si, não porque ele é entendimento humano, mas porque é entendimento em geral, quer dizer, nele mesmo se encontra um ser absoluto da oposição” (FS, p. 50) 19 WPK, p. 172.

a concepção que defenda existir entre o absoluto e a consciência um muro de uma distinção essencial está em desacordo com a essência da crítica filosófica. Para ele, tal concepção distorcida da filosofia foi levada adiante pelo intelecto raciocinante, em parte expresso na filosofia kantiana20 . Filosofia esta, que no entender de Hegel, resultou, como vimos, em um idealismo psicológico, na medida em que parte da avaliação do entendimento humano desde o começo separado do Absoluto, tal como o fez Locke. Para Hegel, ao partir da finitude, Kant não pôde sair dela, só lhe restando postular o absoluto e colocá-lo para além do saber. Nesse sentido, a tarefa do idealismo kantiano não foi a correção da cisão sob a unidade da ideia absoluta, mas apenas o conhecimento de uma subjetividade que é consciência de si de um sujeito que tem experiência. Esta, por sua vez, nada é em si essente e verdadeiramente à priori como qualquer outra subjetividade, pois um entendimento que conhece apenas fenômenos e nada em si é ele mesmo fenômeno e nada em si21 . Eis a nulidade que esbarra Kant em seu empreendimento crítico. Neste, o conhecimento e o absoluto estão em uma oposição insuperável, separados por um abismo intransponível, de modo que a ideia absoluta não tem simultaneamente realidade nesta oposição e o suprassensível é incapaz de ser conhecido devido a uma fragilização da razão especulativa. Para Hegel deste período, assim como para Schelling, a crítica nunca se ajusta completamente ao eterno se não partir já de uma independência com o relativo. Nesse sentido, ao partir da finitude do entendimento humano e não da unidade da Ideia absoluta, a filosofia da subjetividade termina por se fixar nas oposições próprias do finito. Deste modo, o infinito mesmo não é concebido como a coisa essente, mas meramente como uma coisa pensada. O absoluto nunca é alcançado partindo da oposição, posto que fora abandonado desde o princípio. Assim, o subjetivismo termina, tal como começara, colocando o absoluto em oposição ao conhecimento, como uma crença e tudo que resta é um infinito empobrecido na relação e esvaziado no significado. Por fim, para Hegel, a crítica filosófica deve fazer manifesta unicamente o objeto ou a Ideia que a fundou e que só pode ser a da filosofia mesma, de modo que não pode partir da cisão, nem se fixar nela, mas dissolvê-la e fazer valer a unidade de seu princípio.

Referências Bibliográficas

HEGEL, G. W. F. Diferenças entre os Sistemas Filosóficos de Fichte e de Schelling. Trad. de Carlos Morujão. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2002.

20 DFS, p. 29. 21 FS, p. 47.

______. Einleitung. Über das Wesen der philosophischen Kritik überhaupt und ihr Verhältnis zum gegenwärtigen Zustand der Philosophie insbesondere. ______. Werke 2. Frankfurt: Suhrkamp, p. 171-187, 1986. ______. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em Compêndio (1830), v. I. Trad. de Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995. ______. Fé e Saber. Trad. de Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007. ______. Fenomenologia do espírito. Trad. de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2005.

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