23 minute read

O Significado do Conceito de Experiência em Hegel para a Hermenêutica Filosófica de Gadamer

O SIGNIFICADO DO CONCEITO DE EXPERIÊNCIA EM HEGEL PARA A HERMENÊUTICA FILOSÓFICA DE GADAMER

Viviane Magalhães Pereira1

Advertisement

Introdução

Este trabalho é resultado de minha pesquisa desenvolvida no ano de 2010, quando participei, pela primeira vez, do PROCAD PUCRS-UFC. Devido ao tema do projeto (Sujeito e liberdade na filosofia moderna alemã) e das minhas investigações em torno do conceito de experiência na obra Verdade e Método, de Hans-Georg Gadamer (1900-2002), naquele período, decidi compreender a influência da Fenomenologia do Espírito de Hegel (1770-1831) sobre o conceito de experiência hermenêutica em Gadamer. Este autor convida-nos a refletir, na sua obra principal, sobre a nossa experiência humana de mundo, para além daquela experiência do dado imposta pelas ciências empírico-analíticas do século XVII. Ele tenta defender, para tanto, que há uma experiência, cuja estrutura ontológica nos possibilita a tomada de consciência dos efeitos da história sobre nossa compreensão do mundo, do outro e de nós mesmos. Tal experiência, em parte, já havia sido reconhecida por Hegel, mediante a descrição do movimento da consciência que reconhece a si mesma no ser-outro. Embora Gadamer tenha atentado para a contribuição da menção que Hegel fez ao caráter dialético e histórico da experiência, aquele filósofo aponta as limitações desse “conceito de experiência dialética da consciência” , uma vez que Hegel, ao tornar a dialética um saber concludente, que culmina no saber absoluto, retirou o que a dialética da experiência possui de mais fundamental: a abertura para novas experiências. É no diálogo entre esses dois pensadores em torno do conceito supracitado que nos deteremos neste trabalho, para que possamos compreender em que sentido há uma experiência humana, reconhecida de maneira distinta por ambos os filósofos, que se difere e se distancia da experiência exigida pelo padrão metodológico de ciência. Trata-se, por um lado, de fazer uma introdução ao problema e, por outro, de mostrar a apropriação, a crítica e a interpretação de Gadamer sobre o conceito de experiência em Hegel.

1 Bolsista CAPES 2010.02 e 2011.02. E-mail: vivianefilosofia@yahoo.com.br Doutoranda em Filosofia pelo PPG em Filosofia da PUCRS.

O Conceito de Experiência em Hegel

Hegel, na sua Fenomenologia do Espírito2 , descreveu o movimento da experiência da consciência, momento inicial ou apresentação de seu sistema filosófico, o qual pretendia abarcar o todo mediante o discurso, o que ficou por nós conhecido como seu sistema da ciência3 . Esse movimento, narrado por Hegel, traçava a passagem necessária de uma figura da consciência a outra4 , culminando no aparecimento de um saber que, ao mesmo tempo, fundava e justificava esse processo, o saber absoluto5 . Tal filósofo, desse modo, legou à subjetividade, enquanto instância capaz de fazer tal exteriorização, uma espécie de “posto privilegiado de observação” e intitulou o estudo desse processo global, o qual se efetiva por meio do movimento do espírito, de “ciência da experiência que faz a consciência”6 . Até Hegel, a pressuposição desse movimento não havia sido pensada na Filosofia. No entanto, todos os filósofos, de alguma maneira, tentaram falar sobre ele quando procuraram um princípio que fosse a explicação do todo. E apesar dos princípios encontrados por tais filósofos terem se revelado insuficientes para a realização de tal projeto, eles foram precursores da teoria ou do movimento dialético que Hegel vai apresentar. A prova disso é que este autor conseguiu incluir no seu projeto muitos dos elementos da história da filosofia, compreendendo-os no movimento ascensional que será incorporado ao final no sistema acabado da experiência. Esta, segundo Hegel, realiza-se por meio do saber absoluto, que é quando se alcança supostamente aquilo que sempre foi a ambição de todos os filósofos: a identidade entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto. Há aqui uma espécie de ontologia, uma metafísica da subjetividade do espírito e não uma metafísica da substância. Portanto, a teoria de Hegel não é uma teoria que descreve o mundo, como ocorre, por exemplo, na metafísica

2 Cf. HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. 4ª ed. Trad. de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007. 3 LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna do sistema de Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995, p. 35: “A Fenomenologia é a porta de acesso ao sistema de Hegel. [...] somente através dela poderemos compreender a passagem da perspectiva da consciência de um espírito finito ao saber absoluto, possibilitando a abertura para a compreensão da Lógica de Hegel, já que o saber absoluto [...] é, enquanto identidade de ser e pensar, também o ponto inicial da Lógica”. 4 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 42: “[...] cada momento é necessário. [...] há que demorar-se em cada momento, pois cada um deles é uma figura individual completa”. 5 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 36: “Sobre o absoluto, deve-se dizer que é essencialmente resultado; que só no fim é o que é na verdade. Sua natureza consiste justo nisso: em ser algo efetivo, em ser sujeito ou vir-a-ser-de-si-mesmo”. 6 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 46. Hegel salienta na mesma página a centralidade do conceito de experiência: “A consciência nada sabe, nada concebe, que não esteja em sua experiência, pois o que está na experiência é só a substância espiritual, e em verdade, como objeto de seu próprio Si”.

anterior a Kant, que pressupunha a existência de uma realidade e fazia o esforço de descrever ou justificar de maneira mais adequada essa realidade sistêmica, ou mesmo na revolução iniciada por Kant, segundo a qual a subjetividade, ou a inteligibilidade contida nas formas a priori do conhecimento, passaria a organizar o real (idealismo transcendental)7 . Nessas teorias, o real sempre tem uma condição de possibilidade e esta condição é justamente o que explica a questão do conhecimento, mas Hegel vai adiante, porque ele não quer uma teoria do conhecimento8 . Mesmo que a subjetividade seja um tema na teoria do conhecimento, esta ainda é uma teoria finita, porque não consegue pensar nem Deus, nem a imortalidade, nem a liberdade. Hegel incorpora ao seu sistema aquilo que Kant remeteu ao universo da coisa-em-si, aquilo que não pode ser objeto de conhecimento, mas apenas de pensamento e, com essa fenomenologia do espírito (idealismo dialético ou absoluto), ele pretende superar a teoria do conhecimento. Há, para esse pensador, uma efetividade que é aquela da qual se pretende dar conta por meio de uma possível teoria filosófica, teoria esta da qual o mundo não depende, já que ele “funciona” efetivamente sem ela. A questão mesma do movimento da consciência surge quando o sujeito se confronta com o mundo objetivo, o mundo histórico, que não aparece ao sujeito nas formas acabadas das categorias do entendimento, mas que é formado mediante a sucessão de experiências que para a consciência são significativas. Não se trata aqui também da sequência de eventos empíricos, determinados por um tempo cronológico, mas do desdobramento de uma lógica imanente da fenomenologia, que tem seus momentos estabelecidos pelo tempo histórico e unidos pelo discurso dialético. A sucessão desses momentos não se dá também de forma aleatória. Em síntese, a certeza que o sujeito tem de possuir a verdade do objeto (presença do sujeito no aqui e agora do mundo exterior; certeza sensível)9 acaba por tornar-se também objeto para o sujeito. O sujeito, ou a consciência-de-si como instauradora de sentido, passa a ser fenômeno para si mesmo. Há um

7 Cf. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 6ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. 8 Vale atentarmos para a importância de se fazer uma diferenciação entre o idealismo transcendental de Kant e o idealismo absoluto de Hegel, momento imprescindível para a compreensão da problemática inicial posta pela Fenomenologia do Espírito; GADAMER, Hans-Georg. La dialectica de Hegel: Cinco ensayos hermenéuticos. 4ª ed. Trad. de Manuel Garrido. Madrid: Cátedra, 1994, p. 49: “[...] o começo da Fenomenologia não pode ser compreendido, em absoluto, sem olhar diretamente para a filosofia kantiana”. 9 LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna do sistema de Hegel, p. 38-39: “Estão cindidos sujeito e objeto, no entanto a consciência acredita que este é o verdadeiro caminho, pois nesta cisão reside a possibilidade de afirmar: ‘isto é um objeto’”. 255

retorno possibilitado a partir do ser-outro10 , do ser do mundo sensível e do mundo da percepção, mas que agora é suprimido, ou melhor, é suprassumido, para que a consciência constitua a identidade concreta consigo mesma. Tal consciência, agora, ao negar a independência do objeto, vê-se guiada não pelo objeto, que “só vale como superfície”11 , mas pelo desejo. Aqui a consciência é individualidade pura, ela lança-se à vida e encontra sua limitação justamente por seguir a essa lógica infinita da saciabilidade, negando a razão e, consequentemente, a si mesma 12 . Nesse sentido, faz-se necessário que a consciência-de-si alcance uma nova consciência-de-si, substituindo essa verdade do “mundo animal” por uma “verdade do mundo humano” , passando de uma “verdade da natureza” para a “verdade da história”13 . A dialética do desejo deve encontrar sua verdade, assim, na dialética do reconhecimento; reconhecimento de si no horizonte de seu mundo humano, que é o desapontar da consideração das suas experiências mais significativas. Este é o caminho que prepara a consciência para a experiência do que é o espírito, para a unidade entre as diversas consciências-de-si que são para si, para o mundo dos sujeitos14 . Segundo Lima Vaz:

Trata-se de desenrolar o fio dialético da experiência que mostra na “duplicação” da consciência-de-si em si mesma – ou no seu situar-se em face da outra consciênciade-si – o resultado dialético e, portanto, o fundamento da consciência do objeto. Essa referência essencial do mundo à história ou essa historicização do conhecimento do mundo é um decisivo “ponto de inflexão” na descrição das experiências que assinalam o caminho do homem ocidental para o lugar e o tempo históricos de uma sociedade que vê inscrito o seu destino na face enigmática do saber científico15 .

10 HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 39: “O puro reconhecer-se-a-si-mesmo no absoluto ser-outro, esse éter como tal, é o fundamento e o solo da ciência, ou do saber em sua universalidade”. 11 Idem, p. 249. 12 LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna do sistema de Hegel, p. 50: “A consciência busca no outro sempre a si mesma. Querendo mostrar que em seu para-si é radicalmente autônoma, a consciência iniciará a destruição e aniquilamento de todos os seus objetos. A consciência [...] desejará ampliar tal para-si singular à totalidade do mundo”. 13 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. “A significação da Fenomenologia do Espírito”. In: HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 21. 14 LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna do sistema de Hegel, p. 51: “[...] o espírito é a unidade da universalidade do em-si de todas as consciências e da singularidade do para-si de cada uma delas”.

15 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. “A significação da Fenomenologia do Espírito”, p. 23. 256

Hegel descreve, assim, na sua Fenomenologia do Espírito, a luta da consciência pelo reconhecimento de si mesma, enquanto portadora de um propósito da história, que é marcado pela racionalidade, pela sociedade que segue em busca de um consenso universal. Conforme o filósofo alemão HansGeorg Gadamer, o que torna a filosofia do espírito de Hegel importante para o problema hermenêutico é justamente o fato dela “oferecer uma mediação total da história e do presente”16 . E foi na descrição da experiência da consciência na Fenomenologia do Espírito que essa mediação foi elaborada de forma elementar. Quando a consciência (espírito na história) “faz” uma experiência, o que ela experimenta é a própria realidade (história)17 . Porém, para que essa experiência se converta em um saber, para que um conteúdo seja aceito pela consciência como verdadeiro, o próprio homem deve estar nele, “‘ou mais precisamente, deve encontrar esse conteúdo em acordo e em unidade com a certeza de si mesmo’. O conceito da experiência quer dizer precisamente que esse acordo consigo mesmo começa a se instaurar” . Opera-se aqui uma inversão. Em vez de se conhecer a partir de suas próprias estruturas categoriais, a consciência passa a reconhecer a si mesma no outro que lhe é estranho, ou seja, ela modifica o saber que ela possuía de si mesma ao se apropriar seja de uma “multiplicidade de conteúdos” já existentes ou de um novo saber. Para Gadamer, “a descrição dialética hegeliana da experiência tem obviamente a sua parcela de acerto” , mas “não resta dúvida de que para Hegel o caminho da experiência da consciência tem que conduzir necessariamente a um saber-se a si mesmo que já não tem nada diferente nem estranho fora de si”18 , que é “ciência” , ou melhor, a certeza de si mesmo no saber. Isso significa dizer que o padrão a partir do qual o movimento da experiência pode ser pensado em Hegel é o constante “saber a si mesmo” a partir do outro, mas só até que aquele alcance um saber absoluto19 , uma “identidade absoluta entre consciência e objeto” . Além disso, como esse movimento vale também para a história, podemos ver porque a hermenêutica

16 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr Siebeck, 1990 (Gesammelte Werke, Bd.1), p. 351. 17 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005, p.86: “Para Hegel, a compreensão histórica não é simplesmente reconstrução do passado, mas integração dialética e especulativa com o presente em um processo de mediação que não é fruto da reflexão externa, mas é o movimento mesmo da verdade, efetuando-se na história”. 18 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 361. 19 ALMEIDA, Custódio Luís Silva de. Hermenêutica e dialética: Dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002, p. 318: “Hegel quer mostrar que o Eu puro é espírito, sendo, ao mesmo tempo, consciência e autoconsciência. Nesse sentido, ele [...] é autoconsciência do pensamento que se pensa a partir da diferença de si mesmo”. 257

de Gadamer não pôde se valer da ideia de Hegel de que “a história estaria absorvida na autoconsciência absoluta da Filosofia”20 . Para Gadamer, “a própria experiência jamais pode ser ciência” , pois, como Hegel mesmo percebeu, ela é, desde o princípio, superação e conservação. Converter todo o conteúdo da experiência em subjetividade certamente não era o objetivo de Gadamer21 . O conceito de experiência do modo como foi pensado por Hegel revela o desejo da sua filosofia do “conhecer absolutamente” , desejo esse que, por um lado, não se limita a uma exatidão metódica, mas que, por outro, retira, com o fechamento do seu sistema com o saber absoluto, o que a dialética da experiência possui de mais fundamental: a abertura para novas experiências22 .

O Conceito de Experiência em Gadamer

Enquanto Hegel queria converter toda a substancialidade em subjetividade, Gadamer faz o movimento inverso. Ele tenta mostrar que em toda subjetividade há uma substancialidade que a determina, que a faz finita, que são os preconceitos23 , a tradição24 , a historicidade25 , a finitude26 , etc., isto

20 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 361. 21 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica, p. 295: “A experiência hermenêutica não é hegeliana – embora passe por ela e retome aspectos de sua pretensão de correção da filosofia da reflexão; pois com ela não se trata mais de apreender a ‘essência’ da experiência dialeticamente, mas de pensar e apreender a própria dialética a partir da ‘essência’ da experiência hermenêutica”. 22 O sistema hegeliano sofreu amplas críticas justamente por “interromper”, com o saber absoluto, a abertura propiciada pelo movimento dialético. O próprio Hegel foi um severo crítico daquelas teorias que apresentam a proposta de um conhecimento pronto e acabado. Nas suas palavras: “O bem-conhecido em geral, justamente por ser bem-conhecido, não é reconhecido. É o modo mais habitual de enganar-se e de enganar os outros: pressupor no conhecimento algo como já conhecido e deixa-lo tal como está” (HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito, p. 43). 23 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 281: “Muito antes de nos compreendermos na reflexão sobre o passado, já nos compreendemos naturalmente na família, na sociedade e no Estado em que vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A autorreflexão do indivíduo não passa de uma luz tênue na corrente cerrada da vida histórica. Por isso, os preconceitos de um indivíduo, muito mais que seus juízos, constituem a realidade histórica de seu ser”. 24 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 372: “O que é consagrado pela tradição e pela herança histórica possui uma autoridade que se tornou anônima, e nosso ser histórico e finito está determinado pelo fato de que também a autoridade do que foi transmitido, e não somente o que possui fundamentos evidentes, tem poder sobre nossa ação e nosso comportamento”. 25 GADAMER, Hans-Georg. “O problema da história na filosofia alemã mais recente”. in: Verdade e Método II: Complementos e índice. 2ª ed. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 39: “Mesmo na finitude, perguntamos por um sentido. Esse é o problema da historicidade, que afeta a filosofia”. 26 Tal conceito remonta à filosofia de Martin Heidegger, quando este indica como uma das

é, as determinações culturais e históricas do mundo vivido. Com isso, Gadamer pensou “uma realidade capaz de pôr limites à onipotência da reflexão”27 . Hegel supera a teoria do conhecimento na direção de uma filosofia do absoluto, ao passo que Gadamer supera a teoria do conhecimento na direção de uma compreensão da historicidade da cultura do mundo, do todo do conhecimento, que nunca se esgota num movimento completo, que sempre é um movimento (facticidade). Com Gadamer, portanto, a subjetividade é pensada a partir do ponto de vista da historicidade e isso significa dizer que ela deixa de ser o centro articulador da totalidade. Esse tipo de crítica ao subjetivismo surgiu do seu reconhecimento de que os efeitos da história sobre a nossa compreensão nunca se dão de modo completo, mas estão constantemente se constituindo dentro de horizontes, limitados pela situação em que nos encontramos e por nossas expectativas. A partir do momento em que algumas questões do presente se põem frente à tradição, tendemos a deslocar o nosso horizonte para outra situação, ou melhor, o ampliamos, passamos a reconhecer uma verdade na tradição que vale para nós mesmos e aprendemos a ver para além do que está próximo. Compreender é sempre esse processo de fusão de horizontes, onde nossos preconceitos são constantemente postos à prova, dado que estão em tensão constante com a alteridade do outro28 . Para Gadamer, há uma estrutura ontológica que possibilita a tomada de consciência dos efeitos da história sobre a nossa própria compreensão e essa estrutura é a estrutura da experiência29 . Por mais que este conceito seja constantemente remetido ao metodologismo epistemológico dominante, sendo-lhe retirada toda e qualquer menção à sua historicidade, Gadamer procura justamente com ele justificar a existência de algumas expressões humanas que nos distanciam do comportamento guiado pelo padrão metodológico da ciência30 . Podemos reconhecer as conclusões de sua obra principal exatamente naquilo que ele chama de experiência estética,

estruturas (Existencial) do modo de ser do homem (Dasein) o termo “estar-lançado” (Geworfenheit), o qual indica que o homem compreende a si mesmo e ao mundo dentro de conjuntos (histórico, factual, etc.) pré-determinados que independem de sua vontade (Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. 15ª ed. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 240-241). 27 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 348. 28 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 311. 29 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 352. 30 GADAMER, Hans-Georg. “A história do conceito como filosofia”. In: Verdade e Método II, p. 98: “’Experiência’ [...] não tem aqui aquele sentido dogmático do dado imediato. [...] Não se pode chamar de experiência como tal o ponto de partida dos sentidos e de seus dados. Também aprendemos a ver como os dados de nossos sentidos articulam-se cada vez em contextos interpretativos”.

experiência histórica e experiência da linguagem, as quais constituem de forma exemplar a própria experiência hermenêutica proposta na sua obra Verdade e Método. Desde o empirismo moderno, a Filosofia buscou uma regularidade na experiência que servisse de modelo seguro às asserções acerca do homem e da realidade (conceitos), desacreditando uma experiência somente quando uma nova se lhe contrapunha. A questão é que, mesmo que de forma imperceptível, as experiências nunca são rigorosamente as mesmas e quando se trata da experiência da vida cotidiana, por exemplo, cada nova experiência representa a possibilidade de uma compreensão distinta sobre as coisas. Não há como reconhecer a experiência numa universalidade prévia, mas é necessário constantemente confirmá-la mediante as observações individuais. Isso se dá porque a experiência possui um caráter peculiar sustentado na negatividade, um exemplo disso é o fato de com ela serem refutados os conceitos que antes tomávamos por verdadeiros. Ou seja, antes da experiência ser uma confirmação de experiências comuns, ela se caracteriza pela abertura (Erschlossenheit) a novas experiências. Hegel já havia atentado para o caráter dialético da experiência na sua Fenomenologia do Espírito, como mencionamos anteriormente, e Gadamer reconheceu tal contribuição ao sustentar que: Hegel [...] mostrou como faz suas experiências a consciência que quer admitir certeza de si mesma. O objeto da consciência é o em-si, mas o em-si só pode ser conhecido tal como se apresenta para a consciência que experimenta. Assim, a consciência que experimenta faz precisamente esta experiência: o em-si do objeto é em-si “para nós”31 . Contudo, ao tornar a dialética um saber concludente, que acaba culminando na superação da própria experiência (saber absoluto), retira o que a dialética da experiência possui de mais fundamental: a abertura para novas experiências32 . O homem que chamamos de “experiente” sabe que mais importante do que saber de tudo é estar preparado para novas experiências. A experiência é, assim, experiência da finitude humana e nega qualquer pretensão dogmática. Prender-se ao dogmatismo, negligenciando o saber que

31 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 360. 32 GADAMER, Hans-Georg. “Réplica à Hermenêutica e crítica à ideologia”. In: Verdade e Método II, p. 315: “Parece-me que meu ponto crítico frente a Hegel se mostra objetivamente quando emprego a descrição que Hegel faz do ‘conceito de experiência dialética da consciência’ a um sentido mais abrangente de experiência. A experiência perfeita não é perfeição do saber, mas abertura perfeita para uma nova experiência. Essa é a verdade que a reflexão hermenêutica reivindica frente ao conceito do saber absoluto”.

advém juntamente com a experiência do choque com o novo 33 e permitindo que pressupostos que estão em conflito com as situações concretas sejam mantidos, é uma atitude de quem não está disposto a aprender com as suas próprias experiências. O homem experiente, portanto, é aquele que admite que algo, uma vez experimentado, não pode se repetir do mesmo modo e que, nesse sentido, nada retorna. O que há é uma constante permuta entre o presente e os efeitos do passado, isto é, a tradição que chega até nós sempre nos interpela de modo diferente como se fosse o nosso mais expressivo interlocutor. Dado que participar da tradição é parte da nossa essência histórica34 , ninguém pode se poupar da experiência, mesmo daquelas experiências frustrantes. O conceito de experiência revela, assim, que “aquele que pela reflexão se coloca fora da relação vital com a tradição destrói o verdadeiro sentido desta”35 e retira do homem a liberdade do conhecer, limitando seu campo de visão àquilo que lhe está mais próximo. Desse modo, compreender o conceito de experiência se converte numa tarefa primordial dentro do pensamento de Gadamer. Essa é a condição fundamental para se compreender o conteúdo de verdade daquilo que mais se nos apresenta como real: a “tradição viva” .

Conclusão

Pudemos notar como o conceito de experiência na abordagem desses dois filósofos descreve um movimento que não pode ser mensurado, mas somente refletido mediante a observação do exercício constante que há entre o ser humano e o outro, quer seja o mundo, uma consciência contraposta, a sociedade, a cultura ou a tradição. É porque não é possível se fazer uma experiência duas vezes, que a nossa atenção deve se voltar para o processo de formação (Bildung) que dela decorre. Neste sentido, aquele que experimenta se torna consciente de sua experiência (suprassume a experiência anterior, nas palavras de Hegel, ou amplia seus horizontes, nas palavras de Gadamer), ou seja, algo é por ele convertido em experiência. “Compreendemos sempre de outro modo sem a garantia de chegar, necessariamente, ao patamar do científico, do inequívoco. [...] Trata-se de uma fenomenologia da experiência enquanto quebra constante de expectativas predeterminadas”36 .

33 STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010, p. 76: A limitação do método filosófico moderno “é separar conceito e experiência, pois parte da separação entre sujeito e objeto do conhecimento”. 34 GADAMER, Hans-Georg. “O problema da história na filosofia alemã mais recente”. In: Verdade e Método II, p. 39: “Mesmo na finitude, perguntamos por um sentido. Esse é o problema da historicidade, que afeta a filosofia”. 35 GADAMER, Hans-Georg. Wahrheit und Methode, p. 366. 36 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica, p. 86-87.

Gadamer, entretanto, nesta busca filosófica de reconhecer a relevância do conceito de experiência para se compreender as manifestações humanas, vai além de Hegel e tira da consciência a medida absoluta da experiência. Aquele quer trazer à reflexão o fato de que por trás de toda consciência há uma substancialidade que a determina. É um movimento onde a certeza do sujeito é constantemente posta em questão, em prol da aceitação do nosso diálogo incessante com a tradição por meio da linguagem, do reconhecimento dos efeitos da história sobre nós e, assim, do ir-e-vir contínuo da palavra ao conceito e do nosso conceito à palavra viva37 . Este é um círculo virtuoso, que sempre acrescenta algo novo à nossa experiência finita de mundo e, portanto, não tem um fim em que se enrede. Apesar da contribuição inegável de Hegel, ele não estava interessado propriamente no conceito de experiência, como estava Gadamer, mas sim em uma filosofia que, por meio da dialética, consumar-se-ia no saber absoluto. Por isso, Gadamer reinterpretou o conceito de dialética de Hegel, mostrando que a natureza da dialética só é compreensível a partir da experiência e que ela não pode culminar em um saber absoluto, uma vez que tal saber “elimina a própria experiência e absolutiza a dialética como método”38 . O que está aqui presente é a experiência da finitude humana, da consciência de nossa limitação frente a toda e qualquer previsão e da necessidade do filosofar de retornar à sua íntima conexão com a vida. Algo que justifica a conveniência de se pensar uma filosofia que não tome como medida o padrão científico herdado do século XVII.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Custódio Luís Silva de. Hermenêutica e dialética: Dos estudos platônicos ao encontro com Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. GADAMER, Hans-Georg. La dialectica de Hegel: Cinco ensayos hermenéuticos. 4ª ed. Trad. de Manuel Garrido. Madrid: Cátedra, 1994. _______. Verdade e Método I: Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 7ª ed. Trad. de Flávio Paulo Maurer. Petrópolis: Vozes, 2005.

37 GADAMER, Hans-Georg. “Da palavra ao conceito”. In: ALMEIDA, Custódio Luís Silva de; FLICKINGER, Hans-Georg; ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: Nas trilhas de Hans-Georg Gadamer. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000, p. 26: “[...] a hermenêutica, enquanto filosofia, [...] é [...] um modo de mostrar que [...] em cada momento em que pomos nossa razão para trabalhar, não fazemos apenas ciência. Sem levar a falar os conceitos, sem uma língua comum, não podemos encontrar palavras que alcancem o outro. O caminho vai “da palavra ao conceito” – mas precisamos chegar do conceito à palavra, se quisermos alcançar o outro”. 38 ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica, p. 92.

_______. Verdade e Método II: Complementos e índice. 2ª ed. Trad. de Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes, 2002. _______. Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik. Tübingen: Mohr Siebeck, 1990 (Gesammelte Werke, Bd. 1). HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. 4ª ed. Trad. de Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007. HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo I. 15ª ed. Trad. de Márcia de Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2005. KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. 6ª ed. Trad. de Manuela Pinto dos Santos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. LUFT, Eduardo. Para uma crítica interna do sistema de Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995. ROHDEN, Luiz. Hermenêutica filosófica: Entre a linguagem da experiência e a experiência da linguagem. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005.

STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2ª ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.

This article is from: