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O Jogo das Afecções entre o Eu e o Outro: Uma Composição Dinâmica do Sujeito-Objeto

O JOGO DAS AFECÇÕES ENTRE O EU E O OUTRO: UMA COMPOSIÇÃO DINÂMICA DO SUJEITO-OBJETO

Ravena Olinda Teixeira1

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Introdução

O presente texto visa abordar a perspectiva filosófica apresentada por Benedictus de Spinoza acerca das relações entre o eu e o outro. Essas relações são definidas, na principal obra de Spinoza (Ética), por afecções. Em resumo, o que pretendemos demonstrar é que esse “jogo das afecções” é, em certo aspecto, recebido e reafirmado por Hegel quando o mesmo escreve sobre as relações entre sujeito e objeto. Poderíamos, de maneira descuidada e precipitada2 , afirmar que é no espaço temporal-filosófico de Spinoza a Hegel em que as lentes filosóficas se direcionam fixas e atentas para questões que permeiam a relação interativa entre sujeito e objeto. Ademais, segundo Eduardo Luft (2003), os impotentes sistemas do Idealismo Alemão deixaram duas questões em débito, e uma delas é a oposição existente entre sujeito e objeto. Contudo, desenvolverei neste texto a perspectiva de Spinoza com o objetivo de expor com maior nitidez sua posição acerca deste tema, com base em suas visionárias proposições, e para demonstrar que possivelmente tenha sido o próprio Spinoza um semeador de um dos maiores debates realizados pelo Idealismo Alemão. Inicialmente, é necessário relembrar que Spinoza utiliza na Ética o método geométrico para expor seu sistema filosófico, seguindo o modelo do matemático Euclides em Os Elementos, porque acreditava que a verdade deveria ser tão clara e distinta quanto na matemática. Porém, poucos atentam que para elaborar sua filosofia, Spinoza, numa fase de transição entre o medieval e o moderno, utiliza um método que André Campos define por Endoreconstrução3 .

1 Bolsista CAPES 2012.02. E-mail: ravenaolinda@gmail.com Mestranda em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. 2 Digo descuidada e precipitada já que não tenho sobre tal um estudo mais detalhado e aprofundado; a afirmação é fruto de uma mera impressão resultante de um olhar genérico e de um sobrevoo sobre a História da Filosofia realizado durante os estudos de minha graduação na Universidade Estadual do Ceará. 3 Este é, no fundo, o meio pelo qual Spinoza discorre no seu pensar: impõe se destruir uma estrutura que já está e no seu lugar implantar uma nova, mas mantendo a aparência exterior do que aí estava. Tal como um arquiteto pode renovar todo um velho edifício construindo-o de novo, embora mantendo (melhorada) a fachada do edifício antigo, assim também Spinoza

Esse método é observado ao lermos as obras de Spinoza, principalmente a Ética, visto que encontramos inseridos em sua filosofia conceitos medievais como: essência, substância, modos, paixão, indivíduo etc. Segundo Campos, ao utilizar o mesmo conceito lhe dando um novo valor, revalorando-o ou transvalorando-o, o que metodologicamente Spinoza faz é: “[...] identificar os seus pontos de apoio ou pilares fundamentais para os fortalecer numa reconstituição de significado da qual resulte uma maior adequação de todo” (2008, p. 10). Spinoza não inventa e nem objetiva inventar uma nova linguagem filosófica, ele penetra em cada conceito problemático para reconstruí-lo a partir de dentro, ele mantém a designação habitual, mas lhe atribui um novo significado. Campos utiliza endoreconstrução, mas também podemos nomear o método de Spinoza de reconceitualização, ressignificação, remodelação da linguagem ou ainda reviramento dos termos. O importante é perceber qual o motivo e qual o objetivo que leva Spinoza a realizar tal feito. O porquê fica claro visto que Spinoza busca atingir a natureza das coisas, analisá-las em sua essência e, para tanto, é preciso uma purificação da linguagem. Seu objetivo é direcionar a metafísica, a epistemologia e a ética para a imanência, ou seja, validar por meio do uso correto dos termos a sua espantosa afirmação: Deus sive Natura.

Corpo e Afecções: Como o eu percebe o outro

Primeiramente, elucidamos que Spinoza não escreve, com esses termos, sobre a relação entre sujeito e objeto e que em toda a sua obra maior a palavra sujeito só foi escrita em duas ocasiões.4 Porém, ao tratar do que chamamos aqui de “jogo das afecções” , ele estabelece uma interação entre dois entes: aquele que afecciona e aquele que é afeccionado. Logo, entendemos que é possível associar o primeiro ao eu ou sujeito e o segundo ao outro ou objeto, isso é o que analisaremos a seguir com mais cautela. Como bem sabemos, na filosofia de Spinoza, a mente e o corpo são afecções (modificações) da substância absolutamente infinita, por isso a relação existente entre Natureza Naturante e Natureza Naturada é uma relação de imanência. Logo, o corpo, obviamente, percebe o mundo e está em estreita relação com ele. Se entendermos o corpo enquanto eu/sujeito, é necessário

constrói o novo no lugar do antigo mantendo a fachada (melhorada) do antigo. É, aliás, muito interessante que H. A. Wolfson (The Philosophy of Spinoza. Unfolding the Latent Processes of His Reasoning, p. 13), remontando todo o Spinoza a medievalismos, diga das suas leituras latinas que lhe tenham fornecido apenas “a new vocabulary for old ideas”, quando afinal Spinoza bebe nelas “an old vocabulary for new ideas” (Wolfson, H. A. The Philosophy of Spinoza. Unfolding the Latent Pro cesses of His Reasoning, p. 13) 4 As duas vezes em que Spinoza utiliza o termo sujeito (subjectum) é para referir-se à noção de coisa singular. Cf. EIIIP5 e EVA1.

também estabelecer que o mundo seja o outro/objeto, porque o jogo das afecções só se realiza na forma de interação. Para compreender o termo afecção é necessário entender o que é o corpo, sua estrutura, sua composição, visto que escolhemos aqui usar o corpo para exemplificar o eu ou o sujeito no jogo das afecções. O conceito de corpo em Spinoza é fortemente influenciado pela física de sua época. Com efeito, os corpos, de maneira mais genérica e simples, são relações de movimento e repouso que seguem de maneira determinada as leis da natureza. Esta tese torna-se clara se atentarmos para a segunda parte da Ética, no corolário5 XVIII, no qual Spinoza delimita as características comuns dos corpos. Decidimos aqui salientar apenas os dois primeiros axiomas e o primeiro lema, nos quais está escrito que todos os corpos estão ou em movimento ou em repouso, que eles se distinguem entre si pelo movimento e pelo repouso, pela velocidade e pela lentidão, e não pela substância, e por fim, que todos os corpos estão em concordância quantos a certos elementos. Essas características estão referidas aos corpos enquanto gêneros, todavia, enquanto modo finito, Gilles Deleuze (2009, p. 38) admite: “um corpo pode ser definido pelo conjunto das relações que o compõem, ou, o que vem a ser exatamente o mesmo, pelo seu poder de ser afetado” . Segundo Marilena Chauí (2005, p. 51), Spinoza tem uma inovadora concepção de corpo e sobre o conceito de corpo ela escreve: “O corpo, sistema complexo de movimentos internos e externos, pressupõe e põe a intercorporeidade como originária”6 . E sobre coisas singulares, as palavras de Carl Gebhardt são: “[...] porque cada uma, até a mais simples, está composta de uma incalculável multitude de relações causais”7 . É o aglutinar de corpos que compõe um indivíduo, por consequência, percebemos que de corpos simples surge, então, um corpo composto, ou seja, o indivíduo, mas esse aglutinar não é tão simplório assim. Segundo Ericka Itokazu (2008), o corpo humano é um corpo composto de outros indivíduos compostos em um complexo de relações internas e externas com outros corpos complexos. Com efeito, a definição de um corpo é sua relação com os demais corpos. O corpo humano, por exemplo, é um conjunto de relações determinadas, ele é o resultado das afecções entre os corpos que o compõem e aqueles corpos externos que o afeccionam. Sobre isso, Spinoza escreve:

5 É uma decorrência imediata de um teorema, utilizado com frequência na Ética. 6 Grifo nosso. 7 “[...] porque cada una, hasta la más simple, está compuesta de una incalculable multitud de relaciones causales” (2008, p. 138).

Quando corpos quaisquer, de grandeza igual ou diferente, são forçados, por outros corpos, a se justaporem, ou se, numa outra hipótese, eles se movem, seja com o mesmo grau, seja com graus diferentes de velocidade, de maneira a transmitirem seu movimento uns aos outros segundo uma proporção definida, diremos que estes corpos estão unidos entre si, e que, juntos, compõem um só corpo ou indivíduo, que distinguem dos outros por esta união de corpos. 8 Dado isto, os corpos estão presentes no mundo, eles são o mundo, e se percebem, se afeccionam, há uma intensa e constante relação de percepção entre eu e o mundo ou ainda entre o mundo com ele mesmo, por meio dos inúmeros modos que o compõem. Esse “jogo” de percepções é o que Spinoza chama de afecções. Segundo Diane Cohen (2001), existem três níveis de afecções na filosofia de Spinoza. O primeiro nível de afecção corresponde às afecções da substância, que é chamado, na Ética, de modos. Para confirmar sua tese de que o primeiro nível de afecção são os modos, Cohen utiliza as seguintes citações: “as coisas singulares nada mais são que afecções dos atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e determinada”9 e: “Ora, na natureza, não há senão uma única substância, a saber, Deus, e não há outras afecções senão aquelas que existem em Deus e que não podem existir nem ser concebidas sem Deus”10 . Neste sentido, a potência infinita de Deus se expressa modalmente em suas afecções: “[...] em um poder de ser afetado de uma infinidade de maneiras, e dessa maneira são os modos, também chamados de afecções” . 11 Pelas palavras de Spinoza, sabemos que a substância não padece12 , entretanto suas afecções, os modos, sofrem, por sua vez, afecções, por isso Cohen identifica um segundo sentido para afecção. Sobre este segundo sentido, ela afirma: “com o termo afecção Spinoza designa as modificações do modo, enquanto este padece os afetos dos outros modos sobre ele”13 . Pelos postulados da segunda parte da Ética, um indivíduo tanto pode afetar os corpos exteriores quanto pode ser afetado por eles, em ambos os casos acontecem afecções, pois tanto aquele que afeta, que causa a afecção, como

8 EIIP13Def. Grifo nosso. 9 EIP25C. 10 EIP30D. 11 “en un poder de ser afectado de una infinidad de maneras, y dichas maneras son los modos, también llamados afecciones” (COHEN, Ibid., p. 117).

12

“É por isso que não se pode, por razão alguma, dizer que Deus padece”. E1P15E. 13 “[...] con el término afección Spinoza designa las modificaciones del modo, én cuanto éste padece los efectos de los otros modos sobre él” (Ibid, op. cit.).

aquele que foi afetado participou de uma afecção. Isso significa que as afecções são uma mistura de dois ou mais corpos, enquanto um corpo atua sobre outro corpo modificando-o. Posto isto, entendemos afecção como modificações sofridas ou realizadas. O primeiro nível designa os modos em geral, o segundo nível designa as modificações do corpo e da mente, o terceiro e último nível de afecção é aquilo que chamamos de sentimentos ou emoções e tem um nome específico: afeto. A diferença entre afetos e afecções é que o afeto está inteiramente ligado ao conatus, o afeto é a passagem ou a variação de um grau de potência a outro, portanto, o afeto seria o resultado, positivo ou negativo, alegre ou triste, de uma afecção. Cohen escreve: Por outra parte, também se diz que os afetos –ações e paixões – denotam um aumento ou diminuição da potência de agir, isto é, uma alteração dinâmica da vitalidade, porque eles vão configurando o grau de potência individual ou conatus. 14 No âmbito do terceiro nível, Cohen afirma que, embora exista diferença, os afetos são um tipo de afecção; no entanto, Deleuze é radical ao afirmar que não se pode entender esses dois conceitos como se fossem a mesma coisa. Para ele, traduzir ou utilizar esses conceitos como se tivessem o mesmo significado é desrespeitar o esforço meticuloso de Spinoza em utilizar para cada conceito uma palavra específica. Por isso, Deleuze chega a afirmar que confundir afeto e afecção é uma “catástrofe” (Ibid., p. 20), já que ele define por afeto a variação contínua do existir e por afecção uma das três espécies de ideias e assevera: “Numa primeira determinação, uma afecção é: o estado de um corpo enquanto sofre a ação de um outro corpo” (Ibid., p. 30). E para demonstrar essa afirmação ele utiliza uma ilustração afirmando que quando um raio de sol pousa sobre o homem, isso é uma afecção, mas a afecção não é o sol nem o raio de sol, e sim a ação do sol sobre o homem, com efeito, afecção é uma ação que um corpo produz sobre outro. Para ele, afecção é uma mistura de corpos e assim ele conclui: “Toda mistura de corpos será chamada afecção” (Ibid., op. cit.). Nesse sentido, o indivíduo, por ser composto de corpos compostos, não é senão uma mistura de corpos, isto é, uma afecção, aliás, a natureza inteira é uma afecção, pois ela é um grande indivíduo formado a partir da mistura de muitos corpos. Por ser composto, o indivíduo sofre afecção tanto dos corpos exteriores quanto dos corpos que o compõem. Em Spinoza, podemos

14 “Por otra parte, también se dijo que los afectos – acciones y pasiones – denotan un acrecentamiento o disminución de la potencia de obrar, esto es, una alteración dinámica de la vitalidad, por lo que ellos van configurando el grado de potencia individual o conato” (Ibid., p. 126).

asseverar que ser é perceber, pois tudo o que existe está em relação com o mundo, o percebe e é, de certa forma, por ele percebido. Todos os corpos, por mais simples e menores que sejam, percebem o mundo, e, por isso, Spinoza afirma que todas as coisas têm corpo e alma.

Entre o eu e o outro: a composição dinâmica do sujeito-objeto.

O termo sujeito quando empregado por Spinoza em sua obra maior, segundo Lia Levy (1998), nos revela dois sentidos: 1) por ser sujeito de atribuição de certas modificações e 2) por ser algo que permanece idêntico ao longo das afecções. Quando falamos em composição dinâmica do sujeito-objeto como resultado do jogo das afecções, é com o intuito de expressar da maneira mais clara possível que, para Spinoza, não é possível estabelecer exatamente uma relação entre o sujeito e o objeto, visto que compreendendo as afecções enquanto mistura, como escreve Chauí, não se pode estabelecer ao certo o que é o sujeito e o que é o objeto em meio a essa mistura. Spinoza nos escreve que, quando entramos no jogo das afecções, percebemos mais do nosso próprio corpo do que do corpo do objeto, entretanto, o que há entre os dois, no momento do encontro, é uma mistura de tal maneira que não se define mais o que é o eu sem o outro ou que seria o outro sem o eu. Uma composição dinâmica e não estática. Mesmo porque não se pode conhecer o próprio corpo (eu/sujeito) sem estar no jogo das afecções que são as relações com os corpos exteriores (outro/objeto). Levy confirma: “Ora, não se pode conhecer o corpo, sem conhecer, em alguma medida, os outros corpos com os quais ele interage” (Ibid., p. 403). Entretanto, quando faz referência ao termo sujeito, ele nos faz entender que ser sujeito é conseguir manter sua forma e seu conatus apesar das afecções sofridas.15 Concluímos que dentro do jogo não há nenhuma distinção para nós sobre quem é o sujeito ou o objeto das afecções. Levy escreve: “Nossa percepção sensível dos corpos exteriores é, na realidade, a percepção de uma afecção do nosso próprio corpo” (Ibid., p. 386). Um processo no qual o eu é tão fluido e maleável quanto o outro, uma dança, ou melhor, um jogo de afecções, é a vida, como nos dizia Deleuze: “o acaso dos encontros” . E nenhum ente pode se esquivar desse jogo, de mudar ou ser mudado incessantemente enquanto existe.

15 Levy vai além ao afirmar que o sujeito seria aquele que além de ter conatus, teria alma e logo consciência de si, essa afirmação implica uma discussão bem mais complexa e não a desenvolveremos no presente texto, pois Deleuze afirma que para Spinoza todo corpo tem alma, logo também podemos nos perguntar se ter corpo implica ter consciência de si?

Após concluir esse esboço, passaremos a analisar, de maneira prévia, o que pretendia Hegel, o mais célebre entre os idealistas alemães, o qual supostamente teria solucionado a relação dicotômica entre sujeito e objeto. Segundo Hegel escreve, no parágrafo 194 da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, o conhecimento trata-se em geral de retirar ao mundo objetivo, aquilo que para nós é outro, a sua estranheza e de nos encontrarmos nele. Nesse sentido, Hegel e Spinoza parecem falar o mesmo idioma, porém há uma sutil confusão entre as línguas, porque para Hegel o objeto se mostra ao sujeito tal qual ele é, implicando, com isso, o fim da coisa em si. A dialética hegeliana consiste em dizer que a objetividade não é pensar algo independente da subjetividade, visto que o objeto só pode ser pensado pelo sujeito. Para Spinoza, uma vez que o sujeito só pode existir e pensar por meio do objeto e em relação com objeto. Segundo reafirma Levy: A afirmação da existência do corpo próprio depende do conhecimento dos outros corpos finitos, simplesmente porque os modos finitos não existem senão em relação com outros modos finitos. Nesse sentido sua existência atual é implicada necessariamente pelo conhecimento dos outros corpos (Ibid., p. 403). Poderíamos dizer que, para Spinoza, objeto e sujeito não se separam. E assim, reescrevermos da seguinte forma: sujeito-objeto, que implica dizer que é uma relação constante, necessariamente mútua, exemplificada com estes símbolos: sujeito <=> objeto. Contudo, Spinoza diria a Hegel que não basta resolver o problema propondo uma unidade ou síntese entre duas coisas diferentes (sujeito) + (objeto), e sim uma mistura, na qual não é possível distinguir o sujeito sem o objeto nem o objeto sem o sujeito, portanto, um novo ente, novos entes, uma nova afecção, um novo modo entres os infinitos modos da substância. Esse é o processo contínuo de afecção, a dança do universo, o jogo em que estamos irremediavelmente inseridos.

Conclusão

Segundo Luft (Ibid.), nenhum filósofo do chamado Idealismo Alemão (de Kant à Hegel) foi capaz de ultrapassar a dicotomia entre sujeito e objeto. Suas palavras para descrever o fracasso do Idealismo Alemão diante dessa questão e a condição da filosofia atual são: Mendigando de suas dicotomias e afundando no mesmo ponto de vista de diferença, ou seja, na primazia da subjetividade. A transição do paradigma da para o paradigma da linguagem é apenas um novo movimento no interior da própria Modernidade. É verdade que a

subjetividade que ora emerge na vida filosófica da academia é uma subjetividade amputada, ferida em suas pretensões de realizar o saber incondicionado, mas ainda assim uma mera subjetividade. Ainda somos reféns das figurações idealistas, sendo a transição da teoria da consciência para a filosofia da linguagem apenas o ruflar das asas mesmas da mesma mosca, na mesma garrafa (Ibid., p. 185). A teoria de Luft (Ibid.) é que, após o surgimento da nova física, para debater de maneira coerente as questões acerca da liberdade e da natureza ou do sujeito e do objeto, a filosofia se viu obrigada a tomar uma das três posições seguintes: a) modificar o conceito natureza (juntamente com Descartes e Kant), b) modificar o conceito de liberdade (Spinoza) e a terceira opção, c) modificar os dois conceitos (Hegel). Porém, discordando de Luft, considero e demonstro que Spinoza também estaria na terceira posição, pois ele é o único que ultrapassa a oposição entre sujeito e objeto e mina qualquer dicotomia, ao estabelecer que o jogo das afecções é na verdade a produção de uma composição dinâmica, não mais entre dois entes, e sim resultando em um ente só, sujeito-objeto. Concluindo, ao final, que a posição supostamente inovadora de Hegel para esta questão não é outra coisa senão uma reformulação, em outros termos, daquilo que já estava registrado na Ética de Spinoza. Além de que Spinoza, ao contrário dos idealistas alemães, encontrou um esquema conceitual capaz de explicar as dimensões da realidade sem priorizar a subjetividade, pois apesar do corpo-sujeito perceber mais de si mesmo no outro-objeto do que a natureza do próprio outro, ele jamais poderia conhecer a si mesmo se não fosse através do conhecimento do outro. Logo, tanto o sujeito quanto o objeto fazem parte do processo de conhecimento de maneira igualmente relevante.

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LUDWIG FEUERBACH

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