Apontamentos sobre a história do Belenzinho 26/10/10 Daisy Perelmutter Os belenenses costumam destacar com arroubo e até com certo ufanismo que há um distintivo muito singular que particulariza a vivência no Belenzinho, a despeito das enormes transformações e mutilações sofridas pelo bairro ao longo de sua história centenária, e que permanece como seu distintivo: a sensação de estar em família. O fato de ter sido vivido e reconhecido como um espaço familiar, no qual a confiança, a tutela e os vínculos sanguíneos se sobrepuseram às relações impessoais não significa, contudo, que sua história tenha sido construída sem rusgas e fraturas, em outras palavras, isenta de lutas, contradições e conflitos. Como toda “saga familiar” que se autodenomine como tal, a história do bairro do Belenzinho revela e desperta em seu amplo repertório de fatos e acontecimentos os sentimentos humanos mais díspares: paixão, ódio, vingança, ousadia, doçura, abjeção, autonomia, opressão, fúria, ternura. Sendo assim, a fraternidade dos laços entre os moradores, até hoje celebrada, é um aspecto que fala bastante, sem dúvida, a respeito da identidade regional do Belenzinho, mas, não é sua única marca. Muitas outras experiências esmaecidas pelo tempo ou pulverizadas no espaço maior da grande cidade que São Paulo foram também significativas para a construção da identidade do bairro e merecem, portanto, reivindicar seu espaço na história: a ardente militância sindical dos trabalhadores têxteis nas primeiras décadas do séc.XX; a paixão pelo futebol de várzea e a proliferação de diversos clubes amadores durante quase cinqüenta anos (1910-1960); o arrojo nas propostas educacionais de cunho anarquista com a criação da Escola Moderna n.1 (1912-1919), inspirada na pedagogia libertária do espanhol Francisco Ferrer y Guardia; a intensa vida pública nos eventos religiosos, recreativos e culturais (missas, quermesses, festas, bailes, procissões, footing, grupos amadores de teatro, cinema) no circuito Rangel Pestana - Celso Garcia; os ideais progressistas expressos na construção da Vila Operária Maria Zélia (1917), instaurando uma inédita relação, para a época, entre empregador e operário (a experiência antecede à consolidação das leis trabalhistas criadas na era getulista), entre tantos outros fatos e vivências que não poderão constar deste panorama referendado a partir de certas escolhas. Todavia, se é possível identificar traços originários que permaneceram e atualizaram-se ao longo da história, há outros que caducaram e se tornaram obsoletos em um curto espaço de tempo, como por exemplo, o bucolismo associado
ao bairro do Belenzinho. Ao ganhar autonomia em relação ao bairro do Brás, em 26 de junho de 1899, em decreto promulgado pelo então Presidente do Estado São Paulo Fernando Prestes de Albuquerque, o local era considerado apanágio das famílias paulistanas abastadas, que gozavam em suas enormes chácaras de uso nos finais de semana das benesses da altitude privilegiada e vegetação frondosa que caracterizavam a região. Os limites territoriais estipulados inicialmente envolviam desde a Rua Bresser até quase a Ladeira da Penha, abrangendo também a área do Tietê, Alto da Mooca e Tamanduateí. Algumas das ruas hoje importantes ainda não existiam e muitas outras tinham, originariamente, outros nomes, como a Alvaro Ramos, conhecida como “Rua do Pedregulho”, em razão de um buraco ali existente de onde se tiravam areia e pedregulho. Se o esforço ao reconstruir a história de uma determinada experiência social é tentar identificar descontinuidades e, ao mesmo tempo, permanências, o mais fiel retrato do bairro do Belenzinho, que se manteve ao longo de quase nove décadas (1900-1990), sem intermitência, foi dado, sem dúvida, pelo universo fabril e pela experiência cotidiana do proletariado industrial. As primeiras indústrias a se instalar foram às vidrarias, pomposamente conhecidas como “cristalerias”, seguidas pelas indústrias têxteis, com as quais a paisagem do Belenzinho ficou indelevelmente identificada. A mão-de-obra estrangeira foi de fundamental importância para a produção fabril e muitos imigrantes que aportaram na região – italianos, portugueses, espanhóis e também ioguslavos – foram recrutados para trabalhar nos extenuantes e difíceis ofícios (vidreiros e tecelões), transmitindo para os trabalhadores nacionais seus conhecimentos e habilidades. Dentre as vidrarias, a mais antiga foi a Germânia, do alemão Guilherme Klimburger, seguida por muitas outras que surgiram logo na esteira: Cristaleria Barone, Cristaleria Progresso, Cristaleria Scarone, Cristaleria Venturelli, Cristaleria Itália, Cristaleria Lusitana, Cristaleria Portugal, a Nadir Figueiredo. No caso das indústrias têxteis, instalaram-se no bairro a Companhia Nacional Tecidos de Juta, o Cotonifício Paulista, a Moinho Santista, a tecelagem do complexo Matarazzo, o Cotonifício Guilherme Jorge, a Gasparian, a Varan, a Felippo. Todas elas absorviam enorme contingente de operários. Já em 1907, todas estas indústrias movimentavam a economia local e a Cia Nacional Tecidos de Juta empregava em torno de 1.500 operários.
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Família Fernandez Monteiro; 1917; autor não identificado; doação Sylvio Armando Pires
As duríssimas condições de trabalho, as longas jornadas diárias (11 horas em média), a semana de sete dias consecutivos, o ambiente lúgubre e insalubre das fábricas e o emprego maciço de mulheres e crianças (muitas vezes, menores de dez anos) sintetizavam a realidade amarga do operariado nos primórdios da industrialização no país. A primeira organização de classe que surgiu no Belenzinho foi à dos barqueiros italianos, que transportavam tijolos – Societá dei Transportatori di Mattoni -, em 1906. Em 1908, foi fundado o Sindicato dos Tecelões, bastante forte, contando com grande número de associados desde os seus primórdios, devido à disseminação dos estabelecimentos fabris por toda a cidade. Segundo o Boletim do Departamento Estadual do Trabalho (Ano I, N.1 e 2, SP, IV Trimestre de 1911), em 1911, dos 10.204 trabalhadores empregados nas indústrias têxteis, 6.024 (59,23%) eram italianos, 824 (8,07%) eram portugueses e 338 (3,31%) eram espanhóis. É notória a presença estrangeira na composição da classe operária em São Paulo, mas, é importante ressaltar que os imigrantes estiveram presentes também em outros setores da economia paulistana, como no comércio e bancos, tanto na condição de empregados como na de empregadores. Algumas melhorias urbanas na cidade de São Paulo já vinham acontecendo desde os anos 70 do séc.XIX – iluminação pública a gás em substituição aos antigos lampiões de querosene (1872), instalação de serviço municipal de águas e esgotos (Cia Cantareira, 1877), novo matadouro e novo mercado central (1887 e 1890), serviço de bondes com tração animal (1872), primeiros sistemas de loteamento, arruamento e construções (código de 1886), sistema ferroviário (desde 1867),
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calçamento de paralelepípedo de granito (1873). De todo modo, foi na virada do XIX para o XX com o fim do regime escravista e a proclamação da República, que a mudança se fez de forma radical: da pacata e provinciana vila à frenética e pulsante megalópole. A presença do proletariado industrial, como força de trabalho e força social/ política, ganhou plena visibilidade na sociedade paulistana, ainda que driblasse todo o esforço de segregação geográfica e sócio-cultural ao qual foi impingido. Havia uma nítida distinção dos bairros operários em relação aos burgueses, lembrando que, no primeiro caso, trabalho e moradia imbricavam-se: a presença da estrada de ferro determinava a instalação das fábricas e estas, por sua vez, atraíam os operários. O território proletário, em geral, possuía condições topográficas das mais precárias: localizava-se nas várzeas dos rios, em terrenos irregulares, baixos e úmidos e suas ruas não eram calçadas e nem tinham um traçado regular. As grandes melhorias urbanas com as quais a cidade foi agraciada e que simbolizavam o ideário da modernização, a moeda corrente da época – calçamento de ruas, implantação de sistemas de água e esgoto, serviço de bonde elétrico –, foram gozadas, previsivelmente, apenas por uma pequena parcela da população. A burguesia agrária- financeira e a elite político-administrativa eram os cidadãos de primeira classe e no perímetro urbano diminuto no qual circulavam - Campos Elíseos, Higienópolis, Paulista e Centro - as mazelas, intempéries e adversidades da soturna São Paulo passavam à margem. No entanto, a circunscrição territorial imposta à classe trabalhadora não impediu que ela se esvanecesse e se recolhesse à sua “insignificância”. Pelo contrário. Diferentemente dos bairros nobres da cidade, nos quais o convívio social se dava nos interiores dos lares burgueses, possibilitando tímidas trocas e misturas sociais, nos bairros operários, onde o espaço doméstico era exíguo e contíguo, a ocupação da rua era imprescindível para a consolidação das redes sociais. Este diligente esforço de visibilidade também aconteceu nas situações de exceção (passeatas e manifestações) e nos momentos de lazer (pic-nics, saídas campestres e peças de teatro de cunho social), quando o operariado elidia as fronteiras invisíveis que separavam os lugares autorizados dos interditos, fazendo então uso da cidade indiscriminadamente. É indiscutível que o preconceito e o xenofobismo das elites – econômicas e políticas – se acirraram com esta onipresença ruidosa da classe trabalhadora. O sentimento repulsivo que as elites tinham em relação a esta emergente classe operária fica evidente neste pequeno trecho extraído do Jornal “O Estado de São Paulo” (O ESTADO DE SÃO PAULO, 30/04/1913, p.6-7), em sua seção de cartas: “Escreve-nos um leitor desta folha reclamando contra um facto que é observado quase diariamente nos bondes da linha da Lapa, o qual exige uma urgente providência por parte da ‘Light’. Várias pessoas de segunda classe, na maior parte operários, costumam embarcar nos bondes da dita linha conversando, ao correr da viagem, em uma linguagem bastante baixa, sem ao menos respeitarem as famílias
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que se acham no carro. Ora, os conductores que estavam no caso de corrigir estes insolentes, não querem dar a esse trabalho, de modo que as famílias são obrigadas a supportar todos os desmandos de linguagem e de maneiras dos referidos operários” (Apud Hakim de Paula, Amir el “Os Operários pedem Passagem! – A Geografia do Operário na Cidade de São Paulo(1900-1917)”, Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2005) . A luta para assegurar a existência material, a dignidade moral e o direito à voz e presença no tecido social, este, bastante encolhido naqueles primeiros anos da República, acabaram promovendo nos trabalhadores das indústrias uma intensa e sólida solidariedade de classe. O fato dos operários terem suas moradias vizinhas às fábricas contribuiu de forma decisiva para o fortalecimento e sucesso de sua árida luta em prol de melhores condições de trabalho e moradia. Várias batalhas importantes foram travadas nos primeiros anos da República (já nas primeiras greves do operariado, em 1906 e 1907, os trabalhadores faziam reivindicações bastante avançadas), mas o ápice desta organização se deu durante a greve geral de julho de 1917, quando a cidade de São Paulo foi literalmente tomada de assalto pelas massas trabalhadoras. A formação de piquetes nas portas das fábricas e a utilização dos espaços de moradia como esconderijos seguros (a sinuosidade dos cortiços facilitavam a empreitada) contra a ofensiva policial constante garantiram a formação deste enclave de liberdade. As ligas operárias dos bairros, de orientação anarco-sindicalista, foram constituídas neste momento e o seu êxito como organização deveu-se, segundo o historiador Boris Fausto (1986, p.203-204), ao fato de terem conseguido canalizar diferentes modalidades de reivindicação: relativas á produção, mas também às questões mais gerais da carestia de vida, habitação, saneamento. A Liga Operária da Mooca surgiu em meados de maio, a partir da greve dos tecelões das indústrias de Rodolpho Crespi. A Liga Operária do Belenzinho é constituída também em maio e sua sede é inaugurada em meados de junho. Na sequência, formaram-se as Ligas da Lapa, Água Branca e Cambucy. Todas elas buscavam animar as massas operárias, através de comícios e outros eventos coletivos, de modo a fortalecer suas classes ainda desorganizadas e distender seu elenco de reivindicações. Os militantes das Ligas da Mooca e Belenzinho tomaram a iniciativa de criar a Comissão Operária de Propaganda, visando à unificação e homogeneização da plataforma de ação. Em 29 de junho de 1917, a Liga Operária do Belenzinho, em solidariedade ao movimento grevista dos operários do Cotonifício Crespi (a bandeira de luta pela qual militavam era a suspensão do trabalho noturno, suspensão das multas e a melhoria dos salários) promove um grande comício e os grevistas – uma multidão de homens, mulheres e crianças - realizam uma grande passeata pelo centro da cidade, incluindo também excursões pelas redações dos principais jornais. Desencadeia-se, a partir
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daí, um espiral de passeatas e manifestações, estendendo-se, inclusive, às cidades vizinhas - Itaquera, Ribeirão Pires e Cotia. Mas, o estopim para a paralisação total das atividades nas indústrias em 1917 e suspensão absoluta da ordem burguesa na cidade de São Paulo (muitas “transgressões” ocorridas naqueles dias de exceção inverteram as hierarquias e a legitimidade outorgada às autoridades) foi o falecimento trágico do anarquista espanhol, sapateiro por ofício, Antonio Martinez, provocado pelas forças policiais, no dia anterior, em confronto ocorrido em frente à Fiação e Tecelagem Mariângela. O número de grevistas acabou duplicando entre os dias 12 e 15 de julho, de 25.000 para 50.000 pessoas. É importante destacar que alguns dos maiores núcleos grevistas foram formados, justamente, na Fábrica de Tecidos Mariângela (2.500 operários) e na Fábrica de Tecidos de Juta (2.000), ambas sediadas no bairro e mediações. Rapidamente, a cidade ficou inteiramente paralisada e, mesmo que por um curto período, graças à sublevação do operariado, o rígido controle sobre o espaço urbano exercido pelas elites foi suspenso. No momento em que o movimento da greve se generalizou, a polícia, bastante conhecida por suas práticas repressivas e draconianas, intensificou a sua ação, apreendeu vários cidadãos e fechou todas as ligas e associações operárias. Depois de um árduo processo de negociação, o Comitê de Defesa Proletária, mediado por um Comitê de Jornalistas constituído por representantes de jornais diários de São Paulo, conseguiu estabelecer um pacto de compromisso com os industriais e com o governo, resultando em importantes melhorias e conquistas, tais como: 20% de aumento salarial, nenhuma dispensa de grevistas, melhoria das condições morais/materiais e econômicas do operariado, direito de reunião, cumprimento das leis de proteção ao trabalho dos menores e das mulheres e a tomada de medidas para controlar os preços dos gêneros alimentícios. Esta foi, sem dúvida, a maior greve que São Paulo já conheceu e embora se atribua à militância anarquista a responsabilidade pelo seu sucesso, em vista do grande número de anarquistas que tiveram lugar de destaque nos acontecimentos, muitas das reivindicações em pauta chegavam a contradizer os princípios balizadores de sua militância – oposição às greves deflagradas por melhorias econômicas e recusa de solicitar ação do Estado. Segundo testemunho de Edgar Leuenroth, proferido cinqüenta anos após as manifestações: “A greve geral de 1917 foi um movimento espontâneo do proletariado sem a interferência direta ou indireta de quem quer que seja. Foi uma manifestação explosiva, conseqüente de um longo período de vida tormentosa que então levava a classe trabalhadora” (Apud Hall, Michael “O Movimento Operário na Cidade de São Paulo: 1890-1954” IN Porta, Paula (org.) História da Cidade de São Paulo - A Cidade na Primeira Metade do Século XX, São Paulo, Paz e Terra, 2004). O espírito militante que marcou tão fortemente a classe operária paulistana, e faz parte da essência vital do Belenzinho, pode ser aferido também nas várias lutas
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travadas em prol da melhoria das condições de moradia. Nos bairros operários paulistanos, na primeira metade do séc.XX, o tipo de habitação que prevaleceu foram os cortiços e não as “casas de periferia” e favelas, que surgiram como decorrência do processo de metropolização - periferização da cidade ocorrido a partir da década de 50. Segundo estimativas, a terça parte das habitações em São Paulo era composta por cortiços sediados também contíguos às áreas nobres da cidade. A repulsa por esta moradia tida como lasciva e permissiva levou às elites se debruçar sobre programas/propostas que viabilizassem sua erradicação total do espaço metropolitano. O desejo de substituir os cortiços por uma habitação unifamiliar esbarrava nos preços exorbitantes da terra e dos alugueis nas áreas já ocupadas, bem como no empecilho de distanciar o operário da fábrica, lembrando que o transporte coletivo da época – bonde - circulava apenas no perímetro urbano central. Nesta cruzada moral empreendida pelo poder público, empresários e filantropos, todos eles obcecados com a idéia de higienização e moralização das habitações populares, era ignorado o aspecto mais trivial desta realidade: a existência dos cortiços não era uma opção cultural e ideológica, mas a única alternativa possível diante do oceano de precariedades que acossava o operariado. Se, por um lado, as condições de higiene e saneamento eram, sem dúvida, motivo de justa preocupação – a água captada do Rio Tietê fornecida aos distritos do Brás, Bom Retiro, Mooca e Belenzinho era inconvenientemente tratada e em contato direto com o sistema de coleta de esgoto - criando as condições para a proliferação de focos epidêmicos, o cortiço como espaço de sociabilidade produzia uma inédita coexistência de grupos sociais distintos, misturando em seus corredores e pátios pais e filhos (as), imigrantes recém-chegados, negros e mulatos que trabalhavam nas funções mais desprestigiadas da produção industrial e comércio, operários qualificados, prostitutas e muitos outros grupos considerados páreas sociais. Não obstante os conflitos gerados pelas intransponíveis diferenças em espaços sem privacidade, os cortiços permitiram o estabelecimento de laços de sociabilidade e solidariedade entre vizinhos que, de algum modo, se incrustou na paisagem destes bairros, persistindo como um de seus traços diferenciais. A solidariedade cultuada não poupou o Belenzinho de duros enfrentamentos, como no caso da Gripe Espanhola, em 1918. Embora o bairro já convivesse com diferentes epidemias e doenças - encefalite, febre tiróide, disenteria amébica e tuberculose - desde o início da República Velha, a pandemia de 1918 trouxe à tona o que a greve de 1917 havia trazido como plataforma de reivindicação: não apenas aumento de salários, mas melhorias nas questões de habitação, transporte e alimentação. Números precisos sobre a morbidade paulistana durante a pandemia não se sabe ao certo. Há várias justificativas para a imprecisão estatística: muitos médicos não informaram ao Serviço Sanitário sobre pacientes que estavam sob seus cuidados, muitas vítimas não tiveram acesso aos serviços de socorros e tratamento
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médico, a repartição de estatística estava deficitária em termos de pessoal. Fala-se em 116.777 casos de infecção gripal, o que representava em termos percentuais aproximadamente 22,32% de toda a população paulistana. O sentimento geral era de que não havia família que pudesse escapar à gripe e que ela era “democrática” ao dizimar pobres e ricos. Interpretada na época como uma espécie de fatalidade individual, poucas foram às vozes dissonantes desta premissa. Houve um cronista do jornal O Combate que ousou replicar este discurso oficial, apontando que a gripe era muito mais letal nos distritos do Brás, Mooca e Belenzinho. A denúncia foi rapidamente esvaziada e a contra-resposta tergiversou a acusação afirmando que o maior número de óbitos devia-se única e exclusivamente à maior concentração demográfica nestes bairros. Esta celeuma não foi levada adiante na época, mas sabe-se hoje que “as marcantes diferenças das condições materiais de vida próprias a cada grupo social determinaram desiguais oportunidades de viver e morrer na Paulicéia assaltada pela peste” (Bertolli Filho, Claudio, Gripe Espanhola em São Paulo, 1918, São Paulo, Editora Paz e Terra, 2003). A partir de dados que constavam dos Livros dos Cemitérios foi possível identificar os distritos nos quais residiam as vítimas e de 15 de outubro a 19 de dezembro foram registrados 557 óbitos gripais no Belenzinho, que contava na época com uma população de 41.698 pessoas. Terceiro bairro mais afetado pela pandemia na cidade, só foi superado pela Mooca, em primeiro lugar (860 óbitos para 62.993 habitantes) e pelo Brás, em segundo (674 óbitos 61.057). É interessante observar que durante o período da pandemia, quando o Estado teve que admitir publicamente sua incapacidade em combatê-la, clamando então o esforço conjunto da sociedade na hercúlea empreitada de erradicar o “mal” que grassava a cidade, algumas empresas decidiram participar de forma enérgica no combate à doença. A Companhia Antarctica, os jornais O Estado de São Paulo e A Capital e as fábricas sediadas no Belenzinho – Companhia Nacional de Juta e Cristaleria Itália – montaram farmácias e postos de socorros para atender inicialmente seus empregados, que acabaram sendo extensivos a qualquer pessoa que a eles recorresse. Aqui, mais uma vez, voltamos à tecla reincidente que tem pontilhado esta trajetória histórica do Belenzinho, que é a idéia de solidariedade como um de seus distintivos identitários. O arrebatamento provocado pela disseminação da Gripe Espanhola neste período fez com que a cidade de São Paulo assumisse feições profundamente macabras. Segundo o testemunho de Paulo Duarte, em Os Mortos de Seabrook, vol 4 de seu livro de memórias (Apud Claudio Bertolli Filho, p.216): “A Avenida Paulista, onde fui tomar o bonde, quase deserta... Em toda a rua da Consolação, e isso era geral em toda a cidade, muita pouca gente de pé, alguns automóveis, principalmente de médicos e os caminhões carregando cadáveres para os cemitérios. Esta paisagem
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tornou-se rotina. Já não se prestava atenção naqueles montes de caixões de defunto, todos iguais, uns sobre os outros nos caminhões”. Obviamente, a população dos distritos proletários – Brás, Mooca, Belenzinho, Santana e Bela Vista - foi a mais afetada pelo cenário acerbo provocado pela epidemia. A questão da interrupção dos serviços públicos, os quais mal tinham acesso, não era a fonte de suas maiores preocupações, mas sim à escassez dos gêneros de primeira necessidade, o desrespeito geral dos comerciantes para com a tabela de preços estabelecida pelo Comissariado da Alimentação e pelo Serviço Sanitário em relação aos preços dos medicamentos. A sensação de negligência por parte do Estado vivenciada pela população destas regiões (não só da Várzea do Carmo, mas de toda a vasta extensão da Zona Leste) no atendimento pleno das questões básicas de saúde fez com que buscasse os aportes da sabedoria e poderes curativos dos “preto véios”, “curandeiros” e “ervanários”, como uma espécie de bálsamo para o seu sofrimento. Os empréstimos e trocas culturais, que estão na gênese do desenvolvimento da cidade e que darão o arcabouço para o que ela virá a consolidar mais à frente, acabaram promovendo, como todos nós somos testemunhas, um amálgama ímpar e complexo entre pessoas de nacionalidade, situação sócio-econômica e tradições distintas. E, retornando ao ano de 1918, quando se imaginava que o quadro de vítimas da Gripe Espanhola iria continuar crescendo de forma exponencial, houve, inexplicavelmente, um recuo progressivo da epidemia, e, ao final de novembro, São Paulo começou a alumbrar-se novamente ao vislumbrar o fim do flagelo. Este frêmito provocado pelo declínio da epidemia coincidiu também com a notícia do término da Primeira Guerra Mundial e, a partir daí, uma nova sensibilidade foi sendo forjada. Em 1 de dezembro a cidade pôde, enfim, retomar o seu ritmo, reabrindo seus cinemas, bares, teatros e cassinos, fechados pelo temor de um contágio sem freios. As agruras enfrentadas pelas classes operárias em seu cotidiano não abateram as massas a ponto de abdicarem de maneira estóica do seu direito à felicidade e ao bem estar, nos seus momentos de ócio e lazer. Pelo contrário, a importância atribuída às atividades lúdicas - cinema, os grupos de teatro amador, o futebol de várzea, os pic-nics, o Carnaval de rua, as quermesses durante as festas juninas, o footing nas ruas principais de acesso, as conversas com a vizinhança nos portões – estas, por sinal, foram tão determinantes para a formação da cultura operária quanto à natureza do trabalho realizado e as múltiplas organizações sociais criadas. O futebol de várzea no Belenzinho, por exemplo, desponta como uma atividade importante já nos primeiros anos de constituição do bairro, mantendo incólume esta prevalência até 1970, quando é construída a Radial Leste e o bairro é
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cirurgicamente repartido em dois e vários campos desaparecem. Como afirma o Sr. Edmundo Picasso Prado, antigo morador do bairro e filho de um ex-presidente do Sindicato dos Mestres e Contramestres: “O povo se reunia muito pelo futebol. O futebol acabou, mas nós temos aquela raiz de conhecimento” (Depoimento concedido à Daisy Perelmutter para a pesquisa sobre a História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, em 24/08/10). Esta longeva afinidade começa há mais de um século, em 1902, quando nasce o primeiro time do bairro, o “Estrela de Ouro Futebol Clube”, que se tornaria duas vezes campeão municipal (1920 e 1929) em torneios dos melhores clubes não oficiais. O campo ficava além da Av. Alvaro Ramos, em uma área que precisava ser desbastada com foice e enxada em razão do matagal ali concentrado, onde também acampavam ciganos que amestravam animais. Posteriormente, surgiu o “Clementino” formado basicamente por tecelões que moravam na rua homônima. Apresentava-se como o grande rival do “Estrela de Ouro”, embora este levasse quase sempre vantagem sobre o seu concorrente. Vários outros times foram formados no bairro, além destes dois inicialmente citados: o “União Belém”, o “ Flor do Belém”, o “Turunas Tietê”, o “Juta Belém” (Vila Maria Zélia) , o “União Operário” (formado, basicamente, por moradores da rua Cachoeira, na sua maioria, carroceiros, oleiros, barqueiros), o “XX de Setembro” (constituído pelos toscanos, fundamentalmente), “Portugal Marinhense” (vidreiros portugueses). (Penteado, Jacó, Belenzinho, 1910, São Paulo, Carrenho Editorial/Narrativa-Um, 2003, p.200-204). Este lugar de destaque que o futebol de várzea exerceu na vida cotidiana da população masculina do bairro e que hoje permanece vivo nas memórias dos belenenses tradicionais pode ser aferido, com todas as tintas, no testemunho do Sr. Manoel Pitta, presidente da Sociedade Amigos do Belém, em depoimento concedido a Murilo Leal Pereira Neto, em 08/03/03 (“A reinvenção do trabalhismo no ‘vulcão do inferno’”, Tese de Doutorado, FFLCH/USP, São Paulo, 2006, transcrição integral disponível no acervo do Centro de Memória Sindical): “O que tinha muito no Belém antigamente eram campos de futebol, vou explicar porque, porque tinha muitas chácaras aqui no Belém e essas chácaras com o tempo se tornaram campos de futebol. E aqui no Belém nós tivemos muitos jogadores de futebol que se tornaram famosos, como, por exemplo, o Tunga que jogou no Palmeiras, o Carboni que jogou no Corinthians, o Fiorotti que jogou no São Paulo, o Carioca que jogou no São Paulo, o Canhoto que jogou no Palmeiras. Então aqui era assim, os campos de futebol aos domingos, existiam os jogos famosos e tinha o “Flor do Belém”, o “Turunas”, o “Vaspi”, diversos clubes que jogavam aos domingos e como a gente não tinha televisão, aquele tempo, não tinha jogo transmitido, nós íamos assistir os jogos aqui no bairro, e lotava os campos de várzea, era o divertimento dos domingos de manhã ou de tarde, nós, homens, íamos assistir os jogos de futebol aqui no Belém. Tinha uns 10,12, 15 campos de várzea naquele
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tempo. Então, o divertimento era assistir os jogos de várzea, era o divertimento
naquele tempo no bairro do Belenzinho.” Time de futebol do bairro; 1957; autor não identificado; doação Sylvio Armando Pires
Mas não era só de futebol que as massas alimentavam o seu espírito e esquentavam seus corações. Enquanto o jogo com a bola (praticando ou como expectador) circunscrevia-se à classe operária de sexo masculino, o cinema, ao contrário, arrebatava paixões de ambos os sexos, diferentes faixas etárias e classes sociais. Assim como no caso do futebol, que não demorou muito para arrebanhar seus “fiéis”, o cinema, rapidamente, conquistou seu público cativo e prevalência nos momentos de ócio do paulistano. Várias salas foram inauguradas na cidade entre as décadas de 10 e 20 do séc.XX, com arquitetura e decoração próprias. Mais do que uma mera diversão, o Cinema (com c maiúsculo sim), em São Paulo, teve naquele momento uma função simbólica importante. Funcionou como uma espécie de ícone de progresso e civilidade, ideal perseguido pela cidade como forma de elidir, de vez, todas as expressões que faziam alusão ao seu provincianismo secular. O esforço de forjar uma nova sensibilidade, com hábitos mais europeus, favoreceu o florescimento das salas de distribuição e o sucesso de sua recepção. As intervenções urbanísticas realizadas na administração Antonio Prado (1889-1910), recortando os espaços abertos nos quais os eventos populares costumavam tomar posse (circos, exposição de animais adestrados, jogos de azar, boliches, bailes, etc), contribuíram para o aumento de espaços fechados de lazer e diversão – cafés, salões, cinemas. O Belenzinho, já em 1911, ostenta sua primeira grande sala: o Cinema Belem, na Rua Celso Garcia n.228. A proliferação de cinematógrafos no circuito Rangel Pestana- Celso Garcia, entre as décadas de 30 e 50, desencadeou uma mudança interessante na posição periférica/marginal até então atribuída a este bairro operário. A
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importância que este novo circuito assume não apenas para a população local, mas para a cidade como um todo, embaralha temporariamente as classificações das áreas urbanas tidas como cosmopolitas e provincianas. Entre as salas que tiveram enorme popularidade no Belenzinho, destacam-se: o Cine Catumbi (1948), uma das mais procuradas da região; o Cine Iris (1949), com 700 lugares e com uma média anual de 59.606 espectadores, na Rua Celso Garcia 1558; o Cine Roxy (1940), com 2.485 lugares e uma média anual de 533.582 espectadores, na Rua Celso Garcia 499; o Universo (1939), com 4.364 lugares e uma média anual de 606.895 espectadores, na Rua Celso Garcia 378 e o Cine São José (1958), com 2000 lugares e uma média anual de 90.433 espectadores, Largo São José do Belém 155 (Santoro, Paula Freire “A relação da sala de cinema com o espaço urbano em São Paulo – Do provinciano ao cosmopolita”, Dissertação de Mestrado, FAU-USP, 2004). Além dos grandes clássicos, como “Os Dez Mandamentos”, “Tarzan”, “Robin Hood”, “Flash Gordon”, “Rin – tin - tin” e outros blockbusters da época, as famílias freqüentavam em peso os cinemas da região nos finais de semana para assistir as grandes séries veiculadas em capítulos (antecessores das novelas televisivas) e simplesmente fazer uso das demais atividades oferecidas no espaço das salas de projeção. Como relembra o Sr. José Carvalho Júnior, morador do bairro há exatos 82 anos: “ ... eu já saía da escola e ajudava numa quitanda para ganhar dois mil réis, naquele tempo, para ir ao cinema no São José. Era Mickey Rooney e Shirley Temple. O que dava mais era Mickey Rooney e Shirley Temple. Essas séries aí e sempre que terminava, quando terminava a pessoa ficava sempre com a expectativa que ele sempre tava caindo do lugar e não caía....inclusive nas matinês de domingo também abarrotava, pagava mil e duzentos réis. Era tão grande que eles davam no domingo, começaram a dar depois, quem não queria assistir o filme, ficava dançando na frente. Mas foi um cinema muito bom o São José, pena que ele acabou” (depoimento concedido à Daisy Perelmutter para a pesquisa História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, 23/08/10). A paixão pelo cinema foi arrebatadora e até mesmo as igrejas locais – Igreja São Paulo e a Paróquia São José do Belém – fizeram uso deste recurso para chamar atenção de seus asseclas ou arregimentar novos fiéis. Se o cinema, de alguma maneira, trouxe aos bairros operários uma atmosfera cosmopolita, possibilitando que sua população premida por inúmeras privações pudesse “viajar para outros mundos”, o footing e as quermesses juninas, também extremamente populares nestas localidades, apontavam para o outro lado, ou seja, para a herança rural de grande parte dos migrantes nacionais e dos imigrantes que aportaram durante o boom da industrialização no país. Esta coexistência entre o moderno e o arcaico, às vezes pacífica, às vezes conflituosa, revelou-se em vários momentos na história do bairro e, ainda hoje, manifesta-se sob novas figuras e
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expressões. A imagem paroquial que o Belenzinho evoca em muitos de seus moradores antigos está presente em todos os testemunhos memorialísticos encontrados e fica patente nos depoimentos dos belenenses por nascimento ou por adoção, José Procino, Sylvio Armando Pires e Pedro Seman (concedido à Daisy Perelmutter para a pesquisa sobre a História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, 16/08/10,) moradores do bairro há mais de sessenta anos: “ (...) O Largo São José era belíssimo, com aquelas fontes de águas coloridas, com aquelas luzes coloridas e água subindo. Olha, quando tiraram aquilo lá foi uma perda irreparável. Que aquilo, a gente era criança, os pais levavam pra passear, você vê aquela fonte de água jorrando com aqueles holofotes coloridos! Não sei porque conseguiram acabar com aquilo, que era uma marca, como existe hoje em qualquer cidadinha do interior que você vai. Primeiro, onde se identifica a cidade? É pela praça que tem a igreja e o seu chafariz.Toda praça tem a sua igreja com seu chafariz” (Sylvio Armando) “(...) O mais festeiro aqui era o S. Luiz porque aqui nessa rua já tinha festa junina, quando não era asfaltada, não tinha esse trânsito. Nossa, o que tinha? Tinha dança de quadrilha da festa junina, pau de sebo. Sempre se fazia na rua corrida de saco.Teve até uma corrida de cachorros. O único que tinha motocicleta aqui era o Edson. Então puseram em uma gaiola um gato e todos que tinham cachorro ficaram bem aqui onde nós estamos conversando. Aí a moto saiu e os cachorros foram tudo atrás do gato. Inventaram assim uma corrida. Só que na hora do prêmio, que era um osso grandão saiu briga entre os cachorros (risos) Tinha muita festa!”. Esta cultura própria que o operariado construiu misturando elementos culturais pautados em valores por vezes antagônicos – religião, militância política, cosmopolitismo, provincianismo – ficava também patente na experiência que ganhou bastante popularidade durante os primeiros anos da República: os grupos
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amadores de teatro. Festividades juninas (campeonato de corrida de saco); 1957; autor não identificado; doação Sylvio Armando Pires
Espalhados por todos os bairros, eles eram em geral dirigidos por portugueses e italianos. No Belenzinho, como esperado, predominavam os ensaiadores e diletantes de origem italiana. Muitos destes grupos estavam articulados às grandes ideologias e projetos políticos e/ou foram formados em razão de alguma finalidade social, como, por exemplo, arrecadar fundos e prestar assistência aos doentes e desempregados. Outros tantos estavam comprometidos com a sua própria sobrevivência e aspiravam, apenas, à sua manutenção como coletivo artístico. No bairro do Brás concentravam-se os vários grupos de teatro do movimento anarquista. Apesar de darem assistência aos trabalhadores em situação de vulnerabilidade (desemprego, perseguições políticas, etc), o objetivo maior da agremiação através da prática e linguagem teatral era mobilizar a classe trabalhadora para que tomasse consciência de sua condição social e criasse aparatos para transformar a sociedade. O ideário anarquista, fomentado em grande parte pelos imigrantes italianos, espraiou-se por todos os bairros operários da cidade e teve no Belenzinho uma de suas maiores representações: a criação da Escola Moderna n. 1, em 1912, inspirada na educação libertária de autogestão do educador “racionalista” Franscisco Ferrer y Guardia, originário da região da Catalunha/Espanha. Ferrer sempre esteve muito próximo aos movimentos operário e anarquista, tendo travado contato com vários de seus expoentes, entre eles, Tolstoy e Kropotkin. Os anarquistas viam o “saber escolar” como uma espécie de patrimônio da humanidade e, portanto, não admitiam que este domínio pudesse ser monopolizado por grupos e classes dominantes. A perda da hegemonia sobre este campo representava, portanto, a possibilidade de uma ruptura social profunda. Preconizavam uma pedagogia livre da tutela estatal e da Igreja (principalmente a Católica), almejando uma instrução baseada nos conhecimentos científicos da época chamados de “racionalistas”. Com o apoio de alguns sindicatos e com maciça presença operária, a escola oferecia aulas diurnas e noturnas, cursos especiais aos sábados e aceitava crianças de ambos os sexos e também adultos. Realizava trabalhos fora da instituição escolar com o objetivo de aproximar as crianças da realidade circundante. Sediada na Av. Celso Garcia 262, manteve suas portas abertas por seis anos sem intermitência (1913-1919), período no qual tomou lugar as grandes manifestações operárias, como a luta contra a carestia de vida (1913) e a greve geral (1917). Previsivelmente, o caráter transgressivo da pedagogia racionalista gerou forte apreensão e temor pelas autoridades políticas da época e, em 1917, durante a Greve Geral, as Escolas Modernas foram obrigadas a suspender temporariamente suas atividades e, em 1919, foram obrigadas a fechar definitivamente suas portas.
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Arquivo João Penteado; 1900-1958; Centro de Memória da Educação/FEUSP
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Além das Escolas Modernas, a história do bairro ainda goza de mais um feito absolutamente único e que pode conferir ao Belenzinho à pecha de um espaço vanguardista: a construção de uma das primeiras vilas operárias na cidade, a Vila Maria Zélia, iniciativa do industrial Jorge Street, então proprietário da Companhia Nacional de Tecidos de Juta. Com a finalidade de oferecer moradia de qualidade, salubre e economicamente acessível para os mais de 2.100 operários de sua empresa, buscou reunir em um mesmo espaço diferentes funções cotidianas: habitação, comércio, lazer, vida religiosa, educação. A comodidade deste território pensado em sua multifuncionalidade era bem-vista pela própria classe operária, acossada por toda a sorte de carência material. Os inconvenientes da proximidade com a fábrica, com o patrão e com as leis que regiam a produção e as críticas acerbas sofridas durante á sua construção não obliterou o ufanismo nutrido por grande parte de seus moradores. A preocupação com a questão da habitação das camadas pobres estava na pauta dos mais diferentes setores da sociedade – autoridades médicas, empresários, imprensa. O embate entre o poder público e iniciativa privada sobre quem deveria assumir a responsabilidade pela melhoria do padrão de habitação, teve uma resposta provisória pela solução encontrada no conceito das vilas operárias. Além de equacionarem a questão do saneamento, as vilas significavam, ao mesmo tempo, a erradicação das populações mais pobres para as áreas mais distantes do centro. A iniciativa pioneira do empresário Jorge Street, formado em Humanidades na Alemanha e médico de formação, com a construção da Vila Maria Zélia, atende, neste sentido, ao clamado social pela profilaxia das moradias populares, além de acalentar o sonho de muitos operários de terem o seu próprio teto. Segundo o testemunho do memorialista Jacob Penteado, o empreendimento revolucionou o velho Belenzinho e despertou um enorme frisson nos tecelões, que se acotovelaram nas enormes filas para conseguir vagas de trabalho na recém-instalada Companhia de Tecidos de Juta. O processo de construção da Vila Maria Zélia ocorreu entre 1911 e 1917 e o local escolhido foi a Rua dos Prazeres, entre as Ruas Celso Garcia e Cachoeira, que possuía as condições ideais para a construção da fábrica e da vila. Os equipamentos adicionais à habitação, tais como a escola, a capela, farmácia, armazém foram sendo entregues paulatinamente aos operários. A relação de gratidão para com o empresário que, na época, era considerado um “ponto fora da curva” em razão do arrojamento de suas idéias e amabilidade nas relações cotidianas (todos os operários eram convidados para as festas de aniversário do casal e servidos com todas as “honras e pompas” por suas próprias filhas) parece ter sido fortíssima nas gerações passadas. Como afirma o morador Edélcio Pereira Pinto, morador da Vila Maria Zélia há cinqüenta e nove anos, neto de um operário da Companhia de Tecidos de Juta
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durante a administração de Jorge Street e “zelador informal” devotado à preservação e valorização do patrimônio arquitetônico e cultural da Vila: “Meu avô contava as coisas. Até hoje eu lembro do meu avô contando e eu me emociono.... porque eu lembro do meu avô falando com lágrima nos olhos (choroso) tanto do Dr. Jorge como da dona Zélia. ‘Eles não eram patrões’ – ele falava. ‘Era um pessoal que tinha dinheiro que cuidava da gente como se a gente fosse criança’. Ele se colocando no lado de criança, entendeu? O cuidado... Ele contava que os carcamano - ele brincava, carcamano é o modo de brincar com os italianos – recebiam a chave da casa e que entravam na casa - e a casa, que nem a casa que eu moro, tem três quartos, sala, cozinha – eles falavam: ‘O banheiro!’. Hoje é uma bobagem, mas naquela época a pessoa ter banheiro pra família dela você não imagina o ganho que foi, porque o que existia era muito cortiço. O meu avô não conheceu cortiço aqui em São Paulo pra ele morar, mas ele sabia o que as pessoas passavam. Também na minha casa tinha o tanque pra lavar roupa, só pra esposa dele lavar ou a filha. Foi um ganho extraordinário, porque por aí era tudo coletivo” (depoimento concedido à Daisy Perelmutter para o projeto História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, 19/08/10) O alento que a tutela e proteção proporcionavam à população trabalhadora, à margem do pleno exercício de sua cidadania, anulava, de certo modo, o desconforto gerado pelo controle exercido na fábrica, no espaço coletivo da vila e no próprio lar. A atmosfera familiar que Jorge Street fez questão de criar em seu “laboratório” – o pai protetor e os seus infantes devotos – contribuiu para que estreitos laços de solidariedade entre patrão e operários fossem consolidados. A igreja teve um papel fundamental nesta conformação e contribuiu para que a obediência fosse mantida á custa de muitas privações no âmbito da liberdade individual. A imprensa operária da época criticava febrilmente a atitude dos padres da Vila que advertiam ferozmente os casais que conversavam livremente nas ruas. O controle era expresso por uma série de proibições mundanas: circulação nas ruas depois de 9 horas da noite, venda de bebidas alcoólicas em bares, festas sem permissão, brincadeiras de crianças nas ruas. Mas, acrescidas às imposições descritas, havia também o controle dissimulado através de diversas normas disciplinares relacionadas à higiene: as casas deveriam ser todas pintadas iguais, não era permitido que moradores dormissem nas salas de estar, havia concurso para se eleger o jardim mais bonito, a máquina de lavar mais limpa, etc. A educação também foi palco de muita atenção na Vila Maria Zélia, já que era através da instituição escolar que os “bons hábitos” poderiam ser semeados desde muito cedo. O paradoxo de Jorge Street é que a sua preocupação com a infância não implicou na dispensa do trabalho infantil e muitas crianças iniciaram sua vida profissional antes mesmo dos dez anos completos. Além dos salários (mesmo
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irrisórios), a participação das crianças no universo da fábrica tinha outro fator de incentivo: o tamanho da casa concedido a cada célula familiar estava condicionado ao número de trabalhadores de cada núcleo. O fato do universo fábrica-lar ter ficado muito imiscuído na Vila Maria Zélia não significou, todavia, que seus moradores abdicassem do direito ao ócio e da consolidação de práticas lúdicas e espaços de lazer. O futebol, o cinema, as quermesses juninas, as peças de teatro, as bandas de música, os bailes e as festas religiosas, o footing pelas ruas e os banhos de rio no Tietê, que estabelecia os limites da Vila e atraía, inclusive, inúmeros belenenses que não residiam em seu interior, foram vividos de forma pregnante e de forma intensa, tal como foi experimentado em toda a extensão do bairro. Em extratos de depoimentos de moradores antigos podemos visualizar esta atmosfera que se manteve intacta ao longo desta sua longeva história. Como afirma Dona Julieta Burlo, 82 anos, nascida no bairro do Brás e moradora da Vila desde 1935, ou seja, há setenta e cinco anos e Dona Ernestina Aparecida Cardoso, desde 1941, há sessenta e nove (depoimentos concedidos para Daisy Perelmutter para a pesquisa História do bairro do Belenzinho, Sesc-Memória, 10 e 19/08/10, respectivamente): “Nós brincávamos muito aqui na Vila. O papai sentava na porta com a mamãe, na escada. Inclusive é igual, não igual, mais ou menos... Sentavam na porta e ele deixava a gente brincar, a gente ia brincar de esconde-esconde, corria com os coleguinhas, com os amiguinhos, e na hora de chamar ele dava um assobio e estava todo mundo ali na porta e então entrava.(....) Lá onde é o INPS agora, onde é do Estado, era a nossa Vila ainda, então lá tinha o campo de futebol.... Meu pai e meu irmão eram conselheiros deste clube. Lá tinha campo de futebol, então eles fizeram salão de baile lá.(...) Então lá tinha o baile, então fazia o Carnaval, a gente se divertia muito, era muito gostoso. Os carnavais nossos eram muito bonitos. Os meninos jogavam bola com outros clubes, “linhavam”, ainda tem lá embaixo...” (D. Julieta Burlo) “Olha, quando eu era mais nova, o pessoal da Vila mesmo, os vizinhos, se reunia, fazia fogueira, estourava pipoca, fazia churrasco... Porque era areia aqui. Não era asfaltado. Então a gente ficava aqui mesmo na esquina. E.... a gente se divertia assim.” (D. Ernestina Aparecida Cardoso) O arrojo das idéias e práticas de Jorge Street para o contexto da época não o poupou de uma série crise financeira, após o término da Primeira Guerra Mundial, em 1919. Devido à suspensão de empréstimos feitos com banqueiros ingleses e à concorrência na produção de tecidos de juta, o empresário foi enfrentando enormes adversidades, que foram se revelando insuperáveis. As dívidas avolumaram-se e Jorge Street não encontrou outra saída a não ser desfazer-se de seu patrimônio. A fábrica e a vila foram vendidas ao grupo Scarpa (há controvérsias sobre a data exata
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da venda, mas estima-se que tenha sido entre 1924-1925) passando então a chamarse Vila Scarpa. Esta mudança causou enorme indignação por parte dos moradores/trabalhadores, já que o nome Maria Zélia havia sido dado em homenagem à filha do empresário, falecida precocemente na adolescência, no ano de inauguração da vila. Em 1929, o grupo Guinle adquiriu a Vila e devolveu o nome original ao lugar. O Instituto de Aposentadoria de Pensão dos Industriários – IAPI passou a administrar o local em meados de 1931 e, em 1939, a fábrica de pneus Goodyear comprou parte do terreno que incluía a fábrica de tecidos/creche/jardim de infância/dezoito casas. Todos os imóveis foram destruídos, posteriormente, para viabilizar a construção de sua fábrica, que permanece em funcionamento até os dias de hoje, ao lado da Vila. A Vila Maria Zélia é tão rica em acontecimentos, lendas e “causos” que poderia se constituir, sem dúvida, como um capítulo especial da história do bairro do Belenzinho. Mesmo não lhe outorgando esta prerrogativa, há ainda alguns fatos muito interessantes os quais merecem, mesmo que rapidamente, destaque neste percurso histórico. Apesar das constrições às liberdades individuais impostas pelo universo da fábrica na gênese da formação da Vila Maria Zélia, é difícil imaginar que ela tenha sido também, posteriormente, palco de eventos dolorosos e nada abonadores da ditadura Vargas. Durante o Estado Novo, foram improvisados inúmeros cárceres em razão do enorme contingente de prisões efetuadas (algo em torno de 15.000 pessoas). Uma das áreas da Vila Maria Zélia (posteriormente comprada pela Goodyear) foi escolhida para funcionar como espaço provisório de detenção, concentrando todos os prisioneiros políticos (aproximadamente 700), entre eles, vários intelectuais de prestígio e dirigentes políticos. Neste período e neste espaço co-habitaram o então presidente da Aliança Nacional Libertadora/ALN e militante do Partido Comunista Brasileiro/PCB, Caio Prado Júnior, o médico Quirino Puca, o exsoldado do exército, aliancista e simpatizante do PCB Abdon Prado Lima, o exdeputado Clóvis de Oliveira Netto, o general Miguel Costa, o advogado Danton Vampré, os jornalistas Aristedes da Silveira Lobo e Fúlvio Abramo. A convivência intensa, o engajamento político de todos (havia uma miríade de correntes políticas em disputa: anarquistas, socialistas, trotskistas, comunistas, partidários da ALN) e o idealismo no sentido de restaurar a democracia no país fizeram com que o grupo, apesar das diferenças e conflitos, transformasse o período do cárcere em um momento de formação e amadurecimento político. Aulas, debates e palestras aconteciam às escondidas depois do almoço e do jantar. A história do movimento sindical, a trajetória do Movimento Comunista, a organização do Partido Comunista, Teoria e Economia Política, Antropologia, entre tantos outros temas e plataformas constavam do programa de estudos da “Faculdade Maria Zélia”. O grande intelectual, crítico de cinema, professor e diretor Paulo Emílio Salles Gomes chegou
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ser transferido, por um curto espaço de tempo, para o cárcere da Vila Maria Zélia. Neste período, ele escreveu a peça Destinos, que trata de um diálogo-embate entre um jovem militante engajado e outro disposto a viver a juventude sem maiores compromissos. Apesar dos paliativos encontrados pelos presos políticos para se manterem sãos – corpo e espírito – as condições às quais estavam sujeitos eram muito lúgubres. O autoritarismo de seus algozes, os métodos brutais de tratamento, as más condições de alimentação e a falta de assistência médica levaram o grupo a arquitetar uma fuga em massa. Os métodos de repressão durante a ditadura Vargas, como a nossa história a posteriori teve a função de revelar, foram impiedosos. O plano de evasão teve consequências trágicas. Na noite do dia 21 de abril de 1937, 24 presos políticos (aproximadamente) desarmados, que tentavam fugir do cárcere pela passarela do andar superior foram descobertos pela guarda. Recapturados, os prisioneiros foram enfileirados e divididos em três grupos. Os dois primeiros foram duramente espancados e retornaram às suas celas e o terceiro permaneceu no pátio, onde foi metralhado pelas costas a sangue frio. A crueldade desta represália foi, na ocasião, ignorada pelos moradores da Vila. A grade que circundava o presídio delimitava o território de circulação autorizado aos moradores. Finda a ditadura ferrenha de Getúlio Vargas (1937-1945), o país restaurou a ordem democrática e ventos mais promissores voltaram a soprar tanto em termos nacionais como internacionais, já que este período de fechamento político coincide, justamente, com o início e o final da Segunda Guerra Mundial. Com relação à Segunda Guerra, vale um breve destaque para a convocação de cinco moradores da Vila Maria Zélia como pracinhas na Força Expedicionária Brasileira. Segundo Dona Ernestina Cardoso, cujo irmão havia sido recrutado, foi indescritível a emoção provocada pelo retorno de todos eles. Ainda hoje ela se emociona ao relembrar as festividades organizadas na Vila para receber de volta seus heróis nacionais. Em 1953, outra grande greve protagonizada pelos trabalhadores têxteis e metalúrgicos (com adesão posterior de carpinteiros, vidreiros e gráficos) paralisa a cidade de São Paulo por 27 dias – de 26 de março a 23 de abril. Conhecida como a “Greve dos 300 mil” (amplamente estudada por cientistas sociais e historiadores), a greve contribuiu para o fortalecimento do movimento sindical, enfraquecido pela corrente “ministeralista” que controlava os sindicatos desde o Estado Novo, colocando novamente na cena pública a classe operária. Como foi descrito anteriormente, desde os anos 20, uma nova circularidade feérica de homens e mulheres pela cidade passou a existir, deflagrada pelo boom da urbanização e industrialização. Igreja, Estado e os diversos saberes médicos preocupados com a suposta desordem que esta presença na vida pública representava empenharam-se na elaboração de discursos higienistas que buscavam disciplinar e retirar do espaço público este novo sujeito coletivo. A greve de 1953 promoveu um golpe profundo e violento neste regime de disciplina espacial e revelou a capacidade do movimento
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operário estabelecer diferentes alianças, contando com o apoio de estudantes, políticos, comerciantes e militares. O bairro do Belenzinho, previsivelmente, com o seu enorme contingente de trabalhadores têxteis não assistiu de longe toda esta movimentação. Várias assembléias foram realizadas, como de hábito, na sala do Cine São José do Belém. Apesar de ter sustentado uma das maiores greves do operariado de São Paulo e da memória do movimento ter permanecido bastante positiva entre os trabalhadores, os têxteis, de fato, sofreram uma dura derrota. Segundo o tesoureiro do Sindicato dos Têxteis aposentados, Sr. José Bonifácio: “(...) Aí a greve fracassou e nós voltamos a pegar os mesmos 32%. Tivemos um desgaste muito grande nessa greve de 1953. Mas foi a greve que mais assim chamou a atenção do trabalhador brasileiro e daqui da cidade de São Paulo, tanto metalúrgico, como gráfico, como vidreiro, como marceneiro, que eram uns mais chegados com os outros. A greve chegou ao conhecimento de todos, então foi uma propaganda para o sindicato. O sindicato até aquela época não era muito forte, não; mas daquela época, de 1953 para cá, até 1960, o sindicato foi muito forte. Nós fizemos... Aquilo depois virou a campanha para o décimo terceiro salário” (depoimento concedido à Daisy Perelmutter para a pesquisa História do bairro do Belenzinho, 02/09) Depois disso, muitas outras greves, lutas e reivindicações galvanizaram os trabalhadores e moradores do bairro até a década de 70 com a construção da Radial Leste e do metrô. Neste momento, o bairro sofre transformações profundas e assume, de fato, novas feições. Um novo capítulo, não tão admirável e viçoso quanto os anteriores, começa a ser desenhado. Vários espaços públicos de encontro e sociabilidade deixam de existir; o trânsito se intensifica; o comércio local vai cedendo lugar às grandes redes e perdendo a sua hegemonia para os Shoppings; um enorme contingente de moradores é desalojado e, por fim, a intensa solidariedade de classe que existia entre os belenenses – das mais diferentes tradições culturais - vai perdendo, paulatinamente, a sua força. Como vaticina melancolicamente o Sr. Edmundo Picasso Prado (depoimento concedido à pesquisa História do bairro do Belenzinho): “(...) O bairro passou de um bairro que tinha todas as oportunidades mas que sofreu uma descaracterização tão grande.... Primeiro com a Radial Leste, que trouxe um tráfego intenso. Porque isso o que o Luisinho falou é verdade, de não poder sair de casa e tal. Mas não é só isso. Você com um tráfego intenso, você se fecha em casa, você não confia, porque começa a passar gente que você não conhece. E eu, por exemplo, moro numa ruazinha que tem cem metros. Eu conheço todos os moradores. Quando passa alguém diferente, eu já fico... porque já teve vários assaltos aqui nessas ruas de pouco movimento. Ontem, por exemplo, eu fui conversar na casa dele, toquei várias vezes a campainha. Aí a mulher dele abriu a
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janela e tal. Não sai mais à noite depois de determinado horário, porque o pessoal... Entendeu? E começa a descaracterizar. Então a oportunidade de você se ligar com o vizinho é mais difícil. Porque tudo é ligação com os vizinhos.” Em 1990, com a política de abertura de mercado promovida pelo Governo Collor várias indústrias foram fechadas em decorrência da concorrência internacional ou foram transferidas para o interior e outros estados. O bairro sofreu um duro golpe e houve uma evasão de mais de 60.000 pessoas. No lugar da intensa solidariedade de classe, da quente e fraterna rede de relacionamentos entre vizinhos e de um comércio local diversificado e próspero, a paisagem foi se tornando, dia-a-dia, um tanto quanto lúgubre e impessoal. Alguns moradores resistem herculeamente e se mantêm no bairro apesar de sua violenta descaracterização e abandono por parte do poder público. Empenham-se através de suas memórias caudalosas e de suas singelas práticas cotidianas (os jogos de dominó nas ruas mais pacatas, a conversa nos antigos bares, a circulação no Largo São José do Belém) em manter os laços e as redes sociais - não virtuais, mas reais - no contrapelo do individualismo e solipsismo que caracteriza a contemporaneidade. A reabertura da unidade do Sesc no Belenzinho, prevista para o dia 04/12, tem despertado em todos estes singelos resistentes à esperança de que novos ventos, capazes de resgatar antigas vocações e potencialidades do bairro, soprem em seu favor reanimando-o do seu sono letárgico de mais de duas décadas. Este processo de ressignificação dos espaços e reanimação cultural, de certo modo, já vem sendo realizado, de maneira pontual, na Vila Maria Zélia pelo Grupo XIX de teatro, responsável pela criação dos premiadíssimos espetáculos Hygiene e Hysteria. A grande diferença empunhada pelo grupo é que além de utilizar os espaços históricos como espaço cênico, eles trouxeram o processo criativo para dentro do espaço histórico. Sediados na Vila há mais de seis anos, graças a um convênio com o INSS que permite a utilização de um de seus prédios como escritório e local de ensaio, em contrapartida aos cuidados e manutenção adequada do equipamento, a permanência do grupo tem promovido uma troca muito saudável entre a população local e os artistas. Além do intenso intercâmbio através das diferentes oficinas oferecidas para todas as faixas etárias da população (senhores, adultos, jovens e crianças) da montagem cênica e figurinos dos espetáculos, dos seminários e cursos promovidos, entre tantas outras trocas, a presença do grupo na Vila e toda a atenção que vem sendo despendida pela mídia, tem contribuído para o florescimento da auto-estima dos moradores em relação ao seu próprio espaço, os quais passaram a olhá-lo com muito mais apreço e sensibilidade. Que esta intervenção do Grupo XIX, que já vem dando bons frutos e resultados, tenha efeito multiplicador no bairro do Belenzinho e encontre na sede reformada do Sesc o seu maior aliado. Os antigos moradores – imigrantes europeus, descendentes e migrantes nordestinos, que
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ocuparam em massa a zona leste durante a década de 70 – bem como os novos – bolivianos que hoje trabalham nas confecções em condições bastante adversas – vêm clamando por espaços de congregação, criação e diversão. A unidade do Sesc Belenzinho, ciosa da sua responsabilidade para com à população local, imbuiu-se da
missão de dar continência às múltiplas necessidades - associativas, criativas, lúdicas, esportivas, formativas e reflexivas – que o seu público potencial vem apresentando.
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