Tese de Doutorado: Intérpretes do Desassossego

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Daisy Perelmutter

INTÉRPRETES DO DESASSOSSEGO Memórias e marcas sensíveis de artistas brasileiros de ascendência judaica

Doutorado em História

PUC-SP São Paulo, 2004

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Daisy Perelmutter

INTÉRPRETES DO DESASSOSSEGO Memórias e marcas sensíveis de artistas brasileiros de ascendência judaica

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em História Social sob a orientação da Profa.Dra. Denise Bernuzzi de Sant´Anna

PUC-SP São Paulo, 2004

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Banca Examinadora

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AGRADECIMENTOS À Fapesp, pela bolsa concedida e pela interlocução incisiva através da figura do parecerista. À Profa. Dra. Denise Bernuzzi de Sant’Anna, pela sua orientação diligente, por acompanhar os meus desassossegos com presteza e tranqüilidade, e por seus atributos de uma grande mestra – rigor e leveza, continência e crítica, doçura e firmeza. À Profa. Dra. Suely Rolnik, por todos os desdobramentos que o nosso encontro lá atrás deflagrou e por permanecer como referência pregnante para a vida e para o pensamento. À Profa. Dra. Eliane Robert de Moraes, pela leitura aguda do texto de qualificação, por nossa intensa juventude universitária e por sua presença destacada no meu presente. Ao Prof. Dr. Peter Pál Pelbart, pelos cursos, pelos lindos textos e pelas conversas informais nestes anos felizes de PUC. Às Profas. Dras. Maria Antonieta Antonacci e Maria Odila Leite da Silva Dias pela elegância e rigor de seus trabalhos, assim como na transmissão do que seja o delicado ofício do historiador. Aos colegas do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, em especial a José Amilton de Souza, Mirna Busse, Paulino de Jesus e Cássia Santos, com os quais fui estabelecendo uma parceria singela ao longo dos muitos anos de trabalho. Às amizades reveladas ou estreitadas no percurso da pesquisa, as quais muito contribuíram para os rumos que a pesquisa acabou tomando: Berta Waldman, Gabriel Bolaffi, Raquel Rolnik, Betty Mindlin, Valde Gertman, Daniela Katzenstein Hart, Mauro Meiches, Louise Weiss. À Biblioteca da PUC e aos seus funcionários, onde encontrei a tranqüilidade e o estímulo para finalizar o trabalho. À Maria Clara Machado e ao Cássio Machado, pelo interesse e pelo envolvimento que transcende em muito as responsabilidades do transcritor. À Denise Lima, pela multiplicidade de funções que desempenha em minha vida – professora, comadre, amiga e referência ética e espiritual.

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Ao Amir Labaki, ex-chefe, amigo e atual chefe, pela cumplicidade e carinho mantidos incólumes a despeito de nosso longo intervalo. Ao José Thomé, por me ajudar a afirmar a singularidade desejante, sem culpa e sem hesitação. À Maria de Oliveira, nossa “fadinha doméstica”, vulgo Dulce, por todas as ajudas incondicionais e irrestritas que justificam a importância que ocupa em nossa família. Aos amigos que vêm sendo esculpidos pelo tempo e com os quais experimento sem trégua a prática constante da diferença: Adriana Komiwes, Adriana Medina, Aimar Labaki, Bárbara Corrales, Betisa Malaman, Cali Amaral, Candido Malta Neto, Carlos Calado, Cuca Bolaffi, Flavia Cesarino Costa, Fernanda Ferreira de Paula, Flavio Ferraz, Helena Tassara, Inês Bianca Loureiro, Inez Lemos, João Maia, Leandro Feigenblatt, Liliam Starobinas, Marcelo Mahrer, Maria Telles, Pedro Magalhães, René Decol, Roberto Moreira, Samuel Pessoa, Simone Perelson, Sonia Mindlin, Vitor Navas e Yara Schreiber. Aos amigos que mesmo à distância se mantêm quentes: Bill Schwarz, Brenda Corti, Kath Holden, Paula Terra e Viviam Schilling. Às amigas Gabriela Garcia Fernandez e Maria Elisa Pessoa Labaki, pela intensa lucidez agasalhada de um afeto viçoso, determinantes para que eu me mantenha comprometida com a beleza do movimento. Aos meus “tios”, que acompanham desde sempre os meus pequenos e grandes passos, assim como os meus pequenos e grandes tropeços, com amor e continência: Janette e Mario Luis Frochtengarten, Vitória e Marcos Schwartsman, Ida e Agenor Parente, Clara Brochsztain, Franklin Morgenstern e Frida e Regina Zolty. Aos meus antepassados judeus de quem nada sei, ao bisavô Braverman, sábio rabino, de quem sei apenas isso, aos avós Sonia e Isaac Perelmutter, com quem pouco troquei, ao meu avô Samuel Lewkowicz, de quem um pouco sei e com quem um pouco falei, e à minha avó Molly Lewkowicz, ainda viva, que teve a coragem de se reinventar depois de toda uma vida. Ao meu tio Alberto Perelmutter, que mesmo na sua profunda solidão e impossibilidade concreta de conexão ainda é capaz de experimentar uns poucos afetos.

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Ao Fernando Perelmutter, irmão, pela honestidade sem arranhão e pelo amor discreto, e a Kalinka Prates, cunhada, pela graça e sagacidade que agregou à nossa família. Aos meus pais, Aida e Benno Perelmutter, pelo amor “vulcânico”, difícil e imprescindível. Aos meus filhos, Dora e Matheus Perelmutter Gonçalves Silva, as verdadeiras pérolas a que o meu Perelmutter alude – sedutoras, sinuosas e surpreendentes. Ao Marcos Fernandes, marido, pela generosidade profunda e genuína ao longo dos quinze anos de vida em comum: no amor, no conhecimento, na vida material, na crítica, nas utopias e nos cuidados com nossas “perolinhas” encaracoladas.

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Para os meus “intérpretes”, contemplados e não-contemplados pela escrita, com quem exercitei a arriscada e vigorosa experiência de ser intérprete.

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RESUMO

Esta tese reúne memórias de artistas brasileiros de ascendência judaica – privilegiando a primeira geração nascida no Brasil – com o objetivo de identificar a singularidade das marcas judaicas legadas e a intensidade com que reverberam na sensibilidade contemporânea de cada um. A opção pelas memórias de artistas deve-se à hipótese de que o processo criativo exige um trabalho de questionamento constante sobre as bases culturais que fabricam as certezas e incertezas do presente. Por conseguinte, a família e o judaísmo são tomados como ponto de partida de um processo de produção subjetiva no qual as inscrições judaicas não são absolutas e travam diálogo com muitas outras expressões culturais e conteúdos exógenos ao campo problemático judaico. O trabalho procura aprofundar a compreensão sobre a dimensão histórica do processo de constituição da subjetividade (individual, coletiva e de massa), balizando-se pela concepção cunhada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, segundo a qual a subjetividade é indissociável do social e é a matéria-prima que está na base de todas as ações e faculdades psíquicas – pensar, sentir, sonhar, lembrar. Portanto, a memória não é refratária à plasticidade da trama subjetiva, mas sim uma dentre as múltiplas expressões através das quais é possível vislumbrar a esfera sempre móvel e inacabada da subjetividade. O instrumental teórico sobre memória advém da visão de Walter Benjamin, que fornece o lastro e inspiração para a pesquisa, tanto no que diz respeito ao conteúdo, como na estrutura da escrita desta história. O trabalho apóia-se inteiramente em fontes orais produzidas segundo os procedimentos que consubstanciam a metodologia de história oral. Desta forma, a pesquisa é também (e fundamentalmente) uma discussão sobre as potencialidades e limites do método de história oral para rastrear os componentes da subjetividade. Embora esta tese esteja dividida em dois grandes blocos temáticos (A “mesma” coisa que difere – memória e judaísmo e História oral, memória e o imponderável), as questões referentes a cada um deles perpassam o texto indiscriminadamente.

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ABSTRACT

This thesis gathers memories of Brazilian artists of Jewish ancestry – privileging Jewish immigrants’ offspring. Its main purpose is to identify their inherited Jewish marks and evaluate to what extent these marks reverberate in the contemporary sensibility of this group. The option for memoirs of artists is based on the hypothesis that creative process requires a constant questioning about cultural basis that moulds contemporary certainties and uncertainties. Therefore, family and Judaism are taken as starting point for a subjective production process in which Jewish inscriptions are not absolute and establish a dialogue with many other cultural expressions and contents exterior to Jewish concerns. The research also seeks to deepen the understanding of the historical dimension of the constitution of the subjectivity process (individual, collective and mass) supported by Gilles Deleuze and Félix Guattari in which subjectivity is mingled with the social process and it is the raw material that is the basis for all actions and psychic human faculties – thinking, feeling, dreaming, remembering. Consequently, memory is not oblivious of the subjectivity web plasticity, but it is one of its multiple expressions through which the unfinished and errant sphere of subjectivity is envisaged. The conceptual reference of memory applied comes from Walter Benjamin, who represents the cornerstone and also the creative force of the research, both in its content and in the structure of the written text. The thesis is entirely based upon oral sources made according to the oral history procedures. For that reason it is also (and fundamentally) a discussion on the oral history potential and limits to scrutinize the subjectivity contents. Although it is split in two big blocks – The “same” thing that differs and Oral history, memory and the imponderable – the points discussed in each one (of them) pervade throughout the text.

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ÍNDICE

APRESENTAÇÃO .................................................................................. p. 11

CAPÍTULO 1 - A “mesma” coisa que difere – memória e judaísmo... p. 22

CAPÍTULO 2 - História oral, memória e o imponderável ................... p. 65

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................ p. 154

BIBLIOGRAFIA .................................................................................... p. 162

FONTES .................................................................................................. p. 173

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APRESENTAÇÃO. O meu envolvimento prático e teórico com o método da história oral ao longo destas duas últimas décadas foi atravessado, sem intermitência, pela experiência do desassossego. A empatia com este conhecimento engendrado por uma relação dialógica entre entrevistadoentrevistador não me esquivou de uma série de desafios e incertezas ao me decidir por ele enveredar. No Brasil, nos meados da década de 80 a disposição de abraçar a história oral como recurso de pesquisa (acadêmica, institucional ou comunitária) parecia trazer já embutida uma militância a seu favor. Apesar das fontes orais terem sido muito utilizadas em várias disciplinas das Ciências Humanas, bem antes do método ser formalizado como história oral, seu uso era de certa forma soturno e silencioso. Sem dispor de prestígio e credibilidade, nem de uma network como a que hoje conhecemos, que congregasse seus interessados e adeptos em torno de uma problematização sobre questões operacionais (pesquisa, estruturação de projeto, transcrição, conservação das fontes) e conceituais (interpretação, cruzamento com outras fontes, apresentação da documentação oral). Paradoxalmente, este momento inóspito para os praticantes da história oral, em termos de debate, foi também um período experimental extremamente rico para aqueles que ousaram formular suas próprias balizas e referências. A possibilidade de percorrer um campo de conhecimento ainda virgem, com uma certa aura marginal, contagiou esta comunidade, até então dispersa, que passou a empunhar a bandeira em prol de seu uso e em defesa de sua fidedignidade. O fervor e a eloqüência com que esta causa foi levantada teve um efeito multiplicador instantâneo e, em pouco tempo, verificouse um aumento vertiginoso de pesquisadores e interessados no método. Tendo ganho foro de legitimidade nos meados da década de 90, a história oral se institucionalizou com a criação da Associação Brasileira de História Oral e de seus diversos braços regionais. Multiplicaram-se as publicações sobre as questões teórico-metodológicas suscitadas por seu exercício, e o caráter experimental-amador foi definitivamente superado. O expressivo boom da história oral brasileira, em termos quantitativos e qualitativos, impressionou os pesquisadores do mundo inteiro, dos mais diversos campos, que vinham, de forma hercúlea, militando desde a década de 60 em seu benefício, sem dispor da

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visibilidade e audibilidade que os historiadores orais brasileiros ganharam em um curto intervalo de tempo. Neste momento, não podia mais me queixar do ostracismo legado aos historiadores orais da década anterior, se levasse em conta apenas a profusão de encontros e títulos, direta ou indiretamente relacionados ao método. No entanto, o campo problemático, que me mobilizava de fato na história oral – a expressão da subjetividade no documento oral –, me atiraria novamente a um território incerto e inexplorado. Além de insuficientes, as discussões e análises sobre a subjetividade pareciam-me extremamente simplórias, ora associando-a à noção de identidade, ora a uma faculdade intrapsíquica como o sonho ou a imaginação, ora à noção de inconsciente freudiano. Todas as tentativas de leitura obstruíam a priori o trânsito e o devido tratamento por parte do historiador, mantendo, desta forma, a subjetividade sob uma espécie de manto de isolamento que reforçaria o misto de pudor e fetiche que a envolveu por tanto tempo. Este genuíno interesse que se revelou no exercício das minhas experiências institucionais (Memória Histórica da Companhia de Gás de São Paulo/Comgás e Memória da Produção Cultural Brasileira do Museu da Imagem e do Som de São Paulo/MIS-SP) serviu-me de lastro na condição de pesquisadora, afirmando um estilo próprio de produzir e pensar a prática da história oral, e guiando a escolha de parcerias conceituais afinadas com a idéia de processualidade da subjetividade. No entanto, surpreendentemente, este trajeto foi mais solitário e ardiloso do que o percurso inicial com a história oral, marcado por minhas inseguranças como pesquisadora recémformada e pelas dificuldades já mencionadas da fase gauche, que antecederam a ampla, geral e irrestrita aceitação da história oral como método de pesquisa. O horizonte de possibilidades aberto a partir do encontro com o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP foi fruto de uma longa jornada por interlocução em torno do errático campo da subjetividade. A despeito da diferença e da distância entre o campo da História Oral e o da Filosofia da Diferença/Esquizoanálise posta em relevo pelo Núcleo, os embates com o seu corpo docente, com o instrumental teórico de Gilles Deleuze e Félix Guattari e com as discussões germinadas no seu interior foram embevecedores. A minha condição “anfíbia” de cientista social e pesquisadora em instituições culturais públicas foi acrescida de um

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novo flanco ao optar por uma formação que se colocava no interstício entre a Psicanálise e a Filosofia, estranha ao meu repertório prático-teórico até aquele momento. Apesar da felicidade que o encontro por si só e a minha inserção no Núcleo representaram, a conexão que me propus a selar – Filosofia da Diferença/Esquizoanálise e a História Oral – foi feita à custa de uma serena e contínua obstinação. A estranheza e a desconfiança que o corpo teórico de Deleuze-Guattari provocavam no interior da comunidade de historiadores orais com os quais me relacionava foi equivalente ao desconhecimento que a prática da história oral suscitava no interior do Núcleo de Estudos da Subjetividade do qual fiz parte, na época constituído basicamente por psicanalistas, psicólogos e filósofos. Não obstante as eventuais agruras inerentes à condição de “estrangeira”, tecla reincidente em meu percurso, a contraface positiva foi a liberdade de experimentar idéias, campos e postulados distintos, sem me abater por “pruridos e lealdades” próprios de cada disciplina. Ao longo do tempo, fui aprendendo a transformar aquilo que me parecia um fator de obstrução – a errância – em predicado. Tendo concluído o mestrado1 e conseguido operacionalizar o diálogo que me propus a realizar – entre a História Oral e a Filosofia da Diferença/Esquizoanálise –, não cedi ao apelo sedutor de permanecer com interlocutores familiares e acolhedores, movimentado-me mais uma vez a favor do fluxo de minhas chamadas “zonas cinzentas”. A discussão historiográfica, aparentemente tão próxima por minha longa prática como historiadora oral, era o meu “Oriente”, território distante no âmbito do discurso e da racionalidade. Perscrutar o amplo debate teórico-metodológico da historiografia contemporânea, para além das questões específicas trazidas pelo exercício da história oral, até mesmo para compreender

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A história oral e a trama sensível da subjetividade, dissertação de mestrado defendida no Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP, sob a orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik, abril de 1997. O trabalho tem como proposta problematizar a questão da subjetividade na discussão teórico-metodológica da história oral. Referendando-se pelo corpo conceitual da Filosofia da Diferença/Esquizoanálise, procura explicitar o potencial do método de história oral para os estudos e pesquisas das formas contemporâneas de subjetividade e como dispositivo de singularização. O trabalho estrutura-se em três grandes blocos: contextualização histórica da história oral e o tipo de enfrentamento com a questão da subjetividade que vem sendo travado em seu interior; discussão sobre a pertinência e a afinidade entre a História Oral e a Filosofia da Diferença/Esquizoanálise, a partir do destrinchamento dos pressupostos de ambos; e, por último, a descrição de algumas experiências práticas com a história oral interpretadas à luz da teoria de subjetividade engendrada por este corpo conceitual.

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melhor a sua singularidade como fonte, revelou ser o desafio do qual não poderia me furtar, com tudo o que ele evoca em termos de viço e apreensão. Percorrer veredas obstruídas, criar problemas “esquisitos”, que fujam dos temas de estudo mais prosaicos, e respaldar-me em teorias herméticas de muita complexidade vêm, lentamente, pontilhando o caminho intelectual que tenho traçado. De todo modo, acho importante ressaltar que estas escolhas não têm como justificativa uma atração frívola pelo exótico, mas sim a inquietude genuína de entender, historicamente, o processo de constituição da subjetividade (individual, coletiva ou de massa), que é o pano de fundo de todas as minhas preocupações e interesses. A escolha da questão da coexistência de marcas culturais no processo de produção subjetiva, e o judaísmo como uma de suas faces, se impôs como reflexão de fôlego, não por minha aparente proximidade com o tema e com o grupo, mas pelo fato de ter estado quase sempre muito distante de uma vida ou dia-a-dia judaicos. Com exceção do período escolar entre os 11 e os 14 anos de idade, cursado no Ginásio Israelita Brasileiro Sholem Aleichem, estigmatizado pelas instituições oficiais judaicas por sua vertente progressista e nãosionista, o sentimento ambivalente de familiaridade e estranhamento nunca deixou de me provocar. O desejo de estabelecer algum laço com este patrimônio, de uma forma própria e singular, permitiram-me então, na idade adulta, e pelo viés acadêmico, afirmar minha pertinência a esta herança cultural e, à escola acima citada, que foi o grande marco escolar da minha vida. A opção de privilegiar as memórias e experiências de artistas – no caso, brasileiros de ascendência judaica – deve-se à crença de que o artista desenvolve, no exercício de seu processo criativo, um atributo psíquico que o obriga a viver “corajosamente”, isto é, sem poder se insular e se cristalizar em sua verdade parcial e provisória, roçando, a todo instante, a dimensão misteriosa que o real não cessa de provocar e de engendrar. O artista, portanto, experimenta, inevitavelmente, a condição do mestiço, ou, na terminologia empregada por Edgar Morin, do pós-marrano2. Esta concepção do artista incide na aposta de que há uma indissociabilidade entre a vida e a obra, ambas se implicando mutuamente e 2

Marranos, judeus convertidos à força ao cristianismo após a queda de Granada nas mãos dos castelhanos (1492) e que permaneceram secretamente fiéis ao judaísmo. Perseguidos pela inquisição, do século XVI ao XVIII, alguns deles fugiram da Espanha para Grécia, África do Norte e América, principalmente.

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tomando uma a outra de assalto. Neste sentido, o processo de formação do artista é um canal privilegiado para se percorrer as veredas tortuosas dos “rumores discretos da subjetividade”3. Além do aspecto instigante da obra em si, “encharcada” e “alimentada” de subjetividade, a discussão sobre a identidade brasileira – o debate clássico travado entre os ensaístas nacionais e também as análises mais recentes4 – e a identidade judaica contemporânea na Diáspora são particularmente ricas de dissenso, configurando, desta forma, um campo de pesquisa extremamente insinuante e problemático, na acepção positiva de ambos os predicados. A crença ingênua e mecanicista que acalentei antes de ir a campo, de que me depararia com “ilhas judaicas” e “ilhas brasileiras” coexistindo na trama subjetiva destes artistas, foi abandonada ao escutar de forma sensível a natureza dos relatos, tanto no que se refere às suas excrescências como às suas faltas. No plano das experiências concretas deste pequeno universo de brasileiros “mestiços”, a reflexão sobre multiculturalismo5 revelou-se mais 3

PRECIOSA SEQUEIRA, R. Rumores discretos da subjetividade, tese de doutorado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica no Núcleo de Processos de Singularização, sob orientação da Profa. Dra. Suely Rolnik, PUC/SP, 2002. Reflexão e escrita extremamente pungentes, a tese se propõe a cartografar o percurso de uma subjetividade se constituindo, a partir das sensações a que vai se expondo em sua trajetória singular. Os sucessivos estados de si que vai experimentando vão tomando consistência e adquirindo visibilidade, através de um tipo de escritura fragmentária, sensível à configuração de outros territórios existenciais. 4 Destaco alguns trabalhos sobre a singularidade brasileira balizados pela Filosofia da Diferença/Esquizoanálise, o texto de ROLNIK, S. Esquizoanálise e antropofagia, Cadernos de Subjetividadedossiê-Clínica, Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP, São Paulo, n. 4, 1 e 2 semestre de 1996; SILVEIRA DE OLIVEIRA, C. Brasil, além do ressentimento: cartografias da subjetividade no Brasil, tese de doutorado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP, sob orientação da Profa.Dra. Suely Rolnik, 1997; CARVALHO, D. R. Subjetividades andarilhas, 500 anos depois: ainda descobrindo o Brasil, dissertação de mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC/SP, sob orientação da Profa.Dra. Suely Rolnik, 1996. Gostaria de dar destaque também para algumas publicações recentes, as quais considero extremamente relevantes para um tratamento mais sofisticado do tema: FIGUEIREDO, L. C. Modos de subjetivação no Brasil e outros escritos, São Paulo:Editora Escuta/Educ, 1995; BACKES, C. O que é ser brasileiro?, São Paulo: Editora Escuta, 2000; CHAUÍ, M. Brasil – mito fundador e sociedade autoritária, São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2000; DANTAS MOTA, L. Introdução ao Brasil – Um Banquete no Trópico, São Paulo: Editora Senac, 1999; CHIAPPINI, L. & DIMAS A. & ZILLI, B. (orgs.), Brasil: país do passado?, São Paulo: Boitempo Editorial/Edusp, 2000; VELOSO, M. & MADEIRA, A. Leituras brasileiras – Itinerários no pensamento social e na literatura, São Paulo: Paz e Terra, 1999; COUTO, J. G. (organizador e entrevistador), Quatro autores em busca do Brasil, Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2000. 5 Dentro do largo espectro literário existente, destaco a seguinte bibliografia: BHABHA, H. K. The location of culture, Londres: Routledge, 1994; CANEVACCI, M. Sincretismos – Uma exploração das hibridações culturais, São Paulo: Studio Nobel e Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1996; HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro: DP&A Editora, 1998; HALL, A. & MARX, W. Making Race and Nation, Nova York: Cambridge University Press, 1998; MORSE, R. O espelho do próspero – Cultura e idéias nas américas, São Paulo: Companhia da Letras, 1995. Ainda que a produção nacional seja escassa, ver

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constrangida e tímida do que eu poderia supor ao adotar o sincretismo cultural e religioso como o grande distintivo de brasilidade. Não só na experiência cotidiana este se mostrou um dado irrefutável e, portanto, inquestionável, como também no próprio debate intelectual, que pendeu para a celebração a-crítica do multiculturalismo brasileiro ou para o seu total ostracismo. Há neste fato um paradoxo sugestivo para a análise: o desconforto em se discutir aquilo que se apresenta como a insígnia brasileira em relação às outras nações – a mestiçagem – é inversamente proporcional a seu uso indiscriminado como sinônimo virtuoso da identidade nacional. Esta assimetria assemelha-se à história do estupro elaborada por George Vigarello6, ao observar que havia um silêncio relativo em relação ao tema, contraposto a uma visibilidade barulhenta. A valorização da mestiçagem no âmbito carnal e espiritual (a história das idéias atribui a Gilberto Freire a responsabilidade pela inflexão que resultou na sua afirmação positiva), se, por um lado, contribuiu para suavizar a xenofilia que caracterizavam os intelectuais e ideólogos brasileiros, por outro, contribuiu para a fetichização do hibridismo como corolário de tolerância e pluralismo. Motivo de orgulho diante das nações desenvolvidas que foram incapazes de encontrar uma solução hedonista e “solar” como aparentemente o Brasil conseguiu, a mestiçagem aqui ganhou o estatuto de dogma, uma resposta criativa, e não um problema. É importante ressaltar que a substancialização da mestiçagem como constitutivamente ética só pode se imantar e se sustentar por não existir no Brasil conflitos étnicos-religiosos, que acirrariam inelutavelmente a discussão sobre as identidades e suas fronteiras. Segundo Janaína Amado:

A mestiçagem em geral apresentou-se como um dado pronto, acabado e, sobretudo, como uma solução para os nossos as seguintes obras que me parecem bastante relevantes e atuais: MUNANAGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil, Petrópolis: Vozes, 1999; GAMBINI, R. & DIAS, L. Outros 500, São Paulo: Editora Senac, 1999; D´ADESKY, J. Pluralismo étnico e multiculturalismo: Racismos e anti-racismos no Brasil, Rio de Janeiro: Pallas, 2001; SODRÉ, M. Claros e escuros – Identidade, povo e mídia no Brasil, Petrópolis: Editora Vozes, 1999; STAM, R. Tropical multiculturalism – A comparative history of race in Brazilian Cinema & Culture, Durham & London: Duke University Press, 1997. 6 VIGARELLO, G A história do estupro, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998.

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problemas. Em outras palavras, seria como se disséssemos: por sermos mestiços, não temos preconceito racial; por sermos mestiços, aceitamos e praticamos a igualdade social; a mestiçagem resolve todas as nossas diferenças. Nessa perspectiva, a mestiçagem, portanto, serviu como uma espessa capa a encobrir nossos graves problemas sociais e nossos preconceitos raciais. Até hoje os países latino-americanos mantêm seus negros e mestiços em uma situação inferior: são eles os mais pobres, os que menos acesso têm a educação e à saúde, os que menores oportunidades conhecem de ascensão social e, sobretudo, os que mais sofrem as conseqüências dos profundos preconceitos sociais, econômicos e étnicos. Talvez por isso, porque a mestiçagem, tal como a nossa identidade, tenha sido encarada entre nós de forma tão polarizada – seja como uma chaga, seja como a maquiagem de uma sociedade problemática que não quer enxergar seus próprios problemas – e, tantos de nós, latino-americanos, nos sintamos tão mal em relação a ela.7

A propalação recorrente da existência de um solo “fraterno” para com as simbioses culturais, acrescida da ausência de qualquer tipo de coação religiosa/moral/social/econômica/política - vivida hoje pelos judeus brasileiros (ao contrário da experiência de descendentes de imigrantes judeus de outros países latinoamericanos, como, por exemplo, Argentina e Chile), que os levaria a reivindicar de forma militante sua singularidade e sua diferença, me deram a real medida da dificuldade de instilar a discussão sobre ambivalência cultural pelo prisma de uma suposta coexistência de marcas culturais. A tentativa de desenredar alguns fios da trama subjetiva, cujo tecido, segundo Félix Guattari, é a matéria-prima que está na base de todas as coisas, é uma tarefa grandiosa e 7

AMADO, J. Nós e o espelho. In: FERREIRA, M. M. & FERNANDES, T. & ALBERTI M. V. (orgs), História oral – Desafios para o século XXI, Rio de Janeiro: Editora FioCruz/Casa de Oswaldo Cruz/CPDOC – Fundação Getúlio Vargas, 2000, pg. 109.

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ao mesmo tempo singela. Não obstante eu apostar no potencial da história oral para este tipo de prospecção sensível (a legitimidade que a Psicanálise conquistou no século XX é uma prova da força expressiva da narrativa oral), minha prática e meu bom senso como pesquisadora asseveram que o substrato da subjetividade não se revela pelo simples ato de abrir a comporta da fala. A sutileza – palavra mágica e rara na contemporaneidade – com que o processo de construção deste saber tem de ser conduzido (do lado de quem fala e de quem escuta) me parece ser a chave do “sucesso” desta ardilosa e fascinante empreitada. Nesta perspectiva, ela seria ao mesmo tempo a condição de possibilidade e o limite ético que balizaria o diálogo, delimitando sua diferença e distância em relação às conversas e histórias de vida obscenas que pululam nas mídias e nos nossos encontros diários. Nesta “terra de ninguém” em que a comunicação contemporânea está assentada, impera a celebração perversa da devassa da intimidade e o culto narcísico de um eu sempre vitorioso, sagrado e refratário às interferências do mundo. Nietzsche, dotado de uma sensibilidade visionária, apontava o caráter abjeto que a comunicação pode assumir e as artimanhas para não se deixar intoxicar por ela. Segundo Maria Cristina Franco Ferraz: Na perspectiva de uma filosofia para “surdos-mudos”, que Nietzsche então convoca, dirigida para todos e para ninguém, ou seja, para pequeníssimas orelhas, evidentemente só pode ser vista como aberração à ausência de seleção, tagarelice e o excesso de informação também representados por aqueles que se têm como “grandes homens”. Em uma filosofia para surdos-mudos, cabe, portanto, ser seletivo tanto com relação ao que se fala (e igualmente ao que se cala) quanto ao que se ouve. Nesse sentido, ser de certo modo surdo é ter pequenas orelhas capazes de filtrar o que merece ser escutado, recusando-se a entupir os ouvidos com a banalidade que em geral caracteriza a comunicação.8 A proposta de uma história oral que persiga os sentidos das experiências, que inscrevem marcas na existência, cujo desenho e a textura da trama subjetiva são por elas definidos, é sutil e requer fôlego. A extensão do relato, a “acuidade” dos fatos narrados, a revelação de 8

FRANCO FERRAZ, M. C. Variações sobre temas nietzschianos, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p.81.

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segredos trancafiados, a exposição e a reflexão sobre a esfera privada e íntima do sujeito podem percorrer a dimensão do sentido, mas não garantem necessariamente que este plano seja problematizado. Para Deleuze, a história da formação dos sentidos de uma existência é o que ele chama de história do pensamento. O pensamento, segundo ele, não é uma faculdade inata, mas sim o encontro com o exterior, com o fora, com as forças heterogêneas que o arrombam para aquilo que ele não pensa ainda e que o leva a pensar diferentemente. Nas palavras de Preciosa Sequeira: Pensar não é se alinhar com o que já se conhece. É justamente o contrário disso. Movido por uma espécie de força forasteira, que não se interessa em refletir sobre a vida, mas agregar-lhe algo mais, pensa-se o impensável. Isso exige de nós piruetas mortais e quase nunca podemos contar com uma cama elástica que ampare as quedas. Despenca-se, fraturam-se ossos. Não é nada fácil desmontar um campo pronto de referências afixado na alma. 9 A demanda por uma prospecção poética em torno da própria vida exige do entrevistado uma disposição em escorchar a camada mais fina da experiência, um dos imponderáveis com o que o historiador oral se depara. Mesmo as supostas vidas “travessas” que vivem perscrutando o novo, sem se deixar esmagar pelo fardo das redundâncias cotidianas, podem passar ao largo de uma elaboração sobre os seus momentos de inflexão, sobre a genealogia dos afetos que trançam o bordado de sua trama subjetiva. Além deste aspecto, há um outro fator que revela o difícil acesso do pesquisador ao campo problemático da subjetividade – que não é tácito nem cognoscível pela observação – que é a decisão do sujeito investigado de partilhar o percurso de construção de seu “patrimônio” existencial. Ter formulado um problema que aparentemente não se apresentava aos meus entrevistados em seu embate contemporâneo, forçando-os a uma inquietação existencial de fundo, intumesceu-me de um sentimento de culpa para com eles, como se a mim coubesse o dever moral e ético de responder ao enigma que formulei e que a eles imputei.

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PRECIOSA SEQUEIRA, R. op. cit, p.19.

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A descoberta tardia de que a compreensão do presente com base em objetos históricos aparentemente inexistentes, inventados de modo engenhoso pelo historiador, não consiste em impropério científico, mas no grande diferencial da filosofia e metodologia histórica de Foucault e de seus “amigos filosóficos”, foi crucial para erradicar de vez a bruma de incerteza de estar ou não fazendo História. Neste intervalo entre a produção das fontes, a pesquisa bibliográfica e o início da escrita do texto, acontecimentos macro-históricos relacionados à condição judaica mundial se interpuseram, corroborando a importância e a atualidade da discussão. O acirramento dos conflitos entre israelenses e palestinos, a barbárie e a xenofobia praticadas pelo governo israelense de Ariel Sharon, as manifestações anti-semitas deflagradas em vários países da Europa (aparentemente em função do imperialismo sem fronteiras de Israel, mas que transcendem o fato e reavivam preconceitos seculares) têm levado os judeus em todo o mundo, religiosos e seculares, a pensar em sua condição e em sua maneira de se ver como tal. Se havia algum desejo de dignificar a trajetória destes meus “sujeitos”, elegendo a vida deles como enredos que deviam ser contemplados pela história brasileira, por serem ao mesmo tempo singulares e ordinárias, a atual associação do judeu com as práticas e as figuras que pregam o irracionalismo, a intolerância e a exclusão, reitera o meu desejo de resgatar um tipo de judaísmo humanista, que alude ao avesso disto tudo. Esta tese representa, neste sentido, uma tentativa de contribuir para que as memórias produzidas no contexto específico da prática da história oral adquiram maior envergadura, abrindo inúmeros caminhos de pesquisa, que se desprendem da leitura e interpretação destas fontes: judaísmo e desterro, judaísmo e nomadismo, judaísmo e ambivalência, judaísmo e transmissibilidade, judaísmo e coletivo, judaísmo e obscurantismo, judaísmo e conflitos edipianos, judaísmo e universalismo, história oral e arte, história oral e amizade, história oral e política, a história oral e o imponderável. Para que estas memórias estabelecessem um diálogo e não permanecessem insuladas, o esforço foi de contextualizálas no âmbito do cenário brasileiro e da problemática judaica mais geral, revelando o diálogo constante e fecundo que existe entre a subjetividade (individual ou coletiva) e o social.

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Apoiando-se inteiramente em fontes orais, o trabalho é também (e fundamentalmente) uma discussão sobre o estatuto epistemológico do método da história oral. Ao aprofundar a reflexão sobre o potencial da história oral para os estudos e pesquisas da subjetividade, espero fazer com que a pesquisa traga novos aportes sobre o método, lançando luz sobre os impasses e possibilidades criativas com os quais ele hoje se confronta. A opção por uma escrita pouco segmentada, que contempla simultaneamente a interpretação das fontes, a contextualização histórica, a discussão metodológica e também a apresentação do instrumental teórico utilizado, justifica-se na crença de que seja este o traçado do pensamento, com suas acelerações bruscas, associações inusitadas, lentidões, vertigens10 . O trabalho é, portanto, um exercício do pensamento em seu ato de gestar-se, sem privar o leitor de seus descaminhos, tortuosidades e bainhas inacabadas. Por último, é importante ressaltar que a inclusão de depoimentos com poucos cortes (prática incomum aos historiadores que trabalham com fontes orais) deve-se ao fato de que a extensão com que cada um de meus “intérpretes” se dedica a elaborar suas marcas judaicas, acredito, seja um indicativo da qualidade de sua inscrição no tecido subjetivo de cada um.

10

Apresentação de PELBART, P. P. em DELEUZE, G. Conversações, São Paulo: Ed. 34, 1992.

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Capítulo 1 – A “mesma coisa” que difere: memória e judaísmo. A reposição do campo de problemas com base em um encontro fortuito (talvez intuitivo) com um conjunto de textos de comentadores de Foucault11, reacendeu o frisson que a pesquisa havia despertado em seu início e que se arrefeceu pela então falta de transpiração entre teoria e fontes. A simples e lacônica pergunta foucaultiana de entender como e por que as pessoas são do jeito que são, quais são as condições de possibilidade que as levam a sentir, pensar, criar e agir de uma determinada forma, deu o amálgama de sentido que faltava para promover a “ciranda melódica” entre as várias narrativas, sem neutralizar a sua dissonância de tom, ritmo e intensidade. Neste novo horizonte de perguntas e questionamentos, a memória passou a ter o lugar de destaque que ela verdadeiramente ocupa no contexto desta investigação, deixando de representar uma simples ferramenta para perfurar as zonas recônditas do entrevistado, em busca da proveniência étnica de seus afetos. A memória é muito mais extensiva e ubíqua – por seu excesso de referências ou pela falta delas – nas formas de existência do que suas expressões sugerem, não se limitando, portanto, à quantidade e qualidade dos conteúdos lembrados. Todos os dados aparentemente “invisíveis”, que subjazem ao elenco de estórias/experiências contadas, são tão ou mais relevantes do que elas: o assombro ou não diante da demanda de rememorar, o grau de disponibilidade para embarcar neste pedido, a maior ou menor delicadeza diante das lembranças, o maior ou menor conforto de percorrer suas veredas, a extensão dos rincões de silêncio e esquecimento fincados em suas memórias, o tipo de memória convocada – afetiva, visual, cronológica –, a necessidade ou não de reiluminar o passado para engordar as possibilidades do presente. Deleuze e Guattari destituem a memória de uma condição imaculada, como se ela dispusesse de um local psíquico e repertórios próprios, indiferentes e refratários às interferências e plasticidade da trama subjetiva. A maneira de trabalhar, de desfrutar o lazer, de viver em família, de inventar a amizade, de se alimentar, de se relacionar com o corpo, de viver a sexualidade, assim como dimensões mais abstratas da experiência, tais

11

Foucault - Um pensamento desconcertante. In: Tempo Social. Revista de Sociologia da USP, São Paulo: FFLCH/USP, v. 7 – n. 1-2, out.1995.

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como o modo de pensar, sentir, sonhar, lembrar são todas elas fabuladas tendo esta “tela elástica” como abrigo e, ao mesmo tempo, farol. Além disso, a tônica da memória se torna mais instigante e complexa pelo próprio grupo que é investigado e pela posição nevrálgica que desempenha para a sobrevivência do povo judeu, por ser o exílio a experiência matricial e atávica. Franz Rosenzweig e Maurice Blanchot elegem o exílio do primeiro patriarca hebreu, Abraão, como paradigmático da construção da identidade judaica, o qual não foi deflagrado por uma situação coercitiva, mas pelo desejo de abertura e promessa. Para ambos, o êxodo, a ausência de um lugar fixo, leva o povo judeu a construir sua pátria fincada e sustentada basicamente na palavra, no livro. A materialidade e a espessura do patrimônio judaico dependem da solidez com que o edifício da memória é construído e, por outro lado, da flexibilidade de se metamorfosear ao longo das gerações mantendo incólume o seu apelo e sua função aglutinadora. A memória judaica – Zakhor – contempla, portanto, uma noção de tradição que tem como premissa a transformação, a renovação. Dentro dos preceitos religiosos judaicos, cada nova geração tem a responsabilidade e o dever de reeditar o passado, imperativo que se encontra inscrito no próprio Antigo Testamento, na Torá. A exposição contínua desta memória errante, “mal-agasalhada” perante as tempestades históricas, obriga o judeu a manter-se em permanente vigília para que seus finos e degradáveis contornos não sejam erodidos nem o compromisso com Deus seja desfeito. Segundo Sybil Safdie Douek: (...) o Zakhor judaico, que como bem contabilizou Yerushalmi aparece na Bíblia 169 vezes. Este, conforme já se assinalou, nada tem de fortuito: não é obra do acaso como a memória involuntária proustiana. Ao contrário, é dever, imperativo ditado por Deus, ou, talvez seja melhor dizer, imperativo que os homens colocaram na boca de Deus, imperativo portanto humano, que se erige enquanto imperativo, pois o homem conhece bem a alegria e o alívio que traz o esquecimento.12

12

DOUEK, S. S. Memória e exílio. São Paulo: Editora Escuta, 2003, p. 122.

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A obra corrosiva de Walter Benjamin, que se erige no interstício entre a teologia judaica e o materialismo histórico, rompe com o cisma que se instaurou entre a memória e a história judaicas, como se uma fosse exclusivamente do âmbito do sagrado e a outra, do profano. Profundamente mobilizado pelas questões de seu tempo – o triunfo do individualismo moderno, que extirpou a possibilidade de uma palavra redentora entre uma geração e outra; os horrores da Guerra perpetrados em nome da civilização e da razão; o esvaziamento da tradição oral decorrente da experiência ignominiosa do combate nas trincheiras da Primeira Guerra –, Benjamin elabora sua filosofia da história buscando reverenciar e ao mesmo tempo libertar o passado com seus atores e sofrimentos esquecidos, bem como suas possibilidades não semeadas. O compromisso desta sua história é, acima de tudo, com o presente, pois é nele e através dele que a retomada transformadora e a emergência do novo podem se inscrever. Como afirma TzvetanTodorov: O passado é benéfico não quando alimenta o ressentimento ou o triunfalismo, mas quando o seu gosto amargo nos leva a transformar-nos a nós mesmos.13 Apesar da densidade da obra de Benjamin, que dificultam a sua compreensão, o contato com o seu edifício teórico, mesmo que intermediado por seus comentadores14, causa estupor. O compromisso ético-estético-político contido em suas idéias é de uma inquestionável pungência: a história como catástrofe e ruína, o passado inacabado à espera de um presente que o expanda, o passado oprimido pedindo ao presente sua redenção, a necessidade de uma escrita da história a contrapelo, que reacenda a esperança e o futuro que não foram possíveis, a ética daqueles que deliberadamente tomam para si a responsabilidade de desencarcerar o passado.

13

TODOROV, T. O homem desenraizado, Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 75. Grande parte das idéias de Walter Benjamin reunidas e citadas ao longo da tese foram baseadas e extraídas de publicações e textos da filósofa GAGNEBIN, Jeanne-Marie: História e narração em WalterBenjamin, São Paulo: Editora Perspectiva, 1999; Memória, história e testemunho. In: BRESCIANI, S. & NAXARA, M. (orgs.), Memória (res) sentimento – Indagações sobre uma questão sensível, Campinas: Editora da Unicamp, 2001; Prefácio – Walter Benjamin ou a história aberta. In: Walter Benjamin, Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1985; Prefácio. In: LAGES, S. K. Walter Benjamin – Tradução & melancolia, São Paulo: Edusp, 2002; Teologia e messianismo no pensamento de Walter Benjamin. In: Usp –Estudos avançados, Dossiê Memória, São Paulo: USP, v. 13, n. 37, set/dez. 1999; Verdade e Memória do Passado. In: Projeto História – Trabalhos da memória. Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC/SP, São Paulo: Educ, n. 17, nov. 1998. 14

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A aspiração desta proposta é manter-se ladeada pelo universo benjaminiano, ao longo de todo o seu processo de elaboração. A produção das fontes orais, com todos os seus limites intrínsecos, ajustes específicos e contingências dos encontros com os entrevistados, procurou desencadear no espaço da entrevista uma reflexão crítico-lírica que os convidasse a penetrar sem assepsia na espessura da experiência. A atenção e o respeito não apenas pela aspereza dos fatos, mas também pelo que é novo e está em vias de nascer como assevera Nietzsche sobre a radicalidade de uma historiografia não-fatalista, é o que parece aproximar a história fabulada por Benjamin do campo da Arte. Da mesma forma que o processo criativo de um artista exige um trabalho impiedoso em torno de todas as suas sensações e experiências (reais, imaginárias, virtuais, passadas, futuras), muito distante da imagem vulgar do artista como um “ser iluminado”, demiurgo interpelado intermitentemente por forças etéreas, o mesmo esforço paciente e diligente é também necessário para que a vida e a história de uma vida ganhem o estatuto de um artefato artístico. O fato de estar coletando memórias e experiências de artistas não assegura esta qualidade na urdidura da narrativa, como ingenuamente eu supunha. Não há uma relação de causalidade entre a condição de artista e a narração autobiográfica poética. Segundo Peter Pál Pelbart: Produzir o novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer – novos desejos e novas crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação produzida por qualquer um, por minúscula que seja, ao propagarse e ser imitada torna-se quantidade social, e assim pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não

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é efeito ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência política.15 No seu conjunto, a história oral com estes artistas traçou um mosaico que contempla uma diversidade enorme de enredos e temas. Diferentes histórias de imigração (umas mais épicas, outras menos), diferentes formas de adaptação no Brasil (umas com mais privações econômicas na infância do que outras), diferentes percepções sobre a vida no interior da colônia judaica (algumas extremamente opressivas, outras celebrativas), experiências antisemitas em todas as escalas (subliminares, jocosas, explícitas e violentas), práticas militantes (estudantil, político-partidária, coorporativa), diferentes sentimentos diante das pátrias de origem de seus ancestrais (alguns com forte sentimento nacional, outros com uma profunda xenofobia), percepções sobre o Brasil, adversidades e facilidades no ingresso da carreira artística, relação com a Arte na contemporaneidade, entre tantas outras ramificações. A aposta engajada na história oral como recurso privilegiado para rastrear as marcas sensíveis que coreografam as tramas subjetivas, impõe desafios que transcendem a compreensão, mesmo que profunda, do conteúdo latente manifesto nos documentos orais. Para além da candura e da beleza que certos relatos assumem, o compromisso desta arqueologia é buscar desfiar o tecido adensado de um modo de existência, em busca da singularidade e intensidade de seus afetos. A ética benjaminiana de engajar o presente na liberação dos elementos inacabados do passado, inscrevendo nessa retomada a novidade radical que promete o futuro em cada instante do presente, define o tom da pesquisa e a interpretação dos relatos no confronto com seus inúmeros pontos de resistência e planos interditos. Imbuída do objetivo do historiador reivindicado por Benjamin16– um profeta às avessas que, ao invés de olhar para o futuro em busca dos descendentes liberados, tem a missão de convocar os antepassados escravizados –, procuro, ao invés da solidez dos fatos, seus semblantes, ou vultos do vivido que nunca tiveram a chance de se anunciar, ou seja, as

15

PELBART, P. P. Biopolítica e biopotência no coração do Império. In: Nietzsche e Deleuze – Que pode o corpo, LINS, D. & GADELHA, S. (orgs.). Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 255. 16 DOUEK, Apud Sybil Safdie, p. 84.

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possíveis “dimensões escravizadas” que se insinuaram ou se ocultaram no relato dos meus entrevistados. A resposta diante da demanda de perscrutar as alamedas da memória, apesar de um fato histórico incorpóreo, revelou-se evocativo. Explicitada nos “bastidores” da cena, e não no ato do “jogo dramático” que representa a situação da entrevista, a reação diante da pesquisa (entusiasmo, indiferença, cautela, ansiedade, engajamento, entre outras) já integra o extenso repertório de fatos que o conhecimento engendrado pela parceria e pelo encontro produzem. Ao contrário do pesquisador que debruça sobre a documentação escrita ou iconográfica, que luta para não ser sucumbido ou assombrado pela morbidez do passado e pelo fantasma da ausência, o historiador oral defronta-se com o seu avesso, com o excesso de vitalidade do presente e com a pujança da presença. Além disso, diferentemente de trabalhar com populações carentes, em geral alijadas do discurso historiográfico ou que padecem de uma espécie de hipotrofia da sua consciência histórica, a história oral com grupos de plena aceitação social exige uma apuração auditiva por parte do pesquisador para que não sucumba aos possíveis barroquismos e requintes das narrativas, muitas vezes saturadas de significado e intensidade. Para Deleuze, a crença no mundo depende justamente da capacidade de suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapem às diversas e dissimuladas formas de controle. Segundo ele: De modo que o problema não é mais fazer com que as pessoas se exprimam, mas arranjar-lhes vacúolos de solidão e de silêncio a partir dos quais elas teriam, enfim, algo a dizer. As forças repressivas não impedem as pessoas de se exprimir, ao contrário, elas as forçam a se exprimir. Suavidade de não ter nada a dizer, direito de não ter nada a dizer; pois é a condição para que se forme algo raro ou rarefeito, que merece um pouco ser dito.17 A certeza da fragilidade e incompletude dos discursos em geral, e particularmente do oral, em razão de sua sensibilidade às diversas contingências – desde interferências prosaicas como uma noite mal-dormida, uma cadeira desconfortável, um ruído insistente que vem da rua, até obstruções mais profundas, como a existência de um grande trauma, a ausência de 17

DELEUZE, Gilles. Conversações, São Paulo, Editora 34, p. 161-162.

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empatia com o tema e com o interlocutor –, obriga o historiador oral a se despojar do ideal de conhecimento que almeja a apreensão total do objeto estudado. Como afirma JeanneMarie Gagnebin: Nem a beleza do mundo nem o sofrimento humano podem verdadeiramente ser ditos.18 No entanto, a condição orgânica da fonte, o seu caráter vivo, acalenta uma ansiedade particular, que é a de aquiescermos o direito de explorá-la irrestrita e indefinidamente, em busca de seus segredos, de seu fundo mais a fundo, ou, quem sabe, de sua verdade ainda não formulada. Uma das grandes dificuldades de trabalhar apoiando-se no método da história oral é justamente perceber a tênue barreira que cada um dos diálogos nos impõe (e não há uma cartilha para isto), em outros termos, o momento ou a expressão do “intolerável”, sem nos privar da nossa responsabilidade como investigadores/questionadores, mas sem esticá-los além do que pode ser elaborado naquele momento, arranhando assim a ética/dignidade de quem narra. A história oral neste início do século XXI se depara com um desafio inerente a este tempo de capitalismo mundial integrado, que é o de desentulhar-se de enredos prêt-a-porter sobre os acontecimentos, e mais perniciosamente ainda, sobre as formas de existência individual, coletiva e de massa. O cinema, a televisão a cabo, a internet, as viagens internacionais facilitadas, as exposições de arte globalizadas e até a própria literatura, a mais vulgar, parecem nos fornecer hoje uma profusão de informações, dados, sensações, imagens, cheiros, sonhos e frustrações que antecipam e também empobrecem a surpresa e o caráter erótico do encontro, não só com pessoas, mas também com as coisas e com a própria Natureza. Na verdade, tanto a Shoah19 como a experiência da Diáspora judaica não escaparam dos riscos de homogeneização cultural característica de certas produções de consumo de massa atuais. Ao longo do século XX foram bastante retratadas pelo cinema e pela literatura testemunhal. No entanto, da miríade de referências existentes, poucas obras desfrutam da 18

GAGNEBIN, J-M. Teologia e messianismo no pensamento de Walter Benjamin. In: Estudos avançados – Dossiê Memória, p. 200.

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Significa “catástrofe”, e tem sido utilizada, em substituição à palavra holocausto para designar a tragédia que se abateu sobre os judeus por iniciativa do governo hitlerista da Segunda Guerra Mundial com a criação de campos de concentração e de extermínio resultando na morte de 6 milhões de judeus. Também não escaparam os ciganos, os opositores de regime hitlerista, comunistas ou socialistas, e os homossexuais.

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insígnia de grande arte. O laureamento de Primo Levi, e mais recentemente de Imre Kertész, na literatura, e de Claude Lanzmann, no cinema, deve-se ao ardil de seus criadores em acolherem o sofrimento irresolvido, falarem do que escapa à sintaxe e apostarem, a despeito da fragilidade e alcance da linguagem, na comunicação como construtora de uma possível humanidade. A compaixão diante da dor, que se sobressai destas obras, se expressa na compreensão do tíbio alcance do discurso como paliativo ou justificativa da barbárie que se instaurou sobre a humanidade. Não obstante, ele é a memória possível do que se revelou ininteligível e a forma de dar-lhe alguma tangibilidade, sem a qual este sofrimento padece no silêncio e no esquecimento. Influenciada por estas referências onipresentes da saga trágica da experiência judaica ao longo do século XX, ao ir ao encontro dos meus depoentes, nutri uma crença silenciosa de que encontraria um tipo de script reincidente, no qual sobressairiam os horrores da guerra e os conflitos inerentes à vida em gueto, comum à diáspora de refugiados em busca de uma recomposição artificial do universo deixado para trás. Surpreendentemente, poucos relatos, entre os 21 que foram colhidos, centraram-se de fato nestes dois aspectos. O que por si só não os valora nem os deprecia. A força expressiva dos relatos que enveredaram por estes domínios não se revela apenas na repetição do caráter assolador ou opressivo destas experiências, mas na habilidade que demonstraram em driblar, de modo singelo, o tom ora melancólico, ora ufanista que “grampeou” de certo modo a narração judaica pós-Auschwitz. A experiência da humilhação judaica no século XX é um fato inconteste e ignominioso. O que está sendo alertado, não obstante, é o fato de que historicamente produziu-se um tipo de “testemunho autorizado”, que em razão de sua magnitude e extemporaneidade inibiu a expressão de elaborações paralelas, marginais, dissidentes do enredo trágico daqueles que sobreviveram ou coexistiram a Shoah. Seria uma falácia negar o aspecto convulsivo das vidas que são atravessadas e, muitas vezes, até interceptadas por gigantescas forças históricas. Não há como comprimir o tecido subjetivo ao ter de se equilibrar em certezas que se despedaçam, em princípios que se desfazem, em horizontes que se esgotam e sob a ameaça constante da própria sobrevivência material e orgânica.

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Mas nem sempre o sofrimento e a dor foram narrados supondo como ponto de partida uma memória clara e coesa a respeito dos acontecimentos históricos. Na verdade, as narrativas da dor são, freqüentemente, plenas de muitas origens, apresentam-se de modo fragmentado e dependem, em certa medida, da relação travada com o aqui e agora. Diferentemente do que se propagava no momento de afirmação militante da história oral, não há uma qualidade intrínseca à oralidade que traga em seu bojo transparência e intimidade com o que está sendo ruminado pelo corpo. Pode haver um fosso cindindo a “carne” do “verbo” muito maior do que é necessário para que ambos não se autoconsumam completamente e possam se manter em relação. Fazer da fala um ato político, estético e crítico não tem nada de espontâneo e contingencial, exige uma tomada estratégica de posição. Uma vida próspera em termos de exposição ao mundo pode brecar e esterilizar sua turbina inventiva, desperdiçando o seu rico repertório de sensações em busca da tranqüilidade e segurança de um enredo mais “dócil e palatável”. Pode-se viver uma vida insurreta e irreverente, sem, necessariamente, transcrevê-la e transmiti-la ao mundo com o mesmo estofo transgressivo. Desta forma, a ousadia potencial do dizer em fabular um corpo para o inexistente e o incontido é “traída”, e o dizer, ao invés de vazar, contém, ao invés de molhar, resseca, ao invés de deflagrar, encerra. Como afirma Laymert Garcia dos Santos: Dizer é momento de produção de afirmação que surge no bojo de um movimento. Movimento de expulsão, de esconjuro, de exorcismo das forças da morte que se apropriam da energia vital, voltando-se contra ela mesma. Dizer é um momento de luta feroz e surda a que se entregam as forças da morte contra o sopro da vida. Dizer já é um início de vitória – mas não se diz o começo da luta, este é indizível. Quando se chega a dizer, é porque a barragem que represava o sopro já sofreu o primeiro abalo[...] No meio do combate terrível, que nos ensangüenta imperceptivelmente desde sempre, dizer é sinal de que o sopro de vida lateja mais forte, quer e pode existir sem buscar se aniquilar. Sinal que des-solidarizou-se das forças de morte [...] Séculos e séculos de servidão formaram, transformaram, refinaram

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as forças da morte em vida. Em toda parte, em todas as instâncias elas se impõem como carne a envolver o osso da existência.20

* * * O depoimento da fotógrafa CLAUDIA ANDUJAR21 revela, de forma serena o que seja uma palavra empenhada e combatente. A pungência de seu relato se deve, em parte, aos acontecimentos nada ordinários vividos na infância e na juventude – separação precoce dos pais, falta de comunicação com o pai, novos casamentos da mãe, envolvimento do padrasto com a Gestapo, deportação da família paterna para o campo de concentração, fuga da Hungria, doença da mãe, imigração para os Estados Unidos, chegada ao Brasil –, mas, sobretudo, aos sentidos que foram sendo formulados pelas experiências e extraídas delas. Não há nele uma reverência resignada ao fato, nem um esforço de torná-lo mais palatável, heirocizando a si próprio, seus interlocutores e suas ações. Há um esforço original de aproximar o corpo intensivo da palavra, o qual exige trabalho, tempo e disposição. Sem arvorar poderes mágicos para o relato, uma narração autobiográfica genuinamente investida e talhada tem a força diáfana de funcionar como disparador de um processo de reconfiguração subjetiva, ou mesmo de consagrar um processo já em curso e ainda não completamente amadurecido. Embora o pesquisador não tenha como contemplar na produção de seu saber quando este processo teve início e quais serão seus possíveis desdobramentos, tem acesso à centelha produzida no encontro do depoimento, que é o território de suas especulações, de suas intervenções e de sua utopia. O relato de Claudia é militante. Apesar do caráter agônico de grande parte dos acontecimentos narrados que tem o não como marca distintiva – a não-memória, a nãoconvivência, a não-língua, a não-despedida, a não-permanência, a não-pertinência – há um empenho deliberado de Claudia em salvar os poucos despojos restantes para lhes dar 20

GARCIA DOS SANTOS, L. Tempo de Ensaio. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.13. Claudia Andujar é fotografa, nasceu na Suíça e passou a infância na Hungria. Radicada no Brasil desde 1957 e naturalizada brasileira. Atuou de 1958 a 1971 como fotorepórter free-lancer para as revistas Realidade, Claudia, Setenta, Good Year Brasil e em publicações estrangeiras tais como Life, Look, IBM, Fortune, Horizon USA. A partir de 1972 passou a fotografar os Yanomami. Obteve a bolsa da Fundação Guggenheim em 1972 e 1974 e da Fapesp em 1976. Em 1978 foi co-fundadora da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), coordenando a campanha pela demarcação das terras (1978-1992). Até hoje atua na CCPY dirigindo os projetos de campanha e educação.

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alguma musculatura e arrancar-lhes da tônica do ressentimento e da dor. O que parece conferir ao seu passado um caráter fantasmagórico é menos a possibilidade de sua ressurgência, com suas práticas, sensibilidades, ditames e horizontes, e mais a certeza inquestionável da ausência de lastros que o circundam. Portanto, o pedido subjacente à pesquisa Intérpretes do desassossego, no sentido de cavoucar memórias, destacando as marcas judaicas e avaliando a intensidade que reverberam na sensibilidade contemporânea, não tem nada de pueril ou vicejante para Claudia. O esforço de retroversão às pegadas deste percurso, a fim de extrair suas inscrições sensíveis, a faz povoar e escorchar o grande “deserto” que consubstancia sua origem. Ao se comprometer com esse enfrentamento, Claudia procura localizar as linhas do possível, que podem ser identificadas pelo presente neste retorno ao passado, procurando encontrar algum sentido ou muitos para o nada. Falar deste seu passado judaico22 é sua forma de afirmar o dizer como sopro de vida, como exorcismo das forças de morte, como afirmação que surge no bojo de um movimento, como afere Garcia dos Santos em trecho anteriormente citado. Ao tentar resgatar o nada do seu nada de sentido, Claudia procura resgatar a língua menor de seu judaísmo, dando-lhe alguma materialidade e positividade. O nada parece ser substituído por vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, capacidade de drible. A atitude pró-ativa do presente para inventar um passado, sem deixá-lo à sua própria sorte, ou seja, arrancando-o de seu estado letárgico e desolador, legitima o caráter performativo que Claudia confere à palavra, que não só representa o que não existe mais, o vivido, mas age sobre ele, intervindo. 22

Pelo que pude avaliar, a necessidade de Claudia ressaltar esta sua pertinência é relativamente recente já que publicamente poucas pessoas que acompanham sua trajetória profissional sabem da sua origem judaica. Pouco menos de um ano depois da realização do depoimento, Claudia concedeu uma entrevista para a Revista 18 do Centro de Estudos Judaicos/Casa de Israel ressaltando, entre outras coisas, sua herança judaica, sem destacar o contexto desterrado no qual ela estava envolta. Incluo um pequeno trecho deste registro a fim de salientar as diferenças de tom e entrega entre ambos. [...] Claudia nasceu em 1931, na Romênia, mas passou sua infância em Nagyvárad, na Hungria. Foram anos felizes aqueles. Estudava em escola judaica e o ambiente tranqüilo da casa de seus avós paternos marcou profundamente sua alma. Quando seus pais se separaram, em 1938, Claudia foi morar com o pai. Aos 11 anos, foi mandada para um internato de freiras, uma experiência bastante confusa. A vida tornara-se difícil para os judeus. A fábrica de seu pai foi confiscada, e ele, com outros parentes, passou a morar num gueto. Quando o internato de freiras fechou, em 1943, Claudia foi morar com sua mãe que, estrangeira e protestante, na Hungria, morava fora do gueto. Claudia intuía que perigos rondavam seu pai e avós, mas não compreendia o que estava acontecendo. Lembra com carinho da última visita do pai – não podia saber, mas era uma despedida. Logo depois, ele foi deportado, com outros membros da família, para ðuöcöwötö,öoödö öeöeöeöaö öoöo÷.òDösöpöröcöaöcömöeöeö ö öuödö ÷uò ölöuöiö öoöhöcöaö önöeösö öe÷tòaöeö öaöaö

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Claudia assume as imensas passagens borradas de suas memórias, as várias zonas de fragilidade, os poucos marcos cultivados, as várias promessas abandonadas. Nas pausas, na respiração, nas reticências, na austeridade, na falta de disposição de dissimular a recorrência dos fossos com os quais foi se confrontando, Claudia tece sua narrativa com cores de verdade. Não tenta preencher o passado com o que não se lembra mais e mantem no indeterminado tudo o que desconhece. Lembrando-se da natureza da pesquisa, que se apóia na experiência de campo, é impossível não destacar um atributo incorporal que parece imiscuir-se à imagem de Claudia e que confere mais agudeza ainda aos conteúdos narrados: a dignidade. Passear por trechos da narrativa de Claudia é uma forma de penetrar em seu diapasão. [...] Ambas as famílias de tradições muito diferentes. [...] Acho que gerou conflitos fundamentais. Eu, na verdade, não sei se minha mãe se perguntou sobre isso. Eu não sei. Mas eu era muito pequena, então era muito difícil ter uma intimidade com isso. É mais uma reconstrução que estou fazendo de como eu entendi minha mãe, que no fundo era uma pessoa rígida do ponto de vista moral. Eu acho que lá houve essa dificuldade de entrosamento entre os dois. Bom, eles se separaram, eu tinha 6 anos. Então, eu me lembro de pouquíssima coisa da minha vida com meu pai e minha mãe. Não tenho nenhuma recordação de ter, por exemplo, jantado na mesma mesa ou ter feito um passeio com os dois. Não tenho nada disso. E não tenho nenhuma recordação da vida deles. Só me lembro do fim da vida deles juntos porque foi meio brutal, vamos dizer. Eu vejo isso, realmente, como um conflito de dois mundos que não conseguiram se encontrar. [...] Eu ouvi histórias sobre o meu avô, mas não o conheci. Eu o conheci através da minha mãe, que tinha uma ligação muito grande com ele. Ele falava muitas línguas, era uma pessoa muito culta, e parece que foi um intelectual. [...] A família paterna parece que veio da Tchecoslováquia e se mudou para a Transilvânia. Mas eu não conheço direito a estória, sei que meu pai nasceu lá. [...] Mas o que se falava na família era alemão e húngaro. Minha avó, mãe de meu pai, falava essencialmente alemão. Parte da família vivia em Viena. Eram todos advogados, médicos, enfim, eram todos profissionais liberais. Meu pai era engenheiro. O problema é

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que eu não tenho uma recordação agradável do meu pai. Vivemos numa casa bastante moderna para a época. Eu me lembro da casa, mas não me lembro do meu pai com minha mãe. Eu me lembro dele depois, depois que minha mãe foi embora. Ela foi embora, ela saiu de casa [...] Eu fiquei com ele. Eu fiquei muito infeliz de ficar lá naquela casa, porque meu pai tinha uma raiva muito grande de minha mãe, então, quando minha mãe foi embora, eu o vi ainda menos, quer dizer, eu vivia sozinha. [...] Olha, uma das dificuldades era que como na época era Romênia, na escola só podia se ensinar em romeno e na época as escolas judias não falavam bem o romeno. Eu não sei se meus professores falavam bem o romeno, mas foi uma coisa muito difícil, por causa da questão da língua, de aprender numa língua que era estrangeira à minha materna. Disso eu me lembro por causa da dificuldade. Eu me lembro das crianças, e me lembro de uma professora que foi gentil. [...] Como eu te falei, eu tinha uma avó, a mãe do meu pai, ela é a pessoa de quem eu mais me lembro. Ela sempre foi muito carinhosa comigo. Foi realmente a mulher que mais me acolheu. Eu passava às vezes os dias com ela. Quando eu me lembro dela, eu me lembro das suas gentilezas. [...] A família não era muito religiosa. Na Hungria, nas festas judaicas, eu ia à sinagoga. Disso eu me lembro. Por exemplo, na escola eu tinha que aprender a ler em hebraico. A ler sem entender o que estava lendo. Era oðmötödö.öOö öeösöpörönöeö,ösöm÷dòvödö,ösö ödönöiöiöaöaö öoöoös÷nòoöjödöuö.ö[ö.÷]öAögöeörö öaöH÷nòröaö [ö.÷]öAögöeörö öaöH÷nòröaö öaöTöaösölöâöiö,öeöaöcöe÷oò öeöeötöaö ömöcönöaöoöcömömön÷aòaötönöaöuöaöiöeötöföcöçöoöéön÷cò ö öuötörölöc÷möoöjödöíömö,öe÷bòrö öãö öoösömöjödöuö öröoöoöo÷,òiösö öuömö öeöböoömöiöoöbömö ÷oòqöeöaöéöaöeöcölö öuö öuöföeöü÷nòeö örö öoösödör÷dö ömö ösöoöa÷lòbörölö ö.ö.ö öeö öaö öeöoösös÷ òaöoö öeönövö.öEöeöeöcösöuösö ÷oò ömö öuöhöröcöjö öaöíöiö örö ÷uòtö öaösörölögöoöaödö öuö ö öo÷mòuöpöiö öiöhö öãö öeöcönöeötöu÷að öuöaösöoö öãö öeö öeöpörö öa÷aò,ömösöeöaönönöaöpöaöiöoö ö öu÷aòsöoö ölösösö öeöaöaöaö öuönöoÿeð öiöhö ö önösö öeöoösöeö öoöt÷nòeö ö öiöeö öoö öeö öaö.öEö öeÿlòmörö öoömöuöpöiöqöaödö ölö öe÷cðsöuödö öoöoöcömöeösö

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öuöhöröq÷eòeöaöjödöaö ölö örö ömö öiölön÷sòaö ölö öeö öeöcönöaöqöeöeö öã÷ òxösöiö[ö.ö]öEötömöéö ö öaöaöe÷tò öeöeö öãö öuöoö öuötö,öpöröu÷ òoöaömönöaöföm÷löaöeöeöaöföröm÷dòpöröaöoö.öFörömösöpörödösö ö ÿiòhö öãö öaöbömösö öaöoö öeönöv÷,òoömörödö öeöaöeöaötömöéö öuöe÷,òeöaöuö öéöiöoöcömöqöeö ölö öa÷bém tinha dificuldade de se relacionar, eu acho que um pouco pelas mesmas razões que ela teve com meu pai. Depois ele foi como médico levado para a Rússia, e ela ficou sozinha. Encontrou um outro homem que não era mais judeu, um húngaro, e depois entramos na guerra. Vieram às deportações, uma coisa muito violenta[...] Isso eu me lembro bem. Quando isso aconteceu, antes das deportações, quando a guerra se aproximou, os dois lados, os russos que avançaram sobre a Hungria, os alemães que ocupavam a Hungria, eu estava vivendo num internato católico, porque, a uma certa altura, eles me tiraram da casa do meu pai por causa da minha ascendência judaica e me colocaram num convento. Eu morei lá, mas pouco tempo, nem chegou a um ano, quando começaram as deportações. As escolas fecharam e eu não tinha mais para onde ir, então me refugiei na casa de minha mãe, que estava vivendo com esse húngaro que tinha ligações com a Gestapo. É uma coisa muito complicada... [...] Bom, são estas, vamos dizer, as minhas memórias. A minha primeira grande lembrança foi quando minha mãe saiu de casa. A outra grande lembrança é de quando meu pai foi preso. Foi deportado e nunca mais o vi. Antes da deportação do meu pai, por causa dessa ligação que minha mãe tinha com esse amigo, e que ele tinha com a Gestapo, eu sabia que ele ia ser deportado. [...] Eu tinha muito medo do meu pai porque ele foi muito cruel comigo, eu quis avisá-lo de que ele ia ser deportado e ele não acreditou, ele não fez nada, foi levado. Eu tenho uma lembrança extremamente forte dessa despedida. Bom, era a época da guerra, e a gente já estava sendo bombardeado continuamente. Finalmente, minha mãe resolveu me esconder porque eu era meio judia. Os russos estavam na periferia da cidade e minha mãe decidiu deixar tudo, e a gente saiu num trem de refugiados da cidade e fomos com destino à Suíça. Viajamos bastante e finalmente chegamos. Tem muitos detalhes no meio disso também, minha mãe quase morreu. Por causa da doença da minha mãe, paramos em Viena, ela foi hospitalizada em Viena. Fomos muito interrogadas pela Gestapo, éramos estrangeiras e, finalmente, depois de dois meses, minha mãe sarou e conseguimos visto para irmos para a 35


Suíça. A Gestapo não descobriu que eu era meio judia. Eu vivi num pensionato, que me foi recomendado pelo Consulado Suiço para poder permanecer. Como na época você conseguia comida com bônus, e eu não tinha bônus,– não era de lá né?, através de favores, eu consegui me virar. Eu passava quase o dia inteiro sendo submetida a interrogatórios, mas, no fim, a pessoa que me pegou ou não sabia ou nunca me falou que sabia que eu era judia. Se sabia não me falou. A gente ainda conseguiu sair com uma bagagem de lá, eles vasculharam tudo, tudo. Sabe, acho que foi naquela época que eu aprendi a lidar com todo tipo de situação e conseguir sobreviver nessas situações, porque foi a primeira vez que eu me encontrei no caos total. Talvez essa coisa de saber me virar em qualquer situação já tenha começado lá na Hungria, quando meu pai me proibiu de entrar em contato com minha mãe. Eu driblava para ir ver minha mãe, eu conseguia. Nas vezes que ele descobriu, ele me bateu, porque, como eu te falei, ele era muito violento. Mas eu continuei a driblar, a fazer minha vida do jeito que conseguia. Depois essa coisa continuou nessa viagem, no trem de refugiados. Era também uma viagem muito complicada, era sempre aquela coisa de eu não poder falar quem eu sou, então na Áustria, em Viena, com a Gestapo, a mesma coisa. [...] Eu levei muitos anos, muitos anos para falar dessas coisas, desse passado judaico. Mas muitos anos. Até hoje é difícil. Mas, então, você me perguntou em Viena, a minha vida foi isso, foi um drible. Mas, ao mesmo tempo, eu me lembro bem, em Viena, tem um parque de diversões e quando eu tinha um momento livre eu ia lá, eu ia na roda-gigante, essas coisas. Essa é minha recordação de Viena, bom, fora os bombardeios. Durante os grandes bombardeios, as pessoas iam para os abrigos e, às vezes, eu encontrava judeus. Era muito fácil de ver porque os judeus tinham uma estrelinha amarela. E quando eu sabia que não estava sendo observada, eu tentava saber de onde eles vinham e se sabiam alguma coisa da família de meu pai. Eu tenho recordação disso, e tenho recordação da minha mãe que estava no hospital e, por causa dos bombardeios – eram bombardeios diários – nunca sabia se iria vê-la de novo. Então sempre depois do bombardeio eu ia até o hospital e olhava pela janela para ver se ela estava viva. Eu não podia entrar porque era um hospital de doenças contagiosas. [...] Como eu falava alemão, não tinha muito problema. As amizades eu fiz dessa maneira, até mesmo com o cara da Gestapo, com quem eu fiz amizade no fim. Era a pessoa que 36


estava mais perto de mim, porque a gente se via todos os dias, a gente conversava todos os dias. E o parque de diversões. Isso eu me lembro.

É difícil não se sensibilizar com um relato com estes ingredientes ao aquilatarmos o peso dramatúrgico de seu enredo. Neste percurso, vislumbra-se claramente a história dos fatos sociais e, ao mesmo tempo, uma língua menor, que escande, salto a salto, à formação de um modo de existência singular. A radical e profunda experiência de desterro que este depoimento revela se destaca no interior do conjunto de vozes reunido, embora, infelizmente, seja representativo da condição judaica no século XX. No relato de Claudia se escuta a guerrilha diligente e copiosa travada em favor da vida e da criação, que resiste ao desamparo e humilhação provocados por sua herança em frangalhos, claudicante e pobre em sua materialidade – pessoas, estórias, objetos, lugares, valores, sentidos. Do silêncio original, das cores turvas, dos contatos anódinos, da geografia evasiva, dos afetos borrados, das estórias interceptadas, da língua presa; Claudia parece extrair uma espécie de súmula vital através da qual vem reinventando sua tradição e tecendo com os retalhos residuais disponíveis seu território subjetivo. No lugar da sublimação do “trauma”, da tentativa vã de suprir a falta de lastro pretérita ou da utopia romântica pela totalidade nunca experimentada, há por parte dela uma aliança afetiva com o nomadismo existencial em suas múltiplas expressões culturais. É essa sua sensibilidade para o aspecto quebradiço e plástico da existência que ladeia seus encontros e seu desejo de tramar percursos que desarmassem a hegemonia das formas prontas23. A aproximação com os índios yanomamis e o engajamento na sua luta, pela via artística e pela via da militância institucional em prol da demarcação de suas terras, explicase, segundo Claudia, pelos paralelos afetivos com sua própria experiência como legatária da Diáspora judaica e dos processos migratórios do século XX:

Olha, não está completamente claro. É um pouco banal dizer, mas era uma procura de identidade, identidade de se relacionar com gente que é vulnerável. O sentimento mais forte que eu tenho é essa

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enorme vulnerabilidade que eles têm frente ao mundo. E que é pouco entendida. Ou porque são exóticos, ou são primitivos, ou são incompreensíveis. Essa vulnerabilidade me toca profundamente.24

Apesar das contingências particulares da estória narrada por Claudia – o inconciliável casamento intercultural/religioso de seus pais e as decorrentes fraturas da incomunicabilidade conjugal e intergeracional –, a experiência de desenraizamento cultural espraiou-se como sentimento e como inquietação social, gerando múltiplas e distintas respostas. A falta de “chão, ar e mandamento”, metáfora elaborada por Kafka para descrever sua condição de desamparo, sintetiza um tipo de sensibilidade deflagrada com a

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entrada do homem na modernidade sólida, como assim a define Zygmunt Bauman25. Esta modernidade que, por um lado, profanava e desmontava as realidades herdadas, por outro,

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öBöRöEö ö.ö.öAöSöcöeöa÷eòLöqöiöaö önö öaöeönö öaösö öo÷hò öeöSöoöPöuöoö ö9ödö öuöuörö

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buscava refazê-las melhor e mais ainda estratificadas – quadros de referência, estilo de vida, crenças, convicções, relacionamentos, know-hows. A condição de Kafka diante da falta de chão, ar e mandamento torna-o sozinho e distante. Porém, aqui não há pai que acuda. O esforço para sentir um ar que oxigene e um mandamento para referenciá-lo deve ser totalmente empreendido por ele próprio. Kafka diz que essa tarefa, na verdade, não é nada de tão excepcional visto que muitos já tiveram que levá-la adiante, mas não “nessa medida’, de forma tão ampla e solitária. E de tudo que ele dispõe para realizar essa tarefa é a sua debilidade, debilidade essa que, mais do que apontar para uma singularidade, o vincula à humanidade como um todo. É como um débil homem desprovido de chão, ar e mandamento que Kafka escala em sua procura. O solitário desse exercício está em não ter herdado “parte alguma do escasso patrimônio positivo de meu tempo”. Sua história não o vincula à mão cristã que segurou Kierkegaard, aquela mão que, mesmo minguante, ainda assim fazia sentir seu peso. Ele é do círculo judaico, mas, neste, o manto judaico de orações se é que lhe veio minguado como herança paterna, “já se vai, como os sionistas”, e Kafka, dada a sua tarefa, não pode, se quer criar,

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representando o negativo de seu tempo, desviar-se, apegando-se à franja desse manto, e esvoaçar junto com ele.26

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öMöNöEöBöUÿ,ðEö örönö öaökö:öuö öuöaösöoönÿ òoötö öoöiöpösöíöeö,öSöoöPöuöoÿ ðdötörö

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Um novo tipo de desenraizamento consubstancia a sensibilidade judaica; não mais territorial, mas psíquico. Ao caírem às muralhas físicas que impediam os judeus de circularem e se ocuparem livremente, caem também as obstruções mentais, aluindo desta forma certezas seculares, deveres incontestáveis e horizontes inabaláveis. A ruptura com os valores medievais, os quais regeram a vida comunitária judaica por séculos e séculos, fez com que a religião, outrora soberana em toda a existência, se limitasse ao domínio privado e fosse reduzida a um pequeno conjunto de práticas. A liberação do homem judeu da severa e complexa rede de regras para todo e qualquer ato da vida, dos mais simples aos mais importantes, abriu um rosário de possibilidades de experimentação que puderam ser saciadas através da arte, da ciência, da filosofia, da política, da urbanidade. A irrestrita abertura ao Outro, que passa a ser ofertada ao judeu, apesar de irresistivelmente sedutora, teve como contrapartida a amarga perda da idéia de comunidade e a segurança e calor como garantias desta pertinência. Ao se eximir dos seus compromissos e desígnios cotidianos, o judeu perde a recompensa divina certeira, fruto desta sublimação. Com isto, sofre uma descompensação narcísica profunda, que estilhaça a identidade até então inquebrantável. É neste momento emblemático da história que um problema insuspeitado passa a ser formulado: a indefinição sobre o ser judeu. Segundo Renato Mezan, a Emancipação – e suas conseqüências – foi o fenômeno mais importante da história judaica, desde a estruturação do judaísmo rabínico que se seguiu à destruição do Segundo Templo e ao fim do estado hebraico antigo. Com todos os graves problemas (também psicológicos) gerados por essa nova condição, ela representou um enorme avanço para os judeus, e uma das provas disso é precisamente a liberação das energias criativas que se encontravam até então aprisionadas pela miséria, pela opressão e pelo investimento exclusivo na religião. Se este investimento foi, por muitas gerações, benéfico para os judeus, chegou um momento em que ele se converteu em um limite intransponível, impeditivo para a incorporação do mundo moderno e no mundo moderno. A razão disso é fácil de entender: a

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modernidade exige o contato com o Outro, a entrada no domínio dos princípios universais da Revolução Francesa e a participação da cultura em todos os sentidos.27 O mergulho na experiência histórica e o estiramento ético que sofrem os judeus com a secularização põem a nu a complexidade da condição judaica, irresoluta e evasiva ao consenso. Questão que se mantêm convulsiva, o judaísmo sem Deus persiste como objeto de problematização, angústia e indeterminação. Menos do que buscar respostas definitivas ou estabelecer algumas premissas estáveis, a riqueza de perseguir as múltiplas expressões do desassossego judaico ao longo da história é compreender o que cada momento e cada contexto cultural permitem em termos de elaboração e alteridade. Segundo Miriam Chnaiderman: O judeu sempre funcionou como uma espécie de bode expiatório. Na Europa, desde o fim da Idade Média, o judeu era o comerciante, o que lidava com o dinheiro, era o outro, que vivia numa situação não institucionalizada, o que o levou a viver um pouco à margem, e que o obrigava sempre a criar, a inventar novas maneiras para sobreviver. Esta situação acabou por gerar uma criatividade no seu patrimônio cultural[...] No mundo de hoje há uma questão com a memória: a velocidade pode levar a um apagamento da memória e, aí, cada um precisa encontrar sua identidade, nem que seja às custas de denegrir o próximo para afirmar o que é. Daí o preconceito. Por outro lado, o mundo hoje permite que cada um homenageie a sua história à sua maneira. Venho de uma família com uma tradição ideológica de esquerda, de maneira que o meu judaísmo não passou pela religião, mas sim pela cultura. Cada um vai descobrindo o seu próprio jeito de homenagear a sua história. É essa a liberdade a ser preservada.28

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öMöZöNö ö.öIötöröaöeö ÷aòPöiöaöáöiöeö ÷ãö öaölö:öCömöa÷hòaödösöLötöaö,ö2ö0ö,öpö2ö4ö ÷RòUöZö ö.öFöeötö ö örönöeöcömöa÷vðoöêöcöaö önö öeöiötö ö8ö öãö ÿaòlö:öCönörö öa÷C÷löuöaöJödöiöa÷Còsö öeöCölöuöaödö ösöaölö önö ÷,ònö2ö öuö/öoö/÷eö ö0ö2ö ö.ö-ö1÷

ö

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Freud foi talvez um dos primeiros judeus públicos a afirmar que ao se distanciar de Deus e de seus compromissos cotidianos para com ele, não obstante, um sentimento judaico informe, irregular e atonal permanece provocante. Ao contrário de Kafka, que se ressentia da flacidez do judaísmo herdado de seu pai e o culpava pela absoluta falta de chão que regia sua vida, Freud parece não ter se queixado de não ser compreendido pelo fato de ser judeu ou por ter herdado de seu pai um judaísmo que interferisse em suas relações. De acordo com a análise de Renato Mezan, o judaísmo para Freud assumiu a qualidade de uma reserva florestal, um manancial de conteúdos virtuais que poderiam ou não ser explicitados dependendo da urgência dos desafios impostos pela vida. Embora não se arriscasse a interpretar como essa identificação operava nele e nos demais judeus, Freud, aspirava a que a Psicanálise fosse capaz de resolver o enigma do judaísmo profano, tornando esta experiência redutível ao conhecimento e, possivelmente, mais domesticável. A liberdade que passa a integrar a experiência dos judeus que abdicam de seus compromissos religiosos e comunitários, ilimitada em termos de movimento e vôo, toma de assalto a interioridade outrora preenchida pelas responsabilidades e interdições, povoando de estranheza, de sentidos múltiplos, de sangue (bela imagem cunhada por Garcia dos Santos para definir o pensamento) o espaço onde imperava a promessa enrijecida de totalidade e organicidade. A exposição irrestrita ao caráter intemperado e irrefreado da vida, apesar de utópica, é uma experiência arriscada. Este mergulho desarvorado sem o auxílio de estacas estáveis pode acarretar a perda de discernimento do que deve ser retido e descartado pelo pensamento e pelo corpo. Nietzsche já destacava a importância seminal do que ele denominou de “hábitos breves” na estruturação da vida cotidiana. Segundo ele:

Uma vida sem quaisquer hábitos, uma vida que exigisse contínua improvisação seria para mim verdadeiramente insuportável, mesmo terrível: isso seria meu degredo, minha Sibéria. 29

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A limagem impenitente sobre os ideais prescritos pela tradição define o aspecto contingente do homem moderno. O judeu que envereda pela laicização e abdica do livro sagrado, tido como sua pátria itinerante, sintetiza este novo homem que precisa modelar-se sem a tutela das pedras da memória e sem a reverberação de seu eco. O rompimento com um projeto coletivo que simultaneamente zela e acalenta os tesouros do passado contextualiza e circunscreve o presente, e, por fim, ainda projeta e garante as promessas do futuro, implica o abandono de um denso repertório de símbolos, valores e sentidos. Solidão profunda e ausência de conselhos são os sofrimentos deflagrados por esta sensibilidade que se quer autofundante e auto-referente. O desejo de uma nova pátria e o estabelecimento de novas lealdades leva muitos judeus a se filiarem visceralmente a uma outra tradição, abafando os conteúdos milenares oriundos da tradição religiosa judaica e o próprio fosso psíquico que o desarraigamento das muralhas mosaicas representava. O ufanismo nacionalista em relação às pátrias hospedeiras foi uma das respostas encontradas para neutralizar o desassossego, preencher a falta de lastro sofrida e amenizar a culpa da amnésia, considerada o grande algoz do judaísmo diaspórico. O forte anti-semitismo e as perseguições que se seguiram a ele durante a primeira metade do século XX em nações tidas como permissivas e auspiciosas à assimilação dos judeus, que culminaram na inédita máquina burocratizada de extermínio em massa, erradicaram a crença de que é possível dissimular o judaísmo e seus rastros, por mais fluido, tingido e inaudível que se expresse. A memória da Shoah reaviva a idéia de uma latência judaica, que gera novas inquietações sobre suas lufadas, suas expressões e sobre a qualidade de sua coexistência com outros repertórios culturais. O judeu se vê à deriva de um pêndulo: nem a memória pulsante sempre renovada da tradição religiosa, nem a radical esterilização das marcas “estrangeiras”, premissa de um projeto bem-sucedido de assimilação. O fardo da ambivalência parece ter se imposto como condição. Transplantando esta discussão para o contexto brasileiro entre as décadas de 30-50, ao qual aludem as memórias reunidas em Intérpretes do desassossego, a empatia com o país modulou a adaptação dos imigrantes judeus de um modo geral, que se manteve inabalada mesmo nos momentos em que se tentou irrigar e instilar um sentimento anti-semita no

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Brasil30. A despeito de referências pontuais sobre o aspecto perturbador suscitado pela condição judaica, a memória coletiva se sobrepôs às singularidades das experiências, neutralizando, de certa forma, os efeitos indigestos deste mal-estar. Os clichês idílicos sobre o Brasil, a possibilidade concreta de ascensão econômica e a inexistência de um sentimento xenófobo frontalmente dirigido ao judeu corroboraram a propalada “bemsucedida” integração judaica. O aval, consciente ou inconsciente, que a maior parte destes judeus brasileiros recebeu de seus pais para se solidarizar umbilicalmente com o país, explica a voracidade com que muitos se atiraram para fora do universo judaico – pela via da militância política estudantil e partidária, pela Arte, pela relação com a Natureza, pela participação social – não se privando do “gozo irrestrito” que a idéia mítica de Brasil como um país em aberto evocava. Além desta espécie de “consentimento edipiano” que facilitou o que eu chamo de ascese vivida por estes judeus, um deslocamento profundo de subjetividade entre o enredo legado e o construído, os apelos externos – culturais, sociais, urbanos, políticos – foram decisivos para o ardente sentimento de pertinência do qual todos os entrevistados se ufanam. Ter testemunhado, atravessado e participado da euforia econômica da “era JK”, das transformações urbanas profundas, da efervescência cultural representada pelas primeiras Bienais Internacionais de Arte, pela criação do Masp, pela Rádio Nacional, pela Bossa Nova, pelo Cinema Novo, pelo Cinema Marginal, pelo Movimento Concreto, pelo TBC, pela fundação de Brasília, pelo Teatro Oficina, pelo Teatro de Arena, pelo Tropicalismo, pela Escola de Sociologia e Política e pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas em São Paulo parece ter selado uma filiação ao Brasil que não era apenas no âmbito civil, mas que “entrava na veia e alterava a substância sanguínea”, emprestando a

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öHö öoösömömönöoö öa÷hòsöóöiö öoötöm÷o÷âöeö örösölöi÷aò öaöcödösöpörödösöuösösöeöpöá÷iòaö önöiösömötösöpöröp÷röeödö ÷rðpöiö ösöaöoö ÷uö öeöeöeö öeö ÷eòtöcödösö ö ösöaöoöNövö ö1ö3ö-÷9ò5ò ö ösö“önösödö öhömöoö öaöd÷tòdörö öiöiöaö ö1ö6ö-ö9ö5ö.öCöm÷eòcöçöoödösöeö ÷e÷íödösöoösöuöo÷ òuö öuömönörömöeö öxölösöoöeöa÷é em extermínio, a discriminação contra o judeu sempre teve a marca do preconceito local; ou seja, a dissimulação, a “cordialidade” (no sentido que lhe afere Sergio Buarque de Holanda) e a negação peremptória da sua existência. Para saber mais sobre a conjuntura sócio-política destes períodos, ver: LESSER, J., O Brasil e a Questão Judaica - imigraçãp, diplomacia e preconceito, Rio de Janeiro: Imago, 1995; CARNEIRO, M.L.T., O Anti-Semitismo na Era Vargas: Fantasmas de uma Geração (1930-1945), São Paulo: Brasiliense, 1988; CUSHNIR, B. (org.), Perfis cruzados: trajetórias e militância política no Brasil, Rio de Janeiro: Imago, 2002.

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metáfora de José Celso Martinez Correa31 para definir o poder político que a cultura adquiriu no país no interstício entre o fim da Segunda Guerra e a decretação do AI-5 em 1968. O sólido pacto afetivo que os meus interlocutores estabeleceram com o país talvez possa ser explicado pelo privilégio de terem vivido na carne a experiência abrasadora de uma terra em “transe” e participarem do artefato de sua reinvenção, experiência ímpar de uma geração de brasileiros da qual fizeram parte. Experimentalismo, vigor, abertura eram os atributos desta nova subjetividade que estava sendo germinada no Brasil e que buscava se desenredar dos arcaísmos, dos maneirismos, das importações, das repetições culturais em busca de sua singularidade e potência. Um contexto cultural pulsante, a inexistente nostalgia da Europa Oriental sangrada por um anti-semitismo secular (a maioria dos imigrantes judeus no Brasil é proveniente da Rússia e da Polônia e, diferentemente dos judeus sefaraditas32 e dos da Europa Ocidental, eles não têm um sentimento nacional arraigado que os vincule às suas pátrias de origem) e o embate com uma nação envolta por uma memória “porosa”, cujas experiências acumuladas ao longo das gerações são desqualificadas ou se diluem com facilidade, parecem ter propiciado uma adesão sem a onipresença da culpa e do ressentimento, tão recorrentes na experiência judaica, religiosa e secular. Embora acredite no anacronismo da insígnia brasileira como país do futuro, ela persistiu, por um século ou mais, como um importante fator de unidade e coesão. Segundo Bernardo Sorj: A visão de uma sociedade que se apóia na possibilidade de um futuro comum ideal, e não no passado, é uma revolução copernicana em relação a toda a mitologia moderna dos Estados nacionais. Uma sociedade orientada para o futuro é uma sociedade que valoriza o novo e que não tem medo da inovação. O mito de 31

Depoimento concedido ao Museu da Imagem e do Som-SP em ocasião do projeto Centenário Oswald de Andrade, São Paulo, 1991. 32 Judeus provenientes da Espanha (Sefarad) que após o decreto de expulsão firmado pelos Reis Católicos, em 1492, emigraram para Portugal e, em seguida, para os Países Baixos, Inglaterra, ou para o Norte da África, Império Otomano, Itália e Sul da França. Estima-se que aproximadamente um quarto de milhão de judeus deixaram a Espanha e Portugal naquele tempo. Os sefaradim levaram consigo uma cultura judaica e geral altamente desenvolvida, bem como seus próprios costumes, liturgia e tradições musicais para as comunidades judaicas em que se estabeleceram.

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origem do Brasil – que vê a origem dos problemas do país no passado, na escravidão e na colonização lusitana e que acredita que o paraíso não foi perdido, mas que se encontra no futuro – produz uma visão totalmente diferente dos valores da mudança e do estrangeiro. Na medida em que todos os mitos de origem nacional supõem uma fase áurea num passado remoto que nutre e sustenta os valores nacionais, eles criam uma relação problemática com o novo, identificado, quase sempre, com influências externas e o estrangeiro. (...) Num contexto em que o novo, a mudança e o futuro são valorizados, o estrangeiro, no lugar de ser portador de valores estranhos à nacionalidade, passa a ser seu principal construtor. 33 Apesar da conjuntura afável com a incorporação do novo, o mergulho no rio de polissemia que o Brasil representava, sem noção da profundidade do salto, foi inquietante, nem sempre amistoso nem sempre indolor. Destacar ou dissolver as marcas de uma diferença em um contexto supostamente permissivo, como é o brasileiro, passa a ser uma decisão voluntária e de foro íntimo. Conflito difícil quando se quer ardentemente afirmar a autoria da própria vida e, ao mesmo tempo, não se quer ferir os “afetos edipianos” em que repousam o judaísmo órfão de laços comunitários. Judaísmo que se confunde com o leite materno, banhado em afetos conflituosos e intensos de amor, ódio ou indiferença, parece ter sido mantido em quarentena34 para que a construção diligente de um vigoroso agora se fizesse, consolidando o que Baudelaire definiu como heroificação do presente35. A utopia ou promessa brasileira para os imigrantes judeus soava como a experiência antípoda do gueto, da clausura territorial ou intelectual. Daí a rejeição cabal de muitos 33

SORJ, B. Sociabilidade Brasileira e Identidade Judaica. In: Judaísmo para o séc. XXI, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.147-148. 34 Empresto a imagem elaborada por Berta Waldman para definir o judaísmo evasivo identificado na obra de Clarice Lispector por considerá-la precisa de uma experiência coletiva, na qual os entrevistados desta pesquisa se incluem. A presença judaica na literatura brasileira. In: Caderno 2, O Estado de São Paulo, 11 de Maio de 2003, p. D5. 35 MURICY, K. O heroísmo do presente. In: Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, São Paulo: USP, vol.7, n. 1-2, outubro de 1995, p.31.

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deles, de acordo com seus filhos, de compactuarem com as coerções e lealdades impostas pela “colônia”, apesar do desamparo que representava esta escolha. À geração dos meus interlocutores libertos do ruído dissonante do sotaque judaico e intérpretes de uma nova língua coube o desafio de experimentar a liberdade associada ao país, abrindo-se para tudo aquilo que representava uma experiência no sentido pleno, ou seja, que saltava fora do perímetro de um círculo percorrido e de uma diretriz judaica consentida e investida. Neste momento em que “novas cores” estavam sendo vislumbradas, o judaísmo parece ter empalidecido e perdido parte de seu componente problematizante. No entanto, mais do que a fidelidade a um novo território talvez tenha havido um fogo cruzado entre duas temporalidades inconciliáveis: a lealdade à origem, tão imprescindível para a condição judaica versus a afirmação aguerrida do presente e o frescor do futuro em construção. A necessidade de distração da ruidosa e incandescente voz judaica e dilatação de sua vigília se insinua nos relatos como condição necessária para o florescimento de novos sentidos, tonalidades e temperaturas. Impossível esquecer, tampouco ignorar, que neste momento em que estes brasileiros sem hereditariedade de Brasil estão embrenhados no processo de construção de sua subjetividade, engordando o script mosaico com muitas outras tramas e enredos, o trauma da “língua nazista” ainda não havia coagulado. Esta “língua” que imantou a topografia em que o judeu foi totalmente desumanizado, passando a ser apenas uma palavra de dicionário – de rato a magnata da imprensa mundial –, dilacerou sua potência de afetação, sua condição de alteridade absoluta36. As diatribes e fantasmagorias seculares contra os judeus impregnaram a própria corporeidade da palavra judeu, tornando-se, ela mesma, um condensado opressivo de imagens abjetas e sombrias, um fardo difícil de carregar ou ressignificar. A permissividade tropical de imiscuir tudo com todos, traço diacrítico de um modo de ser brasileiro pouco afeito a manter o estranho em território delimitado, conclamando-o, ao contrário, a incorporar as práticas sincréticas, num movimento que não exclui, mas dilui37,

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Anotações do curso proferido por Fabio Landa, Programa de Estudos Pós-Graduados em Semiótica da PUC-SP, setembro de 2001, não publicado. 37 WALDMAN, B. Entre Passos e Rastros, São Paulo: Editora Perspectiva, 2003.

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permitiu que o estrondo ensurdecedor suscitado pelo predicado substantivado “judeu” pudesse, então, silenciar. Segundo Vladimir Jankélévitch: O silêncio é o que nos permite ouvir outra voz, uma voz que fala outra língua, uma voz que vem de outro lugar[...] Essa língua desconhecida de uma voz desconhecida, essa voz ignota, se esconde atrás do silêncio como o silêncio se esconde atrás dos ruídos superficiais do cotidiano.38 É este silêncio judaico, mais do que a palavra, que se espraia e se insinua nesta trama de memórias. O compromisso como intérprete das narrativas de meus intérpretes talvez seja o de injetar neste silêncio mais espessura, visceralidade, fibra. Esgarçar os seus sentidos, chacoalhar a sua sobriedade, restituir sua leveza ou gravidade, deleitar-se com o seu absoluto e com o seu nada mais primordial, dar mais dignidade a seu sono ou substância a seu despertar. Avançar na compreensão deste silêncio, ora como promessa de abertura, ora como defesa é, um dos grandes, senão o maior dos desafios desta empreitada. Mudança, intervenção, risco, fissura nas formas vigentes. É isso que me parece que a história coteja. A distenção do universo conhecido e o alumbramento do que se nega a existir, ocultando-se, são os seus compromissos, é a sua missão. A história conduzida pelo movimento da memória deve seguir as pistas do que foi lembrado e retirar das sombras o que não foi escolhido. Memória caudalosa, com plenos poderes afetivos e mágicos, amplamente ancorada na existência de um grupo: eis algumas das oferendas a que o pesquisador que se apóia em reminiscências aspira. Em Intérpretes do desassossego, ao contrário, a memória judaica, agrilhoada em grande parte dos relatos, padece de vibratilidade. As peças soltas que se dispersaram em poeiras, de certa forma, se mantêm oclusas. Neste caso, caberia à História o dever de reavivar a memória entorpecida, restaurando-lhe alguma pulsação. Decisão ética que ausculta os “momentos ocos”, os acontecimentos das “silenciosas horas da vida” que o não dito, as pausas e a impropriedade das palavras aludem ou neglicenciam. Tirar do cárcere no presente o que no passado foi comprimido, ensejando ao vivido a acolhida generosa que lhe foi negada. Fabular um novo passado no presente, liberando o que “pedia um outro devir”; 38

KOVADLOFF, Apud S. O silêncio primordial, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2003, p.68.

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é assim que Gagnebin define a missão a que Benjamin aspira para a história e que a arrasta para tão próximo do domínio da Arte. Não obstante, como alerta Umberto Eco, toda obra é um mecanismo “preguiçoso”, que exige a cooperação do espectador para lhe dar plenitude e completá-la. Neste sentido, por maior que seja a minha aspiração de alargar e distrair a percepção para além do que o relato oferece como matéria-prima, é a qualidade da recepção do leitor que vai possibilitar ou não esta sua “opulência”. Se alguém colhe um grande ramalhete de narrativas orais, tem pouca coisa nas mãos. Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu. A pedra de toque é a leitura crítica, a interpretação fiel, a busca do significado que transcende aquela biografia: é o nosso trabalho, e muito belo seria dizer, a nossa luta.39 O esforço “militante” da interpretação, como o define Ecléa Bosi no trecho acima, é o lastro que articula as supostas mônadas que cada vida narrada representa, sinalizando sua comunhão e, ao mesmo tempo, inexorável solidão. Movimento de ida e volta aos dados, encantamento e retração, adesão e distância, vôo e cautela, fascínio e desconfiança. Ardilosa missão que exige vigília para que o amor aos dados não sucumba o arrojo criativo, e vice-versa.

* * *

No processo da escrita, momento em que o pensamento verdadeiramente produz seus arroubos, alguns depoimentos ganharam mais densidade e envergadura do que a minha escuta e leitura iniciais supunham.

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O tempo vivo da memória – ensaios de psicologia social, São Paulo: Ateliê Editorial, 2003, p. 69.

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A narrativa de SYLVIO ZILBER40 tornou-se, de fato, “amiga” do pensamento no ato da interpretação. De todo o conjunto, foi, curiosamente, o único depoimento transcorrido em um ambiente impessoal (ou melhor, no contexto máximo da despersonalização que é o Shopping Center) e, premido por fatores mundanos como ruído e tempo. Aspectos que, em tese, comprometeriam ou neutralizariam a sua expressividade. Todavia, a interpretação, quando exercida com generosidade perscruta o “mais dizer”, e não o “desdizer” do dito, comportamento rancoroso para qual resvalam muitas das leituras supostamente críticas. Sendo assim, sob este diapasão, a interpretação é capaz de redimir a aparente crueza do relato, dando-lhe mais espessura e relevo para as imagens que pareciam lacônicas e/ou insuficientes. No relato do Sylvio se ouve, como talvez em nenhum outro, o peso de uma herança “titubeante”, que não está nem inteiramente exposta nem completamente oculta. Margem tênue entre o muito de sentido e o quase nada. Um judaísmo que permanece na “corda bamba” entre o afundar e o eclodir. O caráter pendular de adesão e retração aos rastros e traços judaicos me parece modular a melodia do enredo de Sylvio. A resignação ao passado tal como ele supostamente se deu – opaco, precário, quebradiço – é contraposta, em alguns momentos, ao desejo, ainda que cauteloso, de imaginar este passado sob novos prismas, de povoar com palavras, imagens e sons o silêncio que plasmou o judaísmo recebido de seus pais. Se, por um lado, inicia a narrativa afirmando peremptoriamente que não lhe foi transferido nenhum conteúdo que qualifique de judaico, por outro, lamenta-se, ao revisar a transcrição (depois de concluído o relato), de não ter sido mais generoso à pujança virtual dos fatos, grandes ou pequenos. Foi

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Sylvio Zilber é ator, diretor e professor de teatro formado pela Escola de Arte Dramática da USP, com vários cursos de especialização no Brasil e no exterior. Atuou em mais de 30 espetáculos profissionais. Como ator foi dirigido por Antonio Abujanra, Augusto Boal, Flavio Rangel, José Possi, Yákov Hilel, entre outros diretores consagrados. Contracenou com grandes expoentes da dramaturgia nacional, entre eles, Sérgio Cardoso, Tarcísio Meira, Cacilda Becker, Walmor Chagas, Zeloni, Fernanda Montenegro, Paulo Autran, Lélia Abramo, Gianfrancesco Guarnieri, Dina Sfat. Ganhou o prêmio ator revelação pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) por “Calígula”, em 1962, e o prêmio Moliére de ator coadjuvante por “A Grande Chantagem”, em 1965. Atuou na TV Tupi, TV Record e TV Cultura e em vários filmes, entre eles, “O Beijo da Mulher Aranha” de Hector Babenco. É atualmente professor da EAD/USP e professor de criatividade e inovação do MBA da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM). É também diretor regional da Fundação Nacional de Artes Cênicas de São Paulo e diretor administrativo do Departamento de Teatros da Prefeitura de São Paulo.

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bom relembrar meu depoimento. Hoje, eu seria mais pertinente. E também lembraria de mais detalhes. Benjamin atribui a Kafka uma espécie de atenção ao mesmo tempo intensa e leve. Segundo ele, esta qualidade permite que as coisas possam ser vislumbradas lentamente e resistam ao naufrágio e/ou indiferença a que toda experiência está sujeita. Só a renúncia ao previsível é que permite ao pensamento alçar seus vôos e atingir a liberdade. Para Benjamin, “saltar pelos ares” o continuum da história exige do historiador disposição para perfurar a aparente opacidade do passado, desemaranhando os fios que pareciam puídos ou compactados. Para mergulhar na aventura da memória sem resistir ao labirinto que ela representa, é necessário estar ciente do seu caráter provocante. A história oral tem potencialmente esta “fraca força messiânica” de revelar as dúvidas e os desvios de uma trajetória existencial, escancarando a sua inexorável irresolução e incompletude. Incapaz de preencher a(s) fenda(s) que se anuncia(m) no relato, a história oral afirma e expõe a provisoriedade constitutiva ao ser. Por mais épica que a narrativa se configure, escande-se na história oral sua humanidade e sinuosidade, resultado de escolhas e decisões singulares. A transparência do processo de construção da fonte permite que se visualize sua fragilidade e contingência. A oralidade anuncia, mesmo que a contragosto, que não há naturalidade e organicidade nos relatos, mas sempre construção, intenção. A utopia benjaminiana de uma história com uma sintaxe proteiforme e pulsante, que incorpora suas excrescências no lugar de esterilizá-las, tem na história oral um aliado e operador importante. A radicalidade com que a história oral abraça o “não sentido”, que transpira voluntária ou involuntariamente através da sua prática, sinaliza seu grau de comprometimento com os aparentes “restos” legados à deriva, ao ostracismo e alijados da própria condição de acontecimento. A história oral dá direito à existência plena – nem envergonhada nem culpada –, às experiências privadas de um lugar de expressão, outorgando-lhes dignidade e sobriedade. Ao deixar de ser apenas uma voz interna informe, conteúdo de diários pessoais, ou mesmo objeto de confissões íntimas, este conhecimento tido como atópico passa a integrar o corpo do conhecimento histórico, dada a sua irrestrita

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atenção e interesse por tudo que diz respeito à experiência humana, do acontecimento mais pontual e singelo ao mais recorrente e manifesto. Além disso, mais do que qualquer outro método, a história oral é capaz de promover uma aliança solidária entre memória e história, possibilitando empréstimos e confluências entre operações que seguem caminhos paralelos mas não convergentes. O aspecto lúdico/mágico da memória e o caráter interpretativo/racional da história, na história oral, mantêm uma relação de “promiscuidade sadia”, sem que cada uma das narrativas seja detentora exclusiva de uma qualidade ou de outra. Este enredo que estabelece suas balizas no momento da entrevista, mas que permanece entreaberto, tem muitas afinidades com a história entrecortada e lacunar advogada por Benjamin. Não se render à inércia de seu próprio curso, perscrutando novas bifurcações e atalhos, de certa forma injustos em relação ao passado, como arvora Nietzsche, define a vigília e o apreço que a história benjaminiana e também a história oral exercida sob esta inspiração estabelecem com o presente. Segundo Pelbart: Quando Nietzsche evoca a história crítica, ele lembra que o homem não consegue viver se não tem a força de quebrar e dissolver uma parte de seu passado, de deixar que a vida presente, essa “potência obscura [...] incansavelmente sedenta de si mesma”, julgue e condene seu passado[...] [...] E é apenas se a história suporta ser transformada em obra de arte, em criação, que ela pode despertar os instintos e não aniquilá-los. É só se deixarmos de nos comportar com a história como se fossemos eunucos, que a olham de modo castrante e castrado, vigiando-a para que dela saiam apenas histórias, só se deixarmos de ser estes guardiães impotentes é que dela poderemos liberar, ao invés de histórias, acontecimentos. Todo o desafio é fazer com que o passado possa nutrir a vida, não esvaziá-la.41 O relato de Sylvio, para além do sentido manifesto, me parece auspicioso para este fim. Embora haja um esforço consciente para esmagar as entrelinhas com palavras, elas 41

PELBART, P. P.Deleuze, um pensador intempestivo. In: LINS, D. & GADELHA COSTA, S. S. & VERAS, A (orgs.) Nietzsche e Deleuze – Intensidade e Paixão, Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 68.

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persistem e tripudiam a solidez aparentemente definitiva de alguns enunciados. Segundo Eclea Bosi, nós, pesquisadores de campo, somos “hamletianos”, gostamos de discursos tateantes, cheios de franjas, fios perdidos e contradições. O sobressalto que parece simbolizar o judaísmo herdado e vivido no passado permanece assombrando o presente através da marca da hesitação que escorre sem intermitência ao longo de todo o depoimento. Contenção e distenção, certeza e dúvida, afirmação e negação são alguns dos antípodas que disputam ferrenhamente a hegemonia do enredo de Sylvio. Salientar a ambivalência no lugar do muro rígido das verdades que o relato herculeamente busca erguer é o que a escrita desta história propõe como um suave deslocamento do enredo que foi construído no contexto do encontro da história oral. O passado deliteralizado é menos uma traição e mais um direito que o presente reivindica para sua expansão sem constrição. Como afirma Benjamin:

Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. 42

Ler o depoimento de Sylvio sob a ótica da ambivalência não é uma forma de replicar suas colocações, mas de ponderar possíveis dimensões clandestinas para uma paisagem aparentemente sem sombra. [...] A minha mãe é inglesa, nasceu em Londres e meu pai era russo, na época era Romênia. Minha mãe mal falava inglês, porque ela veio muito pequena, então eles se conheceram aqui, se integraram perfeitamente no Brasil e eu não tive nenhuma educação judaica particular. Eu tive educação de um moleque brasileiro. Igual a todos os outros. [...] Minha mãe, nascida na Inglaterra, era de uma família judia inglesa muito pobre, morava no Soho, que era um bairro de Londres bem pobre. Eram ingleses de várias gerações. Meu pai fugiu da Primeira Guerra. Eram nove irmãos, se perguntaram para 42

BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política, São Paulo: Brasiliense, 1985, p.37.

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onde iriam e falaram: “América”. Para eles naquela aldeia lá do interior, a América do Norte e América do Sul era a América. Então eles foram para a Itália, para Trieste, para pegar o navio para a América e o navio que era mais barato era para a América do Sul. Essa história eu acho que é reprise de quinhentas outras exatamente iguais. O Ziembinsky que foi um dos caras que mais influenciou o teatro brasileiro fugiu da Polônia e veio cair aqui, nunca mais saiu e mudou o teatro brasileiro. [...] Eu nasci em Santos... Tinha uma pequena colônia judaica, mas eu nunca freqüentei, eu não falo uma única palavra em ídiche43, em hebraico, eles não me ensinaram e a gente não conviveu. Analisando hoje essas coisas, agora que eu estou me lembrando, acho que um pouco eles tentaram se desvincular do judaísmo como forma de proteção. Na época, era Segunda Guerra, aquela coisa toda, quanto menos fosse judeu mais seguro seria. Nunca foi dito isto, é uma dedução que eu faço agora. Mas por ter esta ascendência, ficou muito forte essa coisa de cultura que é quase atávica do povo judeu. [...] Eu fui ao teatro moleque, nos poucos teatros que tinha em Santos. Eu me lembro de ter ido ver revista Musical do Walter Pinto, eu me lembro de ter ido ver O Ébrio, com o Vicente Celestino, aquelas coisas bem antigas. Eles iam de excursão a Santos, apesar de Santos não ser uma praça cultural. Era mais voltado para esportes. Eu fui um esportista, praticava esportes. Eu era um bom estudante... Daí com 18 anos eu mudei para São Paulo e vivi praticamente toda minha vida. Em São Paulo eu comecei a fazer política estudantil, já fazia em Santos e num determinado momento eu comecei a assistir muito teatro. Eu já tinha assistido umas vinte peças de teatro quando o centro acadêmico resolveu que ia fazer uma chapa. Em princípio eu seria da diretoria de esportes, pois eu jogava basquete, era campeão de atletismo. Como o outro diretor só sabia de esportes eu acabei pegando a 43

Língua judeo-alemã falada pela maioria dos judeus ashkenazitas (de ascendência alemã) originários da Europa Oriental. O ídiche teve início quando os judeus mudaram-se, durante a Idade Média, para os países eslavos do leste, após sua expulsão de países de língua alemã. Escreve-se em caracteres hebraicos. Componentes principais: alemão medieval da região do Médio Reno, aramaico e hebraico, além de elementos eslavos, franceses e italianos. O ídiche era essencialmente uma língua falada, enquanto o hebraico e o aramaico serviam como línguas literárias. No entanto, com o passar do tempo, surgiu e cresceu uma literatura ídiche - contos, literatura ética, lendas talmúdicas e orações particulares. Quando os judeus começaram a se assimilar houve forte oposição ao uso do ídiche, pois era considerado um distintivo que o judeu deveria descartar, como pré-condição de sua entrada na sociedade cristã. O sionismo, interessado no renascimento do hebraico, também via o ídiche como uma língua retrógrada. Em anos recentes tem havido entre os jovens um romântico renascimento do interesse pelo ídiche, e ele é ensinado em alguns cursos universitários. Em fins da década de 1930, era o idioma principal de cerca de 11 milhões de pessoas.

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diretoria de cultura. Formamos a chapa e ganhamos. Resolvemos fazer uma montagem e o diretor acabou sendo eu. Começamos a fazer e surgiu o anúncio de admissão para a Escola de Arte Dramática, em 1957. Aí eu fui aprovado, fiz os quatro anos e saí ator profissional. Era para ser uma coisa efêmera, aí comecei profissionalmente. [...] Meu pai veio com os irmãos. Eu tenho uma recordação razoavelmente recente, porque faleceu há dois anos atrás o último irmão de meu pai com 96 anos. Eu ia visitá-lo e a conversa dele era sobre essas coisas lá atrás. Eu ia puxando e ele ia conversando. Contava que ele tinha fugido de lá porque os judeus eram perseguidos.Todas as pessoas serviam um ano de exército, só os judeus que tinham que servir dois ou três, além de irem para todas as frentes. Chegou uma hora que ou eles fugiam ou morriam, aí eles pegaram as roupas do corpo e vieram embora. [...] Eles foram para o Rio de Janeiro e uma irmã casada foi para a América certa, foi para a América do Norte. Essa irmã casada tinha um pouquinho mais de posses, um pouquinho mais de visão e comprou uma passagem mais cara para a América do Norte. Os outros vieram para o Rio de Janeiro, exceto meu pai que veio morar em Santos. [...] No Rio, eles ficaram mais ligados à colônia judaica. Casaram-se entre judeus. Eu não me casei com mulher judia, nem da primeira vez, nem das outras vezes, então eu não tive uma educação judaica. [...] Eles falavam um pouquinho de ídiche entre eles, mas falavam conosco em português, o tempo todo só em português. [...] O meu pai era um homem, digamos assim, que se chamava naquela época, progressista. Era um homem de esquerda. Ele não foi do Partido Comunista, mas tinha muitos amigos que eram. Então eu tive uma educação mais voltada para o social. E quando se tratava de cultura, isso refletiu muito mais, trazendo conseqüências daí para a frente. [...] Eu estudei em escola pública, sim, meus pais não tinham dinheiro para pagar escola particular.Eu estudei em ginásio estadual, sempre, depois quando eu vim terminar o científico, vim para uma escola pública aqui em Pinheiros, sempre escola pública.

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[...] Eu pratiquei esporte pelo clube Pinheiros que era um clube da colônia alemã e nunca pintou nada...Quando eu era jovem, em Santos, eu morava em uma vila, havia duas casas vizinhas, uma era de uma família alemã e a outra era de uma família japonesa. Nós ficávamos no meio do eixo, entre os dois, mas nos dávamos bem. A família alemã era muito rigorosa, enquanto a japonesa, muito reservada. Agora que estou tirando o pó de algumas gavetas da memória, me lembrei. Como moleque eu não percebia nenhuma coisa muito diferente, mesmo com os colegas. Santos era uma cidade plana, eu ia sempre de bicicleta para a praia, eu convivia com colegas não judeus. Para mim eu era um moleque brasileiro. Analisando hoje, é possível que meus pais tenham reforçado isso de não ser identificado, não ter a identidade judaica. Tinha uma família judia muito amiga de meus pais, que, em princípio, eu deveria casar com a filha deles. Mas a gente nunca namorou, não aconteceu, nunca aconteceu nada. [...] Meu pai abriu uma loja que era uma prática comum entre judeus. Meus primos tinham uma cadeia de lojas, as lojas Marisa, eram os Goldfarb. Meu pai escolheu um lugar no Arouche e abriu uma loja para que eu trabalhasse com ele.Trabalhei com meu pai durante uns doze anos, e num determinado momento à estória de fazer teatro no grêmio escolar acabou me despertando para o teatro. A partir de então eu quase não fui mais para a loja. Aí eu comecei a estudar na EAD toda noite. Terminei o científico e não quis continuar mais os estudos. Claro que o projeto deles é que eu fosse médico, como todo bom filho de judeu, mas eu não quis seguir a Medicina, ou outra profissão qualquer e comecei a fazer teatro. Havia um certo desconforto. Eles nunca me proibiram, mas havia um certo desconforto. Vida de artista naquela época, nos anos 50, era uma coisa meio esquisita. [...] Mas daí eu me casei com uma colega de escola, a Miriam Muniz, tive dois filhos com ela e enveredei pela vida artística. A família me tratou com um pouco de indiferença, até que eu me formei em 1961. Fiz quatro anos de Escola de Arte Dramática. Em 1962, quando eu comecei como profissional, eu ganhei o prêmio de “revelação de ator”. Em 1965, ganhei o prêmio Moliére como revelação. O prêmio Moliére era um prêmio famoso, era o prêmio mais importante, que não dava só o prêmio, mas também uma passagem para Paris, Londres. Eu ganhei o prêmio e a entrega foi no Teatro Municipal de São Paulo. Naquele ano ganhou como melhor atriz Cacilda Becker, melhor ator Walmor Chagas, melhor diretor Antunes Filho, melhor cenógrafa Maria Bognoni, melhor dramaturga 60


Renata Pallotini. E eu recebi o prêmio, na ocasião, do prefeito, era o Oscar, né? Daí eu passei a ser o artista não mais rejeitado, mas o que dava certo. Mas eu nunca me liguei muito a essa coisa de família, ou por ser judaica, ou por ser família mesmo, sempre fui arredio. Eu tive uma vida artística durante quatorze anos, fiz teatro de Arena em São Paulo, que era um teatro de esquerda, passei 64, passei 68 ligado a estes movimentos todos com muitos colegas judeus, inclusive, mas porque eram colegas, e não porque eram judeus. Eu nunca nem em São Paulo freqüentei a colônia judaica. [...] Eu tinha vindo com 18 anos de idade e era uma relação difícil porque a cidade já era grande. Eu vinha de Santos, uma cidade grande, mas nada a ver. Então, eu vivia muito fechado, eu trabalhava, abria a loja de meu pai às 8. Acordava muito cedinho e às sete horas começava a aula de teatro. Durante quatro anos eu praticamente trabalhava o dia inteiro e estudava. Uma das coisas que eu herdei foi o gosto pela leitura, eles me incentivavam muito. Então eu já tinha lido todo Jorge Amado, Guimarães Rosa, eu lia todos. Então, na Escola de Arte Dramática, eu fui um bom aluno. Eu passei em primeiro lugar nos quatro anos, não porque eu fizesse um esforço muito grande, mas porque eu estava acostumado a estudar. [...] Estava trabalhando com a Erundina, na Secretaria, fui chamado para fazer uma peça na colônia judaica chamada Um Violinista no Telhado. Eu fazia o Terry. Aí eu tive contato com a colônia que eu nunca tinha tido. Eu fui como ator e não como judeu. Eu era amigo do Yacov, fiz a carreira da peça, engatei com uma peça chamada Gilda com a Fernanda, e depois eu parei de novo, e agora eu voltei, há dois anos atrás, dirigindo essa peça Einstein. [...] Eu não larguei o teatro, eu não voltei para o teatro, as coisas vão acontecendo e estou aberto para ver o que dá. [...] Então eu fui chamado para fazer a peça e vivi com a colônia judaica. Diziam: “Agora nós resgatamos você para o judaísmo. Então, eu disse: “Não e não, acabou”. E fui cuidar da minha vida. E aí diziam: “ Você faz tão bem porque tem sangue judeu” Eu dizia: “Eu faço bem pelas minha qualidades de ator. O fato de eu ter feito no Teatro de Arena um homossexual mostra que eu não precisava ser eu mesmo para fazê-lo bem. Eu dizia isso. E agora com o Einstein também teve isso da colônia judaica ir assistir, mas eu não tenho uma ligação com a colônia nem de conviver. O Palma me convidou por ser um “diretor

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judeu”. Eu não fiz, por exemplo, a cerimônia judaica dos treze anos. Eu não fiz nada, nada, absolutamente nada das tradições judaicas. [...] Eu posso dizer que em nenhum personagem a gente deixa de ter alguma identidade. Nós buscamos dentro de nós mesmos alguma coisa...Talvez o personagem mais afastado de mim, por milhões de razões, foi quando fiz “O Interrogatório” do Peter Weiss que é uma peça que o autor fala do processo aos crimes cometidos pelos nazistas dos campos de concentração. De acordo com a montagem do Peter Weiss, um único ator deveria fazer todos os personagens. Eu fiz quatorze nazistas e todos eles com um discurso em defesa do nazismo. Pensando agora, já que nunca tinha pensado nisso, talvez tenha sido o meu personagem mais distante. Eu falei para mim mesmo: “Vamos lá porque é algo para mexer com os preconceitos, relacionar-me com o que está muito afastado de mim”. [...] A minha mãe não era uma mãe judia. Ela foi protetora como toda mãe é protetora, acho. O meu pai também não tinha características de um pai judeu. Analisando hoje, eles tinham alguns resquícios... A gente não freqüentava sinagoga ou clube judaico, não aprendi ídiche e quando chegou a época em que eu queria aprender uma língua estrangeira eu disse que queria inglês. Nós não tínhamos nenhum daqueles símbolos judaicos na casa. Não tinha o castiçal, não tinha aquela coisa na porta, não tinha nada disso. Eu imagino hoje que tudo isso foi feito no sentido de auto-proteção, ou seja, “quanto menos meus filhos fossem identificados como judeus e se misturassem, melhor” [...] Eu casei cinco vezes e em nenhuma vez foi com mulher judia. Não passei para os meus filhos nada de judaísmo, não passei nada de religiosidade, já que eu não tenho e nunca tive. Eu tinha essa coisa de que somos judeus porque nós descendemos de judeus. Não tenho nenhum comportamento judaico... Talvez sim, essa tendência para a cultura e o fato de gostar de comer muito bem. É uma coisa que eu gosto. Muito. Comer bem... Minha mãe cozinhava muito bem. Ela gostava de cozinhar. [...] Eu era ligado a todos movimentos de esquerda, respondi inquérito em 68, não fui preso. Depois do AI-5 eu trabalhava com edição de livros e a editora foi fechada. Eu estava bem envolvido com a política brasileira. Eu convivi com o Teatro de Arena que era um núcleo cultural de resistência. Eu tenho esta experiência de vida. Ter vivido o Roda Viva, o momento de repressão, eu estava junto em todas elas, eu acho importante isso.

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O relato oblíquo e a reveladora confissão de Sylvio sobre o frágil compromisso estabelecido com a atividade de narrar na ocasião da entrevista, longe de deslegitimar ou desautorizar o relato, inoculam vida e movimento no documento. A dimensão líquida, transgressiva, contraditória, inacabada, multifacetada da experiência humana aparece, como em nenhum outro método, de forma cintilante no exercício da história oral. Sua condição “cigana”, se assim eu puder me referir à metodologia da história oral, justifica-se por sua capacidade de estender seus limites, aumentar suas parcerias, deslocar seus centros, relativizar suas premissas, desconfiar de seus próprios dogmas e chacoalhar suas certezas. Sendo assim, o sentido na história oral é evasivo, pode estar sempre migrando de lugar, fora do núcleo, em alguma sobra, incrustado em um dado aparentemente irrelevante, aquém ou além do momento solene da produção do relato. É esta irreverência da prática da história oral em relação aos postulados erigidos que, para mim, confere ao método o seu diferencial, a sua exuberância. O documento oral, ao expor sua delicada fragilidade e, ao mesmo tempo, ambundância de possibilidades, permite que o conhecimento histórico estabeleça laços mais atávicos com a vida e com a arte. Talvez seja justamente este o gesto de maior generosidade da história oral para com a disciplina histórica: as muitas chances que são dadas ao documento de redizer, desdizer, mais dizer, não dizer, redimir, trair o sentido construído. O direito básico de não encapsular e sacralizar a experiência, encharcando-a de humanidade, consubstancia o conhecimento na história oral. É a estetização e a assepsia do relato, que, ao contrário, sugerem sua impostura diante da vida e das contingências às quais está sujeita. O contato mais epidérmico com o mundo dos afetos e do desejo – terreno fecundo da Poesia – está na órbita da história oral. Sendo assim, diferentes “projetos” podem ser por ela contemplados: do mais pragmático ao mais sensível, do mais fleumático ao mais vibrátil, do mais célere ao mais moroso. Fica a cargo da argúcia do pesquisador identificar a qualidade do “pedido” subjacente ao exercício da história oral: quando há um investimento arrojado e transgressivo ou, ao contrário, obediente e castiço. No relato de Sylvio, há várias alusões sobre a prevalência de um passado judaico anódino, sem um rosto definido, sem local ou hora de expressão, sem rito nem símbolo. No entanto,

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algumas imagens amiúde burlam a estrutura adensada que ele próprio teceu para assegurar a sua “fraca” pertinência – a presença dos livros e a literatura como processo formador, o desejo de cultura, a comida como catalizadora de afetos, o comércio como horizonte de inserção e afirmação. É este o tom que me parece recorrente. E é justamente o tom, a nota que alinhava o relato, que a escuta que referenda esta investigação busca apreender em cada um dos depoimentos arrastados para dentro do texto. Nem mais, nem menos. Nem desmenti-los, nem edulcorálos. Ao integrá-los neste enredo, desejo que a experiência vivida, assim como aspira um dos anjos de Benjamin, não seja legada à inércia de seu próprio curso, ao descaso, mas que possa instilar novas significações, novas leituras, novos empenhos e novas utopias. Tentativa de interromper o desenrolar tranqüilo e animar com vida a experiência que se calcificou. O convite à rememoração revela uma atribuição de valor à experiência passada do narrador. O consentimento em narrar pressupõe o reconhecimento do sentido de lembrar, do conteúdo das lembranças e da importância de sua transmissibilidade. No entanto, como uma escrita do que não vive mais, a memória é uma transcrição criativa, algo que derivou do que foi apreendido e capturado na experiência passada. Esta, irrecuperável no seu sentido originário. Portanto, não há nunca reduplicação, mas sim metamorfose. A visibilidade e inteligibilidade do passado clamam por esta intervenção disruptiva da memória. Apesar de suas inexoráveis “traições”, a memória, assentada e esculpida no e pelo presente, enseja uma experiência do tempo, uma experiência de subjetivação que tem a força plástica de inventar uma realidade, redesenhando, deste modo, os quadros da experiência atual. Através da memória e de suas expressões, a imaterialidade do passado ganha corpo, ossatura e uma nova pulsação. Este arcabouço que a memória erige é a oportunidade que o vivido tem de se reabilitar e compreender sua longitude e latitude potencial, oportunidade muitas vezes ímpar, dada a urgência com que o presente nos assalta e a velocidade com que somos compelidos a processá-lo. A memória tem esta qualidade edificante e, ao mesmo tempo, desestabilizadora. Sua maior ou menor plasticidade depende da maior ou menor insurgência que o sujeito que lembra se arrisca a perscrutar diante do sentido já

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consolidado. A memória como um ato ético, na acepção que Agnes Heller lhe confere – a experiência de se autodestinar em contraposição à condição de ser empurrado pelas circunstâncias –, exige trabalho e investimento diligentes. Para galvanizá-la, restaurando sua consonância com as marcas sensíveis tatuadas no corpo (não necessariamente visíveis) é necessário bem mais do que uma atitude contemplativa e compassiva: o lembrar como uma afirmação da vontade e como matriz de novos projetos. Segundo Mezan: De modo que o contrário de esquecer não é sempre, talvez nem mesmo o mais das vezes, o recordar o surgimento de uma cópia autenticada daquilo que havia sido esquecido. Permitam-me cunhar o neologismo inquecer para designar o que ocorre: ao invés de “cair para fora”, “cair para dentro”. Mas atenção: não é a lembrança que “cai para dentro” da consciência num movimento oposto ao que havia resultado em seu “cair para fora” dela. A imagem mais adequada seria a inversa disso: o sujeito é que “cai para dentro” de sua lembrança, molha-se nela, abre-se para ela, pois já não pode ser tido como soberano neste processo, ele que defendia com todas as suas forças sua ilusória autonomia frente ao esquecido. Annehmen, aceitar, admitir, adotar – e não colocar diante de si, à maneira de um quadro na parede, pois isto seria simplesmente uma expulsão mais sutil[...]. Pois é só mediante o inquecimento do silenciado é que os fantasmas podem encontrar repouso: é reinvestindo-os pelo trabalho de luto, inumando-os através de sua circulação pela psique, e não colocando-os à distância por meio de um pseudo “entendimento desapaixonado” – é só assim que lhes permitimos morrer em paz.44

No próprio exercício mnêmico de Sylvio, mais do que nos conteúdos lembrados ao longo do relato, revela-se a experiência da ambivalência. A imagem de um passado judaico aplastado e precariamente vivenciado (na sua pujança ou na sua negatividade) compromete

44

MEZAN, R. A Sombra de Don Juan, São Paulo: Brasiliense, 1993, p.62.

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o estabelecimento de elos temporais. Passado e presente parecem duas instâncias inconciliáveis, irredutíveis ao diálogo. A dificuldade de identificar conteúdos neste passado que tenham alguma funcionalidade para o presente, como, por exemplo, avivar o onírico ou esconjurar o terror, acentua a incomunicabilidade, o exílio de um em relação ao outro. Psicanaliticamente, a ambivalência é a expressão emocional do amor e do ódio pelo mesmo objeto, em última instância pelos objetos edipianos. Estes objetos (pai e mãe) podem ser metaforizados por um sem-número de outros, desde pessoas até idéias ou entidades abstratas. A laicização dos judeus a partir da emancipação política e civil no século XIX, ou seja, o rompimento com os compromissos com Deus e com a comunidade que sacraliza esta união, crispou a experiência judaica para o âmbito da “interior envergadura”, termo cunhado por Nietzsche para se referir à subjetividade. Em função desta introversão, o judaísmo passa a se inscrever na topografia do complexo de Édipo, que, para a Psicanálise, é a base da vida psíquica e o fundamento da personalidade humana. O complexo de Édipo é denominado de complexo por ser justamente um conjunto de fantasias, defesas, posições, restrições e identificações simbólicas com relação às imagens de pai e mãe. Este judaísmo, que perdeu sua face pública (templo, língua, rito, circulação urbana, entre tantas outras expressões através dos quais ele se comunicava) e se imiscuiu com as imagens internas ambivalentes de pai e mãe, passa a ser condicionado pela estrutura de seu complexo de Édipo. É a natureza do complexo que define a relação da criança com seus pais e o que ela incorpora e recusa dos modelos identificatórios que lhe são transmitidos. Segundo Mezan:

Os filhos sempre amaram e odiaram seus pais, desde Adão e Eva; mas não depende do complexo de Édipo, e sim de fatores sociais, que o judaísmo dos pais entre no conflito edipiano. Vamos explicar isto melhor: numa sociedade que designa aos judeus um lugar específico – digamos, o do gueto – e na qual quem nasce numa família judaica tem sua posição social determinada de forma rígida, as coisas são muito claras, e a identificação com o judaísmo 66


se processa de modo tão intenso, que dificilmente ela será abalada. O indivíduo pode detestar seu pai ou mãe, mas o conflito com eles tomará outras formas: serão atacados porque são pobres, porque são ignorantes, porque não permitem ao filho isto ou aquilo, mas não por serem judeus. Que mais poderiam ser? A separação necessária entre filhos e pais – necessária para que os filhos vivam sua própria vida – tampouco irá passar pela esfera do judaísmo: o pai é rabino, o filho talvez seja comerciante, mas novamente será muito difícil que este conflito culmine no questionamento do judaísmo como herança comum. Em resumo, o ser judeu é algo imposto pela sociedade de modo tão nítido, que o conflito inevitável entre pais e filhos nunca, ou somente em casos muito raros, passará por aí. Ora, se vocês se lembram do que falei sobre a história judaica na outra aula, este foi o caso até a emancipação. Mas, dali para a frente, a sociedade abriu para os judeus um caminho novo, o de integração social em proporções até então inimagináveis. Passou a ser, então, possível continuar a ser ou deixar de sê-lo; por este motivo, o conflito edipiano passa a atravessar também esta esfera, já que permanecer judeu era uma das formas de ser igual ao pai (de identificar-se com ele), enquanto abandonar o judaísmo poderia ser uma das formas em que se expressava o ódio pelo pai ou a rebelião contra a sua autoridade.45

Sylvio se apresenta como um desenraizado. O desenraizamento pode ser definido sumariamente como a inexistência de um vínculo ativo, real e natural com uma vivência coletiva. Esta autonomia solitária incide sobre a ação e a percepção do presente, e sobre a própria estruturação da memória individual. Não mais entrelaçada com a sobrevivência de um corpo social, a memória do desenraizado é livre dos encargos acerbos da tradição, e é em termos de conteúdo e intensidade uma escolha pessoal, voluntária e contingencial.

45

MEZAN, R. Psicanálise, Judaísmo: Ressonâncias, São Paulo: Editora Escuta, 1987, p.50.

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Não sendo então o combustível necessário para a perpetuação de elos sociais, a memória deixa de protagonizar a experiência cotidiana e passa a ser uma prática diletante. No relato de Sylvio a rememoração soa como uma experiência fora da agenda e o resgate do passado como um deslocamento em um país estranho, território capcioso, pouco alusivo para as questões e premências do presente. Embora expresse literalmente o seu desapego em relação às heranças, ao que ficou para trás, curiosamente há na narrativa uma deferência subliminar ao passado, como se o presente não tivesse o direito de chacoalhar sua sobriedade e aparente organização. O passado parece permanecer sob tutela, imobilizado, intocado. A interdição que se interpôs no passado sobre os sentidos da experiência judaica, de certa forma, permanece embotando a chance do presente interpretá-lo de forma mais reluzente. Embora o relato “encarnado”, “pertinente”, como o qualificou Sylvio, não tenha se realizado, ousou se anunciar. Este gesto sutil, aparentemente irrelevante, flexibilizou a narrativa, indicando uma sensibilidade para a plasticidade irrestrita da experiência. Este olhar mais complacente sobre o “mar aberto”, que acena toda e qualquer vivência, abriga uma promessa. O aceno singelo para o imponderável, quando o nosso diálogo parecia já ter se encerrado, irrigou, retrospectivamente no depoimento, o grão nômade da diferença. Este grão, cultivado em esferas tão distintas como a da criação artística, do pensamento filosófico (a filosofia da diferença de Deleuze-Guattari é um exemplo paradigmático desta atitude em relação ao conhecimento), da intervenção psicanalítica e da própria prática religiosa46 recrudesce a alegria do ato de fabular. É esta faculdade demasiadamente humana que conjugada à memória permite que os muitos instantes abandonados e perdidos ao longo de uma existência possam ser remidos e cultivados amorosamente, possibilitando-lhes uma nova vida, mais combativa, mais ardente, mais brincante e provocante. Nas palavras de Ecléa Bosi: O passado reconstruído não é refúgio, mas uma fonte, um manancial de razões para lutar.

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A leitura talmúdica do Escritos Sagrados se sustenta na idéia de que há um sentido em aberto, uma verdade nômade, sempre pronta a se refigurar. A própria dinâmica da memória judaica – Zakhor – indica esta abertura. A memória não é entendida como contemplação de um passado fechado e acabado, mas é essencialmente renascimento do passado no solo de hoje. O Zakhor judaico implica uma tradição que é transmitida de modo descontínuo e tecida de rupturas, na qual há espaço cativo para a novidade e o impensado.

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A memória deixa de ter um caráter de restauração e passa a ser memória geradora de futuro. É bom lembrar com Merleau-Ponty que o tempo da lembrança não é o passado, mas o futuro do passado.47

47

Op.cit.,p.66.

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CAPÍTULO 2 – História oral, memória e o imponderável.

Freud acreditava que havia uma secreta familiaridade entre os judeus pelo fato de partilharem uma mesma arquitetura psíquica. O prazer que sentia no convívio com seus patrícios era por se sentir à vontade, e não porque concordasse, necessariamente, com suas opiniões. Alguns elementos supostamente constituintes desta “arquitetura psíquica” foram descritos por Freud: a alegria de viver, o calor humano, a capacidade de fruir os pequenos prazeres da existência. No entanto, foram outros dois componentes considerados por ele atributos judaicos que contribuíram decisivamente para a consolidação da Psicanálise e para a sua existência como um todo: o fato de se ver, como judeu, livre dos preconceitos e, como judeu, estar preparado para colocar-se na oposição e renunciar à concordância com a maioria compacta. A dificuldade de delimitar um léxico para este judaísmo etéreo, porém sem Deus, que agoniza, não obstante persistir latente (sorumbático, ocluso, dormente, intermitente), não eliminou o desejo de poder esquadrinhá-lo. Freud procurou destacar os afetos alusivos ao universo judaico de modo a propor-lhes novas alianças e intensidades. No entanto, há também investimentos desta natureza menos criativos e com um cunho mais profilático, a fim de se proteger das incertezas que uma identidade porosa e fantasmática representa, nomeando o estranho para neutralizar seu efeito desestabilizador. Diferentemente do judaísmo laico, o judaísmo religioso se sustentou em pilares absolutamente claros. A palavra inscrita no Antigo Testamento e sua transmissão oral foram os seus grandes baluartes. De acordo com Yosef Hayim Yerushalmi, o edifício do judaísmo manteve-se sólido graças à memória narrativa e ritual, e não à historiografia. A narrativa sagrada contada no Antigo Testamento – Torá – é a seiva do judaísmo e, ao mesmo tempo, fonte de sua renovação e continuidade. É esta história lida e relida nos rituais das sinagogas e no ambiente doméstico que assegurou ao judaísmo sagrado que ele persistiðsö,önöoösöcömöi÷d÷ ösöiötömöé÷iòsöhösöóöiöaö,öeöcönörönöoöför÷aò ö ösörötögöaö öeösöböeöiöêöc÷aòeörönövöçöoö öNö öeöuödö

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A palavra hebraica hascalá tem sua raiz em sekhel, “razão”, “juízo”, e ficou ligada à noção de ilustração ou iluminismo judaico. Por esse nome designa-se o fenômeno que surgiu com maior precisão no horizonte histórico, social e cultural do judaísmo, sobretudo ashkenazi, em meados do século XVIII, o que não significa que não tivesse antecedentes. Em diferentes momentos da história do povo judeu pode-se constatar a presença de correntes, produções e concepções que tenderam ou se aproximaram deste movimento. No entanto a denominação refere-se ao movimento iniciado em Berlim, na Prússia, por um grupo de comerciantes e eruditos encabeçados por Moses Mendelsohn.

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solipsistas. A miríade de expressões – ressentidas, românticas, investigativas, dissimuladas, impressionistas, etc. – que consubstanciam esta memória laica, tão evasiva e ao mesmo tempo elástica, vem sendo cada vez mais invocada pela historiografia. Reencontram-se, mais uma vez, história e memória em nome da vivificação do passado e do estiramento do raio de compreensão do presente, mas sem a presença de Deus. O esforço deliberado, consciente, engajado, artificial, intelectual empunhado pela história, de produzir e/ou contemplar diferentes memórias – sociedades primitivas, mulheres, setores economicamente marginalizados, minorias étnicas, minorias religiosas, grupos separatistas etc. –, além de denunciar a insuficiência de uma história universal e oficial, tem proporcionado uma incursão na dimensão dos brancos, do esquecido e do recalcado da experiência, para tentar falar com asperezas e tortuosidades aquilo que não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A reaproximação da história com a memória é justamente em função de sua atual fragilidade e pulverização. A vertente da história contemporânea que vem perscrutando a memória tem buscado produzir uma escrita que articula, com rigor e delicadeza, os vãos e abismos incompreensíveis e/ou esquecidos da experiência. Prática preconizada por Hanna Arendt, o pensamento narracional, intitulado por ela de storytelling, mais do que defender uma tradição ou a memória de um grupo, tem como missão encontrar e trazer à luz o sentido das experiências humanas tidas como indeterminadas e caóticas. É através do ato de contar, do storytelling, que na utopia harendtiana os sofrimentos humanos encontram um espaço de continência passível de serem suportados e amortizados 49. Segundo Gagnebin, a função do historiador contemporâneo, embora destituída da glória que outrora lhe foi conferida – invocar a grandeza e os feitos memoráveis dos heróis, como fizeram Homero e Heródoto na Antiguidade – é de capital importância psíquica, ética e política. O historiador é hoje o propugnador de uma tarefa essencial: transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados, cavando um túmulo para aqueles que dele foram privados. Para Gagnebin, é esta memória

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AGUIAR, O. A. Pensamento e narração em Hanna Arendt. In: JARDIM DE MORAES, E. e BIGNOTTO, N. Hanna Arendt – Diálogos, reflexões, memórias, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2001.

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aparentemente mórbida que cavouca os possíveis que deixaram de se efetivar, mesmo os mais improváveis, que nos ajuda a viver de uma forma mais generosa e menos ressentida50. A noção de coletivo é fulcral na experiência judaica sagrada. Nos ritos, nas rezas e mesmo no pedido de redenção o pronome nós é sempre invocado e clamado. Por sua vez, na sensibilidade moderna engendrada pelo sistema capitalista, as certezas coletivas cedem lugar aos valores individuais e privados, e a história de si passa a preencher as lacunas deixadas pelo finado repertório partilhado por uma coletividade. Esquecimento e solidão passam a ser os dois dísticos que sintetizam o homem moderno. Sob este prisma, a modernidade é a negação mais profunda dos dois preceitos básicos que dão sustentabilidade ao judaísmo: o imperativo da memória e o dever comunitário. A mudança de princípios impingida pela nova ordem não representou apenas um deslocamento, mas uma inversão radical da lógica que regia e justificava a existência do judeu no mundo. As formas como o judeu tripudiou sobre estas faltas e se adaptou a uma sensibilidade antagônica à sua matricial integram o elenco de memórias que a historiografia tem procurado restaurar. No entanto, o trauma da perda de elementos tão determinantes e a intensidade com que esta suposta ferida ainda reverbera, mesmo em gerações profundamente assimiladas, permanecem como perguntas em aberto. Na tradição judaica e em várias tradições orientais, o ouvir é considerado o sentido primordial, superando à própria visão, base da tradição filosófica ocidental. Embora Deus apareça no Antigo Testamento, o que mais se escuta é sua voz. Para além do horizonte visível-invisível que incita a verdade grega, no judaísmo o homem é solicitado a abrir-se para o que está fora de seu alcance, além do horizonte, àquilo que não se pode ver nem nomear. Surpreendentemente, muitas das narrativas colhidas e reunidas por Intérpretes do desassossego fazem referência ao judaísmo residual pela via da audição – o sotaque, a música, o ídiche. Tido como o sentido preferencial em relação a todos os demais, é talvez o mais rochoso e perene, o que resiste a ser arrebatado e a esmorecer. Se esse som gutural ainda ressoa com alguma vibratibilidade, coexistindo com tantas outras vozes de origens e temporalidades distintas, é possível que esta melodia traga em seu bojo, consciente ou

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Idéia presente em vários textos da autora e citados em nota anterior.

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inconscientemente, os elementos que estruturam o judaísmo religioso e garantem sua sobrevivência: a memória e a importância do coro. A escuta articula-se necessariamente com a fala. Segundo Rosenzweig51, o falar, premissa da filosofia judaica, opõe-se ao método da filosofia tradicional que se pautava no pensar. O pensar é fechado em si próprio, auto-suficiente, solitário, não precisa de outro interlocutor, sabe a priori aonde vai chegar, é desligado do tempo. O falar, por sua vez, é imprevisível devido aos descaminhos inerentes ao diálogo, o falar leva profundamente a sério o outro, ele se configura na e pela relação. No falar, não há como fixar o destino de chegada, não há como antecipar o destinatário, não há como permanecer imóvel, embora no judaísmo haja um centro ao qual sempre se volta, que é a Torá. No cerne do arcabouço religioso judaico há dois grandes imperativos – escuta e transmissão oral –, porém tendo o primado da errância e liberdade como valores insofismáveis embutidos em ambos os gestos. Ao eleger o judeu a uma categoria do pensamento, Maurice Blanchot revela a universalidade dos princípios que orientam a existência judaica. Segundo Douek: O judeu personagem conceitual não se confunde com o judeu personagem psicossocial. É somente este último que é indissociável de sua encarnação, enquanto o personagem conceitual dela prescinde. É certo que o personagem psicossocial oferece elementos que permitem construir, criar ou inventar o personagem conceitual; no entanto, de um ao outro opera-se um salto, um pulo, uma mudança de registro: do registro histórico ao filosófico propriamente dito. A partir das reflexões de Blanchot o judeu conceitual não diz respeito apenas ao judeu psicossocial, personagem histórico, concretamente situado no tempo e no espaço, mas refere-se ao homem, a uma possibilidade de ser e pensar, possibilidade que não pertence apenas ao judeu, mas à humanidade. 52

51 52

DOUEK, Apud S. S., p. 184. Op. cit, p. 191.

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A escuta como bastião resistente e a fala como seu pressuposto e decorrência formam uma cadeia que pavimenta e perpetua o judaísmo sagrado. No entanto, a experiência judaica secular, mesmo a mais tímida ou dissimulada, parece ainda se sobressaltar com uma voz inescrutável que arrebata uma suposta indiferença perante o ser judeu. Refratária às territorialidades, esta voz parece aflorar da própria experiência com o tempo, da sensibilidade às mudanças, da escuta rítmica da cadência da história. Embora o judeu laico tenha se distanciado de sua pátria itinerante – o livro sagrado – e quebrado o compromisso de transmitir pela palavra a história a ser reverenciada, a experiência contemporânea destes artistas e de tantos judeus sincretizados ou desenraizados insinua que uma corrente de transmissão persiste, mesmo que sorrateira, inconstante, fragmentária e silenciosa. Ainda que a palavra tenha sido profundamente lesada como linguagem expressiva através da secularização e assimilação, perdendo a hegemonia que desempenhou e ainda desempenha na experiência religiosa, outras formas de expressão foram sendo amealhadas para dar voz e vazão aos sentidos difusos desta pertinência. A memória caudalosa e textual do judaísmo ígneo dos shtetls53, por exemplo, transformou-se em memória mínima, imaterial e fulgaz. Todavia, mesmo trôpega e impalpável, ela continuou se movimentando e impulsionando a roda desta história, numa espécie de transgressão que ainda assim mantem laivos de alguns princípios originários do patrimônio mosaico. Neste sentido, o que se apresentou como o grande impasse da pesquisa, ou seja, a fragilidade da palavra para falar sobre as marcas judaicas secretadas, lembrando-se de que na história oral repousa o fundamento do trabalho, foi gradualmente se configurando como o seu diferencial, quiçá o seu maior insight. Diante da dificuldade e/ou resistência de extrair o bagaço destas vivências e da tíbia força das lembranças judaicas observadas em grande parte dos 21 relatos, muitas foram as tentativas de vicejar o discurso oral, na esperança de atribuir à solenidade do primeiro encontro a “fraca” intensidade no que diz respeito à memória das origens. Uma retomada 53

Palavra em ídiche, significa “cidadezinha”, “aldeia”. Pequena comunidade provinciana de judeus na Europa Oriental pré-moderna (isto é, Rússia, Polônia, Lituânia e a parte leste do Império Austro-Húngaro). Era o principal centro dos judeus ashkenazitas do século XIX, que falavam, principalmente, o ídiche, chamada de “língua-mãe”. O judaísmo girava em torno da sinagoga íntima, conhecida como shul. No núcleo da vida no shtetl estava a grande família, com seus muitos ramos e grande número de filhos. O status provinha do estudo tanto quanto da riqueza, e as famílias se orgulhavam de ancestrais ilustres que propiciavam perspectivas melhores de casamento.

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de diálogo depois da confiança já estabelecida, a tentativa de uma continuidade/complementação da narrativa através de recursos não-orais – pictórico, escrito, iconográfico –, a proposta de um resgate sensorial sem a preocupação do encadeamento narrativo; todos estes recursos foram propostos com o objetivo de oferecer uma nova chance de o depoente engravidar o seu relato, escovando mais a fundo a dimensão do sentido das experiências. Embora poucos depoentes tenham se disposto a esticar e transcender os limites da entrevista, como se somente nela estivesse encarcerado o conhecimento e a verdade, a tônica minimalista identificada em grande parte dos depoimentos me pareceu não apenas uma contingência mas um sintoma revelador. Se pensarmos que a palavra proferida oralmente foi o baluarte da experiência judaica e que com a laicização dos judeus ela foi destituída desta função, podendo assim se filiar a outros enredos e selar compromissos de outra natureza, é significativo o aporte trazido pela história oral ao revelar a fragilidade verbal que o judaísmo sem Deus ou sem rituais adquiriu. Neste sentido, o que inicialmente parecia uma encruzilhada – a dificuldade de falar sobre os restos do patrimônio cultural herdado –, foi lentamente se revelando como uma chave interpretativa capaz de estabelecer uma relação mais orgânica entre os relatos. E, com relação a isto, desprende-se um aspecto comum a todos eles, que é a afirmação – mais ou menos eloqüente – de que algo deste patrimônio ainda reverbera, embora evasivo às racionalizações que um conhecimento estruturado pressupõe. Em termos metodológicos, havia um interesse meu em subverter os procedimentos hoje correntes na prática da história oral, conferindo-lhe um caráter mais experimental, menos orquestrado. A idéia era convidar o entrevistado a perscrutar algumas marcas determinantes no seu processo de tessitura subjetiva. Uma espécie de vasculha interior dos momentos em que havia sido “sacudido existencialmente”, na feliz expressão de Júlio Cortazar54. A sutileza do pedido e o aspecto imponderável da resposta propiciaram resultados bastante heterogêneos. Alguns depoentes se sintonizaram com o diapasão proposto, enquanto outros estruturaram seus relatos dentro de um modelo narrativo linear, seguindo de forma “obediente” os marcos socialmente aceitos como emblemáticos – herança, infância, formação, vida profissional. Independentemente da maior ou menor afinidade com a 54

BERMEJO, E. G. Conversas com Cortázar, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.

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perspectiva sugerida, os depoimentos, em seu conjunto, fornecem um panorama muito rico e diversificado do Brasil nas décadas de 50/60, sobre valores de uma geração que cresceu sob o signo da modernização acelerada e sobre a história das linguagens artísticas das quais meus interlocutores são intérpretes. Com relação à história da metodologia de história oral no Brasil, é importante destacar a respeitabilidade que ela passou a gozar, a partir da década de 90, no contexto intra e extraacadêmico. Este processo de institucionalização extremamente acelerado, no entanto, adstringiu, do meu ponto de vista, uma liberdade de experimentação que lhe é inata. O diálogo estreito que a história oral hoje mantém com o universo científico é contraposto à distância que hoje a coloca do continente problemático das artes. Talvez então esta seja uma das causas que justificam a falta de labareda que os relatos vêm adquirindo, responsabilidade que deve ser atribuída aos protagonistas envolvidos no diálogo – entrevistado e entrevistador –, mas também a um fator conjuntural que transcende a dinâmica mais ou menos intensa dos encontros. A cultura produzida e difundida pelos meios de comunicação se, por um lado, reacendeu a importância da cultura oral, ofuscada, por quase dois milênios, pela reverência absoluta ao escrito; por outro, transferiu para a comunicação oral atributos então considerados próprios à escrita, privando-a assim de suas propriedades particulares – abertura, espontaneidade, ausência de enquadre. Além disso, a recente aproximação da história com a memória, pela qual a história oral é bastante responsável, também tem, de certo modo, contribuído para a diluição de algumas categorias e conteúdos da memória, fazendo com que ela desconsidere aspectos dos quais não poderia se imolar. Ao arrogar uma função mais prosaica e se aproximar da memória, a história, ingênua ou arrogantemente, tem se furtado a pensar no diálogo entre os dois, reconhecendo na memória apenas aquilo que reflete sua própria imagem e semelhança. Neste sentido, a memória pode estar sendo subtraída de sua força plástica e mágica para esticar a pele do cotidiano55 em detrimento de um conhecimento sistêmico e intelectual do passado. Este olho vigilante da história em torno da memória, como adverte Jacy Alves de Seixas, ao promover uma união simbiótica entre ambos, tende a aplicar aos procedimentos da memória o que reconhecemos de longa data como mecanismos historiográficos. Apesar dos 55

Idem.

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enormes aportes trazidos pela recente valorização da memória – na esfera individual, nas práticas sociais e no interior da historiografia –, reitero a posição de Seixas, de que há uma reflexão muito tímida sobre a qualidade desta aproximação e dos conflitos que o vínculo entre memória e história hoje engendra. Segundo ela: Um primeiro efeito desta recente apropriação da memória pela história é a sua extrema operacionalidade e produtividade. É o “frenesi de memória” das duas últimas décadas, fenômeno novo e sem dúvida salutar, que está na raiz de importantes movimentos identitários (sociais e/ou políticos) e de afirmação de novas subjetividades, de novas cidadanias. Responsável pelo resgate de experiências marginais ou historicamente traumáticas, localizadas fora das fronteiras ou na periferia da história oficial ou dominante. Responsável, igualmente, por um debate historiográfico que teve como desdobramento o aparecimento de novas noções, como as de ‘memórias subterrâneas’, ‘lembranças dissidentes’, ‘lembranças proibidas’, ‘memórias enquadradas’, ‘memórias silenciadas’, mas não esquecidas, e outras que buscam dar conta da complexidade dos fenômenos contemporâneos da memória. O segundo efeito, que se entrelaça com o primeiro, concerne a sua vulnerabilidade teórica, pois, no mesmo momento em que se levanta o divisor de águas entre história e memória para, em seguida, destruí-lo, não se discutem finalmente os mecanismos de produção e reprodução da memória, seja ela coletiva ou histórica. Apenas se designam algumas de suas característica, definidas em relação ao próprio paradigma histórico, apresentado em toda sua positividade e voracidade. Tudo se passa como se a memória só existisse teoricamente sob os refletores da própria história, postura que não resiste a uma observação mais atenta e descentrada.56

56

SEIXAS, J. A. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: Memória (res)sentimento, Campinas: Editora da Unicamp, 2001, p.43.

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Sensíveis à conjuntura que tem paradoxalmente difundido e regulamentado a metodologia da história oral, um dos desafios importantes que se coloca hoje ao historiador envolvido com a produção e a análise das fontes orais é ser capaz de criar artimanhas para “engravidar” a palavra da sua propensão à esterilidade. A capacidade de injetar fibra poética na palavra, tornando-a uma janela capaz de deflagrar novos sentidos, parece ser a forma atual de militar em favor da radicalidade da história oral, traço distintivo desde o momento de sua consolidação como metodologia de pesquisa. Engajada em incursões ardilosas, a metodologia da história oral se destacou pela postura estóica em privilegiar dimensões da experiência, períodos e sujeitos obliterados do tecido da história. Então, ao invés de fincar sólidas fronteiras e esquadrinhar com rigor geométrico o território em que o conhecimento da história oral pode ser formulado e enunciado, o historiador, ao contrário, deve se esforçar para flexibilizar seu raio de ação e compreensão, expandindo a atenção para o que é latente e virtual, não só em relação à palavra, mas às demais linguagens de seu depoente a que tem acesso – corporal, sensorial, objetos biográficos – e ao que se anuncia na “sarjeta” da entrevista: os conteúdos aparentemente irrelevantes para a interpretação, explicitados fora da dramaturgia do diálogo orquestrado. Sendo a história oral um campo com margens extremamente elásticas, a escrita desta história não deve privar o leitor do percurso tortuoso, tateante, assimétrico e inexoravelmente parcial do saber erigido. Neste sentido, nos casos em que a memória parece tentar emular os procedimentos da história – racionalização, encadeamento, estabelecimento de causalidades, definição de um sentido único –, a história teria uma missão ética de quebrar o aspecto concêntrico das explicações lógicas, sugerindo de uma forma onírica os sentidos desviantes e os afetos que podem ter costurado silenciosamente a trajetória em foco. * * *

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O depoimento de MIRNA PINSKY57 é paradigmático da carpintaria exigida à memória, quando se busca talhar laços mais úmidos com o vivido. Laços imprecisos e que se fazem por proximidade, não obstante eles aceitam a irredutibilidade do passado, seu mistério e seu enigma inexoráveis. Diferentemente da idéia proustiana da memória como fruto de um arrebatamento súbito, que reencontra o tempo perdido do passado para arrancá-lo fora do tempo, dada a sua insuficiência; a memória benjaminiana, que vem servindo de lastro para esta investigação, precisa ser lavrada pelo sujeito que rememora. Ela é um gesto ético, um trabalho do pensamento, um esforço de insurreição contra o sentido petrificado, uma lufada de liberdade onde a vida parece estar aprisionada, parodiando Pelbart ao se referir à função desterritorializante da literatura. Esta história, que dialoga e se imiscui na memória em busca da construção de um presente mais generoso e menos austero, “flerta” de maneira explícita com o campo da arte. Movimento que nada tem de inédito e original, como afirma Júlio Cortázar: As primeiras obras da humanidade foram poéticas. Os primeiros textos filosóficos foram poemas. Os pré-socráticos, os grandes metafísicos, por exemplo: Parmênides é poeta, Platão pode ser considerado poeta. Os grandes textos cosmogônicos são poemas. À prosa se chega depois. Um pouco, suponho, porque no princípio, tanto na criança como no homem primitivo, a inteligência funciona, sobretudo, na base de analogias, mecanismos mágicos, princípios animistas. Há muito mais sensibilidade do que inteligência racional; a razão é uma maquininha que entra em ação depois. No caso dos gregos, chega, de maneira definitiva, com Platão e 57

Mirna Gleich Pinsky é escritora de literatura infanto-juvenil e a literatura é sua paixão mais antiga. É formada em jornalismo, com mestrado em Teoria Literária pela USP. Há mais de vinte anos trabalha na área editorial. É autora de 36 livros infantis/juvenis, com mais de 3 milhões de livros vendidos. Entre seus livros, destacam-se Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante, ganhador do Prêmio Jabuti, em 1995; Sardenta, que foi indicado para a Biblioteca Básica pela Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, em 1997, e Tão longe, tão perto, que teve classificação especial no Prêmio João de Barro, em 2001. Ganhou vários outros prêmios na categoria Poesia, Crônica, Contos. Começou sua vida literária escrevendo poesia, o que faz até hoje: alguns de seus poemas estão no site www.secrel.com.br/jpoesia.

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Sócrates. Antes disso, eram as grandes intuições, os grandes deslumbramentos, que já eram poesia.58 O depoimento de Mirna é combativo e discreto. Dele desprende-se uma ousadia sutil. Há um esforço na escolha das palavras (pronunciadas com cuidado, e não aleatoriamente) e nas imagens narradas de modo a fazer do passado um território pictórico, de descobertas e novas fissuras. Embora ela não pareça assoberbada pelo passado, nem por isso ele lhe soa indiferente. Há um diálogo cauteloso de religação do passado com o presente. Ainda que muitos dos conteúdos relatados sobre a vivência judaica tenham várias afinidades com os narrados por Sylvio – grandes vácuos sobre a vida pregressa dos pais, insipiência de rituais observados, apagamento de traços e práticas judaicas cotidianas, visão complacente dos imigrantes em relação ao Brasil e desejo de abraçá-lo visceralmente – há uma diferença que identifico na disposição, não apenas manifesta no depoimento, mas na própria vida, de acordo com os conteúdos trazidos pelo relato, de “burilar” este passado, perseguindo seus rastros, seus restos, suas permanências. Não se escuta (no timbre, nas pausas, no ritmo, na respiração) e tampouco se enxerga (através das expressões, gestos, movimentação no espaço) uma atitude sentimental no interesse de retroceder ao passado, como se este fosse um território idílico, um paraíso perdido. Todavia, há uma inquietação no que ele, ao ser invocado pelo presente, representa de exterior, estranho, não coincidente, perturbador. O que fica de mais candente nas estórias narradas, e que a situação do depoimento em si reitera, é o prazer incontinente de ser enredada por estórias. Quando Mirna fala sobre a literatura, sua voz parece ganhar mais espessura e mais fulgor. A felicidade de ser a emissária ou receptora por onde passam vários mundos, deixando-se embeber desta profusão, não apenas em sua biografia particular, mas em todas as outras que a foram atravessando, parece configurar-se como o eixo que alinhava muitas de suas experiências. Na maneira como Mirna vai urdindo seu depoimento, recuperando lentamente lembranças, propondo bifurcações sem destino certo, rasurando a solidez inquebrantável de certas memórias, incorporando a dúvida como constituinte das certezas, propondo não apenas uma mas múltiplas aproximações não excludentes ao vivido, observa-se o caráter experimental que ela parece atribuir à narração. Para além de sua função representacional, 58

Op. cit., p. 18.

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há uma aposta por parte de Mirna no aspecto combatente e intervencionista da narração, que tem todo o direito de não aderir viscosamente à crueza do fato vivido, declinando para aspectos que parecem alheios ou pouco afins com o que literalmente ocorreu na experiência passada. Para Mirna, o narrar é uma espécie de bálsamo contra a “miséria do real”, uma forma de dar-lhe mais pregnância e mais murmurinho. É como se através da narração Mirna fosse alargando e simultaneamente habitando o mundo, comprometendo-se com sua multiplicidade e “lambuzando-se” da sua complexidade. Extrai-se de suas memórias e da qualidade de sua entrega na ocasião do depoimento, isento de grandiloqüência, embora visível e sonoramente investido, que narrar é coisa séria, é um investimento estético que aspira à invenção da realidade, e não à sua calcificação. Esta talvez seja a razão da gravidade e do frescor que emanam de seu relato. Há uma disposição genuína por parte de Mirna de revisitar as veredas do passado, abrindo-se, sem cautela, para os novos sentidos que a escovação sobre ele e o diálogo comigo provavelmente desencadeariam. Como já foi dito anteriormente, o corpus que confere o arcabouço ao judaísmo – a Torá – transmitido e renovado a cada nova geração, é o que cimentou sua história e possibilitou sua sobrevivência secular. Segundo o imperativo religioso, todo “bom” judeu deve ser emissário e arauto deste enredo. Sua luta consiste em impedir que o espírito da “criança má” evocada na festa de Pessach 59 ganhe fulgor, já que, de maneira insidiosa, esta criança se recusa a ouvir o chamado divino e se desatrela do compromisso coletivo de manter o judaísmo aceso. Portanto, deste arcabouço os dois princípios que se destacam são aqueles enraizados desde o início no horizonte problemático do judaísmo: sensibilidade coletiva e transmissibilidade. Mas ao nos propormos saltar do judaísmo imaculado da religião e nos reportarmos a um contexto histórico-cultural distinto, que é o da contemporaneidade, no qual o sentimento judaico se expressa também e fundamentalmente de um modo profano, será que é possível identificarmos alguma cicatriz, algum rastro deixado por estes conteúdos umbilicalmente 59

Palavra em hebraico significa “passar por sobre”. Pessach é a festa da liberdade, comemorando a redenção dos escravos israelitas do Egito e apontando adiante para a redenção do mundo na Idade do Messias. É também a época da colheita da cevada e o fim da estação das chuvas. A festa tem a duração de sete dias (oito dias na diáspora) e começa no anoitecer da primeira noite do Êxodo, com a refeição ritual familiar do seder, na qual se relata a história do Êxodo para que as crianças compreendam sua mensagem. Nesta refeição comese a matsá (pão chato feito só de farinha e água), para lembrar aos participantes o pão dos escravos comido no Egito.

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atrelados à existência judaica? Será que a atividade de narrar não seria, ela própria, mesmo que indiferente ao repertório estritamente mosaico, a maneira de continuar sendo atravessado pelo mundo e se manter comprometido com a experiência do tempo, visto que parece estar no tempo, e não no espaço, a fidelidade exigida ao judeu? Segundo Denise Bernuzzi de Sant’Anna, o enredo é sempre a transmissão criadora de uma ação coletiva. Embora sejamos levados a associar automaticamente o enredo à literatura, Sant’Anna nos adverte de que eles podem se fazer através da fala, dos gestos, dos objetos e até através de seres não necessariamente humanos. O enredo pode ser ou não literário, pode ser ou não artístico. O mais importante não é sua originalidade ou a identificação de sua autoria, mas sua passagem entre os corpos, a idéia de transmissão que traz no bojo a reinvenção. Elo com o tempo e com o coletivo, a noção de enredo parece ter muita proximidade com o significado originário da experiência judaica e que se manteve hegemônico até o processo de Emancipação, quando foi então concedida uma série de direitos civis e políticos, sendo possível escolher entre continuar ou deixar de ser judeu. Embora esta escolha tenha se revelado muito mais complexa e problemática do que acenava ser, ao tentarmos apreender o significado ontológico da condição judaica talvez a sensibilidade epidérmica à espessura fibrosa do tempo seja um caminho alusivo desta pertinência. Bosi, ao interpretar a vida e a obra de Simone Weil, destaca o valor por ela atribuído ao exercício da atenção, considerada a maior entre todas as vantagens da instrução. A atenção, independentemente da recompensa ou eventual aquisição de informações, representa um bem em si mesmo. Ao invés do apego ao objeto analisado, a atenção significa o avesso: liberdade e desprendimento ao que está fora do círculo de si mesmo. De modo simples e lírico, virtude exemplar dos textos de Bosi, assim ela sintetiza a idéia da pedagogia da atenção preconizada por Simone Weil:

É bom ver uma criança acompanhar dia a dia o crescimento de uma planta em suas pequenas e contínuas mutações; ou o

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crescimento de um animalzinho. Não para ter noções de Botânica ou Zoologia, mas para sair de si mesmo, alegrar-se com uma vida que não é a sua. Observando, assim, a criança consegue transcender o ego e procura escutar e ver sinais da natureza e do outro. A atenção traz consigo uma “liberdade para o objeto”, como se ela cortasse as peias que nos prendem a nós mesmos. É um sair de si, que pela sua qualidade de doação se assemelha à prece.60 Will Eisner, lendário criador do personagem Spirit e inspirador de várias gerações de quadrinistas, é categórico quanto a função das estórias para os judeus. Segundo ele: Os judeus sempre gostaram de contar histórias. Contar histórias é parte da alma judaica. O judaísmo é construído por histórias, por contar histórias. Como na Torá. Nós gostamos de contar histórias, parece que vem naturalmente. Então, naquela época, isso era algo que sabíamos fazer – e os quadrinhos foram a forma que encontramos para fazê-lo.61 Ao nos reportarmos novamente à narrativa de Mirna, o universo das histórias (leitura e escrita) é destacado como o espaço que lhe assegura o mais profundo sentimento de pertinência, o mais familiar, o mais quente. Proferidas através da escrita ou do discurso oral, o diálogo é inerente às estórias. E o diálogo, por sua vez, só se efetiva com a idéia de partilha. Partilhar significa participar com, ser capaz de escutar e afirmar a singularidade do outro, de modo que o outro lhe assegure os mesmos direitos que a ele são conferidos. Esta coexistência saudável, que fica no interstício entre o solipsismo e a simbiose, renova as formas de saber sobre o mundo, sobre 60

Op. Cit., p. 210. HART, D. K. Superpoderes judaicos. In: Revista 18, São Paulo: Centro da Cultura Judaica – Casa de Israel, dez. 2003/fev. 2004, p. 33-34. Apesar do seu caráter jornalístico, o texto lança luz sobre um aspecto ainda pouco explorado que é a onipresença de criadores judeus na história dos quadrinhos americanos – Super-Homem, Homem-Aranha, Capitão Marvel, Capitão América, Hulk, Thor. -, trazendo elementos muito ricos para a discussão sobre a identidade judaica durante a ascensão de Hitler e depois do final da guerra. 61

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o outro e sobre si mesmo. Atribuir às estórias a condição ambivalente de abrigo e farol, assim como foi o Antigo Testamento durante toda a história judaica, é uma forma de aceitar e acolher a exterioridade, não se contentando com o que é familiar, com o que é acabado, estagnado. As estórias possibilitam a conquista de novos territórios prescindindo do deslocamento físico, o questionamento de princípios e certezas tidos como firmes e infranqueáveis e representam um “sopro profundo de humanidade” ao colocar o leitor/ouvinte sem proteção e sem escudo diante do mundo dos outros, das outras vidas, das outras formas de sensibilidade. E é justamente este embate que possibilita a experiência da comunhão, da aceitação. Neste sentido, as estórias representam poderosas e indomáveis usinas de subjetivação. Clarice Lispector talvez seja o exemplo mais agudo do poder lancinante do universo sem fronteiras da literatura: Eu não quero mais uma vida particular, pois quando eu fico muito sozinha eu não existo. Eu só existo no diálogo.62 Ao optar pela literatura como atividade profissional e ao cavar espaços no interior de seu cotidiano para que as estórias familiares permanecessem, instigando de alguma forma seu imaginário, fica claro o lugar solene que o enredo como transmissão criativa de uma ação coletiva, como o define Sant’Anna, adquire na existência subjetiva e objetiva de Mirna. Neste sentido, apesar de todas as supostas lacunas de sua formação judaica, silêncios e negações de uma aderência mais viscosa, Mirna talvez tenha a maior de todas as marcas judaicas, que é a necessidade do diálogo com o mundo, e que a literatura, mais do qualquer outro recurso, propicia e potencializa. Segundo Sant’Anna:

Os enredos narrados seduzem na medida em que fazem do corpo sedutor um corpo denso de outros enredos que por ele passam e que por ele são recriados. O construtor de enredos é, portanto, um 62

KANAAN, Apud D.Al-Behy Escuta e subjetivação – A escritura de pertencimento de Clarice Linspector, São Paulo: Casa do Psicólogo-Educ, 2002, p. 194. O trabalho consiste em uma análise do texto clariceano, centrado na questão da escuta, da construção narrativa da experiência subjetiva e da escrita como construção de laço de pertencimento. Muitas de suas análises sobre a singularidade da escrita e da oralidade, partindo da interpretação da obra de Clarice Lispector, foram incorporadas e estão diluídas ao longo deste texto.

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corpo que funciona como multiplicidade e passagem entre corpos: um corpo-caminho de idas e voltas: no lugar de passar por todos os lados, este corpo se torna, ele mesmo, uma passagem para outros corpos e para muitas histórias. Os enredos narrados são capazes de “abrir corpos”, transformando-os em elos de ligação entre os diferentes corpos do mundo. O corpo criador de enredos, como aquele de Sherazade, não fala exatamente de si mesmo, mas fala de si mesmo também! Ele não está preso às tiranias ou as delícias da própria intimidade – seja aquela de um único eu, seja a de um único eu partido em milhares de “euzinhos”. De fato, a narrativa em todas as noites enreda: cria um espaço de intimidade com o mundo que nos parece tão desconcertante quanto acolhedor. Tratase de um corpo que, quanto mais mostra a si mesmo, mais torna este si mesmo um discreto enigma.63 O jogo sinuoso de se revelar se ocultando, dialogar em silêncio, transgredir sem trair, dar intangibilidade para o intangível, lembrar esquecendo, deixar rastros sem se mexer, sonhar sem dormir e tantas outras experiências aparentemente antagônicas coabitam no mundo da literatura, seja oral, seja escrita. A percepção ao mínimo de sentido que se localiza na “franja” da experiência, tirando-a do seu silêncio e revelando sua luz clandestina, dá uma dignidade a tudo que é humano, do mais simples gesto ao mais glamouroso. Adélia Bezerra de Menezes se refere à palavra poética como cortante, incisiva, um bisturi sofisticado capaz de esmiuçar a vida dos afetos. A literatura, como qualquer linguagem artística, não é um lenitivo diante da precariedade do real ou uma experiência cosmética para tornar o real mais aprazível ou suportável. É uma forma de problematização do mundo aonde quer que a existência pareça coagulada, trancafiada. Segundo Suely Rolnik: Um dos aspectos que muda e se radicaliza no contemporâneo é que, a partir do momento que a arte passa a trabalhar qualquer 63

Texto não publicado proferido em palestra no Rio de Janeiro.

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matéria do mundo e nele interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte é uma prática de problematização: decifração de signos, produção de sentido, criação de mundos. É exatamente nessa interferência na cartografia vigente que a prática estética faz obra, sendo o bem-sucedido da forma indissociável de seu efeito de problematização do mundo. O mundo liberta-se de um olhar que o reduz às suas formas constituídas e sua representação, para oferecer-se como matéria trabalhada pela vida enquanto potência de variação e, portanto, matéria em processo do arranjo de novas composições e engendramento de novas formas. A arte participa da decifração dos signos das mutações sensíveis, inventando formas através das quais tais signos ganham visibilidade e se integram no mapa vigente. A arte é, portanto, uma prática de experimentação que participa da transformação do mundo. Fica mais explícito que a arte não se reduz ao objeto que resulta de sua prática, mas ela é essa prática como um todo: prática estética que abraça a vida como potência de criação em diferentes meios onde ela opera. Seus produtos são apenas uma dimensão da obra e não “a” obra: um condensado de signos decifrados que introduz uma diferença no mapa da realidade.64 A onipresença dos autores judeus no gênero das histórias em quadrinho americano é muito interessante e sugestiva para esta discussão. Se na década de 30, data de criação do gênero, os quadrinhos representavam uma válvula de escape à condição infame do judeu, que vivia acuado pelo medo da ascensão de Hitler ao poder, aos poucos foram se tornando canais de expressão através dos quais personagens e referências judaicas puderam ser nomeadas e problematizadas. Will Eisner é um entre 64

ROLNIK, S. Subjetividade em obra – Lygia Clark, artista contemporânea, conferência proferida no Museu d´Art Contemporani de Barcelona, por ocasião das exposições Zuch Tecura e The Prinzhorn Collection: Traces upon the Wonderblock, Barcelona, 2001, texto não publicado.

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tantos autores que, depois de um trabalho profundo de expiação sobre seus fantasmas identitários, substituiu, com compaixão e ironia, o mundo fantasioso protagonizado pelos super-heróis – potentes, altivos, fortes, imbatíveis –, pela atmosfera lúgubre do Bronx e pelos sujeitos esquecidos de sua infância – “cantores mambembes, pequenos e anônimos funcionários, desempregados”. Segundo ele: Por muito tempo tive que me esconder atrás de uma máscara. Precisei de muita coragem para falar de mim mesmo.65 O depoimento de Mirna me parece apresentar uma afinidade “secreta” com a experiência dos quadrinistas americanos. Há também a sombra turva do desassossego pairando sobre sua identidade judaica e o desejo de driblá-la fazendo um uso performativo da palavra. No lugar da palavra de ordem, da ditadura dos sentidos consentidos, ela busca atribuir à palavra uma força plástica capaz de irrigar e povoar o passado, privado de multiplicidade e liquidez. Transitar por alguns de seus conteúdos sem a mediação e a saliência da voz da intérprete dos Intérpretes do desassossego é o que se impõe como decorrência natural deste exercício, que procura não se abster do esforço hercúleo da interpretação, nem, por outro lado, se afastar da matéria-prima que é o próprio relato, como se ele não tivesse o direito de se comunicar de outras formas e ser lido de tantas outras.

[...] Olha, eu acho que venho de uma família muito pouco judaica, principalmente do lado paterno. Meu pai é austríaco e ele era cientista. Ele era adaptado à realidade austríaca e veio para o Brasil por causa das circunstâncias políticas, por causa da guerra. Ele veio em 1936. Minha mãe já vem de uma família mais judaica, mas a formação que eu tive foi muito mais de judia alemã do que judia, e não tanta alemã. Era uma coisa muito pouco ligada à sinagoga. Eu também não freqüentei nenhum movimento juvenil. Esse tipo de influência na minha vida é muito suave. Até certo ponto eu me considerava muito desligada e sem raízes no judaísmo. Você acaba retomando pequenas coisas da tua infância, histórias que sua avó contava, pequenos encontros de família, que eram sempre às sextas65

HART, D. K. op. cit.

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feiras. Lá pelas tantas é que isso te pega. Eu nem me preocupei em casar com judeu, embora tenha acabado me casado com um. Mas não era obrigação, eu não senti muito essa pressão para esse lado. Depois, quando meus filhos já estavam encomendados, eu tive três, comecei a me reinteressar, afinal de contas, minha mãe fazia o Pessach e o Rosh Hashaná66. [...] Meus avós vieram para o Brasil com dois filhos, saindo de Socoron, em 1905. Meu avô não queria se alistar na Guerra contra o Japão. A família não se adaptou, voltou para a Rússia, mas não se adaptou lá também e retornaram então para o Brasil. Minha mãe, a caçula de cinco filhos, nasceu no Brasil. Minha mãe era professora, tinha raízes muito mais judaicas do que as de meu pai, cuja família era completamente assimilada. Pelo fato de eu ter casado com um judeu, acabei tendo um pouco mais de ligação com o judaísmo. A família de meu marido trazia alguns elementos, vivia uma outra realidade, e eu acabei me ligando e retomando as festas de família. Meus filhos curtiam as festas com músicas, e a minha sogra, que é uma pessoa interessantíssima, trazia uma série de histórias. Eu adoro contar histórias, quer dizer, ouvir histórias. Eu sou uma ótima ouvinte, falo muito pouco e escuto muito. Então, fui juntando milhões de histórias que ela, meu sogro e o Jaime contavam da família dele. Tudo isso acabou entrando nas minhas histórias de uns dez anos para cá. Histórias bonitas, sentimentais, carinhosas, mas que não têm uma raiz profunda, uma filosofia. Eu não tenho uma vivência mesmo do judaísmo. [...] Meu pai era químico, já tinha doutorado, era pesquisador e veio para cá fugido da Áustria. Foi trabalhar numa indústria química. A família era realmente distante do judaísmo. Até hoje em dia a irmã dele, que ainda está viva, diz que o pai deles não era judeu. Mas eu não sei se isso é um delírio, não fui atrás, e meu sobrenome de solteira não é de fato judaico – Gleich. Já pedi que fizessem a minha árvore genealógica e não encontraram nas judaicas qualquer referência a esse nome.

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Palavra em hebraico que significa “cabeça do ano”. Comemora-se a criação do mundo: é o Ano Novo judaico. Rosh Hashaná é também chamado Dia do Julgamento e dá início a um período de julgamento para a humanidade que termina quando Deus determina o destino de cada indivíduo no ano que se inicia. Os judeus acreditam que as orações e o arrependimento, característicos dos dez dias de penitência, que tem início em Rosh-Hashaná, asseguram que seus nomes sejam incluídos no livro dos justos que sobreviverão àquele ano, e que não sejam punidos por seus pecados.

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[...] Meu pai morreu quando eu tinha 28 anos, e ele era muito tímido. Ele não trazia a história de vida dele, sei de pouquíssimas histórias da vida dele. Tenho muito mais dessa minha tia que é viva e que mora nos Estados Unidos. Eu vou muito para lá e ela me conta bastante como foram as suas experiências de vida. Como ela é uma pessoa totalmente assimilada, o lado judaico eu realmente não vejo, eu não consigo recuperar. [...] Ele se naturalizou depois de alguns anos, ele gostava muito daqui, ele aprendeu o português bastante bem. Não ficou fixado no alemão. Tinha alguns amigos austríacos, mas eu acho que era mais pela formação. Por ser ele um estudioso, se relacionava bem com os amigos dessa mesma formação e que nem eram judeus. Tinham mais a ver culturalmente com ele porque judeus mesmo ele tinha poucos amigos. [...] É uma coisa que também nunca entendi o porquê. A Faculdade de Química foi fundada depois dele estar aqui, muito tempo depois, pelo menos um amigo dele deu aula lá, e ele, que já era professor na Áustria e já tinha tido uma vida acadêmica, não se aproximou da Universidade. Nunca entendi muito bem por que não arriscou a ir para esse lado. Mas continuou lendo as revistas acadêmicas e se atualizando. Talvez ele tivesse medo de não conseguir sustentar a família. Foi trabalhar em uma empresa de meu tio. Eu encaro isso como uma frustração dele, um lado da vida que não ficou bem resolvido. A influência que teve sobre mim foi em termos culturais. Eu lia muito, e ele era a pessoa que me indicava os bons livros. Ele era também um grande leitor, enfim, todos os grandes romancistas da minha juventude foram indicados por ele. [...] Eu fui fisgada pela literatura aos 6 anos. Minha mãe era professora e talvez pelo fato dela falar muito direitinho, muito bem, eu sempre formulei muito bem o pensamento. Desde os 6 anos, leio adoidado, e isso vai levando a uma coisa e outra. Tenho uma cultura de leitura muito grande do tempo de infância e juventude. Hoje em dia leio muito, razões profissionais, estou trabalhando em editora, mas não acho que leio tanto quanto no passado, pelo menos, não mais com aquele prazer. [...] Minha mãe é brasileira mesmo, ela fala muito bem, era professora primária. Eu não sei se eu te mostrei, eu quero te mostrar o livro Carta errante, avó atrapalhada, menina aniversariante, da FTD, que tem alguma cosa de judaico. Nem todos os meus livros têm, na realidade, poucos deles têm. É a história de uma avó que mora em Israel e que manda uma

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carta para parabenizar a neta que mora no Brasil pelo aniversário. Só que ao escrever a carta começa a lembrar da vida dela no shtetl, do avô, da infância, e tal. Ao mandar a carta ela preenche o endereço com alguns caracteres em hebraico. Daí toda a confusão que se segue para encontrar a menina. A história é muito engraçadinha e tem elementos judaicos. Eu acho que são pequenos tons de coisas judaicas que eu ponho em um livro, em outro. O jeito da avó, por exemplo, eu acho que lendo o livro vai ver que essa mulher é judia. Ela tem qualquer coisa de carinhosa, atrapalhada, uma mãe um pouco autoritária, mas por outro lado muito boazinha, querendo se relacionar bem com as pessoas. Eu acho que tem um clima meio judaico em tudo. [...] Meus pais se conheceram pegando o bonde. Minha avó era mascate. Meu avô morreu quando ela tinha 33 anos e estava grávida de minha mãe. Para sustentar os cinco filhos foi ser mascate. Minha avó tinha 33 anos e saiu vendendo quadros e outras coisas. Ela batalhou muito e conseguiu não só sustentar seus filhos mas também os de uma irmã extremamente deprimida que ficou viúva. Minha mãe conta que sexta-feira era o dia de tomar banho. A minha mãe realmente passou por muitas dificuldades. A mãe dela morava numa grande casa, e embaixo tinha porões. Então o que ela fazia? Ela dividia o porão em vários quartinhos e alugava os quartinhos para os imigrantes, geralmente homens sozinhos. E como eles ficavam muito sós, muitas vezes ficavam bêbados. Minha mãe conta da vergonha que sentia. Não tinha coragem de trazer amigos, amigas para casa, tinha vergonha de mostrar a casa onde convivia com pessoas que não eram da família. Me surpreende, então, esse tipo de dificuldade não ter marcado o caráter de minha mãe, no sentido de torná-la uma pessoa mais depressiva, como aconteceu com duas de suas irmãs. Acho que a convivência com as dificuldades não a tornou uma pessoa amargurada. Algumas pessoas parece que não recebem o peso muito grande das coisas, não sei se é genético ou contextual, pelo fato de ser a última filha, mais defendida. Eram quatro mulheres e um homem, eu acho que só ela e a penúltima tinham personalidades mais alegres. [...] Eu realmente não tenho muito judaísmo, mas me encanto com o lado existencial da coisa, como era a cabeça dessas pessoas, como encaravam o mundo, o que é que dava energia para essas pessoas. Eu tenho curiosidade de retomar essas pessoas e descrevê-las, de colocá-las como personagens, mas sem fazer disso uma missão. Simplesmente contar, 91


eu gosto de contar histórias, mas eu não me identifico com personagens religiosas, ou que tenham raízes judaicas. E hoje, com a idade que estou, eu repenso tudo, já vejo essas pessoas com olhos muito menos exigentes, tenho muito mais tolerância e distanciamento. Eu acho que o ser humano é tão rico em contradições e gosto de trabalhar todas as contradições, e é isso que eu acho legal nas pessoas, se elas têm raízes mais assim ou assadas, eu vou construí-las assim ou assadas, mas sem me identificar necessariamente com elas. Gosto de contar as histórias e contar sobre as pessoas. Então você me pergunta o que vem do meu judaísmo? Acho que a sensitividade para o outro, a percepção maior do outro. Mas será que se eu não fosse judia eu não teria isso? Eu não sei responder, acho que eu ainda vou conseguir responder melhor. Essas contradições todas que os pais da gente trazem e transmitem sem perceber, transmitem pela pele, criam em você maiores ou menores sensibilidades para o contexto, para o lugar onde você vive. Eu tenho um irmão que é completamente diferente de mim e nasceu do mesmo lar, mas provavelmente as coisas tocaram nele de uma maneira diferente e ele se tornou a pessoa objetiva e prática que é. Para mim, as contradições criaram um outro tipo de reação, que tem o seu lado bom e o outro lado. O lado bom é poder transferir para as palavras essas coisas todas que a gente vai sentindo, vendo, construindo... Acho que isso é uma coisa maravilhosa. [...] Quantas vezes eu já fui aos Estados Unidos para essa tia me contar milhões de histórias, e essas histórias vão entrando em mim. Ela conta tudo da infância dela, das dificuldades no Brasil, quando ela chegou, um pouquinho também da vida dos avós. Ela vai contando como é que eles chegaram, como é que eles viviam, como é que moravam. Você sabe o que eu fiz em 1999? Fui para a Viena percorrer os lugares onde meu pai, minha tia e meus avós moraram. Eu tinha algumas informações, poucas. Fui procurar e achei, era no centro da cidade. Daí, eu fui à faculdade onde meu pai estudou e tentei procurar lugares que eram remanescentes de laboratórios, do começo do século. Lugares onde ele poderia ter trabalhado ou freqüentado. Tirei algumas fotografias daqueles lugares que não teriam mudado desde o começo do século. E isso é uma coisa que toca. Você fica pensando, como é que era antigamente, quando eles chegaram aqui, nessa praça, nessa igreja. Isso eu acho muito legal. Isso eu curto no Bom Retiro. Eu fui atrás das casas onde minha mãe morou, mas não existiam mais. Nenhuma delas. Uma coisa engraçada que aconteceu comigo vai aparecer num livro publicado pela FTD. É que algum tempo atrás

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fui procurar terapia e a terapeuta morava na rua Arthur Azevedo. Por coincidência, era a casa onde eu morei quando criança. Olha que coincidência? Acabei não fazendo terapia com ela. Não é engraçado? Eu me lembrava da escada, eu morei lá até 3, 4 anos, mas eu me lembrava da escada, porque minha avó continuou morando numa casa igual, ao lado, e a memória parece que fica mais forte quando você continua ainda vendo. Ao entrar naquela casa, eu revivi todas essas coisas! Eu gosto muito de retomar e de reconstruir. Aproveitar de alguma forma. [...] Fiz somente o primeiro ano do primário no Beit Chinuch e depois fui para o Mackenzie, no primário, no ginásio e no secretariado. Curioso! Meu pai tinha medo de eu não ter uma profissão e ele morrer, de repente. Meu pai já tinha 40 anos quando eu nasci. Ele fazia questão de que eu tivesse uma profissão e eu fui fazer secretariado. Depois fiz jornalismo na Cásper Líbero. Naquela época não se fazia Bat-mitzvá 67. Meu irmão fez Bar-mitzvá 68. Gostou de fazer porque ganhou muitos presentes na época, porque todo mundo fazia, mas ele é menos judeu ainda do que eu. Ele casou com uma não-judia, ele sabe menos do que eu sobre judaísmo, e eu sei quase nada. Eu saio dessa conversa pensando que talvez eu não tenha pensado o suficiente sobre esses elementos que dão forma à minha maneira de ser[...] Mas como você constrói uma pertinência? Eu acho que você constrói aglutinando as pessoas, mas também fazendo rituais, não é? Fazer os rituais dando sentido a eles. Acho que ainda não refleti direito, talvez haja alguma coisa judaica no meu não-judaísmo, quer dizer no meu achar que eu não sou judia. Mas não percebi porque não parei para ver. Quando vou para os Estados Unidos, por exemplo, e conheço algum judeu, sinto muita proximidade. Imediatamente é mais fácil o relacionamento, embora a gente não fale sobre nada que faça alusão a esta pertinência. No entanto, existe alguma coisa que facilita[...] Eu acho que dos 10 até os 15 anos, ou 8 até os 15 anos, alguma coisa assim, eu tenho tudo anotado. Eu tenho muitas cartas também, eu adoro 67

Uma menina na idade de 12 anos e mais um dia, de acordo com a data de aniversário hebraica, é considerada uma mulher adulta que deve cumprir os Mandamentos. Nas comunidades de culto conservador e reformista, realizam-se cerimônias na sinagoga para as meninas, quando são chamadas para subir à Torá, de forma semelhante à dos meninos. Em muitas sinagogas ortodoxas modernas também se realizam celebrações de Bat-mitsvá, geralmente no domingo e se apoiando em seleções de outros textos, em vez de serem chamadas à Tora. 68 Termo que designa o menino judeu que completou 13 anos, de acordo com o calendário judaico. Este rito de passagem celebra a maioridade religiosa do menino que passa a ter a obrigação de cumprir os Mandamentos, de pôr tefilim (objetos de oração), e pode ser contado para o minian (quorum de pelo menos dez adultos homens para os serviços religiosos) no culto público.

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escrever cartas. Guardo bilhetes de amigos, de gente do passado que me escreveu. Eu tenho muita coisa guardada, de vez em quando, por alguma razão, não é muito freqüente, eu mexo naquilo e vêm algumas coisas que eu falo “Nossa!”. Não tenho uma necessidade especial de fazer isso, sabe? Acho que as coisas quando vêm na memória, sem cavoucar, é melhor. Elas vêm. Quando faço meditação, limpo a cabeça, daí me vêm algumas memórias, alguns pedacinhos. [...] Na infância não era muito bom o fato de ser diferente. Tanto que acho que esqueci o alemão porque fui criança em época de guerra, e o alemão não era uma língua bem vista. Tinha aquele ditado “alemão, batata, come peixe com barata”, que é uma das reações infantis ao contexto da época[...] E também a coisa de ser judia. Uma ou outra vez, eu levei uma destas: “Você não nega a sua raça”. Isso é uma das coisas que aconteceram uma ou outra vez na minha vida, e também me deram a sensação de ser o outro. Quando eu ia nas escolas por causa do livro Nó na garganta, dizia para os alunos que eu me identificava em termos da discriminação. De certa forma, em algumas situações eu também havia sido discriminada como judia, que era uma coisa muito diferenciada, bem pejorativa. Acho que as sensações que a gente tem são sempre utilizadas numa criação de personagens. O Manoel de Barros tem uma frase bonita: “Tudo que invento dos outros é de mim que falo”. É bonito isso. De alguma forma, você está transfigurando as coisas que sentiu, que reconheceu em você e leva para a literatura.

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Despedir-se de um depoente no momento da entrevista ou no momento da interpretação provoca um certo desconforto, um mal-estar. Muito já se falou sobre o caráter arbitrário do processo de finalização do depoimento. De qualquer modo, ele permanece instigante e não cessa de propor novos questionamentos. O esforço de compreensão da trajetória do depoente exige uma escuta desprendida, a tal atenção desinteressada a que se refere Bosi ao citar a relação saudável da criança com o desenvolvimento de um animal ou de uma planta. Escutar o outro na sua alteridade pressupõe a suspensão temporária das próprias necessidades, expectativas, projeções, dos demônios íntimos. A disposição de promover um hiato de si próprio, exilando-se do bunker interior no qual o sujeito se sente plenamente proprietário, exige coragem e desprendimento, já que o encontro com o outro e a exposição a ele tem sempre algo de reverencial. É no embate face a face, sempre evasivo ao cálculo e ao controle, que a “fortaleza inexpugnável do eu” é posta em xeque, aluída. Assim como a experiência da amizade, que é pautada no livre-arbítrio, os depoimentos que escolhemos escutar também obedecem a critérios semelhantes. É importante frisar que as escolhas não se expressam unicamente na rede estabelecida de entrevistados, mas também de uma forma mais sutil e imperceptível, que diz respeito às pessoas que somos capazes de ouvir de uma maneira mais delicada e aguda. O mistério permanece sendo a razão das escolhas, ou seja, por que determinados relatos (amigos) são privilegiados em detrimento de outros. Enfim, porque somos capazes de nos doar para uns, mesmo que nos imponham acrobacias profundas para compreendê-los, e não para outros. A empatia com o narrador ou com o próprio relato (no contexto do depoimento estas duas dimensões estão imbricadas, pois o sujeito com o qual o pesquisador se relaciona é o sujeito da narração) é o primeiro aspecto que interfere nesta escolha. Comprazer-se com o depoimento em razão de sua originalidade, audácia, sonoridade, intensidade, possibilidades que aventam sobre o mundo e sobre si próprio são alguns entre os muitos fatores que justificam uma escuta mais apurada, mais amiga. Ainda assim, há sempre uma segunda chance para o relato que não se fez ouvir redimir-se de sua incomunicabilidade, que é o momento da interpretação. Aqueles que não se impuseram de forma caudalosa ao espírito podem ainda ter uma chance de serem escovados pela leitura crítica, desde que o

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pesquisador perceba uma pequena brecha ou uma fenda mínima que o autorize a percorrêlo e vasculhá-lo, propondo novos arranjos e novas significações. Um depoimento que não esterilize ou não se esqueça da sua condição eminentemente orgânica. O relato de SERGIO FINGERMANN 69, pelo contrário, prescinde deste esforço. Palpita e transpira por todos os lados. Sob o prisma da subjetividade, sua narrativa é uma pequena jóia, lapidada. Com serenidade e rigor, Sergio tritura suas memórias, não na condição de um mero cronista, mas de um escavador que fricciona os acontecimentos para extrair dele os afetos, as marcas inscritas no “corpo e no espírito” do seu enfrentamento com o mundo. Com admirável lucidez, reconstitui um sulco de sua herança, cotejando de forma orgânica seu passado familiar, sua opção profissional, sua postura dentro do cenário das artes, seu projeto existencial. Há uma sinergia profunda entre vida e arte, passado e presente, origem e destino. A sensibilidade elevada sobre a subjetividade, como o próprio Sergio destaca em seu relato, não é fortuita, casual. A experiência da análise, iniciativa dos próprios pais no início da década de 60, em um momento em que o trabalho sobre a subjetividade era corolário de desconfiança e incompreensão, foi determinante para a destreza que Sergio adquiriu na proficiência da língua do sentido. Sua capacidade de dinamitar o bloco monolítico do fato histórico – no caso, o vivido –, restaurando sua multiplicidade cromática, tridimensionalidade e estrondo, conferem ao depoimento de Sergio o dístico nobre de “herdeiro de Benjamin”. O passado restaurado pelo esforço de memória não se apresenta como refúgio ou como a repetição ressentida ou apática do fato – banal ou grandiloquente,

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Sergio Fingermann é artista plástico e sua formação artística inclui aulas de desenho com Yolanda Mohalyi em São Paulo (1972-73) e desenho e pintura com Mario de Luiggi em Veneza, Itália (1973-74). De volta ao Brasil, completa sua formação artística na Escola de Arte Brasil e diploma-se arquiteto pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – USP (1975–79). A partir de 1975 desenvolve trabalhos em pinturas e gravuras em que procura construir um universo poético, com fortes características intimistas, através de signos que se repetem, de anotações gráficas, de lembranças. Aos poucos essa figuração narrativa vai cedendo território para trabalhos com características mais abstratas. Realizou inúmeras mostras individuais, entre elas: Pinacoteca do Estado de São Paulo (2001), Instituto Moreira Salles – RJ (2001), Museu de Arte de São Paulo (1995), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1992), Galerie Saint Ravy Demangel-Montpellier/França (1991). Dentre as exposições coletivas, destacam-se: Bienal do Mercosul de Porto Alegre (2001), Buenos Aires Feira de Arte (2000), Contemporâneos no Acervo do Masp (1994), Gravura Brasileira no Parque Lage do Rio de Janeiro (1993), Bienal de Cuba como artista convidado (1991), Arte Contemporânea Brasil-Japão no Museu Central de Tóquio (1989), Bienal Internacional de Gravura – Cracóvia/Polônia. Ganhador de vários prêmios, entre eles: Panorama da Arte Atual Brasileira – MAM-SP (1994), Melhor gravador – Associação Paulista de Críticos de Arte (1987), Mostra Anual de gravura de Curitiba-Paraná (1976).

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independe –, mas, pelo contrário, como um apelo pragmático do presente em sua luta pela diferenciação. Pautada no imperativo ético da intervenção sobre o real, sem a qual o lembrar não passa de uma atitude pueril, romântica, a memória que Sergio exercita não é a contemplação desinvestida do que já não vive mais – o passado. Pelo contrário, seu exercício de rememoração soa como uma ação propositiva que participa do árduo empreendimento de ser mestre e escultor de si próprio, postulado que no léxico filosófico nietzschiano precede a importância da fruição das artes para o desenvolvimento do espírito. A disposição aguerrida de chacoalhar a memória, para que não resvale em uma “planície morna onde morrem os sonhos”, é uma forma de militar no interior da própria subjetividade em favor do fora, do impensável, do não-calculável, do intangível. O esforço em tornar a moldura da experiência passada mais gelatinosa é uma proposta arrojada, já que implica a impossibilidade do retrato, sujeita à perda de simetria e ao vazamento contínuo de seus contornos. A sofisticação sensível das memórias de Sergio sugere que houve um trabalho de maturação bastante rigoroso. Com cautela e probidade, Sergio pratica uma exegese, uma anatomização do fato aparentemente liso, sem sombra, sinuosidade ou segredo. Semelhante ao relato de Claudia, Sergio urde um enredo bilingue que transita simultaneamente no domínio do acontecimento e na ordem do sentido. A sua delicadeza para o que parece sem importância vai torcendo os fatos aparentemente banais, mostrando uma dobra insuspeita, invulgar. Apesar de sua narrativa não ser pontilhada por fatos inusitados, como é o caso de Claudia, Sergio tem a capacidade similar de extrair do trivial um sentido original, lapidando o acontecimento até que jorre luz, parafraseando mais uma vez Bosi. Sergio tem uma vocação similar ao do talmudista 70, já que também, a seu modo, perscruta novos

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Os estudiosos do Texto, os talmudistas, ousaram dizer sempre mais do que no Livro aparecia manifesto, tornando-o um território que se prestou ao amplo acolhimento de subjetividades emergentes. Os que fundaram a religião mosaica passaram, na tradição, à leitura-escritura da palavra não como desvelamento, mas como produção de sentido. A palavra vinda de fora introduz uma diferença no seio da tradição. Em hebraico Talmud significa literalmente “estudo” ou “aprendizado”. É a incorporação do fundamental mandamento judaico de “estudar a Torá”. Ao contrário de quase todos os outros campos da saber, o estudo do Pentateuco tem propósitos que vão muito além da simples aquisição de conhecimentos. É um meio e um fim, por si só; seu objetivo é o próprio aprendizado. A obra é praticamente estruturada em perguntas e respostas. Não há dogmas na religião judaica: quase tudo pode e deve ser questionado. O paradoxo do judaísmo é que ele, segundo Lacan, exige do intérprete da Bíblia a posição de ateu, isto é, alguém que não impeça o advento da palavra,

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ângulos sobre a experiência vivida, desestabilizando sua ilusória univocidade e aceitando o seu ser em aberto. Apesar da discussão sobre a obra ultrapassar o escopo da pesquisa, a “promiscuidade” entre arte e vida no caso de Sergio é um aspecto acachapante. Os vários planos de sua experiência se imbricam, tal como uma peça de roupa na qual não se é capaz de identificar o lugar preciso onde se fazem as conexões, a costura. O interesse na seara sibilina da subjetividade, várias vezes destacado ao longo de seu relato, é recorrente, onipresente. Portanto, sua vocação benjaminiana71 de granular a experiência, ficando atento à sua expressão mínima, é acompanhada também de uma sensibilidade deleuziana para a dimensão social e fabricada da subjetividade. A subjetividade a que Sergio se refere não é a individualidade narcísica do sujeito burguês, que, para combater a solidão e impessoalidade impostas pelo capitalismo, inventa um sujeito que reivindica a cada gesto sua exclusividade e repulsa o que lhe é exógeno. A subjetividade no relato de Sergio aparece como a possibilidade de penetrar e habitar o mundo, afirmando a singularidade sem o recuo na interioridade. Sergio tem uma espécie de dom oriental de trazer a arte para bem perto da vida comum, cotidiana. Pelo seu relato ele parece redimir o mundano da sua condição ordinária, formulando problemas em que aparentemente tudo já foi dito ou nada há para ser desvelado. Seu caráter indômito o leva a ziguezaguear de forma suave pelos domínios da arte e do cotidiano, impregnando e fecundando mutuamente um e outro. Da mesma forma que os gestos mais simples da vida ganham destaque em sua obra (observação recorrente dos críticos nos catálogos e publicações a que tive acesso), a arte não apenas como obra, mas como uma prática reflexiva que interfere na cognição do mundo, está onipresente em sua vida. A generosidade de seu depoimento está no fato de não cindir o êxtase do cotidiano, não instaurando uma antinomia entre a esfera nobre da criação, monopólio dos demiurgos e artistas, e a vida ignara, sem horizonte e reincidente a que a humanidade está fadada. Como afirma o cineasta Aleksandr Sokúrov: transformando a Escritura em ídolo, totem. O talmudista é, por princípio, um traidor de toda e qualquer leitura imutável e impeditiva de produção de pensamento. 71 Benjamin tinha verdadeira paixão pelas coisas pequenas. Para ele, a dimensão de um objeto era inversamente proporcional à sua significação. Quanto menor ele fosse, tanto mais provável pareceria poder contar tudo sob a mais concentrada forma.

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Se queremos falar de coisas sérias, devemos nos ater a detalhes aparentemente desimportantes. Caso contrário, engrossaremos a humanidade que se deixa cair em armadilhas, que se torna incapaz de perceber mesmo os detalhes mais triviais de uma paisagem do campo. É preciso estar muito atento aos detalhes do cotidiano e perceber que eles são muito mais intensos e importantes do que nossa capacidade de assimilação. Há sempre mais detalhes do que o observador é capaz de assimilar. É esse exercício que devemos aplicar para evitar novas catástrofes e permitir que os homens voltem a ser personagens da História.72

A lucidez que Sergio demonstra sobre seu solo materno e sobre as marcas judaicas destiladas de seu contexto matricial sugerem que as perguntas que norteiam a pesquisa Intérpretes do desassossego não são tão espúrias ou bizarras. “Alfabetizado” na semântica complexa da subjetividade, o depoimento de Sergio mostra uma estreita afinidade com o questionamento que está na raiz da investigação proposta. Diferentemente dos outros relatos, há uma certa suavidade que pontilha sua vasculha interior em torno das imagens que corporificam o patrimônio judaico remanescente – nem religioso nem comunitário. Judaísmo avesso aos sentidos fechados, Sergio salienta a sensibilidade dos pais, não verbalizada e talvez inconsciente, para o provisório, inacabado, incerto, não-consagrado. Legado generoso para quem aceita o desafio de não sucumbir às formas prontas sobre o si mesmo, sobre o mundo, sobre as tradições. Como uma espécie de chama telúrica sub-reptícia ao discurso, que o aquece e o ilumina, o enredo de Sergio parece remir do ostracismo a noção de experiência, definida pela filosofia clássica como a possibilidade de uma tradição compartilhada por uma comunidade humana, retomada e transformada a cada nova geração. O relato de Sergio, assim como a maioria dos demais colhidos e reunidos pela pesquisa, encontra melhor respaldo na noção cunhada por Albert Memi de judeidade do que na definição corrente do que se entende por condição judaica. Se esta última designa uma 72

MACHADO, Á. (org.). Aleksandr Sokúrov, São Paulo: Cosac e Naify, 2002, p.119.

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situação estática, definida pela filiação e pelo culto, a judeidade é um modo particular de se afirmar judeu, é um projeto subjetivo que tem o futuro como horizonte, que transgride os modelos do passado e escapa às contingências do mero nascimento, é a recusa de toda identidade fixa e a eterna busca do não-idêntico, a judeidade não está na origem, mas no fim.73 O conceito de judeidade nomeia e dignifica um largo espectro de experiências de judeus que replicam os imperativos religiosos e comunitários, e, no seu lugar, buscam, com maior ou menor desassossego, com maior ou menor interesse, identificar o traço original que lhes assegura ainda assim um sentimento forte de pertinência. O depoimento de Sergio se destaca em relação ao conjunto de Intérpretes do desassossego pelo investimento beligerante e consciente empunhado no processo de singularização, incorporando o próprio judaísmo como objeto de construção. A defesa serena de sua diferença judaica, que não soa trivializada nem tingida de culpa, talvez possa ser interpretada como uma decorrência da experiência legada por seus pais, o tal conselho “proferido no leito de morte” que Benjamin diagnosticou argutamente como abjurada da sensibilidade moderna. O legado de Sergio parece emitir um sopro que adverte de que o território vivencial judaico é povoado pela indeterminação e desterritorialização, que ser judeu implica um processo constante de desidentificação. A iconoclastia discreta e o olhar oblíquo sobre a experiência que caracterizam a cultura familiar de Sergio (seus pais se recusaram a aderir compulsória e irrefletidamente à vivência entre patrícios, aos valores cunhados pela comunidade, aos horizontes predestinados aos judeus, à produção artística e cultural a qual tiveram acesso) se inscreveram como uma marca profunda em sua trama subjetiva, engendrando um forte sentimento de filiação. Se, por um lado, o enredo de Sergio evoca elementos do narrador sucateiro, aquele que nas palavras de Gagnebin se compromete com as sobras, com tudo que é deixado de lado por ser considerado insignificante; por outro, traz elementos do narrador tradicional, que enreda o leitor/ouvinte na experiência da qual ele é emissário pelo calor emanado das estórias, pela lição extraída do enredo, pela identificação que suscita no leitor/ouvinte.

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ROUANET, S. P. Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 13 out. 2001.

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Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios: de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno?

O depoimento de Sergio talvez possa ser escutado como um alento ao questionamento cético e amargo formulado por Benjamin em seu texto Experiência e pobreza 74, reproduzido no trecho acima. Subtrai-se da sua história que a narração incadescente, que é capaz de falar dos outros e, ao mesmo tempo, de si mesmo, que se guarda e, ainda assim, preserva sua força germinativa, está atrelada, inexoravelmente, à transmissão de uma experiência. Esta experiência talvez não esteja inteiramente obsoleta e ainda encontre, na contramão da sensibilidade pós-moderna, espaços furtivos nos quais ela consegue florescer e germinar. O relato de Sergio sinaliza nesta direção.

[...] Bom, eu comecei já na adolescência a ter uma formação um pouco mais dirigida para as questões da arte. Relativamente cedo, entre 13 e 14 anos, eu tive uma iniciação com uma artista que já tinha preocupações da Arte Contemporânea, que de alguma forma me colocaram nas questões com a Arte Contemporânea, às vezes de uma maneira mais ingênua, outras vezes não[...] Foi sorte eu ter caído com uma pessoa que procurava contextualizar a questão da expressão artística na História da Arte. Isto foi para mim, eu acho, uma sorte porque faz com que a gente não faça um trabalho tão narcísico, ou seja, o 74

BENJAMIN, W. Experiência e pobreza. In: Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Editora Brasiliense, 1985, p. 114.

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que você olha ser espelho de você mesmo. Fazer um trabalho que é construção de linguagem, e isso também tem a ðeö öoö ö öiöhö ÷eöaöçö.öOömöu÷aòôòföiöuö ötörödö öeötöoöíöiöh÷,òeòtömöéö öeöoö öíöiöoö öeöoöi÷eò öuösö.öIöiöröuödö öúösöaö öa÷Uò.öTömöcönöiögönöiösöqöeöcöiöm÷ òlö öáötönöaöuö ÷röãö.öEösö ör÷ãò öröbölöaöaönö öeötöoöC÷lönö ÷lò öeöeötörövönöoönö öaöxö öeö1÷/ò8öaöoö,öeöaö ÷oö öröbölöaö öo÷oòlösörödörödö öiönö öoöTöaörö ÷oòóö.öLö,öeöeötövö ömö önöcöaöã÷,òtölöeö ölö öáöc÷n÷aösö,ömösöe÷ òãö öeöhö öaöoöeö öaöoö öoörö ÷sòoö ö öeöeöcömöç÷uöaöcönöaö öá÷nò öeötöoöCölönö ölö öoömöuöaög÷nð öröpösödö öe÷töoöíöiöhö öuö ÷iðjövömöiöcöuöiöeöpölö örösölö ÷oòtö ölögöeö öãö öaölö,öSönöoö,÷Ròoödö öaöeörö,öaöéöRöcöfö ösöv÷zòsò öuöaöhö öuö ÷eöeötörösödö ÷mò1ö0ö,ö1ö0ö,öpöiö öuötönöoöaög÷nò öaötözösö ötö ö9ö7ö ö9ö8ö öu÷oò öaösödö öeö ÷nösöeösö öoöpön÷iò.öEöeöfözöaöiösö öröfösöiönölÿeòtö,öeöeöeöaötöm÷é÷ ÷m÷cöaöaö ÷

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öröfösöiönölö öuöeöcönör÷iòaöéöuösöcönörötösödölö öoöoöc÷nòoö öeösönögögö,öeöbörö ölö öu÷cò öeöhö öiöoöuöaöpösöoö öeöföe÷üònöaö öiöaöoöa÷.öEö öeöhö öeöt÷za de que tenho uma herança de construir como artista, que facilitou a minha iniciação artística. Meus pais, dentro do universo cultural deles, conseguiram criar caminhos para que eu me desenvolvesse nessa área. Talvez porque eu tenha demonstrado interesse. Por exemplo, meus pais tinham uma loja na Avenida São João e então, depois da escola, já no começo da iniciação escolar, eles me levavam numa escolinha do Masp, na Sete de Abril. Eu tenho bem nítida essa lembrança. Eu devia ter 5, 6 anos, 7 anos, coisa assim[...] Então, eu queria dizer que eu não tive nenhuma barreira nesse sentido, o inverso. Os limites que se apresentavam são mais limites de percepção dos meus pais, quer dizer, onde estava a questão artística e onde estava a questão cultural. Minha mãe teve na juventude uma iniciação grande de piano, ela chegou a dar alguns concertos no Municipal, mas ela não tinha desenvolvido uma carreira artística, sempre gostou de pintar, fazer cerâmica. Faz até hoje. Mas o que eu quero dizer é que desde a adolescência, tem um fator 75

Palavra em hebraico que significa “cantor”, o chazan é um funcionário da sinagoga que conduz as orações particularmente no Shabat (dia de descanso obrigatório) e nas festas, e aquele que ensina as crianças da congregação. Nos tempos modernos o chazan é designado em função de seu talento como cantor e desenvolveu-se uma categoria de música de oração, o chazanut, como virtuose. Em teoria, devia ser digno de representar a comunidade: ser casado, usar barba, ter boa reputação, boa aparência, boa voz e ser bem aceito pela congregação.

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importante, a minha adolescência, pega anos 60, e anos 70. Tinha um pacto de desenvolver com a subjetividade, colocá-la no mundo dentro de um contexto mais amplo da arte. Paralelamente a isso, é legal lembrar que era uma época de ditadura ferrenha, e eu acho que essa geração de colegas tinha uma espécie de introspecção, o universo poético fica muito marcado por isso. Então, no começo, o tipo de trabalho que eu fiz talvez tenha sido marcado por uma busca de me cercar de coisas do cotidiano, um olhar para isso, eu era muito sensível a isso. A exacerbação da subjetividade das coisas que nos cercam eu acho que é resultado também disso. É uma conjuntura, o externo, e também o fato de você como artista querer desenvolver um projeto poético pessoal, o que o seu trabalho pode enunciar que contenha a sua marca, qual o pacto. No começo, é mais fácil você olhar para fora, quer dizer, avaliar se as coisas que estão fora se elas ficam dotadas, magnetizadas pela sua subjetividade. No começo você vê dessa maneira. Eu repetia muitos signos, alternava eles, misturava também desenhos de observação com desenhos de memória. Eu queria enfatizar o pacto na subjetividade, quer dizer, achar alguma coisa que criasse uma marca pessoal. Isso era uma questão de valor. Mas isso é estranho, a gente está falando dos anos 70, e a questão, que eu falei agora há pouco, ao mesmo tempo que procurava contextualizar a história da arte, a tendência não era muito esta não. A tendência era fazer um trabalho que tratasse mais os estatutos da Arte, quer dizer, a maior parte dos artistas estava enveredando por um caminho mais conceitual, abordando mais as questões dos estatutos, o que é ser Arte? Muito menos o trabalho ser um depositário de uma subjetividade, de um eu, pelo menos naquela época. Então eu me sinto, olhando assim, meio extemporâneo naquele momento. Mas até hoje. Por outro lado, eu nunca consigo imaginar que a Arte possa ser outra coisa. Na Arte não existe evolução, quer dizer, a essência da Arte. Tem contingências que criam, que interferem, mas eu acho que é uma coisa da essência. Então, eu achei importante desenvolver uma linguagem pessoal, e nisso eu acho que a referência do meu avô ou da história da Arte, as interlocuções que eu pude construir, elas vinham de um valor mais ético, localizar pessoas que tinham ficado fiéis a um desenvolvimento, à pesquisa, sei lá, uma investigação no próprio trabalho, e de um pacto que originou o trabalho. [...] Acho que a palavra-chave para mim é experiência. É colocar a coisa feita enquanto experiência. Eu imagino que o espectador, o observador do fenômeno artístico, ele pode de

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alguma maneira pegar carona, quer dizer, na aproximação, enquanto experiência. Eu acho que isso é que você vai resgatar, devolver as questões do humano dele. Eu acho que é isso o conteúdo da Arte. [...] Eu acho que o tempo inteiro a gente procura ter interlocutores, senão vira uma patologia o trabalho. Você tem que constantemente procurar pensar em pessoas que trataram daquelas questões antes. No mundo contemporâneo eu acho que fica mais fácil, porque você pode percorrer a História da Arte com mais facilidade. Identificar em um artista como Giotto, da passagem da Idade Média para o Renascimento, um Bonnard ou Guignard, uma série de artistas com os quais você tem interlocuções sobre questões que vão dar fundamento para o seu trabalho. Ter com eles, ou na literatura, ou na música, fazer uma espécie de cruzamento de leituras que constituem seu território, e você pode operar com eles, né? Eu acho que fazer arte é isso, não pode de jeito nenhum, eu me surpreendo, por que é raro esse pensamento, eu acho que é isso que constitui a Arte. Essa interlocução é um Eu no mundo. É, no meu caso, colocar a minha pintura no mundo. Fazer com que o espectador entre na experiência da pintura. Ele não vai falar da experiência, quer dizer, ele tem que comungar o que aconteceu com quem fez. Fica claro? [...] Os meus avós paternos são também imigrantes russos, que chegaram bem antes, diretamente ao Brasil. Eles devem ter vindo naquelas colônias do Barão Von Hirsch no Sul. Devem ter tido uma inadequação com a questão do cultivo da terra, da agrícola. Eles logo se envolveram com o comércio, eles eram comerciantes. Meu pai era o filho caçula de uma família bastante numerosa, ele vinha do mundo do comércio, esse horizonte do imigrante, de se fazer nessa terra. Ele, se casando com a minha mãe, eu acho que ele ficou mais sensível. Meu pai não era um intelectual, mas era uma pessoa sensível à questão artística. Não era um grande leitor, mas, enfim, estava sempre lendo, era uma pessoa bem informada, e os dois tiveram uma qualidade, eles concluíram juntos uma coisa assim[...] Havia um questionamento neles enquanto pessoas. Eu acho um fato curioso, porque eu acho que é muito cedo, nos anos 60, eles puseram todos os filhos para fazer análise. Você sabe que só na vida adulta eu me dei conta. Quando se contextualiza, quando se olha para trás, não que houvesse um problema psicológico particular, mas de alguma maneira eles perceberam que isso era um instrumento. Eu acho que sou grato assim, eu acho curioso. Acho que isso dá uma medida um pouco do quanto eles se diferenciavam, né? Não ser simplesmente judeus que desejavam se inserir na colônia judaica, ganhar dinheiro. De fato, não tinha isso muito forte como valor, não. Mas tinha uma indagação: O que eu sou?

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O que a gente é? Como é possível com o que eu tenho, ser? E isso eles conseguiram passar. [...] Quando eu nasci, meus pais moravam no bairro de Santana, bem fora. Não necessariamente a vida social dos meus pais tinha a ver com a coletividade judaica. Eles freqüentavam as festas judaicas. Somente Pessach e o Iom Kipur76 eram comemoradas na minha casa, onde tinha mais o sentido do encontro do que o sentido religioso. Nunca senti muito forte neles. Todos os quatro filhos fizeram Bar-Mitzvah, mas a questão religiosa realmente eu gosto de demarcar que não era forte. Acho que havia uma espécie de crítica desse mundo pequeno. Eu sentia que eles achavam[...] é meio pesado o que vou falar, mas eu concordo com eles, que havia uma coisa medíocre na coletividade, a vida na coletividade como uma coisa medíocre, que não era a vontade deles. Eu não sei se eles tinham instrumentos culturais para dar um salto maior, mas eles não quiseram permanecer ali. Eles tinham amigos brasileiros. [...] Principalmente meu pai, eu acho que ele não teve chance de se perguntar na vida o que ele gostaria de fazer. Ele era de uma família com dificuldades financeiras, ele mesmo teve muitas dificuldades e, casando com a minha mãe, eles não tiveram grandes facilidades. Mas eu não acho que isso fosse um problema... Eu acho que eles foram felizes. Eles preenchiam com uma coisa de cinema, teatro que eles gostavam[...] Quando eu vejo os pais dos meus colegas, eu acho que meus pais tinham uma coisa assim diferenciada. Por exemplo, iam ao espetáculo e depois discutiam o espetáculo[...] Tenho uma lembrança deles que não é de pessoas que consumiam a questão cultural passivamente, eles tinham uma tentativa de elaboração. Eu acho que ele, como comerciante, quatro filhos, ele tinha “a pequena loja da rua principal”, era um pouco isso. Não houve muita aventura comercial por parte do meu pai, não se transformou em outra coisa, não tinha grandes ambições no comércio. Por isso, eu imagino que ele não teve muita realização nisso, eu acho que não devia ter tido nenhuma. É uma pena, pois eu acho que ele não teve os instrumentos ou a possibilidade de tentar outra coisa. Mas como herança é legal você ver isso, seus pais fizeram alguma coisa que não é exatamente o que eles gostariam de fazer, e

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Palavra em hebraico significa “Dia da Expiação”. É o dia mais sagrado do calendário judaico. Logo antes do pôr-do-sol acendem-se as velas da festa e uma vela de recordação. Iom Kipur é um jejum de 24 horas, que começa antes do pôr-do-sol e termina ao aparecer das estrelas na noite seguinte. No dia que o precede recomenda-se comer mais que o costume. Durante o Iom Kipur os judeus são proibidos de calçar sapatos de couro, de manter relações sexuais e de se lavar. A liturgia começa com o Kol Nidrei (proclamação de anulação de votos religiosos cantada pelo chazan) e passa-se a maior parte do dia em oração pelos parentes falecidos, confessando os pecados, pedindo o perdão divino, ouvindo a leitura da Tora..

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você ser capaz de reconhecer isso. Para um jovem, eu acho que não é uma coisa ruim, não. Talvez tenha sido até um dos motivos que os levaram a colocar os filhos para fazer análise. Eu acho que houve um investimento deles, uma curiosidade em poder formar os filhos com outros valores. [...] Meus dois irmãos mais velhos estudaram em escola pública, na Caetano de Campos, um outro irmão e eu fizemos o Rio Branco, no primário. Meu irmão foi para o Colégio Bandeirantes, e eu completei numa escola pública. A lembrança minha do Rio Branco é das piores. Era uma escola bastante elitista. Uma escola que me passou uma coisa de um cinismo na relação com o saber. Sinceramente, eu não sei se era o momento, estava começando a Revolução. Eu via uma grande angústia na minha casa, associada ao fato de o país ter tomado uma determinada direção política. Na minha casa isso foi recebido com muita angústia, e a escola, em momento algum trabalhou isso. Pelo contrário, era uma escola freqüentada em grande parte pela colônia judaica rica e reacionária. Então isto me fez, a pedido meu, sair da escola, no quarto ano primário. Fui fazer o ginásio na escola pública. E lá eu vivi, tive uma experiência meio de exílio. Eu fui para um colégio na Barra Funda chamado Macedo Soares, uma escola bastante misturada, tinha gente de classe média e também até de classes mais baixas, com problemas que eu não tinha até então me defrontado no começo da adolescência. Mas teve um mínimo de politização, e eu acho que foi uma coisa boa que me aconteceu. Eu guardo a melhor lembrança desse período e desse tipo de encontro, quer dizer, o mundo estava mais presente. E teve lugar também, que eu acho bastante saudável, foi esse exílio que eu vivi... Eu me achava diferente e não sabia o que fazer com essa diferença. Essa diferença talvez fosse dos interesses, da minha sensibilidade[...] Mas eu acho que foi muito proveitoso para mim. [...] Eu nunca vi meus pais em conflito com as questões dos filhos. Alguma coisa muito tranqüila, nunca[...] Ou vai ver que a gente era muito careta, comportadinhos. Não teve grandes transgressões. Eu não sentia nos meus pais o peso da lei. Existia lei, pois o que eles fizeram foi a lei de ser filho. Mas a relação com eles nunca foi de uma estrutura hierárquica muito pesada. Então, eu não senti esse conflito. Sempre acolheram as opções dos filhos. [...] Meus irmãos também faziam uma crítica ao colégio Rio Branco, os meus companheiros de escola, essa elite[...] Não passava, não fazia parte.

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[...] O universo cultural dos colegas numa escola publica era muito diversificado. Eu saí de uma redoma do Rio Branco, em que a vida social acontecia numas festinhas de classe média alta, com valores ou muito judaicos ou muito de elite, burgueses, para um outro espaço. [...] Eu acho muito saudável ser estrangeiro, embora de cara gere uma sensação, às vezes, de não pertinência. Você vê como tem que se comportar, mas aí você tem que buscar qual território que pode acolher esse seu ser particular que não cabe ali, né? Eu acho que se a pessoa está fraca talvez seja motivo de muito sofrimento. Eu devo ter passado por momentos de muito sofrimento, não me lembro direito. Com certeza. Mas eu acho que é rico. Eu acho que tem também uma lembrança de um contato com a mediocridade humana, com a pobreza, com o valor pequeno. Esse é um outro fator. Não acho que isso não existiria em outra escola mais burguesa. Mas ali, as pessoas, o que elas mais queriam era ascender socialmente, o grande projeto na vida. Eu estou falando isso, claro, com um recuo de hoje, mas eu não sei, eu percebia isso de alguma maneira, havia uma percepção. [...] Eu fiquei lá até o fim do colegial e depois eu fiz Arquitetura. Primeiro eu entrei no Mackenzie, e foi um grande horror, um grande erro, mas eu fiquei pouco tempo lá, dois anos, claro, na Arquitetura. Daí eu ganhei uma bolsa, eu fiz uma viagem para Veneza, para a Itália. Eu já pintava. Quando eu era adolescente, com 14 anos eu comecei a ter aula sistematicamente com uma artista chamada Carla, no Sumaré. Ela foi uma das primeiras a ajudar a desenvolver uma expressividade, uma marca e também a me contextualizar. Ao mesmo tempo que o meu universo no colégio público era jogar bola, ir a festinha, eu tinha, por outro lado, uma vida um pouco secreta, sabe? Um interesse secreto, sabe? Eu não dividia muito com as pessoas. Eu me lembro de uma coisa engraçada, eu devia ter 15 ou 16 anos e eu tinha entrado no Salão Paulista de Arte Contemporânea e eu acho, se não me engano, eu ganhei um prêmio e saiu uma matéria no jornal. Eu me lembro que eu estava fazendo uma prova de matemática e o professor falou: “Engraçado, tem uma pessoa que acho que tem o seu nome”. E aí eu falei: “Sou eu”. E eu me lembro disso na sala, causou uma coisa[...] Que eu fiquei assim[...] orgulhoso e constrangido também. Por um lado ser reconhecido e, por outro, a vida secreta ter sido descoberta. Mas eu acho que foi interessante este período. [...] Principalmente na parte das artes plásticas, é uma manifestação muito mais de elite. É muito mais difícil o acesso a quem não pertence. Inclusive acho que isso explica o caráter

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reacionário da comunidade artística. Eu acho importante afirmar isso. Eu acho a comunidade artística, ideologicamente, reacionária. [...] Eu não tinha muito dinheiro, mas eu sempre vivia as benesses dessa elite, eu não sei exatamente por que, mas as benesses dessa elite eu usufruí. Nesse período, meu pai morre, e a família sofre uma crise econômica. Ela se aprofunda, não a crise, a dificuldade econômica, e de uma maneira bem pesada. Meu irmão mais velho tinha 23 anos e eu tinha 13, sou dez anos mais jovem. Isso vem logo, é tudo meio associado à Revolução de 1964, o AI-5. Essa época é o luto dentro da família e fora. O que a gente assistia como política era uma coisa deplorada por nós. Havia um profundo desconforto, havia um medo. Eu tenho um irmão que ficou fora por um ano ou dois por motivos políticos. Havia isso. Nós não fazíamos parte, era uma coisa execrada por nós o que estava acontecendo. Sabe o que eu acho estranho, eu não vejo nenhum crítico de arte abordar essa questão. Como que a questão poética se formou nos artistas nessa época. É uma covardia e eu posso afirmar isso. Na verdade, não é uma covardia, parece-me uma questão ideológica. Nunca se aborda essa questão. Afinal, o que formava o olhar poético? Esse intimismo exacerbado, eu acho que isso tem a ver, principalmente no eixo Rio–São Paulo, com artistas que têm uma cultura mais articulada, e viam pela influência da gravura inglesa, francesa, tinham um olhar intimista que resgatava o papel da subjetividade. Eu acho que em um momento de grande pressão. [...] Eu acho que a questão da minha tentativa de buscar nas palavra, a recorrência à escrita, à fala, à explicação se dá num espírito de solidão para achar uma interlocução novamente. Eu acho que com as Artes Plásticas aconteceu uma coisa parecida com a Música Clássica, em que a separação entre o público e a produção terminou no século XX, ouvindo no máximo a música do começo do século. Formou um hiato de cem anos. E continua se produzindo uma música que fala para si. E eu acho que nas Artes Plásticas, nos últimos cinqüenta anos vem acontecendo um processo desse tipo. Talvez eu pense que a questão mais importante hoje não seja da transgressão, nem de achar os limites da Arte, nem as questões de estatuto, mas de resgatar uma interlocução com as pessoas. Então a questão da escrita, da fala, isso é meio didático, de tentar resgatar o que possa ser ético. As bases, o que fundamenta eticamente esse fazer, para localizar para as pessoas onde está. Mas eu confesso que estou bastante sozinho nisso. Eu posso estar equivocado, mas por enquanto no que eu acredito é isso. Porque não adianta achar uma produção contemporânea, com um viés assim incrível, porque eu acho que só aprofunda a questão do isolamento. Porque eu acho que a questão da Arte, ela também precisa estar no mundo. 108


Agora o mundo não é a mídia. Estar no mundo significa ganhar significado para as pessoas. As Artes, principalmente as Artes Plásticas, entraram nesse fenômeno da mídia. Confundiram com moda, não é à toa, até a próxima Bienal parece que a moda tem um espaço[...] Um equívoco total. Seguramente eles não são meus interlocutores. [...] Eu acho impossível, hoje, falar numa pintura brasileira, numa escultura brasileira, quer dizer, no que se constitui o território? Eu não acho que no mundo contemporâneo caiba esse regionalismo. Justamente a questão da Arte, o fato de não caber naquilo que ela narra, é no que escapa dela é que é... Eu não acho relevante, na questão artística, a questão da nacionalidade[...] Porque eu acho que para ela se inscrever ela tem que ter um projeto extremamente ambicioso, prepotente, um viés de se inscrever na civilização, e não na cultura. Eu acho que essa é que é uma diferença[...] Tem essa megalomania, sim. Eu tive uma experiência muito engraçada. Eu expus na França, dez anos atrás, duas exposições muito grandes, que eu fiz, simultâneas, e tiveram um acolhimento institucional enorme. Foi numa galeria – museu muito importante – e foi o prefeito, o secretário de cultura da região, enfim, televisão, rádio[...] era uma cobertura enorme. É curioso como eu fui apresentado. Eu fui apresentado como um pintor judeu, de origem russa, que morava no Brasil. Eu fiquei chocadíssimo. Tem um xenofobismo ali, latente. Eu fiquei espantado! Eu não sei o que é ser um pintor judeu, de origem russa, quer dizer, foi resgatada toda minha história para me apresentar[...] Principalmente os europeus, parece que olham o mundo com essas lentes[...] Eu acho que como estava muito bem acolhida a exposição, ela tinha que ser mostrada com um pé na Europa. Então, por isso a origem daquela pintura tinha que ser européia[...] Casualmente vinha do Brasil. Vinha, digamos assim, aquecidas pelas cores locais, pelo exotismo. Daí falava do calor, do sol, quer dizer, eu não vejo nada disso no meu trabalho. Você vê que, na verdade, o preconceito estava mais latente do que parecia[...] [...] Quer dizer, meu avô, eu me lembro muito de uma vergonha que eu carregava, do sotaque dele. Como russo, ele falava os erres muito feios. Eu era pequeno, eu devia ter menos de 10 anos, e eu morria de vergonha que com os meus amigos ele falasse alguma coisa. Isso é uma coisa que fica, a questão da língua que eu reencontrei lendo o Elias Canetti, no livro A língua absolvida, essa dificuldade de dizer. Sabe que passa para quem é descendente de imigrante? A língua usada, ela se apresenta quase como uma impossibilidade, uma dificuldade, um desespero do outro em dizer. Você cresce nessa dificuldade, nessa impossibilidade daquilo que está querendo ser transmitido. Eu me vejo, mesmo com um cacoete, eu mesmo pergunto: “Mas eu estou sendo claro? Você está 109


entendendo o que eu quero dizer?”. Ainda bem. Você vê que sempre tem alguma coisa que escapa. Talvez, a coisa mais legal da imigração é que, nas gerações seguintes, as primeiras vivem com esse contato da inadequação, o permanente sentimento de exílio, das estranhezas. Eu acho que ajuda, enriquece o espírito de quem é atento a isso. Eu acho que nessa hora a criação ajuda. Para quem não tem criação, coitados, né? Têm que elaborar, senão vira só sofrimento. [...] Meus pais falavam o ídiche com os avós. Essa língua ficou a língua da exclusão. Eu sempre senti nos meus pais um pudor. Engraçado. Não era uma língua que eles dominassem. Eu me lembro que eles tinham dificuldade para falar. E, se falavam, ela tinha um sentido que era os filhos não entenderem. É uma língua da exclusão. Quando era para falar mal de alguém[...](risos). Impossível não perceber isso[...] Sempre foi recebido na família com muita ironia, com muita gozação. Engraçado, quanto à questão da cultura judaica[...] Eu acho que era uma família onde o humor estava muito dentro e deu esta pertinência. Muito autocrítica. A questão da análise acho que vem de um questionamento da cultura judaica, que é próprio da cultura judaica. [...] Porque é difícil você, sendo o agente, ter essa consciência da origem, da história que você carrega, essa compreensão onde ela se manifesta. [...] Eu acho que o artista é um fingidor. O trabalho, o resultado do trabalho artístico vem de um artifício. Ele é um art de ofício. Você inventa um mundo.Você inventa uma origem também. Por isso que eu acho que ele não é tanto o lugar das questões narcísicas. Não é o depositário disso, porque ele tem muito de mentira. Eu acho que essa história que a gente conta, a memória funciona fundindo os tempos, confundindo, ela inventa, ela saqueia coisas, ela idealiza. Eu uso a memória, e acho que ela não pode ser tomada como verdade, mas como construção. Eu acho que o que você tem que olhar é o que estrutura a construção. Você nunca pode acolher aquilo que é dito pela memória como fato. É como se você tivesse que ouvir o que é dito pela memória com uma certa desconfiança[...]

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É quase impossível ficar impávido diante da escrita da vida. Neste sentido cada encontro de história oral, por menor que seja a disponibilidade do entrevistado ou do entrevistador sempre costuma ter algo de reverencial. Inevitável o laço e o compromisso que derivam do encontro. Assim como um narrar autêntico pressupõe a integralidade do corpo se expressando, a escuta leal não é muito diferente. Embora somos rapidamente enredados por uma vida com suas múltiplas histórias, encontros, escolhas, fracassos e promessas coexistindo; não somos (felizmente) tão velozes quando temos que nos afastar dos nossos “sujeitos” e resumi-los à condição de nossas fontes. Eduardo Coutinho77 tem razão quando diz que jamais poderia entrevistar um torturador. Quando diz isso, seu desabafo tem menos a ver com o caráter abjeto e ignóbil desta “atividade” e mais com o sentimento de compaixão que a escuta genuína, desobstruída, pressupõe. Do mesmo modo que a narração pode ser entendida como uma expressão excelsa de generosidade, a escuta, como sua contrapartida, tem também esta qualidade potencial. Quando referendado por uma ética coesiva, que aspira à composição entre os termos, e não à sua degradação, o diálogo pode ser muito mais do que um simples exercício narcísico, um campo de disputas, ou uma exposição estéril e desapaixonada de acontecimentos sociais, que, com a profusão de registros de todas as naturezas (escrito, iconográfico, audiovisual, virtual) na contemporaneidade, prescinde da presença e da oralidade como veículos de comunicação. A força do diálogo hoje pode estar, curiosamente, em sua capacidade de criar um enclave público e reanimar a atmosfera política da vida social, tão em baixa com o culto exacerbado da intimidade burguesa, refratária ao mundo, às trocas, às tensões, às mudanças, à dor do outro. Quando Eduardo Coutinho nos educa através de seus documentários sobre a irrefreável sensibilidade ao outro, que a escuta destituída da onipresença de ruídos internos – persecutórios, hedonistas, xenófobos e tantos outros possíveis – permite, ele parece aludir 77

COUTINHO, E. O Cinema Documentário e a escuta sensível da alteridade. In: Ética e história oral, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História da PUC-SP, São Paulo: Educ, n. 15, Abril de 1997,p. 178.

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ao espaço de incitação e crítica que o diálogo é capaz de cavar. Este lugar intersticial que não significa nem adesão incondicional ao outro nem recusa obscurantista em aceitar um script divergente do seu próprio, é o lugar de uma certa distância. É esta distância e a ausência de proselitismo ou voracidade que permitem que uma modalidade particular de amizade possa ser cunhada. Esta noção de amizade aqui empregada é tida como a primeira grande inflexão na história do conceito. Diferentemente do ideal clássico que a define pelos princípios de igualdade e concordância, é Nietzsche o responsável pelo estiramento radical do conceito, depois seguido por Blanchot, Foucault e Deleuze. Segundo ele, a amizade não é uma prática preguiçosa que tem como objetivo consagrar ou apaziguar o que já sabemos sobre nós mesmos. Ela deve ser intrépida, agônica, galvanizante. Sob o prisma nietzschiano, a amizade é um lugar de produção de subjetividade, um antídoto contra a cristalização da identidade, um mergulho impudico na alteridade, com suas contradições, tensões e excrescências. Nietzsche afirma que a universalidade se encontra no paroxismo da singularidade. A história oral é um exercício constante da busca do geral a partir do absolutamente individual. Esta noção de amizade preconizada por Nietzsche flerta de forma explícita com a prática da história oral. O objetivo do método não é absolutamente criar uma coleção mumificada de curiosidades do ego, mas explicitar processos, diferenças que não cessam também de diferir de si próprias. Quando não instrumentalizada por “missionários” ou “ideólogos”, que resistem, cada qual a seu modo (através da caridade ou da ideologia) ao enfrentamento com a diferença, a prática da história oral participa de maneira incisiva na pedagogia de respeito ao outro. Esta amizade de Nietzsche, assim como a história oral, tem atributos semelhantes aos das práticas esportivas tidas como “radicais”. Motivada pela idéia de superação e deslocamento, suporta, com tenacidade e leveza, o risco que esta “ascese” traz embutido. Ao invés de se configurar como uma vitrine que afasta os termos, criando e potencializando a dimensão sagrada do objeto contemplado (no caso, sujeito), esta história oral “amiga” busca cultivar um ethos da distância, mas sem fazer com que cada um dos termos se exponha justamente para permanecer no lugar cativo a cada um deles destinado. Nietzsche urge que a família deve deixar de ser tomada como o paradigma de vida afetiva e exercer, portanto, o monopólio sobre o nosso universo emocional. No exercício da história oral, quando nos sensibilizamos com o depoimento de alguém, mesmo não nos sentindo irmãos, 112


talvez possamos dizer que travamos uma relação de amizade, prescindindo das expressões de afeto com as quais estamos familiarizados (intimidades, encontros, presentes, telefonemas, correspondências). Houve um momento na história recente (1960-1970) em que a simples aplicação do método da história oral representava uma forma elevada de resistência política, ao evocar e interpelar experiências de sujeitos tidas até então como folclóricas, místicas, lúdicas, bizarras e, portanto, obliteradas do tecido histórico. Na contemporaneidade, a militância da história oral não se coloca mais de uma maneira tácita. Demanda, acima de tudo, vigilância e engenhosidade para que as forças de homogeneização que se espraiaram por todos os domínios da experiência humana não limitem o vôo livre e buliçoso do pensamento, comprometendo um enclave até então protegido do assédio e da captura. Como afirma Garcia dos Santos: Séculos e séculos de servidão formaram, transformaram, refinaram as forças da morte em vida. Em toda parte, em todas as instâncias elas se impõem como carne a envolver o osso da existência.78 Em uma época marcada por um sentimento tênue do que seja o espaço público, resumindose a uma arena de exibição para as excentricidades e pirotecnias que o indivíduo cria em sua plataforma privada, toda experiência que persiga a experimentação e invista na liberdade e no inesperado, por mais pontual que seja, estará participando da reabilitação de formas possíveis de vida em comum para além da família e do matrimônio, da re-invenção do político. Na sociedade brasileira, na qual os meios de comunicação de massa exercem uma influência avassaladora sobre a sensibilidade coletiva, colocando-se no lugar ainda incipiente, embora crescente, da vida pública, a prática da história oral (incluindo sua plena extroversão social) pode configurar-se como um eficaz dispositivo no combate ao consenso que caracteriza a nossa estrutura social. Fundada em uma diluição perversa das diferenças e conflitos, não obstante, arroga-se como pluralista e tolerante. Diante desta conjuntura, a prática da história oral tem uma missão cívica, na minha opinião, que é lutar estoicamente, em cada contexto em que ela é aplicada e problematizada, para

78

Op. cit., p. 14.

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não se deixar seduzir ou abater pela ditadura dos sentidos consentidos, pelas idéias encardidas, artificiais (de direita ou de esquerda, independe). Deste modo, o método pode efetivamente participar da proposta foucaultiana do cuidado de si, como uma forma de resistência ao poder e alternativa às práticas subjetivantes modernas. Ao invés de se abster do mundo, a prática de torção sobre si mesmo, em que a história oral se funda, pode contribuir para a restauração do caráter político do processo de construção de identidade, diagnosticando o lugar que cada um encontra na trama social. A ação e a intervenção da história oral no Brasil me parecem promissoras não só pela propalada diversidade cultural, étnica, social e religiosa brasileira, mas, sobretudo, pela relação problemática que o país, desde o momento em que começou a se estruturar como nação, estabeleceu com seu próprio passado. A efeméride dos 500 anos de Brasil e o fortalecimento da sociedade civil ocorrido ao longo da última década (1990-2000) contribuiram para uma mudança expressiva de sensibilidade sobre a importância de se conhecer e se apropriar da pauta do passado, tanto na esfera coletiva quanto individual. Como um fenômeno recente, tem ainda um longo caminho de lutas e enfrentamentos para que se consolide plenamente como uma prática cidadã, e não apenas diletante. A despeito da desigualdade sem paralelo da sociedade brasileira, o alto índice de mobilidade social, que renova continuamente a composição das elites econômicas e políticas, rompe com a imagem fatalista da eternidade das diferenças que caracteriza as sociedades hierárquicas tradicionais. A pirâmide social brasileira é muito maleável e o conceito de “branquitude”, por decorrência, também é bastante plástico, revelando-se cada vez mais atrelado à capacidade de compra do agente social. Há uma enorme “tolerância” para que qualquer diferença no Brasil possa diluir e anular-se na “branquitude” como contrapartida à ascensão social. Em um certo sentido, a idéia de “embranquecimento” acalentada com entusiasmo pelos ideólogos do século XIX, de certa forma persiste como prática, embora prescinda de um avatar corporal para erradicar a “mácula” de uma origem que seja não a do homem branco ocidental. A ideologia “Brasil, país do futuro”, segundo Bernardo Sorj79, foi atualizada nos anos 50 do século XX com o desenvolvimento das novas classes médias, geradas pelo processo de industrialização e modernização. É justamente neste período da história brasileira que os depoentes da pesquisa viveram seu processo de formação – infância, adolescência e 79

Op. cit.

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ingresso na vida profissional. A inexistência de um sentimento xenófobo ao estrangeiro, já que no mito de origem do “país do futuro” o inimigo está personificado no passado e nos agrupamentos humanos a ele associados (negro, índio e português), autorizou os imigrantes a participarem, em igual ou até em melhor condição desta “corrida” em direção ao amanhã brasileiro, onde a promessa de bonança poderia ser plenamente cumprida. Se para os imigrantes a ascensão econômica representou uma forma concreta de ganhar mais visibilidade social e se sentir partícipe da realidade brasileira, o desafio para a geração já nascida no país foi mais ardiloso, pois coube a ela realizar uma ascese no campo subjetivo, e não apenas um deslocamento na esfera econômica. A inexistência de uma barricada anti-semita no Brasil, que impediria a livre circulação dos judeus e potencializaria as reivindicações identitárias, de um lado, e a celebrada multiplicidade de repertórios que compõem o horizonte brasileiro, de outro, contribuíram para que estes “brasileiros sem hereditariedade de Brasil” buscassem encontrar dispositivos para se deixarem afetar e imiscuir com as muitas outras fatias de mundo com as quais coexistiam. Embora a ideologia do sincretismo cultural tenha propagado a imagem de uma nação na qual as culturas se insinuam como se estivessem expostas em um mercado de rua, a experiência concreta contradiz esta imagem, revelando sua segmentação, sua discriminação silenciosa e a dificuldade em ultrapassar o muro da exclusão. Construir esta brasilidade fazendo jus ao hibridismo que a singulariza parece mais sutil e trabalhoso do que o senso comum da sociabilidade gregária e da democracia racial arvora. Na trajetória destes e de tantos outros judeus que pretendiam selar uma aliança com o país no plano da subjetividade, e que não sucumbiram à via da ascensão social como veículo desta escalada, aparece uma busca consciente e diligente de exposição ao exterior, recusando para isso a lealdade ao ambiente claustrofóbico da comunidade judaica e aos outros universos coercitivos, nos quais se identificava uma tentativa de circunscrição de margens e valores. A militância política-partidária foi amiúde, para muitos deles, referida como um canal importante, através do qual a diversidade brasileira adquiriu corporeidade e perdeu sua dimensão etérea e mítica. Simultaneamente, o desejo ardente de conhecer e dialogar com o espesso e multifacetado território vivencial brasileiro foi sendo também alimentado pela fertilidade das expressões artísticas em circulação (música, cinema, teatro, literatura, artes plásticas).

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No momento em que a ansiedade subjetiva de mergulhar na brasilidade não apenas como cenário mas também como uma experiência intravenal se impôs como questão, parece ter havido uma incompatibilidade entre a comunidade de origem e a de destino. A construção desta singularidade brasileira, pelo investimento que demandava, parecia não ensejar a manutenção de qualquer prática ou compromisso que aludisse ao universo matricial judaico, este, por sua vez, complexo, absorvente, carregado de crostas acres de significações. Todavia, foi justamente o aspecto sinuoso e permissivo da cultura brasileira que permitiu que este judaísmo (como um corpo orgânico, como resto ou apenas como sensação esparsa) não fosse destacado, mas que também não fosse descartado. A frágil força da construção ideológica identitária brasileira, destituída de um núcleo centralizador, que vaza e não se deixa delimitar, não exigiu renúncias e imolações irreversíveis, permitindo assim que uma “sombra” judaica permanecesse sublimada, sujeita a possíveis reverberações. Como afirma Affonso Romano de Sant’Anna: Sem dúvida este não é o país do quadrado e do círculo renascentistas, senão o país da elipse barroca. Elipse: sinônimo de curva. O avesso do cartesianismo, da racionalidade renascentista e iluminista. O discurso tropical é elíptico, sinuoso, sedutor, sempre oculta algo.80 Se a marca da porosidade no discurso representa a permanência de zonas turvas e nebulosas, alheias à inscrição de uma racionalidade científica e burocrática, como reguladora da prática social, a sinuosidade, quando interpretada pela linguagem do corpo, ao invés de se constituir como uma anomalia, um obstáculo, revela-se como um apanágio. Buscar compreender o Brasil através da linguagem sensorial é uma estratégia de derivar do discurso do ressentimento e da falta e afirmar sua positividade, lembrando-se que a história brasileira sempre esteve muito atrelada ao corpo. Este é o motivo pelo qual, segundo Zuenir Ventura, ele sempre foi simultaneamente edenizado/exaltado/erotizado/adornado e, por outro lado, castigado/mortificado/torturado e mutilado81 .

80

SOBRAL, M. e AGUIAR, L. A. (orgs.). Para entender o Brasil, São Paulo: 2000, Editora Alegro, p. 18. VENTURA, Z. Viva o corpo brasileiro. In: BÓGEA, I. (org.), Oito ou nove ensaios sobre o Grupo Corpo, São Paulo: Cosac e Naify Edições, 2001, p. 97. 81

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Esta prevalência do corpo, do instinto e do afeto como traços identitários, deve-se, de acordo com a análise de Joel Birman82, ao fato de o catolicismo no Brasil ter tido relações de conivência com o paganismo de origem índia e africana e de não ter conseguido sublimar e aplastar o erotismo. A figura prototípica do homem brasileiro é o homem de intenso viço afetivo, movido por impulsos passionais, o homem cordial formulado por Sergio Buarque de Holanda. Freqüentemente associada à polidez e à civilidade, a cordialidade para Buarque de Holanda é, não obstante, o avesso das boas maneiras. A supremacia da sociabilidade patriarcal fora do ambiente familiar consubstancia a dita cordialidade brasileira. A incapacidade de controlar e esconder as emoções, premissa para a adaptação a uma vida societária fundada em leis e mandamentos impessoais, embaralha a fronteira e a distinção entre o domínio público e o privado. A solidariedade familiar lançada para fora do seu interior é, segundo Buarque de Holanda, uma forma de se defender do pânico em viver consigo mesmo e ter de se apoiar sobre si próprio 83. A profusão de metáforas corporais que estão presentes no imaginário brasileiro – péquente, pé-frio, nó na garganta, amigo do peito, dedo-duro, com unhas e dentes, língua nos dentes, sangue-quente, sangue-frio, boca-livre, ombro a ombro – como elenca Zuenir Ventura é interminável. A ambundância destas imagens sugere que há um conhecimento próprio à cultura brasileira, que é engendrado pela atenção às sensações e expressões epidérmicas, um conhecimento que vai “das tripas ao coração”, parafraseando o belo título de um dos filmes da trilogia da cineasta Ana Carolina. Ao invés de uma linguagem tépida, que obedece aos ditames da razão e que se subjuga aos atributos incorporais – pai, patrão, mulher casada, filho obediente, aluno aplicado – o “corpo brasileiro” tem uma flexibilidade e uma sonoridade peculiares, que lhe conferem leveza e plasticidade. Talvez por isso, Luís FernandoVerissimo, ao tentar definir o Brasil, não encontre eco na abstração do conceito, mas sim na corporeidade da sensação: Um sentimento que começa na garganta desce para a barriga e fica lá irradiando calor cívico.84 No entanto, é importante alertar para os riscos de uma leitura determinista sobre a preponderância da linguagem do corpo no Brasil, como se fosse sinônimo de

82

SOBRAL, M. e AGUIAR, L. A. (orgs.), op. cit, p. 148. Sobre esta discussão ver resenhas sobre clássicos da história das idéias no Brasil reunidas por DANTAS MOTA, L. (org.), Introdução ao Brasil – Um banquete no trópico, São Paulo, Editora Senac, 1999, 2. ed. VERISSIMO, L. F. Essa coisa. In: BÓGEA, I. (org.), op. cit., p. 19. 83

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espontaneidade e antípoda à racionalidade. A expressão corporal brasileira é extremamente sofisticada e demanda muitos dispositivos para compreender os sentidos nada pueris que dela emanam. A idéia de que o corpo não é apenas uma entidade biológica, mas um ente sensível, constituído cultural e historicamente, dotado de desejos e projetos, começou a ganhar expressão a partir dos movimentos sociais dos anos 60/70, que reivindicavam o “direito ao corpo” e a “liberação dos prazeres físicos”. Houve um grande interesse manifesto pelas ciências humanas e pelas artes no corpo como objeto de investigação e, em função disto, clássicos sobre o tema foram retomados neste período com entusiasmo, tais como, Norbert Elias, Marcel Mauss, Reich, Freud. Como afirma Michel de Certeau: cada sociedade tem seu corpo, assim como tem sua língua.85 Submetido a uma gestão social, este corpo obedece a certas regras, determinações, representações, apelos, valores. E, tal como a língua, também encontra dispositivos para escapar às codificações e normas que tentam perfilar seus limites e seus imponderáveis. O “corpo brasileiro” tem um potencial transgressivo para se insubordinar contra os dogmas, embora não signifique que seja um corpo movido por puro impulso selvagem. Neste sentido, ele pode ser considerado um corpo dançante, moleque, experimentador, invulgar. Nietzsche chama de vulgaridade a incapacidade de resistir a uma solicitação e ser forçado a reagir. A dança idealizada por ele não é absolutamente a impulsão corporal liberada, mas a demonstração corporal da desobediência a uma impulsão. Ela é esquecimento porque esquece o peso e o cárcere do corpo, iniciando através do gesto um novo começo. É leve porque é capaz de manifestar-se como corpo não forçado, insubordinando-se até mesmo contra seus próprios impulsos. Neste sentido, não é atribuída a esta dança uma função mimética, mas a missão robusta de rasgar a convenção. O corpo dançante está fora do solo, está em estado de jorro. Eis uns dos motivos pelos quais Nietzsche tomou a dança como metáfora do pensamento. Segundo Alain Badiou:

A dança é o que autoriza que se chame a própria terra de “aérea”. Na dança pensa-se a terra como dotada de um arejamento 85

CERTEAU, M. Histórias de corpos. In: Projeto história – Corpo e cultura, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História, São Paulo: PUC, n. 25, dez. 2002, p. 408.

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constante, a dança supõe o sopro, a respiração da terra. Isso porque a questão central da dança é a relação entre verticalidade e atração que transitam no corpo dançante e autorizam-no a manifestar um paradoxal possível: que terra e ar troquem de posição, passem um para dentro do outro. [...] A dança representa a travessia potencial da inocência. Manifesta a virulência secreta do que aparece como fonte, ave, infância. Na realidade, o que fundamenta que a dança metaforize o pensamento é a convicção de Nietzsche de que o pensamento é uma intensificação. Essa convicção opõe-se principalmente à tese que vê no pensamento um princípio cujo modo de realização é exterior. Para Nietzsche, o pensamento não se efetua em outra parte além daquela onde se dá, o pensamento é efetivo “no lugar”, é o que se intensifica, se assim se pode dizer, sobre si mesmo, ou ainda o movimento de sua própria intensidade.86

Apesar do corpo ter se tornado o novo reduto da subjetividade na sociedade ocidental contemporânea, substituindo o antigo lugar secreto da interioridade do espírito pela fotogenia integral do corpo eternamente jovem, civilizado e sem segredo, o “corpo brasileiro” ainda parece manter uma certa vibratibilidade em relação ao mundo, um certo estilo que lhe permite expandir-se em surpresas e resistir com uma certa liberdade às práticas de persuasão e manipulação. Este talvez seja um dos fatores que justificam a vigília perversa do erotismo vulgar sob o corpo no Brasil, agonizando a solidão e a aridez do indivíduo e ocultando sua inextrincável conexão com o coletivo. Ao tomar o corpo como um fim em si e para si mesmo, evitam-se o contágio, as trocas, os empréstimos mútuos entre corpos que trazem os limites e as expectativas das culturas das quais são portadores. Dissimulado como corpo versátil, este erotismo vulgar advoga um corpo ágil e criativo, que entra em todos os lugares e navega em meio a diferentes culturas, não para estabelecer agenciamentos e redes, mas para denegrir o outro, destacando seu individualismo, sua superioridade arrogante de ser estéril e perene. Eternidade fundada em um corpo sem

86

BADIOU, A. Pequeno manual de inestética, São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 80.

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memória, imune às marcas e inscrições da geografia, história, religião, família, cultura. Corpo sem espessura e sem expressão, corpo éter 87. Se o corpo ainda persiste no Brasil como um acontecimento líquido, como um reduto de insubordinação contra as regras de aprisionamento da imaginação, a despeito de todos os artifícios para despolitizá-lo, no arcabouço religioso judaico o corpo é totalmente sublimado em detrimento do conceito e da abstração. A tradição judaica tem como suporte apenas um nome, que é, por sua vez, impronunciável. Para se achegar ao sentido de Deus, abstrato e inatingível, desenvolveu-se no judaísmo a prática exegética dos comentários e interpretações dos textos sagrados. Por ser o texto uma entidade móvel, a interpretação é sempre incompleta. É sempre possível partir e ir um pouco mais adiante. Ser judeu, neste sentido, implica atribuir sentido a algo que não está dado, aceitar que a identidade consigo mesmo talvez não exista. No judaísmo, o abrigo possível, mesmo que sujeito a sucessivas desterritorializações é o pensamento, e não o corpo. A fé judaica tem como base as prescrições práticas que concernem e permeiam todas as dimensões do ser: alimentação, sexualidade, morte, trabalho. A premissa para se servir a Deus é combater implacável e incessantemente a idolatria (idealização, fetichização, adoração) de quaisquer objetos ou entes que façam parte do mundo e da história (objetos, animais, terra, Estado, normas, obras). Os valores emocionais e morais são abafados e a pulsão é renunciada como forma de submissão a Deus. Esta negatividade constituinte do judaísmo desencadeia, segundo Daniel Delouya, um hiperinvestimento da intelectualidade, espiritualidade em detrimento do imagético, do sensorial, do pulsional auto-erótico, rejeitados com desdém pela religião, como restos regressivos 88. Do ponto de vista interno, o imperativo acerbo da sublimação sensorial e a reverência ao livro sagrado. Do ponto de vista externo, a profusão de representações prosaicas do judeu como urbano, artificial e comerciante. Estes dois fatores coligados contribuíram para que a imagem do judeu tenha sido secularmente associada à esfera da cultura. No entanto, a disseminação das teorias biológicas racistas do século XIX, posteriormente levada ao extremo com a arquitetura ideológica das concepções hitleristas de raça e sangue 87

Idéias desenvolvidas por Denise Bernuzzi de Sant´Anna, Corpos de Passagem, São Paulo: Estação Liberdade, 2001. 88 DELOUYA, D. Entre Moisés e Freud – Tratados de origens e de desilusão do destino, São Paulo: Via Lettera/Fapesp, 2000, p.26.

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desestabilizaram este arquétipo, passando o judeu a personificar as forças bárbaras e indomáveis da natureza. O mito secular do judeu como o outro ameaçador encontrou novos termos e justificativas para engrossar o caldo de animosidade e fobia que despertava. As ciências antropológicas da época atestavam a suposta fragilidade e decrepitude moral e psíquica dos judeus pela expressão e configuração de seu corpo: o nariz adunco, o gestual das mãos, os pés, a voz, a forma de andar, o pênis circundado. A virulência e violência destas representações pautadas em um suposto diagnóstico anatômico incidiram de forma nefasta sobre o processo de produção subjetiva judaica. A maneira como os judeus se viam, se organizavam internamente, atuavam na vida social e reagiam perante as agressões externas foram profundamente influenciadas por estas construções. Sander Gilman acredita que os judeus da diáspora ocidental responderam, e muito, às imagens que foram fabricadas e veiculadas nas várias “culturas hospedeiras” com as quais se relacionaram e se assimilaram. De acordo com Gilman:

By the mid-19th century being black, being Jewish, being diseased, and being “ugly” come to be inexorably linked. All races, according to the ethnology of the day, were described in terms of aesthetics, as either “ugly” or “beautiful”. [...] And being ugly, as I have also argued, was not merely a matter of aesthetics but was a clear sign of pathology, of disease. Being black was not beautiful. Indeed, the blackness of the African, like the blackness of the Jew, was believed to mark a pathological change in the skin, the result of congenital syphilis. [...] In being denied any association with the beautiful and the erotic, the Jew´s body was denigrated. [...] Within the racial science of the nineteenth century, being “black” came to signify that the Jews had crossed racial boundaries. The boundaries of race were one of the most powerful social and political divisions evolved in the science of the period. 121


That the Jews, rather than being considered the purest race, are because of their endogenous marriages, an impure race, and therefore, a potentially diseased one. That this impurity is written on their physiognomy. According to Houston Stewart Chamberlain, the Jews are a “mongrel” (rather than a healthy “mixed”) race, who interbred with Africans during the period of the Alexandrian exile. They are a “mongrel race which always retains this mongrel character”. 89 A curta distância que separa em termos históricos a experiência contemporânea judaica do contexto acre e jocoso do século XIX, recriado de forma industrial no coração do século XX, embora infinitamente mais “eficaz na tentativa de erradicar a sujeira judaica a partir de sua eliminação total”, nos instiga a pensar nas seqüelas e reverberações das imagens fantasmáticas sobre o ser judeu mesmo para as gerações gestadas após a Shoah. A humilhação, a vergonha, o desamparo, a culpa, o auto-ódio foram sentimentos que acossaram os judeus nos últimos sessenta anos. Embora a experiência do holocausto nazista venha sendo lembrada à exaustão, tornado-se uma figura paradigmática do sofrimento irrepresentável do genocídio étnico – o Holocausto, um acontecimento histórico único e o momento clímax do ódio irracional dos não-judeus pelos judeus –, a maneira como o trauma social foi sendo elaborado e mitigado no plano da subjetividade individual, permaneceu um domínio pouco explorado pela História e pela Psicanálise. Como a imagem pregnante de uma grande e inexpugnável nuvem negra que se prostrou sob o horizonte judaico foi sendo afastada, permitindo que a humanidade e a polissemia de sentidos inerente à experiência judaica pudesse novamente aflorar e readquirir o direito de expressão? Em termos coletivos, muitos foram os esforços de galvanizar a auto-estima, a dignidade e o orgulho dilacerados pela Shoah. Infelizmente, como afirma Norman Finkelstein em um bombástico manifesto, o extermínio de judeus durante a Segunda Guerra vem sendo transformado em uma representação ideológica que defende interesses de classe e sustenta políticas, explorando de maneira obscena o martírio judaico90.

89

GILMAN, S. The Jew’s body, New York & London: Routledge, 1991, p. 173. FINKELSTEIN, N. A indústria do holocausto – reflexões sobre a exploração do sofrimento dos judeus, Rio de Janeiro, Record, 2001. Segundo a análise de Finkelstein, a memória do Holocausto é uma construção ideológica de interesses investidos. Ele diz que é uma construção recente, pois durante a sua infância nos Estados Unidos (início da década de 60) ninguém, além de sua família, parecia se interessar pelo que aconteceu. Havia pouquíssimos livros e filmes que mencionavam o assunto. Não só os americanos em geral, 90

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Embora o Brasil parecesse representar para os imigrantes judeus, em muitos aspectos, a “Terra Prometida” – o grande afluxo ter chegado ao Brasil antes da Segunda Guerra e o país ter se posicionado ao lado das Forças Aliadas, as práticas e discursos anti-semitas não terem encontrado um território de vazão em terras tropicais, o judeu ter sido bisonhamente identificado como branco europeu, o sincretismo cultural tropical cultuado como um dogma - ainda assim, a marca do desassossego no âmbito silencioso da subjetividade permaneceu ruidosa. A utopia de um universalismo judaico que se imiscuiria sem freios em uma sociedade multicultural inteiramente receptiva às culturas e ao amálgama entre elas não foi exatamente cumprida. A apreensão e a insegurança que os imigrantes judeus podem ter sentido ao se defrontarem com o enigma tropical, resistindo a uma exposição e mergulho desbragados, talvez possa ser explicada pelo impacto diante de um país com uma frágil e mutante unidade imaginária, como afirma Maria Rita Khel91, e aplastado por uma racionalidade patriarcal na qual a afetividade dos elos pessoais prevalecia também sob a esfera pública. Ajustar-se a um país de contornos identitários imprecisos e decifrar a bizarra lógica do favorecimento pessoal e do “jeitinho” eram dois grandes embates dos quais os judeus não podiam se esquivar. A quantidade de energia desprendida nesta operação e o sucesso da empreitada permanecem questões não respondidas. Sabemos que a ideologia do país sincrético sempre fez proselitismo sobre a inexistência de preconceitos e da receptividade incondicional franqueada a todas as culturas que participavam do “laboratório mestiço brasileiro”, não havendo espaço na agenda pública para o questionamento sobre a solidez ou não desta representação. Alguns dos relatos em Intérpretes do desassossego e tantos outros testemunhos autobiográficos e entrevistas com judeus da primeira geração sugerem que o desassossego, mas também os judeus americanos, incluindo os intelectuais judeus deram pouca importância. Segundo ele, este silêncio público sobre o extermínio nazista deveu-se a política conformista da liderança judaica americana inteiramente alinhada às prioridades da Guerra Fria do governo americano. A guerra árabeisraelense de 1967 marca uma inflexão na opinião geral sobre o holocausto judeu, tornando-se uma fixação na vida dos judeus americanos. O Holocausto tornou-se a arma perfeita para esvaziar as críticas a Israel. Finkelstein afirma que a indústria do holocausto que cobra indenizações milionárias de empresas e países, que cria museus e monumentos em profusão e produz um sem-número de artefatos culturais, ao invés de ser um tributo ao sofrimento judaico, é uma forma de enaltecimento. Ele defende que é importante lutar pela integridade do registro histórico, compreender sua singularidade, mas estabelecer sim comparações, legado que recebeu de sua mãe, sobrevivente dos campos de concentração de Maidanek e Auschwitz. 91 KHEL, M. R. Trapos de nuvens. In: BÓGEA, I. (org.), op. cit., p. 50.

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o sentimento de obnubilação, mesmo que intermitente, esteve presente. Construído ideologicamente como uma virtude inquebrantável, o sincretismo cultural estabeleceu uma espécie de gradil, dificultando a verbalização de experiências, mesmo que pontuais e imateriais, que se opunham ou arranhavam o cenário inconteste da tolerância e da igualdade entre as várias culturas. Um dos grandes atributos do método da história oral é justamente ser potencialmente capaz de dilatar o fato histórico, crispando ou rasgando, de forma sutil, o tecido homogêneo e a retidão da ideologia, do mito público, da memória coletiva, independentemente destas construções serem vividas de forma simpática ou sinistra. Sua capacidade de mostrar que toda experiência individual tem uma força diáfana de esparramar o cimento duro de que se formam certos discursos, sinaliza a ética intrínseca ao método, ou seja, o respeito pelo valor e pela importância de cada indivíduo. Como afirma Alessandro Portelli:

Cada pessoa é um amálgama de grande número de histórias em potencial, de possibilidades imaginadas e não escolhidas, de perigos iminentes, contornados e por pouco evitados. Como historiadores orais, nossa arte de ouvir baseia-se na consciência de que praticamente todas as pessoas com quem conversamos enriquecem nossa experiência. Cada um dos meus entrevistados – talvez quinhentos – e na afirmação que se segue não há nenhum clichê, representou uma surpresa e uma experiência de aprendizado. Cada entrevista é importante, por ser diferente de todas as outras.92

* * * 92

PORTELLI, A. Tentando aprender um pouquinho – Algumas reflexões sobre a ética na História Oral. In: Projeto História – Ética e História Oral, Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP, São Paulo: Educ, n. 15, abril de 1997, p. 17.

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O relato de SERGIO SISTER93 é intestinal. De forma ácida, porém sem amargura, radiografa a experiência judaica de classe média baixa nas décadas de 50/60, revelando sua distância das imagens de inserção e glamour freqüentemente associadas ao judeu brasileiro na contemporaneidade. Representações pouco simpáticas que circulavam de soslaio na vida social e o lugar constrito reservado ao judeu sem “embuste”, ou seja, identificável pela voz, pelo ofício, pelo sotaque, pelas práticas cotidianas, pelo nome e sobrenome, propiciavam um sentimento agônico, um desejo profundo de erradicação das marcas e sons judaicos. A ascensão social era o passaporte para a aceitação na sociedade brasileira, e igualmente no interior da própria colônia. Sergio relata que ter um pai klientelshik 94 era altamente desqualificado, experiência que ficava entre o jocoso e o desprezível. De acordo com Sergio, a colônia judaica como um reduto supostamente amistoso, lugar de garantias e defesa contra os ataques e incongruências de uma sociedade estranha, vivia sob o açoite da escalada econômica. A imagem elaborada por Blanchot do judeu como figura do pensamento, explicitada anteriormente, guardava uma enorme distância do judeu psicossocial integrado ao cotidiano comezinho e doutrinário da colônia judaica. Estruturada como uma fortaleza defensiva no seio de uma sociedade cultuada como “solar e porosa”, o gueto judaico exigia uma fidelidade que desautorizava o trânsito livre com práticas ou idéias referentes ou alusivas ao mundo não-gentio, não-judaico. O recuo em relação ao exterior e a prevalência da ascensão social como um suposto vetor de dignidade, através do qual o judeu seria plenamente aceito no interior de seu próprio grupo, apontavam um 93

Segio Sister é artista plástico e jornalista e formou-se em Ciências Sociais pela USP. Foi militante de organizações de esquerda e preso político durante o regime militar. É um dos fundadores do PT. Fez cursos livres de desenho e pintura no atelier Ernestina Karman e na Fundação Álvares Penteado, entre 1964 e 1967. Participou de um grupo de jovens artistas cuja atuação era muito estimulada pelo físico Mário Schenberg. Expôs no Salão Paulista de Arte Moderna (1965 e 1966) e no Salão de Campinas (1966). Em 1967 expôs na IX Bienal Internacional de São Paulo. Do final dos anos 60 até 1979 sua atividade artística foi bastante reduzida em favor da formação em Ciências Sociais, sua atividade como jornalista e sua participação na política de resistência ao regime militar. Trabalhou nas revistas Veja, Análise, Carta Política e jornal Última Hora, entre outros. Dentre as exposições individuais, destaca-se a no Museu de Arte de Ribeirão Preto (2000), Paço Imperial no Rio de Janeiro (2000) e Galeria São Paulo (2000). Das exposições coletivas, participou da 25a Bienal Internacional de São Paulo (2001), Centro Cultural Maria Antônia (2000), Centro Cultural São Paulo junto com Amílcar de Castro, Tunga, Paulo Pasta e Milton Dacosta (1995). 94 Termo que significa a modalidade de comércio adotada pelos imigrantes que chegavam da Europa no início do século XX, consistindo na oferta de mercadorias de pequeno e médio porte, de porta em porta, principalmente nos bairros de periferia da cidade, mediante pagamento de parcelas semanais, quinzenais ou mensais. O termo mais próximo seria o de “vendedor ambulante”.

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cenário sombrio para todos aqueles que aspiravam a injetar na vida uma espécie de fibra artística, procurando, com todos os ônus, “esculpir o si mesmo”, bem à maneira foucaultiana. Sergio atribui à “mesquinharia” da sobrevivência o estreitamento das veleidades intelectuais, do campo de ação e do horizonte vislumbrado pelos imigrantes, sacrificados em relação aos seus próprios pais que puderam exercitar, mesmo com as perseguições na Europa Oriental, uma certa experiência cultural judaica, da qual seus filhos (pais dos entrevistados) foram privados em função da Diáspora. Esta espiral de expectativas frustradas, sublimadas ou não-reconhecidas geraram conseqüências para a primeira geração nascida no Brasil, segundo Sergio, difíceis de sustentar e responder. De todos os relatos colhidos, o de Sergio é o que apresenta, sem dúvida, a mais literal e onipresente marca judaica. Ela prescinde de um olhar mais agudo por parte do entrevistado ou de uma intervenção do pesquisador para localizá-la. Ela é saliente, escancarada. Escutase seu cheiro, sua espessura, sua intensidade e sua vibração. A experiência judaica vivida por Sergio, diferentemente de Claudia, Sylvio e Mirna é pontilhável pelas suas múltiplas e variadas expressões – observância de práticas religiosas, celebração regular das festas, vida escolar, vida social, uso freqüente do ídiche (permanecendo ainda hoje, como é observável em sua narrativa, muitas expressões mescladas com o seu português) pelo casamento. Se permanecer no interior do universo esquadrinhado da colônia significava uma espécie de “cárcere” subjetivo, sair dele não era mais suave nem menos assustador. Apesar do elogio à mestiçagem, Sergio destaca o temor difuso que a sociedade brasileira, entre as décadas de 50/60, sentia em relação ao judeu. Segundo ele, faltavam interlocutores, judeus mais universalistas que eram capazes de arrastar e ventilar o judaísmo para fora de seu próprio interior. Abandonar o núcleo duro e severo da vida em colônia implicava a elisão dos traços e rastros judaicos – hábitos, sotaque, nome e sobrenome, atividade profissional, relacionamentos. O propalado sincretismo brasileiro e a ânsia em distender o tecido da subjetividade, tornando-a mais “mestiça”, ambos fatores levaram muitos judeus educados dentro dos preceitos judaicos e integrados dentro da colônia a buscar, individualmente, saídas para escapar do “plano” ao qual estavam fadados. Diferentemente de Benjamin, que, a despeito de sua recusa em se aliar a qualquer organização judaica, mantinha-se fiel a uma idéia, as

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rupturas que foram feitas, algumas mais violentas, outras mais brandas, não asseguravam este espaço intersticial. Ou se permanecia, ou se saia.95 A sobrepujança da voz judaica na experiência de Sergio, de acordo com o seu relato, foi contraposta à resposta radical de sua diferença. O paroxismo da sua singularidade, que não queria se esquivar das muitas outras fatias de mundo que transcendiam a problemática judaica, se deu com sua participação na luta armada brasileira e o cumprimento de sua pena na prisão Tiradentes por mais de um ano. O desassossego em seu relato aparece sem impostura, está em todos os lugares, em todas as apostas, em todos os riscos. Ao relatar os acontecimentos marcantes de seu processo de singularização de forma jugular – ruptura com os ditames familiares considerados obsoletos e, por outro lado, recuperação bem benjaminiana de promessas não cumpridas de gerações que o antecederam – Sergio captura e enreda o leitor/ouvinte. A eletricidade do relato cria um suspense em relação ao desenrolar de seu enredo. Não há em sua narrativa, no conteúdo ou na forma de apresentála, um elogio de si próprio à imagem de um herói romântico. Ao invés de um sujeito que ludibria as adversidades do mundo, visualiza-se, pelo contrário, um sujeito em processo de assujeitamento, um sujeito que vai se deixando “contagiar” pelo mundo. Catarse e redenção, o relato de Sergio parece se posicionar neste entrelugar. Entre todos os entrevistados, Sergio é certamente o menos pudico perante seu judaísmo. Não há indiferença nem, por outro lado, ufanismo. Há um desejo genuíno de reintegração e articulação entre experiências que permaneceram insuladas, criando para elas um solo comum de continência. Apesar do conteúdo nada idílico de suas memórias e dos múltiplos desterros enfrentados, a irreverência, e não o ressentimento, é o que dá o tom dominante de sua narrativa. Se o enredo de Sergio mobiliza pelos sucessivos deslocamentos, há uma informação aparentemente irrelevante que, no entanto, me pareceu reveladora de um sentido subjacente para além do conteúdo manifesto: o timbre com que ele assume hoje sua condição judaica – Eu sou judeu mesmo, e daí? Pronto. Acho legal. Cabe salientar que são justamente estes dados “residuais” que devem, a partir de uma escuta e olhar pontiagudos, ser contemplados na escrita desta história oral a fim de que, como nos alerta Portelli, o 95

O percurso de vida de Maurício Tragtenberg tem algumas semelhanças interessantes com o de Sergio. Ambos foram educados dentro de um universo judaico severo, sem ambivalência e intelectualmente pouco sofisticado. Ambos tinham certeza sobre a limitação de horizonte que a lealdade estrita ao projeto judaico representava. Ambos investiram no aprendizado informal que a cidade de São Paulo propiciava (cultura de bairro, equipamentos culturais, grupos de discussão). Ambos militaram no Partido Comunista. Ambos se desencantaram do dogmatismo partidário. Ambos construíram uma carreira profissional na qual a singularidade de seus trajetos foi contemplada. Para saber mais, ler MARRACH, S. (org.), Memórias de um autodidata no Brasil/Maurício Tragtenberg, São Paulo: Escuta/Fapesp/Unesp, 1999.

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pesquisador restitua ao entrevistado e ao grupo não a sua identidade, mas um discurso experimental, uma outra organização diferente do que eles já tinham de si mesmos. A restituição não é neutra, sempre constitui uma intervenção96. Direto e insolente, o timbre do Sou judeu tem uma sonoridade profundamente brasileira. Além disso, a simplicidade da frase que sintetiza esta sua identificação, sem nenhum rebusque ou artifício intelectual, sugere que a marca obscurantista do judaísmo, memória de sua infância e adolescência, foi desentulhada de sua carga e de seus excessos, perdoada de sua intolerância. O tom maroto que envolve o seu sentimento judaico, que eu classifico como brasileiro, parece sinalizar que este judaísmo não é mais a repetição incessante e ressentida de um passado que não quer passar. O passado pode ser convocado, pois definitivamente ele foi superado, esquecido e recuperado. Portanto, mergulhar nos labirintos da memória para Sergio não soa como uma aventura arriscada. Está seguro em relação à sua profunda infidelidade ao passado. Liberto dos grilhões e com uma suavidade antes inimaginada, ao deixar de ser doutrina ou assombração, o judaísmo “essencial” pode voltar, como se escuta no depoimento de Sergio, como memória em benefício da vida. E, curiosamente, ao partir, mas de certa forma voltar, Sergio é profundamente judeu, já que a economia simbólica do judaísmo é lançar-se na polivalência de significação, aceitando o sentido inesgotável e a impossibilidade da apreensão do absoluto. Sergio exercita a memória da diferença. Sai o fardo e permanece o desassossego. Não é à toa que Sergio recupera sua pertinência pela via aparentemente mais trivial. Outrora estridente, ruidosa e por vezes obscena, a frase Sou judeu, acho legal retorna com uma sensualidade e alegria que lhe eram antes interditas. Ao embarcar no convite da memória, Sergio lembra que houve um esquecimento da lembrança e que foram justamente estas penínsulas de esquecimento voluntárias que possibilitaram que a memória hoje fosse sinal de saúde, e não sintoma de uma doença. Ao tirar o peso e afirmar a intensidade de um certo tipo de judaísmo, Sergio resgata os possíveis que deixaram de se efetivar, bem nietzschianamente, e estica o tecido subjetivo de seu presente. Sua capacidade de experimentar o excesso, abraçando sem hesitação experiências que ruíam os alicerces de sua morada subjetiva, parecem ter sido uma constante. Aí talvez haja uma afinidade muito interessante entre Sergio e Sergio, apesar de suas memórias judaicas e não-judaicas serem tão distintas. A disposição constante em desacomodar-se de si, aceitando a exposição ao mundo e a provisoriedade dos territórios estáveis, destacados por ambos em suas trajetórias, 96

PORTELLI, A. op. cit.

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sugere que a Arte não se localiza unicamente no reduto específico da criação artística (não analisada por esta pesquisa), mas se espraia por muitos outros domínios da experiência, entre eles, a narração. Apesar do leitor estar privado do timbre sinuoso do Sou judeu no texto escrito, que me pareceu tão expressivo, ainda assim o enredo tem uma palpitação orgânica, como já foi salientado, já que Sergio ao narrar sua história se recusa a fazer dela um terreno plano, confortável, lógico e sem ambigüidade.

[...] A minha família é toda da Bessarábia. Meu pai é de uma cidade que hoje é a Ucrânia, chamada Tultim. Ele veio, acho que em 1923. Primeiro veio o pai dele, em 1914, quando estourou a guerra, porque já tinha família morando na Argentina e aqui em São Paulo. Ah, tanto a minha família materna quanto a paterna são de Sister, dos dois lados, porque o meu pai é primo irmão do pai da minha mãe. Meu pai era Jaime Sister, e o meu avô era Moises. E meu pai casou com a filha do primo dele, Ana, Anita, que é minha mãe e que é prima dele. A minha mãe veio com 8 anos, ela nasceu em 1919. Lá a família Sister, que vem de Shuster, sapateiro, era família que tinha cortumes. Estava há muito tempo na região. Eu acredito que eles não eram pobres. Eu imagino pelas coisas que meu avô materno descrevia de lá, meu avô materno tinha cultura, ele falava francês, era conhecido como studient. Tinham aquelas pessoas tidas como intelectuais, e o meu avô paterno também era, escrevia. Ele era um intelectual religioso. Dirigia a sinagoga. [...] O objetivo era a Argentina, mas ficaram aqui. Depois veio minha avó paterna com os filhos, meu pai, uma irmã e mais dois irmãos. Eles passaram antes pela Itália. Tinham um passaporte romeno. Passaram por Nápoles, se não me engano. Depois ele veio para o Brasil, veio em 1923 e veio no mesmo navio que o Adolfo Bloch, ele sempre contava isso. Ele veio bastante jovem, ele nasceu em 1908. [...] Esse Aarão era primo irmão do meu pai. Aí ele ensinou meu pai a ser klientelshik. Cada um tinha uma casa, morava num quarto que tinha uma cama só, mas a cama era uma loja. Não me lembro se ele foi morar no Brás ou no Bom Retiro. Eles, por sua vez, eram primos por parte de mãe dos Weiner, Samuel Weiner, e meu pai ficou muito amigo deles. Daí ficou esse trânsito Rio–São Paulo. Ele acabðuöfözönöoöuö ömöiönöeöaöuö öm÷SòoöPöuöoö ö öiösö ölö öeö ömö ÷vòlöíöaöeöfözöuöaöföböiöaödö öó÷eòsö ölö örö 129


öe÷ öoöeö.öDöíö öa÷Ròoöiöaötömönöeödö öeötö öoö ö.÷OòEöeötövö öuö öeöhörö öeöoösöe÷eòtön÷o÷ örönöföröaö öuöaöföböi÷aòdö örönöuödösödö öaöeörö,öeöe÷tòvö öuötö ösöaö öoösösö.ö ö.ö.÷ òoösöéö ölö öaöuödö öiö öoö öa÷sò öoödönöeörö.öSöoöPöuöoötönöa÷mòiö öpöröuöiöaöe÷,ötönöaöpöiöo÷,òfòmölöaö öoöiö öaöeö öaösöaöb÷eòtö.öEöeögösöaöaömöiöoödö öiö,÷mòsöeöeönöoösöböaömöiöoöcömö ör÷bòlòaö,öeöaöuö ölö öiöhö öpöröu÷iðaöeödö öpöeödör÷cömöeösö öröm÷ òeöeö ö öaö ö ö öãö öiöaöaö öo÷Ròoö öuönöoödöuöuöaömölöoöaöaö ÷uðmö öeöböoö ölösöcöeöaöaö ömöS÷oòPöuöoönö öéöaöaödö ö0ö öoöqöe÷aòéöeötöoöeöeömönöaöaödönöeörö ÷aòaöeöeö.öMösöeöeönöoötönöaöcönÿiòõösö öoöqöeöjö öaöiö öaöiöoöd÷aò öeöeö,önöoötönöaöcönöiöãö öe÷sòsöeötörötödö ÷uödö.ö[ö ö.ö öi÷hò öãö öaöcöuöeö [ö ö.ö öi÷hò öãö öaöcöuöeö ö9ö9ö ö ömöoötÿnòeödözöröqöeöeöeö öaörömöpöröc÷uòaödö önöiösömötösöoö öoö öaös÷ òoö öoörömö97ö ÷söaöföiöaörözöo÷bòsöcö öaösöíöaödölösö ösöeömöu÷aòôömötöröoövöiö öiöeöoöpörö öá÷em São Paulo, foi para o Brás, já trabalhava como klientelshik, mas ele não se deu bem na vida, pois era mais acostumado como studient, era muito difícil para ele. Ele era mais intelectualizado, mas também não era o suficiente para ter alguma coisa aqui. Ele se deu bem mal. Também não era religioso, então a inserção dele foi mais difícil. O avô paterno era mais religioso[...] Ele era um sujeito que tinha mais essa coisa de família, todo mundo falava com certa reverência, então tinha mais facilidades, era mais jovem do que meu avô materno. Meus avós maternos tinham dois filhos, minha mãe e meu tio. Era gente mais fina. Esse meu tio, ele teve uma crise, é importante dizer, porque teve uma desqualificação intelectual muito grande nessa geração. Meus avós maternos tinham uma formação intelectual maior, minha avó gostava dos poetas russos e meu avô também, quer dizer, eles tiveram uma adaptação muito mais difícil aqui pelos filhos, porque foram trabalhar. Minha mãe acabou fazendo Escola de Comércio e acabou sendo contadora, mas uma pessoa bem menos qualificada intelectualmente do que os pais. E meu tio mais ainda, porque ele foi trabalhar de carregador. Acho que por ser mulher minha mãe teve uma instrução formal mais sólida. 97

Destruição, em russo, embora integre todas as línguas européias. Refere-se aos massacres organizados contra judeus, bairros judeus ou cidades e aldeias, com o apoio do governo czarista. Visava forçar os judeus das pequenas cidades a emigrarem, transformando-os em bodes expiatórios diante das populações insatisfeitas com a situação política e econômica na Rússia. Esses movimentos foram inspirados por sentimentos antijudaicos de origem econômica e pelo anti-semitismo cristão. A série de pogroms que levou ao êxodo maciço dos judeus-russos para o Ocidente começou em 1881, em Kiev, após o assassinato do czar Alexandre II, e atingiu seu ápice nos massacres de Kishinev, em 1903. Os pogroms levaram ao fortalecimento das aspirações do sionismo na comunidade judaica russa.

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[...] No Brás tinha um núcleo judaico forte. Eles tinham alguns familiares também. O Bom Retiro, o Brás. O pessoal do Brás era mais pobre. Bom, meu pai e minha mãe se casaram. Meu pai estava tentando a possibilidade de ganhar algum dinheiro, ele fez Escola de Comércio também, era o que eles faziam. É importante estar atento para essa desclassificação, porque isso vai ter repercussão sobre a gente. Pela expectativa. Daí eles casaram e foram morar em Pinheiros. Meus avós maternos moravam em Pinheiros também. Meus avós paternos continuaram a morar no Rio. Tinha também um núcleo judaico pequeno em Pinheiros, e aí foram morar num lugar muito interessante, porque o núcleo todo se aglutinava em torno da sinagoga. Tem uma sinagoga em Pinheiros, na Arthur de Azevedo, e a sociedade judaica de Pinheiros se articulava ali. E depois tinha a escola ídiche, que é o Bialik. Isso era razoavelmente pequeno. Em geral o pessoal estudava no Bialik, e ia para a escola pública que era muito boa. E essa sociedade em Pinheiros tinha uma intelectualidade tradicional judaica que era gente da pesada, que era muito boa. Não sei se você já ouviu falar do professor Karolinski, que é uma personalidade intelectual importante. Era sionista, era progressista. Era um núcleo conservador, evidentemente. Os meus avós maternos, eles não eram nem kosher 98 nem nada. Eles ficaram depois. A minha avó fazia assim um Shabat, era mais religiosa. Depois o meu avô ficou muito mais próximo. Por uma razão social também, porque ele se aproximou do shochet 99. Ele dava algum trabalho para ele, meio mafioso, esse shochet, ele contrabandeava náilon, era uma coisa chique e cara. Roupa de baixo de mulher. Meu avô meio que se aproximou dele por razões econômicas. E a gente se formou em Pinheiros. Eu morava numa vila que era predominantemente de gente goi 100. Os meus amigos do primário foram todos do Bialik. Agora não tinha colegial nem nada, uma hora nós teríamos que sair. Eu tinha uma vida da vila também, meus amigos goi da vila, que eu jogava bola. Estou tentando lembrar, mas os meus amigos da rua, os meus amigos da escola, tinha uma separação muito grande. Eu tinha tido uma educação judaica, todas as festas, todas as coisas de hebraico. Ídiche, eu aprendi. Cada vez eu sei menos, mas eu aprendi. Hebraico mesmo eu aprendi na época, 98

Termo em hebraico que significa “apropriado”, que qualifica o alimento que é permitido comer, segundo as leis dietéticas judaicas. Pode ser usado no que se refere ao comportamento ritual e em relação às pessoas. Um indivíduo kosher pode ser aquele que cumpre as leis dietéticas, o que segue as normas da halachá (tradição legal) ou o que é, quanto ao caráter totalmente digno de confiança. 99 Responsável pelo abate ritual de animais e aves de acordo com o método prescrito pelas leis dietéticas. O magarefe deve ser um judeu adulto do sexo masculino, credenciado por uma autoridade rabínica com um certificado de fidedignidade. O método consiste em passar rapidamente uma faca na parte da frente da garganta, e a faca deve ser examinada para certificar-se de que está perfeitamente lisa e sem chanfraduras. Este processo ritual de abatimento tem como objetivo aprimorar e purificar o homem. 100 Palavra em hebraico que significa “gentio”, “não-judeu”. Aos não-judeus não se deve ensinar-lhes a Torá ou permitir que observem o Shabat. O casamento misto em termos sagrados é considerado equivalente ao abandono da religião.

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mas eu não sei mais falar. Agora a gente tinha as festas, embora a minha casa não fosse uma casa muito religiosa, era mais moderna. Não só não tinha kosher como tinha carne de porco, lingüiça. Meu tio, por exemplo, do lado da minha mãe, era bem menos religioso do que meu pai, sem dúvida. Minha mãe mais italianada, ela tinha amigas brasileiras, nãojudias. Meu pai tinha menos, minha mãe não, minha mãe tinha muitas amigas que não eram judias. Ela tinha uma amiga, uma grande amiga que era judia, e as outras amigas eram amigas de trabalho. Minha mãe não tem sotaque. Ela é mais italianada, sei lá. É uma família que, na verdade, gostaria mais de ser italiana do que russa, sabe? Pelo jeito, pelo sotaque, pelas piadas, tem um jeito todo italianado. Meu pai, não, tinha sotaque russo, tinha chegado antes, um pouco mais velho, sempre esteve mais inserido nessas coisas judaicas. Os amigos dele sempre foram amigos judeus. Ainda que não fosse um homem culto, ele sempre era voltado para construção de coisas culturais, fazia bibliotecas judaicas, ajudou a fazer o próprio Bialik, ele foi um dos fundadores, aliás. Ele sempre trabalhou para isso. Ele sempre teve uma preocupação grande para isso aí. E se interessava por política. Sempre leu muito jornal. E a gente sempre participou de todas as festas, o Simchat Torá 101, e o Pessach sempre eram de verdade na casa do meu avô paterno. Mas, quando eu era pequeno, um belo dia chegou a família do Rio. Meus avós do Rio. Vieram morar em Pinheiros numa casa em frente ao Danton hoje, e não trabalhavam, quem sustentava era o meu pai. A irmã do meu pai, ela não trabalhava, morreu muito cedo, morreu com 50 anos. Por isso que a gente sempre foi pobre mesmo. Porque era muita gente assim. Ele ainda ajudava as pessoas que vinham para cá, arrumava o que eles chamavam de pekele102, arrumava mercadoria para vender. Ele sempre foi muito generoso. Nós estudamos todos no primário na escola Bialik e depois no ginásio a gente mudou. A minha irmã foi para o Fernão Dias. Na primeira série do ginásio eu não consegui entrar no Fernão Dias, estudei o primeiro ano numa escola paga, no Machado de Assis, mas logo passei para escola pública também. E assim meus irmãos. E aí, quando você passava para o ginásio, a integração era muito maior. Já tinha a Hebraica. A Hebraica era fundamental para isso também, para esse meu objetivo assim de[...] A Hebraica agradava a gente porque tinha bailes, tinha rock, e a arquitetura da Hebraica era uma coisa bonita, era mais bonita do que hoje, era uma arquitetura moderna, de verdade. Então era uma coisa que agradava a gente. Gostosa. E a gente quando adolescente levava os amigos goi para lá [...] A vida melhorou aqui, acho que para todo mundo, em 58. Deu uma melhorada e tal. Aí, meu pai em 60 teve um infarto, e ficou uma 101

Rituais associados à conclusão do ciclo anula de leitura da Torá. Ao anoitecer, todos os rolos da Torá são retirados da arca, e uma vela é deixada em seu lugar, significando da Torá continua a arder. 102 Palavra em Ídiche que significa pacotinho. Era usada para referir-se ao pacotinho de roupas a ser vendido.

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merda, e daí minha mãe começou a trabalhar, coisa e tal, mas já tinha melhorado um pouco a situação da gente. Ele estava como klientelshik. Mas já começou a fazer a mercadoria em casa. Ficou a loja na minha casa. Eu tinha 13 anos. Daí ele abriu uma loja na Teodoro Sampaio, melhorou a vida. Uma coisa mais estabelecida e tal. A gente tinha problema com isso. A gente não gostava do meu pai ser klientelshik, a gente achava que era meio vergonhoso isso, meio humilhante. Vários amigos meus achavam isso também. Uma loja já estabelecida era diferente. Porque judeu de prestação naquela época, mesmo no Brasil, era engraçado, tinha uma coisa meio negativa e era problema isso para a gente. Então, nesse sentido, como a gente era judeu pobre, tinha uma questão de superar essa situação. Superar essa situação era deixar de ser judeu também, de ser mais integrado, ser mais reconhecido. Então, hoje, para mim, é muito mais fácil ser judeu do que era naquela época. Eu, agora, ao contrário, eu afirmo que sou judeu. Porque meu pai tinha uma coisa muito legal. Como ele foi enguetado, ele gostava das freguesas pretas, empregadas, ele dizia: “Isso que é gente boa”. Hoje eu afirmo que sou judeu, e eu afirmo mesmo: “Eu sou judeu mesmo, e daí? Pronto. Acho legal”. Nem sou muito...Eu vou, de vez em quando, vou para fazer um minian 103. Então eu vou. Até hoje, na verdade, eu não sou religioso, de jeito nenhum, eu sou uma pessoa materialista. Mas eu vou lá e se precisar rezar, falar[...] Porque eu aprendi, mais hoje, do que antigamente. Mas naquela época eu tinha problema assim de ser judeu. Ser judeu era uma coisa meio desconhecida, meio desclassificada, as pessoas tinham um pouco mais de medo, era muito estranho, não tinha um Sobel para divulgá-la, e não tinha essas religiões todas que tem hoje. Mas a gente na vila tinha muitas relações. Meu irmão vira e mexe sumia, meu irmão menor estava na procissão de Corpus Christi, entende? Mas eu me sentia muito brasileiro, eu queria ser mais brasileiro!!! [...] A gente se relacionava com uma vizinha de frente, que era goi. A gente era muito amigo, tal, né? E uma das nossas amigas de frente casou-se com um judeu e se converteu, e virou judia como a gente. Mas tinha sempre alguma ofensa que aparecia ao judeu, sempre tinha a coisa do judeu. Eles gostavam da gente, a gente tinha boas relações lá com eles. Não tinha anti-semitismo. Meu pai era muito mais para o lado do sionismo do que para o lado religioso. Isso sim, ele era. Agora, a gente se integrou muito. Depois nós fomos para o colégio. Quando a gente vai para a escola pública aí já fica totalmente integrado, se sente totalmente brasileiro e tal. Eu tenho o sobrenome Sister, que não é muito judaico, 103

Quorum de dez judeus do sexo masculino com mais de 13 anos de idade que constitui a comunidade mínima necessária para atos públicos de culto e para a leitura da Torá. Em situações em que é difícil reunir o quorum completo, costuma-se contar como décimo homem um menino, mesmo antes de seu bar-mitsvá, que tenha nas mãos uma Bíblia hebraica.

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que parece inglês ou outra coisa, então não tinha essa identificação. É, essa coisa muito rápida, era mais devagar. E eu tenho um irmão menor, ele é bem menor, ele nasceu em 55, e é, sete anos mais novo, ele chama Salomão, coitado. Esse nome horrível, coitado. Então essa coisa do nome assim, você fica mais identificado. Tenho uma amiga que se chama Silvia Cardoso, judia. Então ela podia usar qualquer sobrenome que ela não seria identificada. Agora no colegial não tinha mais esse problema. Ia na Hebraica jogar futebol, encontrar as pessoas, mas ia mais assim. A Hebraica naquela época não tinha essa coisa muito judaica como tem hoje. Acho que era o contrário. Acho que o objetivo naquela época era mais pegar pelo lado social. Acho que talvez fosse a maior preocupação deles na época. Nessa época, apareceu o movimento sionista e eu nunca tive o menor interesse. Eu não tinha vontade de ser sionista, não gostava. Nós não éramos israelenses, entendeu? E aquela coisa de gueto, mesmo quando eu virei militante, essa coisa de gueto, me dava um pouco de[...] Quando eu entrei no Partido Comunista em 65, eu logo saí, fui para um grupo armado em 66. Na reunião da nossa cédula, quando eu sentia algo de gueto, eu me sentia mal. Mas voltando à época de ginásio, eu ia na Hebraica e tinha essa coisa que eu era um judeu mais pobre, e isso fazia uma diferença enorme. Eu acho que por mais incrível que seja, os ricos eram mais universalistas do que os pobres. [...] Quando eu entrei no colegial, eu comecei a trabalhar no jornal muito cedo, aí essa coisa toda de militância veio tudo junto. Era uma militância não-judaica, socialista, eu gostava de tudo assim[...] Depois teve a guerra de 67, que eu me aproximei muito do movimento dos palestinos, da causa árabe, eu gostava muito do Arafat dessa época, então tinha muito conflito familiar. O conflito familiar era horrível, né? Em tudo. Coitado do meu pai. Era um conflito, eu saí[...] Eu trabalhava na loja, saí da loja para ir trabalhar no jornal, no Última Hora, que era o jornal mais de esquerda. Então nessa época eu estou caindo fora da loja, indo para o jornal Última Hora, que era o jornal mais de esquerda que tinha no Brasil. Eu já estava pintando, meu pai me dava dinheiro para fazer essa aula de pintura. Aí depois, não era sionista, era de esquerda, voltava tarde para casa, não dava a menor pelota para coisas assim, sabe? Eu sou o primeiro homem. Meus pais tiveram um filho, morreu aos 4 anos, já tinha nascido minha irmã em 46, eu não tinha nascido ainda, eu nasci em seguida, e substituí o que morreu. Então tinha aquele cuidado[...] Então dei muito trabalho. Eles morriam de medo[...] Eu estava no jornal, era independente economicamente, mas morava em casa. O estranho, é que com tudo isso, ainda morava em casa. Eu tinha 19. Daí logo minha irmã casou. Meu irmão que nasceu em 50 está morando em Israel, casou com goi. Minha irmã casou com judeu, eu casei com judia, mas eu só vim a saber que ela era judia depois, morri de raiva porque era tudo que a minha mãe queria 134


(risos). Eu andava com a Miriam Chnaiderman, era amigo dela, sou ainda. Foi através dela que eu conheci a Bela. A Bela também era judia, mas eu gostava dela. [...] Vou te contar uma coisa que é muito engraçada. A minha mãe, ela é espírita há muito tempo. Então, ela tinha uma amiga, judia, que é médica e mora em Israel. E ela tinha lá uma coisa espírita, porque espírita é de qualquer religião, mas é uma coisa cristã. Daí iam lá as duas, e o resto era tudo cristão. E meu pai ficou doente e tal, ele fez uma coisa para se animar e tal e ganhou uma folhinha do seishonoye, que ele virava, então ele ia à sinagoga, mas no dia a dia ele tinha a folhinha do seishonoye, era essa coisa do sincretismo, é coisa bem brasileira, vai juntando todos os santos para ajudar, entendeu? Vai agregando os santos para todo mundo ajudar a empurrar o carro, entendeu? Então é mais ou menos assim, não rejeita, não tem essa. [...] Eu casei, a minha mulher, o pai dela na época era rico. Depois ele morreu. Eu enchia o saco dele dizendo que eu dei o golpe do baú errado. Mas nós também melhoramos o padrão porque eu trabalhava como jornalista, ganhava muito bem e em algumas épocas eu ganhei muito dinheiro, trabalhando, sempre trabalhando, a gente melhorou o padrão. Meu irmão menor, ele casou com uma judia e se formou em arquitetura, e se deu bem, eles têm uma vida confortável. Esse meu irmão Cláudio, ele era mau aluno, a duras penas ele se formou em Administração de Empresas, ele fez assim, Madureza, depois fez Metropolitana, até que se formou em Administração. Mas é um profissional bom, é uma cara correto. E ele casou com goi e pobre. Eu acho que é muito mais por aí, a oposição que foi feita do que propriamente por ser goi. Acho que é a coisa brasileira também. Porque aqui ainda tem muito racismo por causa da cor, preto vai ficando branco. Outro dia ouvi o Chico Buarque falando que ele conheceu muita gente que era branco e depois que empobreceu ficou preto, eu acho que é muito por aí. Minha mãe tinha um pouco de preconceito social. Hoje em dia não, não tem mais. [...] Até eu queria ser advogado, mas aí começou a Revolução, eu fui fazer Ciências Sociais, gostei mais e já estava militando. A pintura apareceu[...] Eu namorava uma menina e eu fazia pinturinha. Pegava livrinhos do Picasso, Modigliani. Aí, uma amiga dessa namorada que eu tinha disse: “Nossa! Você precisa pintar”. Eu dizia: “Estou copiando”. Daí eu fui fazer um curso e papai deu o dinheiro. Eu gostava mesmo. Jornalismo tinha essa referência do Weiner, o Bloch, que meu pai falava. Porque o Bloch era um cara que tinha dado certo. Mas jornalismo foi muito acidental. Eu estava no colegial, fazia um jornalzinho, um amigo meu que tinha sido amigo do Bialik me convidou 135


para fazer o jornalzinho, contou que fazia e tal e, por coincidência, o pai de uma amiga nossa, que era do Última Hora, disse: “Ah você tem jeito para isso, vamos lá”. Arrumou para mim, senão eu não seria jornalista. Teria feito Direito. Apareceu assim, de repente, do nada. Quer dizer, do nada não, desse jornalzinho. Pintura não, pintura eu fui atrás porque eu gostava. As Ciências Sociais apareceu como possibilidade, era muito interessante o curso, mais do que Direito. Aí teve um ano que eu parei. Quando eu terminei o colegial, eu não fiz nada. Daí depois, quando eu já era jornalista, num semestre eu fiz cursinho, aí depois na Faculdade eu me dediquei à militância, em 68, e tal, estava muito distante de casa e tudo que dizia respeito ao universo judaico. [...] Eu me sentia totalmente brasileiro, eu me sentia e queria mais. Quando eu era menor, sim, eu tinha mais essa coisa de afirmação de ser brasileiro, eu sempre gostei das coisas brasileiras. Com judaísmo era ambíguo. Uma coisa muito ambígua porque eu sentia que pertencia. O sentimento que eu pertencia era forte. Pertinente assim. Era forte. Ambíguo. Não me agradava muito, mas sempre sentia que era muito ambíguo. Não era sionista. Não queria ir para Israel. Mas não sentia que precisava, era muito a-sionista. Via com menos complexidade a coisa. Religião nem participava, achava que era um absurdo, daí já era marxista. Depois eu fui preso, fiquei 19 meses. Fui preso em 70, fazia Ciências Sociais. Entrei para uma Organização Armada. Eu mesmo não era um quadro armado. Fui treinado. Daí fiquei preso e depois saí, casei em seguida. Fui condenado a dois anos de prisão e cumpri uma pena. Eu tinha direito a sair em um ano, com a metade. Mesmo nas atuais circunstâncias teria que sair com metade da pena se você não tivesse queimado colchão, essas coisas. Saía com livramento condicional. Primeiro que, quando fui julgado, eu já estava onze meses na cadeia. Meu pai nunca foi me visitar na cadeia. Minha mãe ia sempre. Fiquei um mês no Dops e um ano e meio na Tiradentes. Tinha um judeu na minha organização. Era o Jacó Gorender, aquele famoso, teve um papel importante na nossa educação na cadeia. Eu escrevi sobre isso. Tive grandes amigos na cadeia, mas agora, atualmente, faz anos que a gente não se vê. Um deles é um cearense, morou no sertão, é muito culto, ele dizia que o primeiro judeu que ele conheceu foi o Jacó Gorender, e a visão de judeu que ele tinha era demoníaca, quer dizer, demonizada. Era muito engraçado. Ele contava as histórias[...] A polícia era muito anti-semita. Tinha também uma parte de judeus de direita, que adulava muito, que era amiga dos caras. Mas teve uma época que eu me dava com judeus não-judeus. O Mario Shenberg, por exemplo, teve um tempo que a gente andava muito com artistas. Era muito gostoso, a gente tinha uma turma grande. O Jorge Mautner, o Aguilar. Foi uma das minhas experiências mais importantes porque foi tudo ali, eu era muito jovem, fui formado aí na verdade. Estudei muito lá. Já fazia Ciências 136


Sociais, mas foi aí que eu estudei mais, foi aí que essa coisa da pintura ficou mais forte. Tive contato com outros artistas que também estavam presos, a turma dos arquitetos, como o Sergio Ferro, porque eu tinha 21 anos. No começo eu tive muito medo, depois diminuí. Porque era horrível[...] Agora, na cadeia, lá no presídio Tiradentes a gente tinha uma vida mais normal, mais normal de cadeia, né? O período do Dops foi assustador. Minha mãe, meu irmão menor e a Bela iam me ver. Meu pai não ia, mas meu pai tinha essa coisa de ser uma pessoa mais doente. Não que fosse por algum motivo. Mas eu fiz essa gente sofrer, vendo hoje em retrospectiva assim, é uma coisa maluca, é um desmame muito violento. Porque você vê, é uma coisa completamente desconectada. Também tem um embate muito grande entre a gente. Uma força entre eu e meus pais. É uma mudança de vida, entende? Era uma coisa, eu não queria ser como eles. Eu queria ser mais universal, eu não queria ser do gueto. Não se colocava na época, essa historia de não querer ter dificuldade. Eu tenho uma vida materialmente muito mais confortável, eu tenho uma vida intelectual muito mais rica, era uma coisa muito de romper o limite do gueto. Meus pais eram pessoas muito boas, corretas, mas eram pessoas, na verdade, limitadas. E eu era mais ambicioso, queria mais. Queria uma outra vida. Aí foi um conflito violento. Agora é muito engraçado, porque, ao mesmo tempo, é muito sintomático, eu morava com eles, tinha a maior dificuldade de sair de casa, não era que eu não podia, não tinha nenhuma justificativa, eu trabalhava, eu ganhava. Não tinha nenhuma justificativa, a ligação continuava, quer dizer, eu não conseguia sair dali. Ninguém na minha casa saiu para ir morar sozinho. Todo mundo saiu através do casamento[...] [...] Mas foi bem isso mesmo, depois que casou, não que eu tenha deixado de militar, não, eu estava militando, mas tinha família, então tinha uma coisa mais normal ali. Eu trabalhava, sustentava filho e filha, a gente se encontrava nas festas, tinha jantar... Na verdade, o meu sogro, que era uma pessoa fantástica. Meu sogro e minha sogra eles tinham um poder agregador impressionante. O meu sogro era muito mais forte com herança judaica. O meu sogro era uma pessoa culta, muito interessado, estudioso. Tinha uma cabeça muito boa. Então, com ele tinha uma coisa mais interessante, um debate, era mais legal, era mais rico. Eles viveram em campo de concentração. Tem uma diferença grande aí. Vieram no fim da guerra, mas meu sogro conseguiu esconder umas moedas de ouro. Eles gravaram para o Projeto Shoah, ficou muito bonito. Ele e o irmão guardaram umas moedas de ouro. Eles sobreviveram porque trabalhavam. São dois irmãos que casaram com duas irmãs. E as duas estiveram muito mais ameaçadas de morte do que os dois irmãos. Os irmãos sempre trabalharam, eles tiveram muita sorte porque o chefe do campo de trabalho era um cara antinazista e deixou eles voltarem para o gueto para pegar 137


as moedas. Eu acho que ele foi um outro pai. Talvez um pai que conciliou essas coisas todas. Ele era um cara que não era reacionário, acabou tendo mais jogo, ele era muito inteligente, então ele cativou os genros, os netos. Ele era inteligente, era uma pessoa de bom senso, só isso. Explicava, contava, falava, chamava[...] E os meus filhos, embora não tenham tido grande formação judaica, foram para Israel, uma série de coisas, são judeus, e se dizem judeus. Não têm dúvidas sobre isso. É isso, a questão da tolerância. Meu sogro era uma pessoa tolerante. Porque o problema do meu pai é que era uma pessoa mais ignorante, ele ficava lutando o tempo todo no vazio, entende?

* * *

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EDITH DERDYK 104, embora não seja da mesma geração de Sergio, tem uma experiência bastante similar no que se refere à herança judaica. Escassez de oxigênio e um certo obscurantismo dão a tonalidade de suas memórias. Embora Edith identifique alguns espaços criativos que vazavam do arcabouço austero através do qual seu judaísmo foi transmitido, o que prevaleceu, segundo ela, foi uma forma enrijecida, pouco arejada. Dentre os relatos, Edith tem um lugar emblemático. Foi o primeiro depoimento realizado, é a mais jovem de todos os depoentes, foi a última dos entrevistados com quem conversei, já que é com uma obra sua, gentilmente cedida, que exponho e envolvo o “corpo” desta escrita. Além de todos estes fatores, um dado adicional, que teria pouca ou nenhuma importância caso estivesse trabalhando com fontes escritas, é o fato de ter estado com Edith 24 horas antes de Dora, minha segunda filha, “ostentar-se” para o mundo. Este contexto nada prosaico gerou uma atmosfera instantânea de confiança e proximidade. Acredito que a disponibilidade para novas conexões, quando meu corpo sinalizava uma plenitude tenha interferido no comprometimento de minha “intérprete” e, por decorrência, no seu grau de entrega. Ao escutar o relato de Edith, a primeira marca que parece ressoar das suas memórias é a dimensão do trabalho. Trabalho de articulação, de entendimento, de relação, de proposição, de reinvenção. Apesar da atmosfera áspera que pontua sua formação judaica, levada a cabo por seus pais, mais especificamente pela figura paterna, fica evidente ao longo da narrativa que Edith toma as rédeas de seu próprio destino e não se rende ao rolo compressor do passado.

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Edith Derdyk é artista plástica e fez o curso de Licenciatura em Artes Plásticas pela Faculdade Armando Álvares Penteado. Realizou inúmeros trabalhos gráficos como capas de livro (ressaltando a coleção “Novas Buscas em Educação” editado pela Summus Editorial e dirigido por Fanny Abramovich), capas de disco (ressaltando todas as capas realizadas em conjunto com o fotógrafo Gal Oppido para o grupo de música popular RUMO). Realizou várias exposições individuais, dentre elas: Declive na Chaim Hanin Fine Arts Gallery/NY (2003), Campo Dobrado no Museu de Arte de Santa Catarina/MASC (2003), Corte no Centro Cultural São Paulo (2002), O que fica do que escapa no Centro Universitário Maria Antônia de São Paulo (2001), Vazados no Museu Universitário de Uberlândia (2001), Onde na Galeria Sergio Porto no Rio de Janeiro (2000), Between na Galeria Haus/Nürnberg na Alemanha (2000). Dentre as exposições coletivas, destaca-se: São Paulo 450 anos – Arte em Diálogo na BM&F de São Paulo (2004), Tecendo o Visível no Instituto Tomie Ohtake de São Paulo (2003), A Poética da Morte na Cultura Brasileira no Museu de Arte de Santa Catarina (2001).Foi convidada para ser uma das 4 artistas representando o Brasil na mostra “Arte através dos oceanos”, Copenhague, Dinamarca (1996). Recebeu inúmeros prêmios e bolsas, entre eles: APCA na categoria tridimensional (2002), Bolsa Vitae de Artes (2002), The Rockfeller Foundation como artista residente em Bellagio Center, Itália (1999). Atualmente está coordenando a Coleção Siricutico com as canções do selo Palavra Cantada, editados pela Cosac & Naify.

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O que é muito interessante é que ao invés de desincumbir-se do passado, do seu peso morto, deixando-o sem relevo, com pouca luminosidade e cindido de seu presente, Edith busca de várias formas chacoalhá-lo e perturbá-lo – diálogo constante com os pais sobre judaísmo, levantamento da árvore genealógica, interesse pela cultura polonesa, viagem a Auschwitz, participação em um vídeo sobre o avô, viagem com a família para Israel, intercâmbio com artistas alemães e discussões sobre a questão da culpa, visita ao Museu do Holocausto. Buscando resgatar os muitos outros possíveis que derivam do mundo judaico e que não ganharam ou tiveram pouco direito à expressão, Edith não se esquiva do trabalho nietzschiano de arrancar da existência a vida supostamente aprisionada, fazendo, para isso, inclusive, um traçado retroativo. Edith, ao invés de esquecer, parece inquecer emprestando a terminologia formulada por Mezan, citada anteriormente. Edith não se relaciona com este passado de forma profilática. Ela também não é contemplativa, não fica aguardando que estas memórias a tomem de assalto, sem intervenção, sem aviso prévio. De uma maneira bem judaica, embora a sua busca em relação ao judaísmo pareça ser profana e não sagrada, ela toma para si a responsabilidade de construir um sentido para esta herança, retomando alguns conteúdos abandonados, a fim de extrair deles o que ficou em aberto, inacabado, informe. Ao escutar a narrativa de Edith, as várias apostas em promover outros regimes de visibilidade para o seu judaísmo – amargo e esvaziado de vibração – não parecem aspirar a uma solução definitiva para o enigma. A militância de Edith na arte, na vida cotidiana, na história, na educação da filha, na relação com os pais parece voltar-se para o direito à multiplicidade, ou seja, à heterogeneidade das formas. Ao invés de manter o judaísmo como uma figura petrificada, ela não se esquiva do esforço de descalcificar suas margens, misturando como uma boa bricoleur, as sucatas de sua experiência com aquelas que aspiravam ocupar toda a “tela” de sua memória. Além de perscrutar expressões mais “sanguíneas” experimentadas na infância e na adolescência, pelas quais ela vislumbrava frestas e escutava (mais uma vez, a referência à escuta como um sentido que permanece em vigília) intensidades – o canto do tio, a reza do avô, os ensinamentos do bisavô cabalista – e não apenas o som monocórdio da palavra de ordem, Edith busca o estabelecimento de articulação com o fosso, com o silêncio, com o não-narrado, justamente para não ser mais assombrada por ele e poder assim afirmar mais generosamente seu compromisso com o presente.

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Para Deleuze a própria literatura é vista como um exercício capaz de conectar fios diversos. De forma inquieta e ao mesmo tempo paciente, Edith, na narrativa, e também, curiosamente, na sua criação artística, busca desenredar amorosamente os muitos fios adensados que constituem uma trama, propondo novos desenhos, possíveis contornos e outras adjacências. Por isso talvez que Edith tenha uma respiração e discursos acelerados, de quem é permeável a muitas coisas, de quem acolhe a porosidade, de quem usa pragmaticamente a fala como experiência e não apenas como representação de um vivido que exauriu suas possibilidades de vida. Na direção contrária à gorda saúde dominante a que se refere Deleuze que devora e expele tudo, e que preserva a própria forma ao longo de toda a sua operação onívora, Edith busca a leveza das formas. Com relação ao seu devir105 judaico do qual ela não se abstem esta operação parece também procedente. Curiosamente, a obesidade para os rabinos tem pouco a ver com o conceito de magro e gordo, e sim com o de leve e pesado. Obeso é aquele que é pesado em diversos níveis. Para tratá-lo, os rabinos se detêm na explicação de que dieta não é regime. Dieta não é para ficar mais magro, mas sim para se ficar mais leve.106 Edith salva a seu modo o passado e tem consciência que é no narrar que esta história se urde, reunindo as camadas de cinzas que poderiam se esvair e dando a elas o direito de expressão. E ao fazer com que a história da experiência judaica não seja apenas composta de suas expressões mais robustas, ou seja, de quem continua aderindo viscosamente aos preceitos judaicos, sem traí-lo, sem arrastá-lo para outros territórios, Edith desfia a tal linha dura de um sentido fechado e acabado, insinuando, de uma forma profundamente talmúdica, de que se há alguma certeza ela se encontra na verdade nômade. Ao transmitir esta tradição sem suturar suas fraturas, mantendo seus canteiros sem sentido, Edith inscreve sua experiência no tempo e na história. Passa a existir com toda sua falta de acabamento e dignidade. E, ao narrar do que ela se difere e ao que ela aspira afirmar e agregar ao seu modo particular de construir sua judeidade, Edith cumpre o imperativo de lembrar e não esquecer, tão essencial para o povo judeu. E benjaminianamente o faz sem

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Devir para Deleuze-Guattari corresponde a uma concepção de tempo diferente da história. O devir instaura um espaço-tempo inédito, mas ao mesmo tempo com uma ressonância imemorial. É uma temporalidade não deduzível a partir de seu passado e por outro lado atualiza todo o ancestral ilocalizado neste instantâneo sem história e sem lugar. Embora o devir recaia na história, criando um passado que pode depois ser lembrado, nunca provêm da história, pois cria as suas próprias coordenadas. No entanto, sem a história seria impossível esta dimensão supra-histórica pois ela permaneceria indeterminada. 106 BONDER, N. A dieta do rabino – A cabala da comida, Rio de Janeiro, Imago Editora, 1989.

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privilegiar os grandes acontecimentos em relação aos pequenos, já que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história107 .

[...] Bom, por causa do sincretismo, essa mestiçagem toda que o Brasil tem, sempre surgem histórias engraçadas sobre as origens da família. Quando me perguntam: e a sua família como é? Para mim, sempre a resposta é muito simples: Polônia. É uma coisa que sempre fica destoada dessa coisa híbrida, ah, meu pai é português, índio, holandês. Eu e a minha mãe fizemos um levantamento genealógico de ambos os lados e, tanto do lado do meu pai como da minha mãe, levantamos avô, bisavô, tataravô. Até o máximo que a gente pode ir é tudo polonês. Então, é uma coisa muita estranha, porque me sinto um pouco polonesa, embora sendo absolutamente brasileira. Sempre fica no imaginário, pelo que meus pais contam, meus avós também, de uma rejeição muito grande à terra natal. E é uma coisa conflitante para mim, pois eu não tenho essa rejeição. Eles têm tanta, que o ídiche, que é o dialeto que eles usam, eles sempre utilizaram para falar entre eles, quer dizer, uma língua que nem eu nem meus irmãos entendemos. Então, eles mesmos criaram uma muralha, uma cisão, uma separação. Então, para mim sempre fica um conflito, o que faz com que eu tenha muita vontade de visitar a Polônia. É uma coisa que faz parte do meu imaginário. Porque sempre teve esse fato deles terem muita rejeição. Isto foi entre a Primeira e a Segunda Guerra, porque já havia essa perseguição. Eles sempre disseram que os poloneses eram um povo rude, bruto, e que a Alemanha utilizou os poloneses como peões de frente. Tanto é que tinha tanta violência que eles já saíram antes e os que lá ficaram morreram. A gente não tem nada que ligue a gente, de fato, à Polônia. Meu pai veio criança, então, se você olha na lista telefônica, tem pouquíssimos Derdyk, fica uma coisa ilhada. Meu pai morava em um lugar que hoje pertence à Rússia, perto de Kiev, e minha avó materna morava perto de Varsóvia, mas sempre foram famílias rurais. Então isso é uma coisa engraçada, que existem duas Polônias, e que eu tinha vontade de ir lá para ver. Aí vem a questão do meu trabalho. A Polônia tem uma tradição gráfica muito grande, e o meu trabalho é muito gráfico. Então já cheguei a aventar a possibilidade, não sei se geneticamente, da memória, do inconsciente, da simbologia, que pertence a um patrimônio coletivo, de definir o meu trabalho tendo um pé ali também. Então eu gostaria de ir lá constatar. Tem também toda a tradição tecelã. A Polônia tem uma coisa muito forte da trama, da textura, do tecido. Tem uma artista chamada Madalena Barkalovich que 107

BENJAMIN, W. Obras escolhidas – Magia e técnica, arte e política, São Paulo: Brasiliense, 1985, p.223.

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eu já tentei alguns contatos, mas nunca consegui. Ela mora em Varsóvia e é uma artista que eu superadmiro, que faz um trabalho de tecelagem e que tem muita afinidade com o meu trabalho. Então, fico aventando se não tem por aí algum antecedente, mas é uma hipótese em vã ainda, porque eu nunca constatei. [...] A gente viveu no Bom Retiro até eu completar 18 anos. Mas meu pai trabalhava no Bom Retiro e, portanto, tinha um vínculo com aquilo lá. Faz três anos que ele parou de ir lá. Até agora eu não sei como isso repercute dentro dele. [...] Os dois sempre tiveram essa coisa bem próxima ao mundo judaico. Meus avós iam à sinagoga, meus pais também. Eu morei até os 18 anos no Bom Retiro, a gente ia numa sinagoga lá. Eu estudei em escola judaica só até o primário. Eu tive um currículo escolar muito estranho. Acho que meus pais adotaram um tipo de postura do tipo liberalismo americano na educação, e depois se arrependeram porque foi demais. Então, eles já foram um instrumento de passagem, por quê? Eu estudei em escola judaica até o primário, no Sholem Aleichem. No ginásio minha mãe me tirou de lá, infelizmente, porque foi o melhor momento, era uma escola superexperimental. Em 64 eu fui para o ginásio, com a revolução, com a revolução não, com o processo todo de instauração da ditadura. Eu estava lá ainda, então ficava uma coisa bem separada. Daí meus pais me colocaram num colégio estadual horroroso, totalmente reacionário, babaca, o Macedo Soares. Sair de uma possibilidade de abertura que era o Sholem, porque era ali o lugar da inteligência, dos intelectuais de esquerda[...] Eles me tiraram justamente por causa disso. Então, durante a semana eu ia para o Macedo Soares, e aí no fim de semana eu freqüentava a Cipe. Isso me dava um puta conflito, porque durante a semana eu era a mais rica da turma e, no fim de semana, a mais pobre. Uma coisa muito louca de confronto de poder material, eu não entendia direito. E nunca gostei muito da Cipe porque tinha aquela pregação. Eu me vinculava só através das atividades expressivas, por exemplo, se precisava de um cartaz de um evento, dos espetáculos de dança, etc. Então meu vínculo com a Cipe era através das atividades expressivas, embora eu detestasse os conteúdos pregados. Tanto é que aos 16 anos parei de freqüentar e tchau. [...] Todos tiveram mais ou menos a mesma trajetória. Só que minha irmã mora hoje em Israel, e meu irmão é mais ligado às coisas judaicas, ele é mais circunscrito ainda. Atualmente ele se agarrou mais na religião em função de um evento trágico que foi a perda de um filho. Ele agora freqüenta Beit Chabat e pegou isso como uma tábua de salvação, como uma postura existencial, mais sectário e tal, apesar dele não ser sectário. Minha 143


irmã vive em Israel há dezesseis anos, mas acho que ela foi lá por uma questão de destino. Ela não tinha essa militância. Ela conheceu um cara em Salvador, que era um judeu nascido lá, um sabra que sabia falar português perfeitamente, que adora música brasileira, que tem samba no pé, e eles começaram a namorar. Começaram a se encontrar pelo mundo, aqui e ali, e ela foi visitar ele e voltou casada. Ela tem dois filhos, mas já se separou dele. As leis não permitem que ela volte com os filhos, porque o pai também não quer. Ela ficou meio presa lá. [...] Olha, para mim, o conteúdo judaico veio muito através de um tio meu, que era polonês, que veio morar aqui no Brasil. Ele já morreu. Quando eu era pequenininha, e morava no Bom Retiro, e tinha as festas judaicas, ele cantava. Porque a tradição judaica é muito ligada à música, seja no profano, seja no sagrado, a música é uma coisa muito forte! Então a coisa que eu mais me lembro com conteúdo vivo – eu falo isso sempre para minha mãe – é meu tio cantando nas festas de Pessach, Roch Hashaná, Iom Kipur. Eu me lembro que eu adorava isso. E as rezas do meu avô, que tinha uma coisa genuína. Então, quando eles morreram, meu pai se viu na tarefa de continuar as coisas, acho que deu uma endurecida[...] E não sei como vai ser essa passagem quando eles se forem. [...] Eu sempre falo que o meu vínculo talvez seja pela comida, porque eu gosto de cozinhar, embora eu não saiba até hoje fazer o guefilte fish 108. Quer dizer, até nas mínimas coisas, é engraçado como vai diluindo, e como eles, os pais, também são responsáveis por isso. Acho que é por que ficou só na forma. Eu sempre falei para minha mãe. É uma crítica que eu sempre fiz. Para eles se adaptarem ao Brasil, eles tiveram que dar o corte, e agora eles querem retomar para uma forma vazia de conteúdo. Eu converso muito com a minha mãe. Eu tenho uma prática espiritual ligada ao Taoísmo, então eu sinto que a minha vazão espiritual se dá muito nessa prática, que é viva e tal. E na prática judaica eu não sinto essa coisa viva, a não ser pela música, pela comida e pela Cabala, que eu gosto muito de estudar. Eu conheço um pouco. Tive uma outra lembrança que era meu tio-avô, irmão da minha avó, e que era cabalista. Ele morreu aos 104 anos. Eu tinha 14 anos quando ele morreu. E eu sempre falo que se eu soubesse naquela época a preciosidade deste pensamento[...] Eu me lembro dele rezando, eu ficava sempre olhando na sinagoga. Era uma atitude diferenciada a maneira que ele tinha de ver as coisas, era vivido. Então essa minha ligação é com essa coisa simbólica, alegórica das religiões de uma forma geral. Não se restringe só ao judaísmo. 108

Palavra em ídiche que significa “prato de peixe picado ou moído, muito comum na cozinha judaica da Europa Oriental”.

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[...] Deus, eu na condição de artista e ainda casar com um católico! Agora eles se dão superbem com o Paulo, mas foi superdifícil. Meu pai ficou um ano e meio sem falar comigo, teve tudo o que você possa imaginar. Com 20 anos saí de casa brigada, todo aquele histórico de ruptura mesmo. [...] Quando minha filha tinha 11 anos, meus pais queriam muito que ela fizesse o BatMitzvah. E aí eu tive um papo com minha mãe e falei que não poderia oferecer para minha filha uma coisa que nem eu acredito, e mesmo porque, quando eu tinha 11 anos, eles não haviam incutido esse sentimento em mim. Mas, tudo bem, se eles realmente quisessem eu abriria espaço para que eles tivessem uma relação direta com ela, e que puxassem ela, daria todo espaço. Aí, então, minha mãe começou a levar a Lua para a Cipe. Chegou a pagar inclusive para fazer aquele curso de preparação, mas a Lua detestou, e não teve influência minha, porque eu acho legal ter uma relação com a origem, com a tradição, já que eu não nego. Eu deixei em aberto esse caminho. Mas ela detestou por causa da linguagem. Então o que eu acho é que a linguagem tem que ser revista. [...] Eu já fiz quatro exposições na Alemanha, e a Alemanha é uma coisa que cruza a minha vida. E não é uma coisa que eu procuro. Fui uma vez convidada por uma artista alma que morou sete anos no Brasil e quis fazer um intercâmbio Brasil–Alemanha. Apresentaram meu trabalho para ela, adorou e então começou a me chamar para eventos, e cada vez os eventos se multiplicavam. Criou-se a partir disto uma raiz. Acabei de voltar da Alemanha, de Nuremberg, e eu acho estranho, porque tem uma puta receptividade por parte dos alemães em relação ao meu trabalho. Vários constrangimentos, vários impasses já foram criados pelo fato de saberem que sou judia. Por exemplo, teve uma vez que eu estava num jantar e tinha um italiano e um alemão em torno de uns 70 anos. A gente estava conversando e eu pensei que se isso fosse há cinqüenta anos atrás isso jamais estaria acontecendo. Já fiz um workshop de artistas alemães e brasileiros, pelo Goethe, no Rio de Janeiro, e daí eu pude ficar um mês convivendo com dez artistas alemães ocidentais e orientais. Conversei muito com eles, como é essa coisa da culpa, da relação deles com os judeus, e eu sempre acho que, para a superação, você tem que botar o dedo na ferida. Eu não consigo ter raiva. Meus pais, a primeira vez que eu fui para a Alemanha, entraram em pânico. Eu não consigo ter esse sentimento de raiva. Eu pego essa experiência do holocausto como uma experiência que é denominador comum da natureza humana. Quando eu fui para a Ioguslávia, eu tive um sentimento de falar: Puxa, isto ainda acontece? E da penúltima vez, eu resolvi visitar um campo de concentração. Fui, e com essa artista alemã. Ela ficou muito chocada de eu querer ir, ela mesmo nunca tinha ido. 145


Foi em Dahau, perto de Munich, e aí foi muito impressionante. Eu fiquei impressionada, porque dentro do campo eles fizeram um museu, retratando e mostrando toda estratégia demoníaca que foi montada na época para isso, quer dizer, dando a cara para bater. Quando você vai lá em Israel e vê o museu do holocausto, é a mesma coisa. Pude ter um monte de informações que eu não sabia, por exemplo, de que haviam cartazes expostos na Alemanha explicitando o anti-semitismo, maquetes dos planos arquitetônicos mostrando toda a intenção deliberada, ou seja, a metodologia do extermínio. E isso... eu fiquei muito impressionada. E a sensação que me deu A gente andava juntas as duas e chorando muito. A gente andava de mãos dadas, e eu ficava quieta e ouvia passos[...] [...] Minha irmã, alguns anos atrás, ela fez uma coisa muito legal, até me deu vontade de rever, ela fez um vídeo sobre meu avô, antes de meu avô morrer, ele contando a sua vida. O meu avô era uma pessoa incrível, o pai da minha mãe. A sensibilidade que eu percebo que minha mãe herdou, e que através dela a gente herdou também. A culpa vem pelo lado do meu pai, que tinha uma mãe superautoritária, que incutiu a culpa, a obrigação. Agora meu avô era um cara diferente. Ele saiu da Polônia, queria ir para os Estados Unidos. Parou lá na ilha, teve que vir para o Brasil por causa do passaporte, e acabou ficando aqui. Fez de tudo um pouco. Ele foi faxineiro, pedreiro, foi o primeiro da família, veio sem nada. [...] Às vezes, eu fico pensando aquela coisa do corpo[...] Eu tenho um corpo polonês, meu sangue polonês, uma cara. Eu sou filha de duas pessoas que têm essa origem. Tenho um sistema nervoso, uma neurologia, um sistema de funcionamento, uma química que tem uma matriz que não é daqui. Quando eu vou à Europa, eu me sinto muito européia. Toda minha química é de uma matriz que não é daqui. Agora a minha psique, a subjetividade foram moduladas diferentemente. Então, que corpo é que está aqui? Isso eu penso muito, é muito louco. [...] Eu tive muito contato corporal com a minha família. Eu acho que é típico do judeu não-ortodoxo. Minha filha já é um pouco diferente. Eu tenho vontade de pegar, agarrar, e eu percebo nela uma mescla. Ela tem uma coisa da família do Paulo, onde os limites são mais demarcados. Então tem essa coisa promíscua do judeu. De um se intrometer na vida do outro, dessa aproximação corporal. Mas, por outro lado, tem essa promiscuidade psicológica, dos conteúdos, que é uma meleca. É uma meleca geral do que sou eu e quem é o outro. Não tem contorno nenhum. Mas, por outro lado, essa coisa abre para o mundo também porque você fica toda mesclada, também é um jeito de você se projetar para o 146


mundo de uma forma diferente. Que também é legal. Então, tem conteúdos meus de garra, de determinação, que é muito da cultura judaica, de imigrantes. Essa coisa do corpo é muito sensorial. E também pela comida. A cultura judaica é muito também a da boca. Seja a palavra, seja a comida, é uma cultura oral. Uma cultura muito ligada à palavra escrita, à literalidade e à comida. Quer dizer, o que entra e o que sai. Então eu cultivei muito essa coisa dos temperos, da literatura, que sou muito ligada à escrita. * * *

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Há duas atitudes possíveis frente à tradição: encará-la como um depósito sedimentado, petrificado, repetitivo, ou como uma memória ativa, interrogativa, crítica. A segunda apóia-se na incompletude e na disseminação permanente de sentidos.109

Desde a primeira entrevista com FANNY ABRAMOVICH110 (tivemos dois longos encontros e mantivemos um contato eletrônico e telefônico regular em função do seu envolvimento e presteza em responder às minhas múltiplas solicitações – revisão da transcrição, seleção de fotografias representativas, sugestões de possíveis entrevistados, informações adicionais sobre o tema) tive a intuição que a memória caudalosa de um judaísmo universalista encontrava em Fanny uma expressão privilegiada. O seu judaísmo nada pudico teve uma geografia definida, foi encarnado em uma miríade de personagens reais, foi vivido oralmente através do uso do ídiche e da tradição gastronômica, deixou relíquias materiais, teve ensinamentos morais, foi povoado de estórias bizarras e prosaicas, enfim, esteve apoiado em um lastro sólido só equiparável ao “colo materno”. Diante da exuberância de imagens que Fanny elenca e conhecendo sua opção profissional é difícil não fazer alusão à formulação deleuziana do escritor como aquele que viu demais, que ouviu demais, que foi atravessado demais pelo que viu e ouviu. Embora estas memórias possam soar aos ouvidos com um tom nostálgico, como se aspirassem reencontrar o estado de idílio originário, a zona de tranqüilidade perdida, o território das certezas e das margens bem delimitadas; a reverência alegre que Fanny expressa em relação a seu patrimônio judaico (mais fortemente identificado com a linhagem materna) não me parece explicável unicamente pela vivacidade e cromatismo das

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WALDMAN, B., op.cit.,p.87. É bacharel e licenciada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Deu aulas em diversas Faculdades (Belas Artes, Anhembi, FAAP) centrada em didática, literatura infantil e atividades expressivas. Proferiu vários cursos de pós-graduação em torno de educação criadora e literatura infanto-juvenil em várias universidades do país. Como orientadora pedagógica trabalhou no Ginásio Israelita Brasileiro Sholem-Aleichem, Escola Experimental Vera Cruz, Teatro Infantil do Teatro de Arena, entre outros. Como assessora colaborou em projetos voltados para atividades criativas, lúdicas e espontâneas de crianças e jovens propostos por entidades e instituições como: SESC, FUNARTE, SECRETARIA DE EDUCAÇÃO e CULTURA de vários municípios e estados do Brasil. Como crítica de produção cultural infantil atuou sistematicamente no Jornal da Tarde, Folha de São Paulo, Leia Livros. Publicou 44 livros para diferentes editoras, entre eles: Quem educa quem, Summus; Quem manda em mim sou eu, Atual; Pacto de sangue, Ática; Bateu bobeira e outros babados, Editora Moderna.

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suas formas e lugares. A alta temperatura que este passado ainda evoca no presente talvez esteja, paradoxalmente, naquilo que ele suscita em termos de sua superação. A permeabilidade ao mundo, a relação positiva e voraz com a exterioridade é talvez o dínamo que mantêm a marca judaica viva e fulgurante. Representativo de uma experiência coletiva de “judeus de esquerda”, que conciliava um forte compromisso com a renovação e perpetuação dos valores judaicos, com um desejo pleno de inscrição na sociedade brasileira, o relato de Fanny é a memória de uma experiência que parece hoje extemporânea. Ela persiste unicamente na lembrança ardente de quem a protagonizou ou foi testemunha ocular de sua existência. Daí o seu valor insofismável. Se, por um lado, o judaísmo era vivido com menos assepsia, por outro, o propalado “sincretismo cultural brasileiro” parece ter sido experimentado também com menos profilaxia. A palavra-experiência que se desprende do relato de Fanny, a permeabilidade, sugere que houve uma ação propugnada por um grupo de judeus em um determinado momento da história brasileira, que se dispôs a levar a fundo à insígnia do sincretismo cultural. Procurando agregar à síntese brasileira todo um repertório simbólico, mitológico e filosófico judaico; este sujeito-coletivo do qual Fanny foi uma importante expoente integrou o amplo guarda-chuva judaico com suas multifacetadas expressões. Com Fanny, acredito completar a urdidura de uma pequena, mas complexa trama de memórias e marcas sensíveis judaicas. Independentemente da maior ou menor intensidade de cada uma destas expressões, elas devem integrar em igual importância a história judaica e brasileira, corroborando o conflito e o dissenso como o tecido próprio à história.

[...] Absolutamente todas as noites, antes de dormir, minha mãe me deitava e me preparava para um sono cálido e para um sonho bonito. Todas as noites eu ouvia histórias. Eu me lembro muito que ela contava João e Maria, porque eu gostava de batata fritas e a casa da bruxa era cheia de ovos estrelados e batatas fritas. Então, eu fui embalada por histórias. Claro que tinham histórias que me fascinavam que era a história da Mindinha do Andersen que era uma menina pequenininha que morava numa casca de nozes. Tudo isso muito misturado, você naturalmente não se lembra da mamãe, mas a mamãe era comunista,

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primeira mulher eleita, vereadora do Partido Comunista, então, ela me contava, numa visão muito pouco marxista, que quando chegasse o comunismo, todo mundo ia morar num palácio. Então tinha esse lado. De dia a minha avó, a minha avó Anita brincava comigo, acho que chama “cama de gato”, e me contava histórias, mas não histórias ídiche, mas histórias da estepe gelada, de onde ela morava, do shtetl e de como ela chegou. Ela veio para o Brasil com treze anos e é óbvio que ela não sabia nem o que era o Brasil, ela não falava português... [...] Era uma família que veio vindo aos poucos e foram parar em Pernambuco. Mas imagina o que significava Pernambuco para alguém que vinha de uma aldeia que chamava Sucrom. Ela não falava russo, ela falava ídiche, e ela teve uma cadernetinha a vida inteira, com as coisas escritas em ídiche, com as contas em ídiche e não sei mais que. Então, a vovó me contava histórias da vida dela, não histórias de ficção, talvez um pouco ficcionadas. Depois com três anos eu fui para a creche da OFIDAS, eu estou falando um pouco da vida e literatura porque é tudo junto. Então, na creche, eu me relacionava com outro repertório, outra maluquice, outra não sei que. Quando eu passei para o primeiro ano primário, eu fui sem mais dúvidas ou delongas para o Mackenzie porque era a escola mais chique da época, ou uma das mais chiques. E do Mackenzie eu lembro da dona Nicota que me alfabetizou, com a mesma cartilha que ela alfabetizou meu pai. Então por aí, você imagina como ela era renovadora e “procurante”. Então, do Mackenzie eu tenho lembranças muito difusas, esparsas, mas eu lembro com olho de volúpia da biblioteca do Mackenzie. Parecia um clarão, e claro, eu nunca mais voltei, porque eu não sou louca de perder aquela imagem. Mas parecia a biblioteca de Alexandria!!! Nada podia ser maior no mundo. Tinha tudo. Então eu lembro de lá, pegando o Tesouro da Juventude, o livro dos contos, que era o que mais me interessava, e eu ia lendo, e relendo, “trilendo”. Tinha uma história de duas princesas que desciam por um túnel e trocavam a sapatilha por um salto alto, eu suspirava. Eu já vou entrar num pedaço muito importante, mas só para acabar o primário, no terceiro ano, eu fui para o Batista Brasileiro porque minha irmã foi para a primeira série. O Batista Brasileiro era semi-internato, e lá eu misturei a aldeia russa, com comunismo e com ser uma ovelhinha de Jesus. Eu me lembro da fascinação absoluta pelo flanelógrafo. Não teve espetáculo na Broadway que chegasse aos pés da mágica, daquela figurinha que era presa num feltro e tudo acontecia...(risos). Então lá, naturalmente eram

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as histórias da Bíblia. Tinha uma biblioteca, e claro, as histórias da Bíblia são belíssimas, são histórias, e são narrativas orais, e eu achava lindíssimas. E um pouquinho antes, eu lembro que o que eu mais queria ganhar, mais, mais, do que tudo, era a coleção do Monteiro Lobato. E como eu tinha esse tamanho, evidente que eu tinha que compensar sendo a primeira da classe. E minha mãe irritadíssima com esse pedaço combinou que se eu passasse em segundo lugar eu ganhava aquela jóia, se eu passasse em terceiro também eu ganhava, se eu passasse em quinto eu ganhava a coleção. Eu passei em quinto e ganhei a coleção. E é a coleção que eu tenho até hoje. E é o cheiro da infância que vem, é o pó da infância, é o fogão vermelho da minha avó, volta absolutamente tudo. Então, você vê que a minha vida e literatura, é junto, eu cresci lendo. Eu sempre fui uma leitora voraz, e continuo sendo. Eu me lembro de nove, dez anos, nos sábados de manhã, eu ia com mamãe na Barão de Itapetininga, e ela passava na Brasiliense, na Parthenon, você não conheceu, e era aquela folheação de livros, era a escolha, era a cobiça, era a descoberta. A literatura infantil no Brasil era muito pequena. Tinha o Lobato, tinha umas histórias da carochinha, não eram produções decentes, umas coisas da Editora Vecchi que era horrível, os melhores contos da India, do Japão, com ilustrações horríveis, pretas, eu tinha medo daquilo. Então eu fui aprender inglês para ter o que ler. Então você vê, que todos os meus crescimentos também advém dessa volúpia de leitura. [...] Me lembro, aí, já com uns vinte anos, eu era orientadora do Sholem, da Pré-escola, eu fazia teatro, eu fazia faculdade, eu fazia política, eu fazia o diabo, e eu chegava na minha casa muito tarde, meia noite, rouca de tanto falar e não saber empostar a voz. Sempre tinha dor de garganta e minha avó me fervia o gogl moglen, a gemada com canela, aquele leite quente antes de dormir...Bom, quando a vovó morreu, eu nunca mais tive dor de garganta, porque nem eu saberia fazer como a vovó e mesmo se eu soubesse não sairia como o dela. Como minha mãe foi vanguarda de vida, isso muita gente deve ter te dito, a vovó era o chão, era o colo. Teu avô devia se lembrar muito bem dela, ela tinha uma deficiência física enorme, ela era pequenina, andava de muletas, e eu tinha certeza que nenhum ladrão podia entrar porque minha avó estava me protegendo(risos). Bom, ginásio, cursinho, eu lia os livros que tinha que ler, quer dizer, para o vestibular eu já tinha lido todos. Eu lembro que quando eu fui fazer vestibular, na época ainda tinha oral, a diversão dos que examinavam era adivinhar de que cursinho as pessoas vinham, porque vinham

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com o a opinião padrão. Bem, quando chegou a minha vez eles tiveram um ataque, disseram: “Essa menina tem opinião, de onde ela saiu?” Sei lá, eu lia francês, porque eu tinha que ler histórias francesas...Agora a minha biblioteca sempre foi móvel, eu nunca achei que livro é bem de consumo, então eu sempre me passo a limpo, me desfazendo de livros que eu acho que não querem me dizer mais nada e vou dando, dando... Tem um tipo de autor que eu já saquei que é o que eu mais compro, porque é o autor tipo menor, tipo Steimbeck, Hemingway, por exemplo, porque eu acho que eu nunca mais vou ler isso...Daí, três anos depois, dá uma saudade, compra mais esses menores, de qualquer maneira, e sempre muito mutável, não é uma coisa que eu tenha uma relação umbilical com o objeto. Eu tenho com o Lobato, assim, de ter uma edição, o resto, eu acho que não. [...] Sobretudo, eu fui uma menina que cresceu no Bom Retiro e você sabe o que é isso. Minha mãe nasceu em Pernambuco. Vieram para São Paulo, como, eu nunca entendi. De que meio de comunicação, de que veiculo. Não sei como vieram. A mamãe era uma autodidata. Ela fez uma escola profissional, ela de verdade era florista, fazia flores, camélias de pano, não sei que...E me parece que eles faziam mais um semestre, um ano, qualquer coisa assim e virava professora de trabalhos manuais. E ela foi para o Sholem como tarefa do Partido. Eu nunca fui para o Sholem como aluna, foi criado depois de mim, mas a minha irmã foi. Agora, eu diplomada em Pedagogia, pela USP, tenho que reconhecer com a maior nitidez que quem era educadora era minha mãe, não era eu. Ela tinha uma audácia realmente fantástica. Então para mim as referências do Bom Retiro, a esquina da Ribeiro de Lima onde se trocava dólar, ouro e não sei mais o que, o rabino Munkache, que era meu vizinho e colava na prova de Ética da Faculdade de Filosofia. O Bar Jacó onde todo mundo tinha uma caderneta que marcava em ídiche, quanto era para pagar tudo no final do mês. A Dona Anita que trazia a galinha já benzida, a vovó que fazia no Pessach, no Iom Kipur e no Rosh Hashaná a festa da galinha, porque pobre também tinha o direito de comer galinha, então era uma galinhada que não tinha tamanho. Tudo convivendo com meu tio que era espírita e minha mãe que era comunista, com a Lurdes, que era a empregada, que a gente tem uma relação de filha até hoje, que liderava a bancada sindical. Então quando as pessoas dizem: “Ah Fanny, você é uma pessoa sem preconceitos!” É claro!!!!!! Eu cresci achando que tudo era normal.

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[...] Mas quando a mamãe morreu eu tinha apenas vinte anos, estava na faculdade ainda, ela morreu com quarenta e dois anos. Na época, eu falava: “Ah, mas ela viveu bastante”. Nesse sentido meu pai não foi tão importante. Ele lia, mas não era muito voraz, nunca me levou a uma livraria, numa biblioteca, nem lembro dele me contar história, comentar, ele era a pessoa do todo dia. Ele que me levava no ônibus, ele que encapava os cadernos, ele que me levava no clube, ele era muito mais a figura estável do que a figura impulsionadora para outro tipo de coisa. Eu gosto muito dele, ele é vivo ainda, tem 89 anos. Mas ele não foi marcante nessa formação, estética, ética, vital. Nem poderia dizer que foi, porque não foi. Mamãe que morreu tão cedo, ainda é muito mais presente nisso. Tem hora que eu sei que ela pisca de contente.(risos). [...] Aí, quando minha mãe morreu, começou a ficar muito grande a pressão para eu me tornar a nova diretora do Sholem. Era o que me faltava, eu disse: “Imagina, eu tenho vinte e poucos anos, eu não vou me comprometer com isso, não tem cabimento”. Daí eu fui para Paris, fiquei lá dois anos, procurando alguma coisa, que eu já tinha ido fazer no Rio, mas que eu só intuía, mas não sabia muito bem, que já era uma junção de arte e educação. E que em Paris ninguém sabia também e me diziam: “Ah, então você quer uma professora particular de piano”. [...] Daí eu voltei, não queria ficar mais como coordenadora do Pré, fiquei lá no Sholem dando aula de teatro e artes plásticas para crianças do primário. Logo eu abri uma escolinha de artes que era um absurdo no sentido do espaço, numa galeria comercial, no sexto andar, num prédio em que a porta do elevador, se você não saísse rápido te decapitava. Mas lá aconteceu tudo. Aí eu saí do Sholem, ou seja, eu sou free-lancer desde 68. Eu ainda dei aula no Renascença de educação visual, porque a Rifka Berezin me queria para fazer qualquer gracinha lá. Dei um ano na Belas Artes, dei aula para o terceiro ano e como os alunos me adoravam me passaram junto com eles para o quarto, quando eles se formaram me mandaram embora. Aí a escolinha foi realmente um marco, um divisor de águas. Uma vez estava sendo júri de dramaturgia infantil e comecei a ficar irritadíssima com a quantidade de bobagens escritas. Resolvi montar uns parágrafos com os comentários debochados meus. E dei para um amigo meu, o Wladimir Soares que era do Jornal da Tarde. E fui embora dar um curso. Nessa época eu dava curso no Brasil inteiro. Quando eu voltei, tinha saído matéria de página inteira. Daí o Mauricio Kubrusly, que era 153


o editor, me pediu para escrever. E eu assustadíssima, disse: “Sobre o que?” E ele respondeu: “Sobre o assunto que você quiser”. Daí eu fiz uma lista de pautas, que muito tempo depois eu vim a descobrir que estava ligada à produção cultural para crianças, mas ninguém falava nisso. Então, eu levei e ele disse: “Eu quero todas”. Então eu disse: “Escolhe a primeira”. A primeira que ele escolheu foi literatura infantil. Aí eu comecei a escrever, assustadíssima com a facilidade que as palavras saiam...Depois me pediram para escrever uma coluna. Eu escrevi a coluna Criança, dei voz para a criança, não sei mais o que, não sei mais quanto, discussão com criança e nisso, eu comecei a organizar uma coleção, para a Editora Summus de novas buscas em educação. Porque quando o editor me chamou eu disse que dependia do que ele chamava de Educação. Se fosse para falar sobre o Piaget tinha quinhentas pessoas mais qualificadas do que eu para escrever sobre isso. Mas se fosse para trazer um livro de um arquiteto, um cineasta falando sobre educação, daí eu me sentia autorizada. E fiz. Daí apareceu o Yanusz Korchack, pela primeira vez no Brasil, novelas como Quando eu voltar a ser criança, umas antologias... Eu mesma publiquei O estranho mundo que se mostra às crianças, que era uma coletânea dos artigos publicados no Jornal da Tarde, na Revista Psicologia Hoje. Mas tudo isso também ia sob o rótulo de eu estar escrevendo Pedagogia. [...] Eu saí depois que eu fui morar na Augusta, depois de Paris, 68, por aí. Minha mãe já tinha morrido. A vovó continuava lá, papai continuava lá, então eu comia lá, a escolinha era lá, né? Só o meu apartamento que não era lá. Depois de Paris eu não ia morar na Prates. Mas eu acho que eu nunca saí do Bom Retiro. Está vivíssimo. Pulsa. Depois, mesmo que eu vá lá, é outra coisa, não é a lembrança, não é o tamanho da minha lembrança, não é à força da minha lembrança. [...] Eu pulei um pedaço importante, eu era do clubinho I.L.Peretz e fui da Colônia de Férias Kinderland , isso mais ou menos na época do Batista, e tudo isso. Eu era tesoureira do clubinho. Eu tinha uma caixa de sabonete, eu levava o dinheiro. Então, eu sempre tive uma vida social, desde pequena, muito intensa. Minha casa era ponto, era clube. Todo mundo se encontrava lá. Por volta dos doze anos, aos sábados, vinha todo mundo em casa e comia cachorro quente, kosher e Ovomaltine, e depois ia a pé para o cinema. Mais tarde, já com a turma da UJC, União da Juventude Comunista, que vinha reunir e depois a gente saia para outro tipo de coisa. Mas sempre, com judeu não judeu. Na verdade, tanto fazia. 154


Ou melhor, não fazia a menor diferença. Quando a mamãe morreu, o que tinha de amigo meu não judeu, eles não a chamavam de Dona, a chamavam de Elisa, foi uma perda pessoal para cada um deles. Eu lembro de uma coisa que me deixou atônita com a vovó, porque a vovó vivia fazendo caridade. Então, eu me lembro de um momento dela que foi definitivo. Eu trabalho desde os catorze e sempre diriji a minha vida e meu dinheiro. Então ela disse para mim que ela queria dez por cento, sei lá quanto era na época, para os pobres dela. Eu disse: “Vovó, não posso, eu sou comunista”. Ela falou: “Eu não tenho nada contra os comunistas, mas do jeito que as coisas estão, os pobres não vão viver para poder viver no seu comunismo. Então, você dá um dinheiro agora, a gente os sustenta, através de comida e remédios e eles vão viver até lá”. E eu dei a vida inteira porque era irrecusável. Ela tinha aquela ética, que você tem que dar sem saber para quem, quem recebe não pode saber de quem, então tinha roupa que vinha de não sei quem e entregava enxoval para não sei quem, galinha, cobertor. [...] Meu pai militou, mas nem se compara com a mamãe. Então, tanto que a mamãe, embora meu avô, por parte do papai fosse comunista, a mamãe como vereadora usou o nome de solteira, era Elisa Kaufmann, candidata do Prestes. E você sabe quem entrou no lugar dela? Ela foi a primeira mulher eleita, em São Paulo e o Partido usava legenda de aluguel, o PTN, sei lá o que. Como ela foi cassada, o primeiro suplente também usava essa legenda de aluguel, Seu Jânio da Silva Quadros. E foi assim que o seu Jânio começou. Com a cassação dela. Quem me contou foi o Bolívar Lamounier quando o Covas abriu uma escola com o nome dela. Eu não sabia. [...] Meu avô, marido dessa avó amada morreu quando eu tinha quatro anos, não me lembro de nada. Ele era caixeiro viajante, ele levava chocolates para as senhoritas nos trens, e jogava carteado nos trens...O trem podia ser para Santos, ou para o Espírito Santo, só sei que ele viajava de trem. E me lembro dele voltando com malas cheias de tecidos assim, de vestido de organza com bolinhas, balõezinhos, patinhos. Mas para onde ele ia, não sei... O paterno tinha uma loja no Bom Retiro, ele era um portenho, morreu com 98 anos, morando sozinho, me chamava de provocadora, porque já tinha tido a Primavera de Praga, eu já tinha dado um basta e muito independente. Mas ele não tinha essa afetividade transbordante que o lado da mamãe tinha. E minha avó do lado do papai, também, era uma mulher trancada. Era boa gente, tinha aquelas coisas da gente ir lá 155


almoçar no sábado, eles eram argentinos, porque meu pai nasceu na Argentina, mas veio para o Brasil com meses. [...] A gente morava no Bom Retiro, tudo era lá. Era total. Não me passava que pudesse existir uma outra farmácia que não fosse do teu avô. Não me passava que pudesse ter uma mercearia melhor do que a do Bar Jacó, nem comprar óculos em qualquer outra ótica que não fosse a Primor.Eu andava muito pela cidade. Eu nunca estudei no Bom Retiro. Eu andava de ônibus, eu viajava sozinha desde os dez anos para o Rio, então isso não. Mas tinha uma poesia que o Lustig recitava que o Bom Retiro está no coração. É o meu leite, bom, eu não sei se é meu leite, mas a minha sopa, meu borscht . É meu alimento primeiro. Tudo resolvia lá. Até dinheiro emprestado. Eu lembro, quando eu abri a escolinha, tinha uma conta daquele banquinho, cooperativa, não sei o que, todo mundo chamava de banquinho, minha secretária ia lá, e eles diziam, falsifica a assinatura. Como? No banco. Falsifica a assinatura da Fanny que tudo bem. Ele ficou. Foram agregados outros lugares, mas ele ficou. Ele é o primeiro. É como um jardim de infância, vai agregando mais isso, a faculdade, a pós-graduação, mas o primeiro fica... Eu não sei se eu tive essa noção de amor que eu tenho pelo Bom Retiro, há vinte anos atrás. Provavelmente não. Eu era muito metida. Não sei se é a idade, não sei se é porque eu estou me “acriançando” outro vez para escrever, então volta a minha criancice...Não sei... [...] Meu pai está vivo, mas é muito menos forte. Também não dá. Aquele lado da minha mãe era tão inflamado, tão pulsante, tão vital, heróico, que ninguém podia competir. [...] Quando minha mãe morreu e quiseram que eu fosse minha mãe, aí foi. Eu vi que era inútil ficar explicando para todo mundo e ficar batalhando. Tinha que ir embora, para dar um tempo, ver que todo mundo é insubstituível e eu não ia viver a vida dela, e acabou. Eu não podia ser tão sábia aos vinte e poucos anos. Foi uma puta intuição, um ímpeto, um impulso. [...] Agora a mamãe, claro, foi à escola brasileira, ela trabalhava, então é óbvio que a trajetória dela foi outra, embora a palmilhada dela tenha sido sempre pelo Bom Retiro. Ela trabalhava na OFIDAS, trabalhava no Sholem. Na verdade, quase todos eles menos eu, inclusive a Irene que estudou no Sholem andavam o dia inteiro pela Prates. Eu pegava a linha de ônibus Norte-Sul, ia para o Bandeirantes.

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[...] Para não me estender demais no relato, a marca importantésima que aconteceu na minha vida foi a Maria Antônia. Já estou pulando pedaços, do colegial, do magistério, mað öaöbömönöoöförömömöröaö,öcöm÷ òoö ö öaöiö önöôöiö ö öuöoöqöe÷sògòiöiöaöaö öeörösöiöaö,ödö öa÷eò,ödö ögötörö öeödösöoörörö öi÷eòtöoöoöqöeöeö öoötöröaödö öför÷còdò ö öaöuödödö ötö ö öaözönöo÷dò ösöuönö öuö ö öeötö öoöeöoö ÷oòiö öaödöíöhö,öaöéöoöDöEöqöeöf÷còvö ömöpöuöoöaörösö ö öeöaötöã÷ òaö,öfözörötöaörö,öaö öaösöaöa÷,òeòfömö örö öuörö öuödö.öEötöo÷ òlörö öuö ösöpösöeötösöiömöaöa÷aò öaöpöaöaödö öéöeöeö öaöaötöd÷sò öaö öaöaö öaöMöröaöAötönöaö ÷oòêöaöaöaöaövöl÷aödö öaöaöBömöR÷tòrö öoöqöeöaöaöaöaösönöoöpöeöa÷eðpörönöoönö öOöSö öqöeöaöböbögÿmò öaöaödözömönötösödöpöiö.öMös÷eòcöröaöaöaönöiöaöaö öiöaöoö,ön÷ òoö öeöiöoö öoöêöiö öaöMöröaöA÷tònöaö öaöaöoöAöeöaö öaöaöoöOöiÿiòaò öoöêöföcövö öaöpöröaö öoöê÷cònöeöiö ösöpösöoösö öoöêöiö öe÷aòdöcömö öeö,övörö öeö öáö öqöe÷eòeöpötöcölö öoöVötöröGöröiö.öA÷gònöeövöaötödö ö öuö öaösövö,ön÷ òeötöoöMönöcöpölöeönö öeöoödös÷oòtödö ö öeötö ötö ösöiötöaöaöl÷.ðEö öeöböoödö ömöaöiöoömöuö öl÷ òtö ö ömöoötönöeö öiöhölöLöeöy÷eòeötönöaöuösötöcöeösödö öeörö ÷eòPörösöiöuöiöiöhösöaö önörödös÷do Municipal e a gente entrava com aquilo tudo(risos). Os pichamentos na rua, a favor disso, a favor daquilo, contra tudo provavelmente, os comícios relâmpagos, tudo isso gerado na Maria Antonia. Pode não ter sido produzido, mas lá que se gerava tudo. Mesmo quando a gente fazia eleição de UEE e UNE, não era eleição como eu acabei de te contar. Era um outro tipo de pensamento, era um outro tipo de coisa. Eram os namorados também, as paixões... Tinha um grupo que chamava POLOP, política, não sei que lá, não lembro, eles eram coletivamente apaixonados por mim, toda a base deles. Então eles ficavam parados na porta da minha casa, lá na Prates, suspirando em tons de Marx (risos). Então, era tudo isso. Depois, teve um momento em que eu fui morar pela primeira vez sozinha, foi na Augusta. Então, não é a Augusta, mas é o morar sozinha. Ao mesmo tempo eu havia aberto uma escolinha ali no Bom Retiro, comia no Bom Retiro, quer dizer, eu tinha a minha independência no lugar símbolo do “descolado” da época, que era a Augusta. [...] Lembro-me que a gente não se formou, porque a formatura estava marcada para 1o de abril de 64, e o paraninfo era para ser o Darcy Ribeiro. Por razões óbvias, nem

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paraninfos, nem formandos, nem nada, estavam todos escondidos. Então teve esse lado Augusta, que tinha um pouco esse ar de Londres, da Biba, das minis, da não sei que, daí já era um outro tipo de transgressão. Evidentemente a revolucionária, mas muito também a sexual. Tinha o aspecto de estar montando uma outra casa e que foi uma outra espécie de ponto de encontro. Foi outro lugar importante. Então fui ampliando, quer dizer, da Prates, para a Barão, para a Praça da República, tudo isso eu conhecia a pé, eu andava de cima para baixo, Maria Antônia, Vila Buarque, Augusta. Até que chegou uma hora que eu fui para Pinheiros, mas aí, não foi uma coisa tão curtida embora o apartamento fosse muito curtido. Foi uma época que eu viajei de cima para baixo pelo Brasil inteiro, então era muita ida e vinda. [...] Para mim, talvez a expressão mais brasileira que eu vejo é o Grande Otelo fazendo Macunaíma. Nada para mim foi tão brasileiro, mas não no sentido do estereótipo. Nada melhor do que Dorival Caymmi para ilustrar, quando inventou aquele ventilador para colocar debaixo da rede cortada na altura da bunda, para não ter nem que sair. Mas é uma malemolência meio lendária. As pessoas hoje trabalham feito umas desgraçadas, num mesmo nível de qualquer lugar, tropical ou não tropical. [...] Acho muito mais brasileiro do que o Fernando Henrique querer ser secretario da ONU, o Darcy, claro, não só porque ele andou com índios, mas pela molecagem dele, pela audácia dele, pelo ar travesso dele, por querer ser Peter Pan, por não estar nem aí, por molecar, isso sim, porque é um pouco o Grande Otelo no Macunaíma. Isso sim, me parece uma coisa bem brasileira, talvez por ser mais saborosa. Eu vejo muito mais esses “filhotes” do Darcy andando por aí do que os filhotes do Fernando Henrique, mas eu posso estar redondamente enganada. [...] Então o que eu gostaria de oferecer ao meu leitor era cinco por cento do prazer que o Monteiro Lobato me deu. Nada foi mais brasileiro do que o Sítio do Pica Pau, e ao mesmo tempo nada foi tão universal. Eu pelo menos, você provavelmente também, tomamos conhecimento de muitas coisas através de Lobato. A gente soube da mitologia grega, a gente soube do D. Quixote e a gente soube que o petróleo é nosso, né? Então a minha formação de brasilidade, ela vem do Sitio, ela não vem da USP, onde eu li francês, sobre filósofos alemães ((risos)). E aonde eu nunca, fazendo o curso de Pedagogia, ouvi falar do

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Anísio Teixeira. Eu lia Rousseau. Então não foi lá e nem num monte de escolas que eu já andei, a procura não sei do que. Ela vem desses olhos sagazes e debochantes de pessoas como Lobato, de Darcy, Millor e tantos outros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Pois não conheço eu aquele sentimento? Não me destinaram também a mim o desassossego? Não me foi dado também um coração que desconhece o repouso? O astro do contador de histórias não será a lua, senhora da estrada, a vagabunda que vai de fase em fase, libertando-se de cada uma? O narrador faz várias pausas, andando e relatando, mas só habita em tendas, aguardando novas direções, e pouco depois sente que seu coração bate forte, quer de desejo, quer também pelo medo e angústia da carne, mas sempre como sinal de que deve tomar a estrada à cata de novas aventuras, que devem ser penosamente vividas até seus mais remotos detalhes, de acordo com a vontade do espírito infatigável.111.

Tema envolvente, fontes sofisticadas, relação passional com o método, ingresso em um programa novo. Todos estes dados foram inicialmente celebrados com grande entusiasmo e pouca apreensão. Recém-saída do primeiro grande rito de passagem acadêmico – a dissertação de mestrado – e tendo realizado uma articulação arriscada, até então inédita, que foi relacionar o campo problemático da discussão teórico-metodológica da história oral com o instrumental teórico da Filosofia da Diferença/Esquizoanálise, o doutorado representava a possibilidade de aprofundar esta reflexão. O desafio deste investimento parecia residir menos na questão teórico-metodológica, já que havia concluído a dissertação celebrando as potencialidades da história oral para os estudos da subjetividade, e mais no próprio tema, definido originariamente como A coexistência de marca(s) judaica(s) e 111

MANN, T. José e seus irmãos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, v. 1, p. 46.

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brasileira(s) na subjetividade contemporânea de brasileiros da primeira geração nascida no Brasil. A ousadia de entrar em uma seara tão disputada – Estudos Judaicos – sem nunca antes ter tido qualquer proximidade com o debate, tanto na sua vertente religiosa quanto laica, não chegou a me intimidar. A crença de que havia um problema genuíno na esfera da produção subjetiva da primeira geração nascida no Brasil, ao qual foi legada alguma herança judaica (mesmo sob o signo do silêncio), me impulsionou a levar adiante o projeto. Além disso, o desejo deliberado de perscrutar possíveis sentidos para a minha experiência judaica, preterida ao longo da vida, não obstante sua presença invisível, me ajudou a afirmar a minha escolha. Embora a motivação da pesquisa possa ser classificada como existencial, a “promiscuidade” entre o tema e a minha própria vida, ao invés de ter turvado a crítica sobre a experiência de meus “sujeitos”, teve o efeito oposto, propiciando uma sensibilidade mais fina para sua espessura e complexidade. Portanto, poucos foram os momentos de repouso ao longo do trajeto. O desassossego esteve amiúde presente em cada deslocamento promovido, na redefinição do grupo de entrevistados, na circunscrição do problema, na revisão dos postulados teóricos, no embate com as limitações do método, na dificuldade em cruzar fonte e teoria. Foi este sentimento fortemente associado à experiência judaica que me ajudou a não me render às análises mais simplistas que o tema inspira e a suportar os múltiplos impasses enfrentados. Apesar da dificuldade no exercício mesmo do ofício do historiador, em sendo esta a primeira experiência vivida até a sua ponta final – interpretação –, a própria produção das fontes, prática na qual me sinto relativamente à vontade, sinalizava desde o início que o problema e o grupo tinham que ser de alguma forma afilados para que pudesse posteriormente ter parâmetros comuns de análise, apesar das suas especificidades e diferenças. A primeira grande inflexão se deu com a circunscrição dos entrevistados ao campo das artes expressivas, diminuindo, assim, o espectro da rede e assegurando aprioristicamente, pela atividade profissional, o envolvimento forte com as questões brasileiras. Inserindo-se na discussão sobre o processo de constituição de subjetividade, o objetivo era compreender

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o trânsito e a profundidade de uma certa marca – judaica – partindo da premissa de que ela não havia permanecido imaculada, mas inserida em um campo dinâmico de forças distintas em permanente disputa. Não poderia deixar de ressaltar que o outro dado que me levou a “recortar” a experiência dos artistas foi a aposta de que haveria uma prevalência da memória sensorial em detrimento da memória intelectual e, assim sendo, mais “generosa” para a história do sentido, aspiração subjacente à pesquisa. Esta hipótese foi rapidamente abandonada ao perceber que não há uma relação de causalidade direta. É perfeitamente possível investir desbragadamente na criação artística e, ao mesmo tempo, esquivar-se deste esforço em relação à escrita da própria vida. O segundo grande embate foi a reposição do problema. A busca pelas marcas judaica(s) e brasileira(s) coexistindo na trama subjetiva dos artistas, a divisão bastante mecanicista, não encontrava eco nos relatos de história oral de vida. Quando eventualmente estas inscrições eram insinuadas, elas soavam como uma resposta artificial ao questionamento imputado pelo pesquisador. As memórias, que até este momento representavam uma espécie de ardil para identificar o lócus e a qualidade destas marcas, ganharam finalmente o estatuto de objeto. Ao escutar mais argutamente os depoimentos colhidos e investir na produção de novos, ficou claro que o conteúdo tangível e palpável destas narrativas, o “solo comum” que havia entre trajetórias tão peculiares, cada qual com suas contingências específicas, eram justamente as memórias. E, mais especificamente, ao que nelas remetiam à sua origem judaica. Esta escolha contribuiu para que se estabelecesse uma sinergia entre fonte e referencial teórico, inicialmente seguindo cursos paralelos e pouco confluentes. Depois de reconfigurado o ângulo de análise, foi feito um esforço de contextualização das memórias, promovendo uma espécie de vol d’oiseau sobre o cenário brasileiro ao qual aludiam e sobre a própria função que a memória desempenha para a experiência judaica. Como intérprete de meus “intérpretes”, este exercício (não ocultado do leitor e explicitado passo a passo ao longo do texto) foi fundamental para que me sentisse instrumentalizada para “ler” os relatos, desprendendo sentidos que não haviam sido explicitamente enunciados pelos depoentes. Não apenas produzir as fontes – trabalho louvável ao dar legitimidade ao fato histórico sem direito à expressão ou ao promover sobre o já existente

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um deslocamento, ínfimo que seja – como também urdi-las em uma trama histórica, na qual elas seriam inexoravelmente estiradas para além de seus próprios limites. Ao trabalhar com memórias de “incluídos”, e não com os voiceless com os quais a história oral sempre foi solidária e esteve engajada, confrontei-me com desafios que são próprios do discurso sinuoso e sedutor de quem tem pleno domínio da retórica, da semântica e das construções sintáticas, mas que por isso mesmo se coloca, muitas vezes, refratário ao diálogo, imperturbável e encerrado em si próprio. O fato do registro em si não ter um valor incontestável, já que muitos destes artistas são figuras públicas com livre e amplo acesso aos meios de comunicação, me levou a tentar ultrapassar o padrão midiático de estruturas narrativas disponíveis do eu, em grande parte feitas de materiais gastos e fetichizados 112 . A pergunta sobre a reverberação das memórias judaicas sobre a sensibilidade contemporânea foi o dispositivo idealizado para incentivar meus depoentes a ousarem em relação ao enredo “clichê”, no qual o sujeito parece se desemplicar no ato da narração. O interessante do conjunto é, sem dúvida, a diversidade das respostas. Mesmo não contemplando na análise os 21 relatos colhidos, procurei destacar um pequeno arco no interior de minha “ciranda de vozes” que fosse representativo das diferentes expressões e intensidades reveladas em cada um deles. Apesar da dor real em não fazer ecoar pela escrita todas as vozes que me atravessaram e com quem, como afirma Portelli, aprendi um pouquinho, acredito que as que foram aqui ressaltadas fazem jus à confiança que me foi depositada como a “tecelã” desta trama coletiva, composta por singularidades que têm, não obstante, adjacências e consangüinidades. Como arroga Coutinho, a fidelidade quando entrevistamos alguém deve ser “encarnada” em pessoas reais, e não em entidades abstratas – os judeus, os favelados, os militantes 113. Nicolau Sevcenko afirma que o ser humano é antes de mais nada histórico. Como a carne, o sangue e os ossos, ele é consubstancialmente feito de história. Neste sentido, ele não pode ser compreendido exclusivamente por seus conteúdos físicos ou psicológicos, mas como a “encarnação” de toda a história que o precede114. A beleza desta definição cotejada por

112

SAFATLE, V. A vida como reality show. In: Mais! Folha de S. Paulo, 29 fev. 2004, p. 8-9. Op. cit., p. 170. 114 SEVCENKO, N. Fim da história. In: Atrator estranho, Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes da USP, ano III, n. 19, jan. 1996. 113

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Sevcenko, que se sintoniza com o compromisso que arvora Coutinho, nos ajuda a respeitar a história na sua expressão orgânica, individual e mundana. A generosidade da história oral está justamente em abraçar a história copiosa de que cada vida humana é emissária. Se, por um lado, a história oral nos dá a dimensão do valor e da importância de cada trajeto individual, por outro, ela participa da consolidação de uma memória partilhada, estabelecendo elos sociais. Em Intérpretes do Desassossego as experiências desenraizadas ganharam um espaço de acolhimento, mesmo as mais fragmentadas e solipsistas, assegurando um ethos comum, que permitiu que os relatos conversassem entre si e fizessem sentido como um coro. Desta forma, a história oral é simultaneamente um mergulho no particularismo e um compromisso irrestrito com a universalidade. Todavia, apesar destas virtudes incontestes, a pesquisa revelou que a história oral é um método que tem de se manter intrépido para assegurar a qualidade e o frescor de seus resultados. A institucionalização que ela sofreu e sua plena aceitação não devem despertar um sedentarismo por parte de seus adeptos, como se o respeito aos seus cânones assegurasse sua qualidade científica e moral. São as turbulências, a provisoriedade de suas certezas e o seu aspecto indeterminado que conferem à história oral o seu viço. No caso desta pesquisa, o método revelou que a palavra, outrora onipresente na experiência judaica religiosa, saiu ferida com o desenraizamento dos judeus, soando na sua versão laica mais titubeante, menos assertiva e mais esvaecente. Além de respeitar a qualidade com que esta palavra-experiência se expressa, sem obliterar ou dissimular os seus fossos intransponíveis (Deleuze acredita que são nestes buracos ou lacunas das vidas que se aloja o movimento), o desafio que se coloca para a história oral como um dispositivo de intervenção sobre a percepção do presente me parece ser o de reconciliar a história com a poesia. Liberar a palavra do seu cativeiro de ter que tudo dizer, tudo explicar, tudo resolver, tudo clarear e ser capaz também de escutar o que não é verbalizável, exercitando outras possibilidades de percepção que são deixadas de lado. Ao buscar recrudescer o colorido e a magia da palavra, que Benjamin identifica na utilização que é feita pela criança – antes de ser um instrumento de comunicação é uma “caverna” a ser explorada ou uma “nuvem” na qual se envolve e desaparece –, a história oral pode participar como potência crítica na criação de novos modos de existência. O ouvido para o algo a mais que acontece na nossa

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relação com o mundo é uma prerrogativa dos poetas e é dessa sabedoria refinada que o historiador, segundo Michel de Certeau “o poeta do detalhe”, deve se alimentar para colocar sua historiografia a serviço da vida. Nas palavras de Bezerra de Meneses:

Os poetas são aliados muito valiosos, cujo testemunho deve ser levado em alta conta, pois costumam conhecer toda uma vasta gama de coisas entre o céu e a terra com os quais nosso saber escolar ainda não nos deixou sonhar. Estão bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da psique, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência.115

Neste sentido, o esforço deliberado de aproximar a história oral do campo problemático da Arte justifica o tipo de intervenção que procurei promover como interlocutora de meus depoentes, embora esteja consciente da dificuldade e da distância de radicalizar esta proposta. A forma como procurei tecer este texto, praticamente sem corte, promovendo um “contágio” entre uma idéia e outra, entre um relato e outro, entre conceitos de disciplinas distintas, entre intuição e teoria não é fortuito e procura ser coerente com a aspiração que norteia a pesquisa. Como afirma Deleuze:

Mas é interessante se a escrita por si mesma chega a dar esse sentimento de iminência, de algo que vai suceder ou acaba de se passar nas nossas costas. 116

A profusão de metáforas corporais utilizadas é coerente com sua inspiração nietzschiana e com a maneira com que esta pesquisa foi de fato conduzida: com sangue, suor, temperatura, fluxo, torção e distensão. O texto tinha de ser fiel a este traçado intensivo, não poderia deixar de revelar esta trepidação. 115 116

Op. cit, p. 14. Op. cit, p. 48.

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Ao ultrapassar a função de cronista e exercitar uma espécie de exegese dos meus relatos, tentando entender as condições de possibilidade que justificam a maneira como estas memórias se estruturam, não poderia privar o leitor do próprio texto original, daí o motivo da inclusão dos longos extratos dos depoimentos. É na transparência do diálogo entre interpretação e fonte e na possibilidade de que muitas outras articulações se façam que reside a ética deste trabalho. Como afirma Sevcenko:

[...] Se um nazista conta a História da perspectiva fascista, conta como sendo a versão verdadeira. A ideologia fascista é totalitária, não presume que alguém escreva uma versão e outros escrevam outra e que as versões conflitem entre si. Uma tem de ser a única, se as coisas mudarem, muda-se a versão, não se reescreve nada. Como os russos, que retocavam fotografias cada vez que matavam uma pessoa, é esse o pressuposto. Portanto, a virtude ética no texto está em admitir que ele não comporta verdade, mas uma circunstância, um contexto, uma situação, e que, portanto, em nenhum momento é verdade, a não ser daquela específica e singular circunstância que não vai se repetir. [...] Daí a vantagem ética de um estilo de trabalho ou pesquisa que apresenta a todos os que tiverem interessados, motivados ou ligados ao trabalho o pressuposto de que ele é uma forma singular de expor um conjunto de eventos, por um indivíduo singular, em um momento singular. Isso permite que se faça a crítica daquela pessoa, daquele momento e daquele arranjo dos fatos. 117

Mais do que respostas, o desafio do historiador é inventar problemas aparentemente inexistentes e identificar as perguntas que deles se desprendem. Esta pesquisa procurou problematizar alguns destes pontos e insinuar a existência de muitos outros. A concepção de arte, o processo de produção da subjetividade brasileira (muito mais sutil e sofisticado 117

Op. cit, p. 31.

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do que as representações sociais em circulação sugerem), e a judeidade (como uma pertinência que não é contemplativa, mas uma construção engendrada no presente que aponta para um futuro indeterminado) são horizontes que resistem à captura e borbulham sentidos. Poder irradiar estas perguntas, colocando-as em diálogo com muitas outras e continuar sendo interpelada por estes repertórios, é o desejo de abertura que o fim desta elaboração acalenta.

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FONTES PRODUZIDAS.

1.

Edith Derdyk, artista plástica. Data da realização: 3/10/00. Local: ateliê da depoente, Pinheiros/SP.

2.

Yákov Hilel, diretor teatral. Data da realização: 1/6/01. Local: casa do depoente, Higienópolis/SP.

3.

Moysés Gurovitz, fotógrafo. Data da realização: 6/6/01 e 10/5/02. Local: casa do depoente, Bom Retiro/SP.

4.

Renina Katz, artista plástica. Data da realização: 21/6/01. Local: casa e ateliê da depoente, Pinheiros/SP.

5.

Sérgio Fingermann, artista plástico. Data da realização: 27/7/01. Local: casa e ateliê do depoente, Vila Madalena/SP.

6.

Sérgio Sister, artista plástico. Data da realização: 20/8/01. Local: ateliê do depoente, Barra Funda/SP.

7.

Miriam Mehler, atriz. Data da realização: 31/7/01. Local: casa da depoente, Itaim/SP.

8.

Etty Fraser, atriz. Data da realização: 8/8/01. Local: casa da depoente, Santa Cecília/SP.

9.

Claudia Andujar , fotógrafa. Data da realização: 3/10/01. Local: casa da depoente, Cerqueira César/SP.

10.

Berta Zemmel, atriz. Data da realização: 13/11/01. Local: casa da depoente, Bela Vista/SP.

11.

Nydia Lícia, atriz. Data da realização: 16/10/01. Local: casa da depoente, Ibirapuera/SP.

178


12.

Lena Berstein, artista plástica. Data da realização: 6/11/01. Local: casa e ateliê da depoente, Gávea/RJ.

13.

Jorge Cherques, ator. Data da realização: 5/11/01. Local: casa do depoente, Copacabana/RJ.

14.

Sylvio Zilber, ator e diretor teatral. Data da realização: 27/9/01. Local: Shopping Eldorado/ SP.

15.

Fanny Abramovich, escritora. Data da realização: 5/3/02 e 19/3/02. Local: casa da depoente, Cerqueira César/SP.

16.

Mirna Pinsky, escritora. Data da realização: 2/4/02. Local: casa da depoente, Alto de Pinheiros/SP.

17.

Diana Danon, pintora. Data da realização: 19/2/02. Local: casa da depoente, Av.Rio Branco/SP.

18.

Guita Charifker, artista plástica. Data da realização: 26/4/02. Local: casa da depoente, Amparo/Olinda-PE.

19.

Giselda Leirner, artista plástica. Data da realização: 25/9/02. Local: casa da depoente, Higienópolis/SP.

20.

Anna Bella Geiger, artista plástica. Data da realização: 19/11/02. Local: casa da depoente, Flamengo/RJ.

21.

Márika Gidali, bailarina e professora de dança. Data da realização: 19/12/02. Local: Ballet Stagium, Rua Augusta/SP.

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