UM BOM RETIRO Daisy Perelmutter1
Caldo efervescente de diferentes culturas, línguas, ofícios, cheiros, instituições, religiões, temporalidades; o Bom Retiro parece condensar em seus poucos kilômetros quadrados o mundo e sua diversidade. Em sua história multiforme, que dispõe de múltiplas tramas, tudo coube e parece ainda caber em um trajeto que, sem intermitência, não cessou de se reiventar. A imagem bucólica identificada à área antes de seu loteamento (até meados do século XIX), conhecida então como a região das chácaras onde as famílias abastadas desfrutavam o ócio em seus finais de semana – Sítio do Carvalho, Chácara Dulley e Chácara Bom Retiro – foi substituída por outras feições inscritas de forma mais duradoura. O grande afluxo de imigrantes e migrantes vindos para São Paulo, em função do apogeu do ciclo cafeeiro, fez com que o bairro se tornasse um destino obrigatório para os novos cidadãos paulistanos, que chegaram de forma contínua de 1890 até 1940. A boa acolhida e a maleabilidade às diferenças – étnicas, religiosas, culturais, sociais, políticas – definiram uma identidade ao Bom Retiro que o tornou singular mesmo em relação aos seus “bairros irmãos”, também com forte presença operária, tais como Brás, Mooca, Pari, Penha, Lapa e Belenzinho. A vocação progressista que o marcaria de forma indelével deu, portanto, seus primeiros sinais, já no início do século XX, ao acolher ingleses, italianos, sírio-libaneses, lituanos, armênios, 1 Doutora em História Social e Mestre em Psicologia Clínica pela PUC/SP, bacharel em Ciências Sociais pela FFLCH/USP, com especialização em História oral pela Universidade de Essex/UK.
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portugueses, judeus da Europa Oriental, gregos, migrantes nordestinos, coreanos e, mais recentemente, bolivianos. Fronteiriço à região da Luz cuja tradição cultural remontava as peregrinações dos devotos de Nossa Senhora da Luz no século XVIII, os grandes eventos cívicos e religiosos e a Feira de Pilatos (evento anual no qual se permutavam gêneros do país e de fora, persistindo por mais de um século)2, o Bom Retiro deve à sua existência ao empreendedorismo do Barão Visconde de Mauá, responsável pela construção da Estrada de Ferro São Paulo Railway, mais conhecida por Estrada de Ferro Inglesa (Santos Jundiaí), cuja estação principal se localizava, justamente, na linha divisória do bairro. De um lado da linha do trem, na área denominada Campos Elíseos, foram então construídos grandes palacetes destinados aos escritórios e residências dos barões de café. Do outro lado da linha, foram criados loteamentos populares visando atender às necessidades de moradia dos pequenos comerciantes, artesãos e operários das indústrias que começavam a despontar. A gênese do Bom Retiro advém, portanto, da nova dinâmica impressa com a chegada da ferrovia, em 1865, que fez com que a cidade ampliasse o seu perímetro urbano e se espraiasse até a Luz. 2 O desenvolvimento da região da Luz deu-se com a colonização do interior da capitania. A antiga trilha indígena denominada “Caminho do Guaré” ganhou importância e recebeu um pouso de “tropeiros”, que se transformou em um tradicional ponto de comercio. Na segunda metade do século XVIII, a capelinha que guardava uma imagem de Nossa Senhora da Luz cedeu lugar ao recolhimento da Luz e, em frente ao edifício, o enorme descampado que dali se vislumbrava passou a ser chamado ” Campo da Luz.” Desempenhando múltiplas funções – religiosas, militares, cívicas, comerciais e esportivas - a Luz foi o local escolhido para à implantação do horto botânico, em 1798. Em 1825, o então horto transforma-se no primeiro parque publico da cidade, passando a ser o principal centro de lazer do paulistano ao longo de mais de um século, até o final da década de 20, quando teve início o seu processo de decadência. (Ohtake, R. & Dias, C. Jardim da Luz: um museu a céu aberto. São Paulo: Editora Senac São Paulo& Edições SESC, 2011)
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Em função do trânsito constante que passa existir no bairro não é de se estranhar que a Hospedaria dos Imigrantes, responsável pela sistematização e racionalizaçãodos serviços de alojamento para imigrantes tenha sido inaugurada, justamente, no Bom Retiro, na confluência da antiga Rua dos Imigrantes – atual José Paulino – e Tenente Pena, onde era antes a Chácara de Manfred Meyer. No entanto, com o volume vertiginoso de estrangeiros que não cessavam de afluir para a cidade, foi necessário a construção de um novo prédio com maior capacidade, conhecido como Hospedaria dos Imigrantes do Brás. O surto de varíola e difteria que atingiu o Bom Retiro, em 1897, obrigou o desativamento imediato das atividades da Hospedaria e o local acabou transformando-se no Desinfectório Central, um das primeiras instituições de saúde pública de São Paulo, responsável, na época,pela assepsia de todos os pertences pessoais dos imigrantes (roupas e objetos), em nome da contenção de possíveis surtos epidêmicos. Ainda que tenha havido uma iniciativa empreendedora, pioneira, por volta de 1860 -olaria situada às margens do rio Tietê, que aproveitava as argilas da várzea do rio- a grande inflexão da área Luz-Bom Retiro aconteceu, de fato, entre 1880 a 1900, quando a regiãofoi integrada ao centro da cidade e as primeiras grandes indústrias começaram a aparecer: a Fábrica Anhaia de tecidos de algodão, que empregava mais de trezentos e cinquenta operários e a Cervejaria Germânia dos Irmãos Reichert, mais tarde incorporada à Companhia Antárctica e transferida para o bairro do Ipiranga. Nas duas primeiras décadas do século XX, muitas outras emergiram na paisagem do Bom Retiro, voltadas para o fabrico das mais díspares mercadorias: camisas, calçados, meias, espelhos, móveis, massas, doces, bebidas, tintas de escrever. No bairro também se
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concentrou um expressivo número de oficinas de fundo de quintal e outros estabelecimentos que ficavam no meio termo entre o comércio e à indústria.3: sapatarias, marcenarias, alfaiatarias, fundições, tinturarias, destilarias, manufaturas de roupas e chapéus, além das padarias, farmácias e hotéis nas proximidades da Estação da Luz. A faceta proletária do Bom Retiro era evidente e a modéstia das habitações e à proliferação de cortiços em nada se assemelhavam ao período do Bom Retiro idílico e luxuriante das antigas chácaras Dulley, Bom Retiro e de Manfred Mayer. A aludida “promiscuidade” das residências operárias, aproximando diferentes núcleos familiares, e as possíveis tensões sociais oriundas desta convivência foi preocupação constante do poder público da época. Razão pela qual o governo foi grande entusiasta do conceito das vilas operárias, pensadas a partir das premissas de racionalidade e disciplina. A Vila Economizadora, construída entre 1908 e 1915 pela Sociedade Mútua Economizadora Paulista e pelo imigrante italiano Antonio Bocchini, assim como a Vila Inglesa testemunham o investimento que foi feito nesta direção. No entanto, o empenho em sanear eventuais focos de insurreição não impediu que os trabalhadores do Bom Retiro aderissem e participassem, junto com os operários das demais regiões de concentração industrial (Brás, Mooca, Belenzinho, Barra Funda e Ipiranga), na Greve de 1917, que teve como bandeira melhores condições de vida e trabalho. Se a indústria e comércio, desde o início, pulsantes e prósperos, imprimiram já na virada do XIX para o XX uma marca que jamais seria erradicada do bairro, há outro aspecto que merece destaque, igualmente 3Para saber mais, ver Truzzi, O. “Etnias em convívio: o bairro do Bom Retiro em São Paulo”Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.28, 2001.
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importante, para a consolidação de sua forte identidade: a instalação de sólidas instituições educacionais. Em termos de educação básica laica e gratuita, o bairro foi suprido com dois grupos escolares, que se tornaram referência para a população de baixa renda: a Escola Prudente de Moraes (1893) e o Grupo Escolar Marechal Deodoro (início do século XX). Quanto ao ensino profissionalizante, o Bom Retiro teve a glória de ter sediado o Liceu de Artes e Ofícios (1896), atendendo, deste modo, à demanda da elite empresarial paulista por bons profissionais artífices para as grandes obras que surgiam na cidade. E não bastassem estes equipamentos de ensino, no Bom Retiro foram sediadas duas importantes instituições universitárias, lembrando do número diminuto de faculdades que existiam em São Paulo naquele período: a Escola Politécnica, instalada no antigo casarão do Marquês de Tres Rios, que depois foi transformada no complexo Politécnico com a anexação de outros prédios (1899) e a Escola de Farmácia, Odontologia e Obstetricía, transferida para a recém-aberta Rua Três Rios, onde antes havia a Chácara Dulley(1905). No âmbito da educação religiosa cristã também foram criadas escolas importantes, que se mantiveram sólidas a despeito das mudanças dos grupos étnicos hegemônicos nos diferentes ciclos vividos pelo bairro. O Colégio de Santa Inês, uma iniciativa da ordem salesiana voltada exclusivamente para a educação feminina, foi fundado, em 1907, exatamente em frente à Escola de Farmácia, levando o historiador Hilário Dertônio a denominar a rua de “Intelectual Três Rios”. O projeto do edifício, idealizado pelo engenheiro Domingos Delpiano, foi fortemente influenciado pelo ecletismo europeu –mescla dos estilos românicos, góticos e renascentistas – e mantêm-se como uma referência arquitetônica importante para a cidade. Tão sólida quanto o prédio, com sua estrutura em ferro evocando motivos florais e suas formas sinuosas, é a própria instituição, em atividade por mais de cem anos consecutivos.
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É importante destacar que à atuação salesiana no Bom Retiro é, em realidade, anteriorà criação do Colégio de Santa Inês. Em função do grande número de trabalhadores italianos na região e contando com a residência de vários padres italianos, a ordem católica dos Salesianos, em 1885,cria o Santuário do Liceu Coração de Jesus. No ano seguinte, o Santuário inaugura o Colégio Liceu Coração de Jesus, voltado exclusivamente para educação de rapazes. Além do ensino regular, os salesianos decidiram também investir noensino profissionalizante para a juventude local dado o perfil eminentemente operário da região (1915)4, iniciativa esta que resultou na criação do Instituto Dom Bosco (1919). No ano anterior, é formada a Paróquia Nossa Senhora Auxiliadora, que terá parte de sua edificação erguida somente em 1933: a Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora. Em 1939, a Paróquia de Nossa Senhora Auxiliadora é desmembrada, formando a Paróquia de Santo Eduardo e a Paróquia de São Cristóvão. A Igreja de Santo Eduardo acabou por reunir a comunidade de italianos e descendentes, moradoras das cercanias das ruas Sólon e Jaraguá e é considerada um dos ícones do circuito cristão do Bom Retiro. Este breve passeio pela gênese do bairro fornece alguns elementos para a visualização da politonalidade que o pequeno bairro estabelecido e urbanizado nas costas da linha férrea e do Jardim da Luz5 foi adquirindo 4A ideia do curso de profissionalização de menores carentes surgiu por parte de um grupo de cooperadores salesianos que desejavam prestar homenagem ao Centenário de nascimento de Dom Bosco, patrono da instituição. A obra salesiana teve seu início em Turim, na Itália, em 1841 através dos oratorios festivos aos domingos e datas especiais, Dom Bosco e seus meninos se reuniam para a realização de atividades educativas. (Informativo do Instituto Dom Bosco, Ano 1, n.03, Março 1996). 5 Além de ter sido o principal centro de lazer do paulistano por mais de um século, foi também palco de importantes acontecimentos ao longo de todo o XIX - “kermesse pró-abolição”, banquete para os soldados que retornavam da Guerra do Paraguai, primeiras exibições de inventos científicos na cidade, bailes, feiras, espetáculos de circo, festas de carnaval.
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no curso de seu desenvolvimento. Em razão desta miríade de aspectos consiste em “missão impossível” estabelecer o que, afinal, deve ser louvado como o traçode identificação mais emblemático do Bom Retiro. Comércio? Indústria? Educação? Lazer? Esporte? Religião? Se há um elo possível de articulação entre os diferentes campos em que se destacou, o fio invisível o qual os correlaciona é a prevalência da experiência coletiva: associação e partilha. A vocação gregária que, de forma recorrente, pontilhou a história do bairro, talvez possa ser justificada pela situação de extrema vulnerabilidade em que se encontravam seus moradores – na sua maioria, trabalhadores imigrantes e migrantes. Advém daí a criação das associações das mais diferentes naturezas: recreativa, esportiva, beneficiente, educativa, religiosa, sindical. São inúmeros os exemplos que confirmam a mania que tomou conta do bairro (calcula-se que havia 54 diferentes sociedades com caráter diversificado, entre 1914-1925): o Grêmio Dramático e Musical Luso-Brasileiro, criado por portugueses e descendentes, em 1900; o grupo carnavalesco “Flor do Bom Retiro”, criado em 1908 e o “Tá Bom Deixe”, em 1909; o Esporte Clube Corinthians Paulista, fundado em 1910, por italianos, espanhóis e descendentes; a Liga Operária do Bom Retiro, fundada em 1917; o Grêmio Dramático Recreativo Ermete Novelli; o Gênova Club; o Lyrical Clube; o Grêmio Dramático Recreativo Bela Itália; o Grêmio Dramático Recreativo Flor do Oriente e tantos outros.Ao observarmos o leque das agremiações criadas nestas duas primeiras décadas do século XX percebemos a forte prevalência das recreativas e esportivas. Cumprindo funções que iam além do lazer,muitos destes clubes foram fulcrais para a constituição de redes de sociabilidade de seus frequentadores, contribuindo para à formação de amizades duradouras e, inclusive, novos casais.
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A fruição do tempo livre nos clubes dançantes e lítero-musicais, de modo antagônico à participação religiosa e sindical, foi marcada por um profundo hedonismo. O parênteses que se instaurava em relação à égide da ideologia do trabalho nestes espaços recreativos foi objeto de apreensão para diferentes setores da sociedade: empresários e poder público, preocupados com a internalização do trabalho como um valor positivo, bem como as lideranças sindicais, que identificavam estas práticas lúdicas como prejudiciais à consciência de classe. Não foram poucas às queixas nos jornais denunciando “as danças indecentes”, os “bailes escandalosos”, a “falta de moralidade das mulheres desacompanhadas”, a “lascívia de seus frequentadores”. O progressismo que, mais para a frente, acopla-se de modo definitivo ao bairro dava os seus primeiros sinais, aluindo a austera moral e os rígidos costumes em vigor. Assim como o lazer recreativo, o esportivo também deve reivindicar status no panteão das práticas mais populares do bairro, já que, de1890 até a década de 1950, as atividades desportivas – especialmente o futebol, mas também a natação e a navegação–foram praticadas de forma extensiva por seus moradores. Sabe-se que o primeiro jogo de futebol do primeiro clube da cidade – São Paulo Futebol Clube - aconteceu, em 1895, nos antigos terrenos da propriedade Dulley. Não podemos assegurar se a paixão pela ”bola no pé”, que se tornou uma febre entre a população masculina do bairro, foi inoculada por esta avant-première . No entanto, desde então, espraiou-se nas áreas baixas da região, os clubes de futebol de várzea, utilizados como espaço de lazer e convivência dos trabalhadores (além das peladas, aconteciam também nestes espaços bailes dançantes, bingos, festivais, espetáculos teatrais e musicais).
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Associação Atlética Anhaguera, Clube Nacional, Associação Athlética ABC, Voluntários Football, Esporte Clube Saturno, E.C. Juventus Nacional, Grajaú, Sport Clube 1 de Julho, Marconi. Alguns clubes, como o Anhanguera e o Nacional, mantêm-se bravamente de pé, em pleno ano de 2011, reinventando suas práticas e angariando novos adeptos, enquanto outros, apesar dos seus dias de glória, feneceram6. A projeção que os eventos varzeanosganharam foi tamanha que, em 1928, surgiuum jornal semanal intitulado A Gazeta, exclusivamente destinado a noticiar eventos relacionados à várzea, tendo como diferencial a ativa participação dos próprios “varzeanos” na pauta do caderno de futebol. A paixão pelo futebol, assim como os bailes dançantes, gerou críticas ferinas por parte da imprensa operária, por considerá-loinimigo das agremiações sindicais e, por conseguinte, da própria classe. Apesar de não terem se tornado uma “febre”, os esportes náuticos tiveram também a sua importância. A prova de sua popularidade foi o surgimento dos clubes Tietê e Espéria, hoje centenários, contribuindo para que as águas do Tietê fossem também fonte de prazer e não unicamente pauta de preocupação para a população acometida pelas enchentes7 constantes. Apesar da forte tinta operária do bairro e da diversidade de ofícios que reunia, o Bom Retiro ostenta em sua história poucas organizações sindicais. A Liga Operária, fundada em 1917, foi importante, embora 6Para saber mais sobre o futebol amador em São Paulo, ver Mendes Machado da Silva, D., “O que não se consegue com o dinheiro. Cultura e futebol de várzea na cidade de São Paulo na primeira metade do século XX”, pesquisa de mestrado em andamento, FFLCH/USP, sob orientação do Prof. José Geraldo Vinci de Moraes. 7 As ruas mais afetadas pelas enchentes eram as que ficavam no Bom Retiro debaixo, onde se concentrava a comunidade italiana e lituana: Javaés, Jaraguá, General Flores, Anhaia, Italianos. Os moradores ficavam permanentemente expostos às diversas doenças.
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tenha sido duramente reprimida ao longo de seus anos três anos de atuação intermitente. O bairro, além de ter sofrido com a repressão, foi também muito dilacerado pela Gripe Espanhola, dadas suas deficiências agônicas de infra-estrutura A Liga Operária do Bom Retiro foi à única liga de bairro a colaborar na campanha do Comitê Pró-Presos e Deportados, quando se intensificaram as prisões e deportações. Através das fontes disponíveis, observa-se que as ações da agremiação estiveram mais voltadas para o movimento operário, de uma maneira geral, e menos para os problemas cotidianos específicos, que mobilizavam seus moradores e trabalhadores. Algumas outras organizações, apesar da curta permanência, merecem destaque: União Geral dos Ferroviários, fundada em 1917 e desestruturada pela repressão policial pouco tempo depois (chegou a retomar suas atividades em 1919, mas logo se dissolveu); Liga Internacional dos Marceneiros, também fundada em 1917, em função das repercussões do movimento grevista no bairro; agremiação dos Barbeiros, que atuava coletivamente no sentido de estabelecer uma carga horária padronizada para a categoria, União dos Artífices em Calçados e a União dos Trabalhadores Gráficos (estes dois últimos, embora não possuissem sede no bairro aproximavam-se das demandas dos trabalhadores da categoria que trabalhavam ou residiam no bairro). Cada uma das dimensões salientadas – comércio, indústria, religião, esporte, lazer, organização sindical - e as muitas instituições mencionadas dariam, certamente, material para a elaboração de vários tomos de uma hipotética ”História Total do Bom Retiro”. Neste painel, não obstante, que se pretende mais abrangente, o esforço é identificar marcas e tons que foram sendo impressos, os quais conferiram ao bairro uma configuração sem paralelo em relação aos demais da cidade e às outras metrópoles brasileiras.
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Se o esforço até este ponto do texto foi o de apresentar omanancial de traços que delinearam a sua paisagem – arquitetônica e subjetiva - , não há como não destacarmos, mesmo de forma suscinta, as heranças legadas pelas principais colônias, que fizeram do bairro sua pequena pátria, seu locus de acolhimento e pertinência. O Bom Retiro judaico teve início com as primeiras levas imigratórias, por volta de1910, acentuando-se ao longo dos anos 30 com o recrudescimento da ameaça nazista na Europa (estima-se que, nesta época, havia na cidade de São Paulo por volta de 15 a 20 mil judeus). Manteve-se vigoroso até 1970/1980, deixando sólidas marcas, ainda muito vivas na memória daqueles que protagonizaram e testemunharam esta experiência. A facilidade com que a coletividade judaica transportou e adaptou seus modos de vida egressos da Europa Oriental (Polônia, Rússia, Romênia, Hungria, Ucrânia, Estônia, Lituânia, Bessarábia), criando uma estrutura comunitária nos moldes da que conhecia, revela-se pela quantidade de entidades judaicas criadas no bairro, já na segunda década do século XX, sendo que muitas delas mantêm-se atuantes e permanecem no Bom Retiro até hoje. A Sinagoga Kahalat Israel, na Rua da Graça (1912); a Sociedade Beneficiente das Damas Israelitas (1915), que provia caridade às mulheres e recém-nascidos e a Sociedade Israelita Amiga dos Pobres /Ezra(1916) 8, cuja missão era trazer e inserir os imigrantes, recebendo-os no porto de Santos, abrigando-os, ensinando o português e dando assistência profissional e econômica, foram as 8 A Ezra foi a principal entidade assistencial até a década de 1940. Nesta época, foi fundada a Organização Feminina Israelita de Assistência Social/OFIDAS a partir da fusão de outras existentes, Lar das Criança das Damas Israelitas e Gota de Leite. Sua diretoria era constituída exclusivamente por mulheres cujo foco de preocupação era a situação da criança e da mulher na família e na sociedade.
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primeiras, seguidas por muitas outras que vieram na esteira do sucesso das pioneiras: Policlínica Linath Hatezedek; Lar da Criança das Damas Israelitas; Cooperativa de Crédito Popular do Bom Retiro/Laie-Spar Casse; clubes esportivos e culturais (Macabi, Cadima, Círculo Israelita e Sport Club); a sociedade funerária Chevra Kadisha (ainda sediada no Bom Retiro); a Biblioteca Israelita;o Colégio Renascença, primeira escola judaica- paulistana, ainda em atividade (oferecia o diploma de primário junto ao ensino judaico, deixou de ter uma de suas sedes no bairro, há poucos anos, em 2003) ; em 1940, os movimentos juvenis HashomerHatsair, Dror, Ichud, Gardânia e Betar e em 1949, a fundação do Instituto Cultural Israelita Brasileiro/ICIB, centro do ativismo de esquerda e do teatro idish9. O volume de equipamentos criados pela colônia judaica ratifica a força da experiência comunitária, tendo se configurado como forte distintivo desta imigração. A efervescência das trocas no interior da comunidade deve-se à atuação das instituições e às 9O ICIB, também conhecido como “Casa do Povo” é herdeiro do Iuguent Club, que iniciou suas atividades em meados dos anos 1920. Esta agremiação transformou-se no “Centro de Cultura e Progresso” e a partir dele o ICIB foi constituído. Seus fundadoresconsideravam que a adaptação no Brasil não poderia prescindir da preservação de suas origens, através da valorização da cultura e língua idish, que era o meio de comunicação oral e escrita do grupo de imigrantes que se instalavam no bairro. De orientação progressista, consideravam que a aposta na consciência social e na justiça contribuiria para as mudanças que a sociedade brasileira deveria empunhar de modo a fortalecer a sua jovem democracia. O ICIB atuou diretamente na esfera cultural,através da criação de bibliotecas, grupos de leitura, corais e peças teatrais, que eram encenadas no Teatro de Arte Israelita Brasileiro/TAIB, criado como um anexo do Instituto e por onde passaram inúmeros atores e diretores consagrados nacionalmente. Além dos eventos culturais, o ICIB investiu também na educação progressista, fundando o Ginásio Israelita Brasileiro ScholemAleichem/GIBSA, importante marco escolar para a cidade como um todo (1949-1981). Apesar doergarçamento das ideologias e das graves dificuldades orçamentárias, o ICIB acompanhou com a mesma diligência e compromisso de outrora, as transformações da realidade brasileira e mundial. Há hoje uma intensa movimentação empunhada pela atual direção e por um grupo de ex-alunos e simpatizantes no sentido de repensar a vocação atual do ICIB e lutar pela sua revitalização física e institucional.
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diferentes orientações e projetos que balizavam cada uma destas iniciativas: sionista, bundista, comunista, socialista, religioso, hebraista, idishista e várias outras combinações. Ainda que tenha havido uma hegemonia das matrizes culturais oriundas da Europa Oriental, a convivência no interior da colônia judaica do Bom Retiro foi marcada por gigantescos conflitos e por muito dissenso. O mosaico de perspectivas e expectativas sobre a condição judaica no contexto brasileiro explica a convivência barulhenta que existiu, no mínimo, ao longo de cinco décadas, entre patrícios judeus. Esta experiência vigorosa, adjetivada nestes termos por jovens judeus de então, é fonte de muita nostalgia, tanto para os atores que protagonizaram os debates inflamados como para aqueles que testemunharam, à distância, esta movimentação. Os ecos desta antiga babel judaica, mesmo silenciados após a saída de um grande número de judeus do bairro e com as mudanças de configuração étnica ocorridas, ainda parecem rondar suas esquinas, prestes a produzir velhosnovos estampidos. A faceta vicejante que o bairro adquiriu nos anos em que se configurou como um “gueto” é expressa com vivacidade no relato de David Lindenbaum, jornalista, ex e atual morador do Bom Retiro10: (…) Ao abordarmos alguns aspectos históricos da esquerda nos anos 60, principalmente, no bairro do Bom Retiro, devemos ter em mente esse modelo imigratório que conferia ao judeu uma visão de mundo mais moderna do que a do japonês e dos italianos. O número e a representação dos judeus nas atividades de esquerda na mudança do mundo entre os anos 20 e 50, tanto na Revolução Bolchevique como nos movimentos socialistas europeus e, mesmo entre os comunistas norteamericanos foi proporcionalmente grande e essa visibilidade também os 10 Depoimento concedido especialmente para o projeto História do Bom Retiro, SescMemória,
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tornou perfeitos bodes expiatórios das crises políticas. Eles pegavam o judeu e falavam que a comunidade inteira é que era comunista. No Brasil, não foi diferente, nasceu no bairro do Bom Retiro, muitos atores dos movimentos sociais brasileiros e que fizeram deste espaço público o palco de discussões, reflexão das mais diversas ideias humanistas, socialistas e comunistas. Assim, era comum nas esquinas da Rua Prates com a Três Rios, na Bandeirantes com a Amazonas ou no Jardim da Luz vermos centenas de jovens discutindo, debatendo, refletindo ou tentando fazer a cabeça de seus colegas com as ideias oriundas das mais diversas linhas políticas… (….) Como no resto do mundo e de outros movimentos anos 60, o Bom Retiroviveu uma época rica…eu diria riquíssima….espontânea, que, de alguma maneira tentou romper com o modelo judaico europeu mais conservador. A repercussão dessa modernidade nas famílias judaicas dos protagonistas variava do apoio condicional (pais que apoiavam totalmente os filhos) à oposição feroz e ao desentendimento total, o que serviu de materia-prima para inúmeras sessões de psicanálise, que também se alinhava com as novidades culturais da época…. (…) Quer dizer, o Bom Retiro tem uma importância muito grande, principalmente para quem viveu neses anos conturbados da ditadura, isso é muito importante. Tinha movimentos juvenis, tinha formação política, formação cultural. Você saia do Bom Retiro e ia para o Bijou, para os cinemas de arte, se consumia livros, existencialismo, Simone de Beuavoir e Jean Paul Sartre, cinema francês, cinema ingles, cinema italiano, a pessoa tinha uma cultura fantástica diferente dos jovens de hoje em dia, que não tem essa cultura ampla, essa cultura global, global mas fragmentada ao mesmo tempo. Antigamente, como não tinha computador, não tinha nada, era global, mas era por dentro de literature, era por dentro de cinema, era por dentro de tudo… Então, o
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Bom Retiro tem essa importância muito grande, teve essa importância muito grande e como eu voltei a morar no bairro depois de alguns anos, porque eu saí também… fui viajar, me arranquei, a polícia atrás, fui preso pela Oban, fiquei 7 dias preso em 1973, aísaí do bairro… Embora este Bom Retiro israelita tenha se estruturado mais fortemente nas décadas de 1930/1940, periodo de intenso nacionalismo e chauvinismo no Brasil, o discurso xenófobo não chegou a ter significativa ressonância na cidade. Celebrada como berço das culturas imigrantes e do progresso como corolário do trabalho, São Paulo manteve-se receptiva aos seus “forasteiros” imbuída, possivelmente, da premissa antropofágica de Oswald de Andrade de devoração/ deglutição/transformação dos elementos culturais exógenos. A voracidade cultural que caracteriza a cidade, ao absorver e sintetizar, sem discriminação, práticas e valores dos grupos imigratórios que a escolheram como seu segundo lar, conferiu à metrópole paulistana o cosmopolitismo que a diferencia em relação às demais grandes cidades brasileiras. Eo Bom Retiro, dentre todos os bairros da cidade, é, sem dúvida, o que melhor sintetiza esta vocaçãosincrética que São Paulo assumiu desde o momento que rompeu com seu provincianismo e se comprometeu com o universalismo. A tinta judaica que parece ter impregnado o Bom Retiro, mesmo sucedido por outros fluxos imigratórios, deve-se à permanência contínua de mais de meio século, à vitalidade do cotidiano judaico engendrado por sua colônia e, sem dúvida, à prosperidade econômica conquistada pelo grupo através do comércio/indústria, que teve suas bases estruturadas no bairro. Identificados com a fabricação e comercialização de roupas prontas (casacos, coletes, vestidos, camisas, pull-overs, meias, ternos, chapéus, gravitas, pijamas, sobretudos), muitos deles, por falta de
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condições de ter o próprio negócio, iniciaram seu périplo como vendedores ambulantes. Os “russos de prestação” ou “clientelnchics”, como ficaram também conhecidos, desempenharam papel importante como mediadores culturais, estabelecendo uma primeira aproximação do universo judaico com a sociedade paulistana de forma mais ampla. Não podemos esquecer que, antes do Bom Retiro assumir características de um enclave étnico (década de 40), delimitado pela língua, cheiros, arquitetura, templos religiosos, sabores, vestimentas e símbolos inexoravelmente judeus, o bairro possibilitou uma convivência interétnica intensa entre judeus e italianos, grupo este que foi um dos primeiros contingentes a fincar sólidas raízes no bairro. Sofrendo com os conflitos internos decorrentes da unificação da Itália e de uma situação econômica desalentadora, milhares de italianos imigraram entre 1885-1909 por meio da política de imigração adotada pela província de São Paulo. Empregaram-se, em grande parte, nas indústrias e também foram empreendedores, introduzindo novas atividades comerciais. A permanência italiana no Bom Retiro deixou algumas lembranças memoráveis: a fábrica de chapéus “A Universal”, a fábrica de vassouras da família Casarin, a fábrica de macarrão dos Moscarelli, a destilaria dos Montarini, e as cantinas tradicionais – Monte Verde, Ouro Branco, Monte Negro e Monte Castelo - que permanecem irremovíveis, mesmo o Bom Retiro sendo conhecido hoje como um bairro fundamentalmente oriental. A memória coletiva que se construiu sobre esta convivência costuma arvorar a boa integração estabelecida entre as duas colônias, ainda que as diferenças culturais e religiosas não fossem tão desprezíveis. Oconvívio harmoniosoentre as crianças italianas e judias, brincando nas ruas ainda não asfaltadas e nos campos de futebol de várzea no rio Tietê, ainda
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limpo, é ressaltado de modo recorrente em vários relatos. Há, não obstante, um único momento onde as diferenças pareciam, de fato, inconciliáveis que era durante a Páscoa, no Sábado de Aleluia, quando os meninos cristãos queimavam bonecos personificando Judas. As mães judias, temerosas de uma possível represália, não deixavam seus filhos sairem nas ruas, sendo os judeus profanados como“assassinos de Cristo”. Como afirma Ida Rothstein Barreto Parente,11 antiga moradora do bairro, em seu vívido depoimento pontilhado por fortes imagens sensoriais: A composição da minha infância era de judeus, italianos e lituanos. Os judeus trabalhavam muito. Eram confeccionistas, alguns emprestadores de serviços para outros judeus porque eles eram artesãos. Todos sabiam trabalhar, alguns eram sapateiros. Tinha até carvoeiros porque o gás não estava disseminado e se cozinhava até com carvão e fogão primus…(....) Na minha rua moravam os lituanos, na Rua Mamoré, lá pra baixo. E era muito animado porque a rua não era calçada e a rua era da gente. São Paulo não era a metrópole que é hoje. As ruas eram das crianças. Os lituanos bebiam muito, muito e quando bebiam quebravam tudo na casa, batiam na mulher, vinha radio-patrulha, para nós era uma festa, pra criançada. Também quando morria alguém as portas eram abertas e as crianças entravam e saiam paraver os defuntos… Tinha também os italianos com suas tradições, seu catolicismo e tinha também um certo antissemitismo até insuflado pelas crianças porque quem era o papa na época era o Pio XII que, pelo que consta, até ajudou os nazistas. O Sábado de Aleluia os meninos queimavam Judas, mas se passasse um judeu barbudo, que tinha muito judeu religioso, eles seriam capazes de atacar porque ele teria matado 11 Depoimento concedido especialmente para a pesquisa História do Bom Retiro, em 25/05/11, Sesc-Memória.
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Cristo…. Como a gente morava em uma rua que tinha italianos, lituanos e judeus, a gente se ligava com todos. Criança é moleque, então vamos brincar de esconde-esconde, pega-pega, sei lá. Pedrinha, jogar pedrinha. Havia uma comunicação boa, razoável, porque todo mundo se igualava pela idade, pelos interesses…. As cadeiras nas ruas, todo mundo sentadinho na rua conversando, as crianças brincando, as mulheres trocando ideias. Festa de São João, fogueira na rua, todo mundo participava. Batata doce assada na própria fogueira, amendoim, pipoca. Tinha um pipoqueiro que morava no nosso porão, um pipoqueiro negro… Ah, mas também tinha a procissão e eu achava lindo, lindo de morrer. As meninas de anjo faziam um percurso grande, várias ruas pelo bairro. E tinha um lado espetaculoso da coisa, o andor, os santos carregados lá em cima. Eu sabia ”Ave, ave, ave Maria”, eu conhecia as músicas, as rezas também. Essa coisa combinada você incorporava, você testemunhava pelo menos, sem abrir mão da sua condição. Eu nunca abri e vou explicar porque, mesmo depois. Eu casei com um não judeu contra a minha família. Em tom semelhante ao de Ida Parente, o crítico literário e editor Jacó Guinsburg 12 rememora sua infância no início dos anos 30, destacando a coexistência harmoniosa entre diferentes grupos étnicos e classes sociais: Quase todos os meninos judeus eram corintianos, enquanto quase todos os italianos eram do Palestra. Mas, neste tempo, nossos pais eram chamados, mesmo, era de “russos de prestação”. E só com o correr dos anos 30, com o integralismo no Brasil, com a subida de Hitler na Alemanha, etc, é que começou a se falar mais no “judeu”. Afinal, estes 12Revista Shalom-história, número especial “Quando os judeus descobriram (e amaram) São Paulo “, ano XIX, n.223, agosto de 1984.
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meninos todos do Bom Retiro eram iguais. Iguais e tremendos … (…) Na rua em que eu morava – a Amazonas – tinha casas melhores e casas mais pobres. Minha tia era uma mulher mais do que remediada. Meu avô veio para o Brasil antes da Guerra de 1914; ele faleceu e ela mantinha o resto de sua fortuna. Então nós morávamos nessa casa com ela. Era uma casa enorme, com um quintal imenso, enfim, como essas casas antigas, tão gostosas. Ao lado de nossa casa, estava um concessionário do serviço de restaurante da Paulista. Era um homem rico, e o filho dele era médico. O filho dele brincava conosco embora tivesse um status diferente. E ao lado estavam os filhos de Gino Meneghetti, e, na frente um sapateiro, e, bem perto, morava um homem que trabalhava na Estação da Luz como carregador. Então, essa era a composição de nossa rua… E a partir de 31, chegaram os lituanos, que foram, em sua maioria, morar em porões, que tinham umas janelinhas que davam para as ruas… Com o recrudescimento do Nazismo e à iminente eclosão da Segunda Guerra Mundial, as diferenças étnicas, até então bastante diluídas, começaram a ficar mais acentuadas. Os integralistas – simpatizantes do nazismo – afrontavam os meninos judeus nas escolas e nas ruas. Havia também certa influência do fascismo entre os italianos, embora fosse ainda tênue. A resistência judaica aos ataques era feita, em geral, com o apoio das organizações de esquerda. Estes anos pré e durante o conflito mundial foram, sem dúvida, os mais lúgubres para o Pletzale, que foi uma instituição judaica não formal, tão ou mais importante que todas as demais destacadas anteriormente. Funcionando como uma plenária em pleno céu aberto, uma espécie de ONU, acontecia na Rua da Graça com Rua Ribeiro de Lima. Ali se concentravam mais de 400 homens, vestindo os seus melhores ternos e trajando chapeus (um ritual para os velhos
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judeus da Europa Oriental), que se reuniam, preferencialmente, aos domingos pela manhã para falar de negócios, política, reminiscências da Europa, literatura idish. Entre 1944-1945, as notícias sobre o que havia acontecido com os judeus começaram a aflorar e o conhecimento sobre os campos de concentração foi ganhando cada vez mais publicidade. O Pletzale foi continente a tudo que afetava a comunidade – do mais prosaico acontecimento ao mais fantasmático: as notícias sombrias que foram sendo descariladasao final da Guerra,relatos dos próprios sobreviventes, que afluíram ao Brasil depois de 45, a constituição do Estado de Israel. Segundo David Lindenbaum: (…) O Pletzale era na esquina da Rua da Graça com Rua Ribeiro de Lima… lá era um lugar onde domingo de manhã se reunia mais de 300, 400, 500 pessoas e durante a semana se reunia para falar de dólares, para se falar de gente que vinha com tatuagem nas mãos, os números do campo de concentração…para as crianças tudo aquilo não se divulgava como se divulga hoje, então quando a criança via algum cara com um número na mão tatuado, aquilo era muito forte porque alguém falava assim: “você não sabe de onde vem esse número… esse número é porque ele passou no campo de concentração”e a criança tentava imaginar o que era campo de concentração, o que é sofrimento… então são coisas muito marcantes assim de bairro, além dos cheiros de comidas, as turmas, as crianças… (…) A cada ano uma turma ia para Israel fazer Aliá, isso provocava assim uma certa tristeza, ao mesmo tempo orgulho que o Estado de Israel estava se formando. Uma certa tristeza que a gente moradora do Bom Retiro ia perder seu vizinho, a mãe ia perder o filho, o tio ia perder o sobrinho…(…) o judeu não era só comerciante, não era só um atravessador de comércio, mas era um cara que na pirâmide social ele
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também tinha que voltar a ser agricultor, então tinha orgulho de voltar a ser agricultor…. A pulsação do bairro em seus anos de forte influência judaica teve várias outras expressões pregnantes. O teatro ídish, que começou de forma incipiente para um pequeno público, com apresentações em torno das obras dos grandes escritores ScholemAleichem e I.L. Peretz no espaço do Grêmio Luso-Brasileiro foi, aos poucos, angariando o interesse de toda a comunidade. Funcionando como elemento catalizador de judeus de diferentes orientações políticas, reuniu toda a burguesia no Instituto Cultural Israelita Brasileiro (ICIB), estigmatizado por seu forte viés esquerdista. Aconstrução de uma sala teatral voltada para o gênero, devido às dificuldades econômicas, só veio a ser inaugurada em 1960. O Teatro de Arte Israelita Brasileiro/TAIB13 ligado ao ICIB, sediou espetáculos memoráveis de dramaturgia ídish e muitos integrantes mais jovens acabaram migrando para os grupos do movimento renovador do teatro brasileiro, como o Arena, por exemplo. Segundoo ator/empresário José Serber14: Para o Brasil houve um aporte cultural com toda essa bagagem que chegou e se adaptou às dificuldades do novo meio. Há algumas criticas do grande especialista em teatro – Décio de Almeida Prado – além de outros críticos importantes da época: eles iam assistir aos espetáculos, não entendiam, mas achavam que eram bons espetáculos de teatro. (..) 13A sala de espetáculos do TAIB encontra-se, no momento, em estado de pleno abandono. Imagens da deterioração podem ser vistas no registro fotográfico de Bob Wolfensonpara a exposição “Bom Retiro e Luz: um roteiro, 1976-2011”, Centro de Cultura Judaica, 05/07 à 02/10. Alguns esforços – por parte do poder público e da iniciativa privada - vêm sendo empunhados no sentido de recuperar fisicamente a sede e retomar suas atividades. 14 Waldman, B. O teatro ídiche em São Paulo. São Paulo: Casa Guilherme de Almeida &Annablume, 2010, p.56.
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Numa certa altura quase que o teatro de Arena se junta ao TAIB. Eles se animaram porque viram como, por volta de 1953-1954, nós próprios tirávamos o entulho, as tábuas e montamos um palco, e os espectadores sentavam em cadeiras comuns, a partir daí empreendemos uma campanha muito grande, e foi então construída uma das melhores salas de teatro de São Paulo. O povo do Teatro de Arena vibrou com essa história que acontecia na zona norte de São Paulo (…) Como o Teatro de Arena sempre lutava contra dificuldades, porque era muito pequeno (…), a opção de trabalhar no TAIB, emuma casa maior, com maior conforto, era uma tentação… Nos anos em que houve o endurecimento do regime militar, entre 19641968, o ICIB foi extremamente visado pela repressão por ser identificado como um espaço progressista. O Coronel Erasmo Dias, quando se referia aos judeus comunistas denominava-os de “o setor judaico”. A repressão física e moral, as prisões e o clima sombrio que o país viveu neste periodo acabaram por enfraquecer a Casa do Povo. Todas as atividades culturais, por extensão, como o Teatro, acabaram sendo suspensas. Mas há um aspecto que se manteve inquebrantável ao longo deste percurso e parece ainda atavicamente associado ao bairro, do mesmo modo que o comércio, as instituições de ensino, as instituições culturais15, os clubes recreativos e desportivos: a culinária. Os cheiros das comidas – os beigales que eram vendidos nas ruas, pepinos, pães pretos fresquinhos que podiam ser comprados em fatias, o petsidure (sorvete artesanal) e as 15 Este é, sem dúvida um dos aspectos mais atraentes que a região LuzBomRetirooferece à cidade de São Paulo. Dentreosequipamentosculturaispúblicosmaisimportantes, destacam-se: Pinacoteca do Estado de São Paulo, Museu da Lingua Portuguesa, Museu de Arte Sacra, Oficina Cultural Oswald de Andrade, ArquivoHistórico Municipal Washington Luís, Museu da Energia.
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balinhas com formato de bonequinhos da Mercearia Aurora, a laranjada de São Pedro, embalada em garrafinhas pequenas, as iguarias italianas, as moussakas, os açogues kasher– denotam a existência de um caldeirão de culturas, que foi pluralista também no quesito dos sabores. Se fossemos retraçar as correntes imigratórias que atravessaram o Bom Retiro através de suas respectivas cozinhas, no caso da inexistência de outras fontes, nãonos enganaríamosquanto à natureza dos fluxos. Italiana, judaica, armênia, coreana, grega, boliviana; todas estas culinárias mantêm-se lado a lado, disputando sua freguesia, independentemente das respectivas colônias terem se mantido ou não vinculadas ao bairro. Mais um aspecto, de forte apelo, que o torna extremamente sedutor. Com relação ao grupo hoje hegemônico -coreanos -o processo de ocupação no bairro teve início a partir dos anos 1970. Grande parte dos imigrantes fez do Bom Retiro seu local de trabalho. Em termos de moradia, o reduto inicial dos primeiros coreanos foi a “Vila Coreana” na Liberdade, tradicional reduto de japoneses em São Paulo. O fato de o bairro ter uma forte tradição no ramo comercial, próximo à zona central e bem servido em termos de transporte urbano foi determinante para a sua escolha. Com um percurso semelhante ao traçado pelos judeus nas décadas de 40/50 e 60, a rápida mobilidade econômico-social experimentada pelos coreanos em São Paulo deveu-se ao engajamento visceral da família no trabalho e dos fortes vínculos comunitários com a colônia, facilitadora no processo de adaptação na nova pátria. O espírito competitivo, que é uma marca distintiva das culturas orientais, o pragmatismo em torno das metas estabelecidas (criar o próprio negócio) e o enorme sacrifício despendido pela família toda (longas jornadas de trabalho, engajamento dos mais jovens aos mais velhos e uma pauta mínima de despesas) são os aspectos que justificam o rápido crescimento
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econômico dos coreanos, que hoje dominam, indubitavelmente, as atividades comerciais do Bom Retiro. Comerciantes judeus, gregos, nordestinos, bolivianos reverenciam a capacidade e diligência dos colegas coreanos no comando de seus negócios e há unanimidade em afirmar que foram eles os responsáveis pelo revigoramento e dinamismo do comércio na região do Bom Retiro, nos últimos quinze anos. A estrutura de acolhimento que a comunidade ofereceu através das suas múltiplas associações foi de capital importância para a rápida adaptação do grupo, mas, na realidade, foram e são as igrejas (sobretudo as protestantes) que funcionam como “pontos de condensação de toda uma rede intracomunitária de sociabilidade e solidariedade”16. Mais do que oferecerem serviços religiosos, as igrejas17 desempenham uma multifuncionalidade: são pontos de recepção de recém –chegados, pontos de agregação dos já estabelecidos, local de discussão sobre oportunidades de trabalho, local de troca de notícias sobre a Coréia, local de aprendizado sobre a cultura/lingua e história do país de origem e do país de adoção, local de agenciamentos matrimoniais. Mesmo os coreanos de orientação laica tiveram que render-se à sociabilidade nas igrejas, em nome de sua plena inserção comunitária. Como afirma André Lee18, diretor administrativo da Associação Brasileira dos Coreanos: Existe uma escola de dança coreana e muitas pequenas associações ou grupos separados, mas eles não fazem um evento. Existe a dos... 16 Para saber mais, ver Truzz, O. “Etnias em convívio: o bairro do Bom Retiro em São Paulo”, Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.28, 2001. 17 Das igrejas sediadas no bairro, destacam-se: Igreja Batista Coreana, Igreja Missionária Oriental de São Paulo, Igreja do Senhor, Igreja Presbiteriana, União da América do Sul, Igreja Nova Vida, Igreja Católica Coreana. 18 Depoimento concedido especialmente para a pesquisa História do Bom Retiro, 27/05/2011, Sesc-Memória.
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demonstração do Tae-kwon-do... acho que é o principal promovedor, digamos assim, de cultura, é Associação Brasileira dos Coreanos, que é aqui, a sede é aqui, infelizmente. O motivo de estar aqui é porque, naquela época, os coreanos moravam mais aqui, na Aclimação. Justamente por esse motivo fundou aqui, mas hoje em dia deveria estar lá, né? Estamos tentando mudar também. E o que tem mais lá? Conhecido
para
os
brasileiros
é
a
acupuntura,
tem
muitosacupunturistas.... (....)Justamente, quem está fazendo mais isso aqui [são] as igrejas, que fazem uma escola meio dominical, mas é de língua, para os coreanos. Então muitas igrejas estão fazendo isso para divulgar mais [a] língua coreana, primeiro, [para] assim começar a ter cultura coreana, né? Porque justamente a língua coreana é uma língua que, realmente, está diretamente ligada à cultura. Então, primeiro língua, depois cultura A igreja coreana aqui no Brasil é protestante. A religião da Coreia, na verdade,
não
seria
protestante
ou
católica.
Seria
budismo,
confucionismo, essas coisas todas. Mas isso já tinha [se] alterado há uns duzentos anos atrás lá na Coreia. Aqui no Brasil, tendo que... nem é uma estimativa oficial, mas oitenta porcento dos coreanos frequenta a igreja, só que não por causa de fé. . [A] maioria... metade é porque não tem onde se apoiar, não tem onde receber ajuda, essas coisas todas. Então, isso acontece com todo mundo.... Quanto à convivência interétnica entre judeus e coreanos, diferentemente do que aconteceu entre judeus e italianos, nas décadas de 20/30/40, a sociabilidade não foi erigida nas ruas, nem nas relações de vizinhança, mas na esfera dos negócios. Em primeiro lugar, porque os espaços de lazer deixaram de ser públicos: os encontros sociais acontecem no âmbito
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familiar ou são organizados em associações e clubes de grupos definidos. Os judeus têm os seus, assim como os coreanos também os seus próprios. Outro fator que explica a qualidade distinta de vínculo entre as colônias é o fato de o bairro ter se tornado eminentemente comercial e não mais residencial. O êxodo dos judeus do Bom Retiro vem acontecendo desde a década de 1970 (permanecem os mais idosos ou os mais religiosos, em vista do grande número de sinagogas que ainda se mantêm em atividade). Os coreanos, por sua vez, nunca o privilegiaram como espaço de moradia. No entanto, há algumas situações inusitadas que acontecem no Bom Retiro, justamente pela “promiscuidade” física (interpretada no sentido valorativo de proximidade) entre os diferentes agrupamentos étnicos: o negro convertido ao judaísmo e com uma vida religiosa praticante, cujo filho está se preparando para imigrar para Israel; o negro mecânico que fala idish, cuja filha mora em Israel; o nordestino que tem uma mercearia de comidas judaicas, cujos funcionários, na maioria, também nordestinos, falam com naturalidade sobre o Borsht, o Varenike, o Guefilte Fish, a Halá com suas freguesas da Europa Oriental; a japonesa cujo avô falava tupi-guarani, casada com um judeu, cujos filhos estudaram em escola judaica tradicional; o francês que imigrou para os EUA, conheceu e casou-se com uma coreana, mudou-se para o Brasil e hoje dá aulas de inglês para a colônia coreana, o cearense que conheceu a judia e apaixonou-se pela cultura judaica, entre tantos outros enredos que tecem a singularidade do Bom Retiro. Sendo assim, apesar dos esforços da colônia coreana em manter-se coesa, um número expressivo de suas crianças estudam hoje nos colégios tradicionais existentes no bairro: no Colégio de Santa Inês, de freiras salesianas, eles representam 30% da clientela e também em uma escola judaica, que exige, inclusive, a freqüência em disciplinas obrigatórias de cunho étnico, como lingua hebraica e história e tradições do povo judeu.
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Apesar do enorme fosso que separa a cultura oriental da brasileira, o processo de adaptação tem sido dinâmico e bem-sucedido. A porosidade que caracteriza a cultura brasileira tem absorvido as diferenças sem grandes violências. E ainda que a segunda geração mantenha-se próxima à colônia ao permanecer atrás dos balcões, tocando os negócios familiares, por aferir que o comércio lhe proporcionará um futuro econômico mais auspicioso do que suas profissões lhes acenam hoje (em grande parte, portadores de diplomas universitários), há um contínuo desligamento em relação às referências e raízes culturais de seu grupo. Motivo de preocupação para as liderançascomunitárias, que vêm dedicando esforços para que os coreanos já nascidos no Brasil se reconciliem com suas origens e se auto-titulem brasileiros coreanos e não apenas brasileiros. No entanto, é importante ressaltar que a assimilação crescente da segunda geração não significa que o encontro cultural tenha se dado sem rugosidades e atritos. Com relação aos bolivianos, o grupo mais recente a ocupar o bairro (há muitos latinos que são indistintamente denominados de "bolivianos", embora sejam peruanos, paraguaios, argentinos ou chilenos), durante a semana, a sua presença no Bom Retiro é discreta, já que muitos são imigrantes ilegais e passam os dias enfurnados no interior das oficinas de costura. Aos domingos a comunidade ganha visibilidade e reúne-se, do outro lado da avenida Tiradentes, na praça Lourenço Francolino, rebatizada pelos freqüentadores como Plaza Kantuta, nome de uma flor típica do altiplano andino. A grande maioria dos freqüentadores é composta de homens jovens, mas há também famílias com crianças pequenas já nascidas no Brasil. A chamada "feira boliviana" da praça Kantuta é um aglomerado de barracas brancas, cedidas pela Prefeitura, ao
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redor de uma quadra de futebol, com comidas típicas, vendas de CDs, artesanato, vídeos, serviços de barbeiro, anúncios de emprego e um espaço onde se alugam celulares para chamadas internacionais. O suco feito de pêssego seco e o api, um mingau de milho branco servido com xarope, são considerados os hits gastronômicos mais consumidos. A situação de fragilidade econômica e institucional que o grupo ainda se encontra (há relatos de comerciantes bolivianos que têm conseguido ascender socialmente, embora sejam ainda casos pontuais) e o fato desta imigração ser recente impossibilitam a elaboração de uma análise taxativa sobre a qualidade das trocas culturais entre os bolivianos e os demais com os quais coexiste e o legado deixado para o bairro. Do mesmo modo que o ocorrido com os seus antecessores, esperamos que seu futuro seja igualmente venturoso e que suas pegadas fiquem inscritas na paisagem do Bom Retiro, alimentando o caldeirão com mais ingredientes e temperos. Em função de tudo que foi exposto e trazido para o corpo deste panorama podemos concluir que o Bom Retiro é uma espécie de “organismo pluricelular”. Uma enorme engrenagem em constante atividade sendo sempre galvanizada por novos desafios e interferências. No entanto, ao cotejarmos sua história verificamos a solidez de seus pilares. Que suas bases sólidas continuem servindo de baliza e inspiração para as muitas mudanças que virão no porvir. E que auxiliem o bairro a resistir à decadência e aos graves problemas sociais que enfrenta (cracolândia, moradores de rua, falta de segurança pública, entre os mais candentes). Não obstante a riqueza do seu “cadinho cultural”, ela é potencial e pode ou não ser experimentada, dependendo da sensibilidade e vontade – no âmbito individual e coletivo –de seus ocupantes em ver, ouvir e desejar a diversidade. Que grupos multiculturais e sociais como o constituído no
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Bom Retiro por Emmanoel, Washington, Antônio, Nery, Wellington, Sebastião, Paco, se multipliquem. O Sesc tem como desafio, justamente, acolher todas estas experiências, favorecendo o seu diálogo. E quando lembramos que o gesto de acolher foi o que mais o Bom Retiro fez ao longo de sua história, a função outorgada à nova unidade construída na Alameda Nothmann ganha mais força ainda. De acordo com o inventário de referências culturais produzido pelo IPHAN-SP, o Bom Retiro dispõe de mais de 200 expressões de significativo valor cultural, dentre elas destacam-se as seguintes expressões materiais e imateriais: Assim, no Bom Retiro, a pletzel – reuniões diárias de senhores de origem judaica para conversar em ídiche em plena rua – é considerada uma referên- cia cultural. A salteña – alimento de origem boliviana que se compõe de uma massa de farinha de milho de recheios variados – também é considerada referência cultural. A procissão de Páscoa realizada pela comunidade religiosa cristã ortodoxa dos gregos pelas ruas da região também é uma referência cultural. A dança ensinada por uma escola coreana situada no bairro é referência cultural. As vilas com detalhes arquitetônicos entalhados por artesãos de origem italiana é referência cultural. O futebol, introduzido pelos ingleses nas antigas chácaras do Bom Retiro e apropriado por grupos de imigrantes no começo do século XX e hoje espraiado por todo o território brasileiro, também é referência cultural. As missas rezadas em armênio nas igrejas cristãs localizadas na Av. Tiradentes são referênciasculturais. A Escola Prudente de Moraes, com sua singularidade histórica, arquitetônica e de lugar de convivência de relações multiculturais, é referência cultural. A própria Rua José Paulino, por ter abrigado as inúmeras transformações do bairro e ter sido o lugar privilegiado de fermentação das relações
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multiculturais entre variados grupos e indivíduos de origens diversas, também é considerada uma referência cultural. Finalizo este passeio histórico pelo Bom Retiro, concedendo a voz aos meus depoentes, que sintetizaram de forma bastante pungente o sentimento em relação ao bairro:
(....)Na verdade todo processo evolutivo você sempre ganha. Eventualmente você pode ter algumas perdas, então isso não tem jeito né. Todo processo evolutivo você caba ganhando, acaba melhorando de uma determinada forma. Então veja bem, você não tinha metrô, você não tinha nem todas as ruas você tinha saneamento básico, não tinha ações, várias ações dentro da escola e dentro do bairro propriamente dito entendeu. Agora você tem perdas. Por exemplo, a saída dos judeus daqui, da comunidade daqui eu acho que foi uma perda. Por que uma perda? Porque eles traziam um aspecto cultural muito importante. Aí por outro lado você vai falar assim, houve uma degradação, uma leve degradação? Houve, porque vieram. Por exemplo, você começou a ter instalações comerciais irregulares tipo essas oficinas de costura que usam muito o trabalho escravo dos bolivianos, dos colombianos, os coreanos vieram e instalaram e então você nota, virou um bairro…A colônia coreana veio prá cá. Ela se instalou no Bom Retiro e ao ela se instalar os judeus saíram e trouxeram suas coisas boas e suas coisas ruins. Então o aspecto que mais me chama a atenção é isso. Melhoria você nota…se você for andar daqui até a rua da Graça você vai encontrar por exemplo dez tipos de restaurantes prá você almoçar um diferente do outro. Tem o coreano, você vai encontra um judaico, você vai encontrar um brasileiro, você vai encontrar um nordestino, você vai encontrar um de comida paulista, um de comida mineira. Isso aqui é meio uma Torre de Babel onde você encontra um judeu, um coreano do norte, um coreano do sul, um nordestino, boliviano, chileno, peruano... (Antonio Carlos)
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(....)Não... eu moro fora do Bom Retiro já tem uns 20 anos, mas ele tem uma espécie de imã e eu sempre acabo aqui, uma porque meus pais moram aqui e eu acabei vindo trabalhar aqui, eu conheço esse bairro... eu conheço a respiração dele, eu pulso junto com ele, essas ruas quebradas, tem uma beleza, tem uma beleza... é referencial, minha infância toda foi aqui. Nunca teve muita coisa para fazer, se você quisesse fazer alguma coisa você tinha que sair do bairro, mas ele tem cheiro de chá da tarde de sábado... quando eu estou muito cansada ou quando eu estou triste ou mesmo quando eu estou muito alegre eu vou comer bem ali a tarde e eu fico sentada ali vendo quem entra, quem sai, daquele gostinho de burikita, daquela massa sem graça e me dá um prazer imenso. É bom estar no Bom Retiro, é como se tivesse me perdido em um momento e eu volto para cá... ai eu falo, “Ahh aqui eu conheço, eu conheço essas pessoas”, eu pulso eu conheço a pulsação dele e isso me dá um prazer.... A vocação dele de acolher as comunidades permanece e vai permanecer sempre. Quando eu era criança tinha uma esquina, tem ainda, a esquina permanece que é na Ribeiro de Lima com a rua da Graça... (...) Não, ali ficavam vários judeus e todas as nacionalidades do leste falando e falando, procurando e trocando dólar, aquilo parecia uma feira, era para mim a própria babilônia, embora eles falassem a mesma língua, mas era um mundo num bairro aquilo. Você podia comer uma sopa no Cecília que era a mesma sopa da Sara, mas com um tom totalmente diferente, isso é uma coisa muito interessante, o Buraco da Sara que era um lugar apaixonante, embora tivesse comidas maravilhosas a gente cismava em comer ...mas o Bom Retiro para mim foi a abertura para o mundo de falar “olha, existe um país que se fala tal língua, que se come tal coisa, que as pessoas tem esse tipo de cabelo e as pessoas vivem dessa maneira como vivem aqui”... ele tem um pulsar diferente....(....)Não tem porque os parentes do meu pai que são muito mais velhos, então eu não tenho relação com eles, com essa coisa italiana. Embora os meus avós morassem conosco e falassem italiano, isso não é o Bom Retiro, isso é a família Ponzoni que não é o Bom Retiro... o Bom Retiro é outra coisa... são as sinagogas interessantes que eu nunca entrei, são as comidas, são... é outra religiosidade, é outra coisa. (ZiláPonzoni)
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Do bairro eu continuo achando esse clichê é válido, porque todo clichê apesar de ser clichê, ele traz realidades... não é possível só porque você fala clichê e com isso você apaga todo o negócio... tem clichês que a gente adora...a gente vive muito de clichês. Então dos clichês do bairro que é esse fluxo imigratório, vem italiano, vem judeu, vem coreano, vem boliviano, vem gente fazer compras no dia das mães, no dia dos pais, no dia dos namorados... esse Bom Retiro circular de gente andando, andando, andando é legal... esse clichê apesar de ser clichê é bom porque traz parte econômica, parte econômica ajuda muita gente ... você vê de manhã o metrô Tiradentes saindo gente para vir trabalhar, seis, seis e meia, sete, sete e meia, oito, são multidões levas e levas de gente que moram em lugares muito distantes que levaram três, quatro horas para vir para cá, que vão ganhar o seu dinheiro e levar e poder dar uma vida melhor para os filhos... quer dizer, essa parte é legal, essa parte do bairro andando, do bairro caminhando, do bairro produzindo riquezas, do bairro trabalhando, arrumando emprego. Quando chega sábado à tarde e domingo, é um vazio... e é um vazio que te remete a um vazio antigo, um silêncio sabe... esses prédios velhos, só judeus andando no Jardim da Luz, os velhinhos nas sinagogas de manhã... os silêncios do domingo de manhã do Bom Retiro são muito significativos, são muito fortes, parece que tem...todas aquelas pessoas que moraram aqui, nos domingos de manhã elas saem das sua tumbas com suas almas e vem sobrevoar aqui o bairro sabe, ficam voando aqui... “aqui eu morri, aqui minha neta mora, aqui minha mãe se matou”... sabe essa coisa meio... o que sobrou do Bom Retiro é legal essa parte imigratória, essa memória de quem gosta disso daí... é um bairro vivo, é um bairro que pulsa.... (David Lindenbaum) (...) Eu acho o Bom Retiro uma grande escola, uma bela escola de comércio, tá? E se aqui não aprender, não aprende em lugar nenhum, são negócios menores, claro, mas é uma escola, aqui se aprende para se projetar pro mundo, pra qualquer lugar do mundo. São várias raças, se juntam... Bacana, muito bacana. Então tem esse
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dinamismo de passar de geração, mudar gerações e mudarem, mudarem, mudar o domínio, mudar as raças, é isso que eu acredito... (Cristo Teodorapoulos) Mistura de nacionalidades e poder aprender com outros costumes.. e se tornar mais tolerante (Washington Saramuga) É uma Nova Iorque, é melhor do que Nova Iorque! (Antonio Caetano Martins)
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