Tão perto tão longe

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Tão perto tão longe Maria Eugenia Bofill Assistir a uma partida de futebol, viajar de avião, hospedar-se em um hotel de luxo ou tietar celebridades seriam atividades comuns ou, pelo menos, possíveis para qualquer pessoa. Mas há quem esteja impedido de desfrutá-las. Por falta de oportunidade, profissionalismo ou questões éticas. A angústia de desejar algo aparentemente próximo, porém inalcançável, pode se revelar nos momentos mais inesperados, como no próprio trabalho. Há, ainda, aqueles impedidos de desfrutar das tentações com as quais convivem todos os dias. Apesar de sempre atuarem dentro do estádio Beira-Rio, em Porto Alegre, nos dias de jogos, as irmãs coloradas Rosiane e Lisiane Reis, 37 e 39 anos, respectivamente, jamais conseguem assistir ao que se passa dentro das quatro linhas do gramado. As três são responsáveis por fazer e vender as pipocas em frente ao portão sete. “Quando os campeonatos são grandes, temos muita vontade de assistir aos jogos, principalmente quando ouvimos a torcida cantar”, conta Lisiane. Pela 22ª rodada do Campeonato Brasileiro, no dia nove de setembro de 2015, por exemplo, as irmãs apenas ouviram seis vezes a comemoração da torcida nos seis gols aplicados pelo Internacional no Vasco da Gama. As duas reconhecem os gols ao escutarem a vibração da torcida e a locutora anunciando o autor da façanha. É o sinal para as coloradas pegarem seus pompons e pularem atrás do balcão. O que acontece na partida é imaginado pelos barulhos que a torcida transmite, ou também pelos questionamentos rápidos aos torcedores que descem até lá para comprar a pipoca. Não há se quer um rádio para as irmãs escutarem ao jogo. A televisão que fica entre os vendedores de pipoca e de pizza, transmite apenas vídeos institucionais do time. Quando os milhos da pipoca demoram a estourar, a fila de torcedores aumenta, e a impaciência por perderem alguns minutos de jogo, também. A torcida se anima, “foi gol?”, questiona um torcedor que está na fila, “não, esse não é o grito de gol”, responde Rosiane. Vitor Hugo é o terceiro integrante da turma da pipoca. Marido de Rosiane, ele trabalhava como segurança no Beira-Rio antes da modernização. Esteve presente no Bicampeonato da Libertadores em 2010, no Bicampeonato


da Recopa no ano seguinte, e nas finais dos Gauchões de 2011, 2012 e 2015. Não assistiu a nenhum dos jogos. “Talvez chegue o momento em que a gente não preste mais serviço e possa assistir ao jogo, só torcer e se divertir”, espera. Os clássicos do futebol ou os jogos de decisões são os que mais despertam a vontade. Quando os bumbos da banda da torcida organizada batem com mais intensidade ou quando as vozes dos torcedores se exaltam, os três sabem que o jogo está em um momento mais intenso. “A gente ouve a torcida e se arrepia toda”, conta Rosiane. Mas às vezes Vitor não resiste às espiadas, “mas conta que na semana passada tu fugiu e ainda conseguiu assistir aos gols”, revela Lisiane. O trio não está sozinho na vontade de ver um jogo do Internacional. Com a reforma dos estádios para a Copa do Mundo e a proximidade das torcidas do campo, surgiu a função árdua de seguranças de torcida, denominada steward. A posição deles é privilegiada, dentro do campo, perto dos jogadores. Porém, eles permanecem de costas e são impedidos de assistirem aos jogos. Vestindo um uniforme laranja, cuja cor que pode ser identificada a metros de distância, Erick Morgenstern é um dos que nunca mais assistiu a uma partida do Colorado em casa desde a reforma do estádio. Os 90 minutos parecem uma eternidade. Erick está bem ali, dentro do campo. O que o separa de assistir aos jogos do seu time é apenas uma olhada para trás. Mas está nas regras: não pode vibrar, não pode cantar, quiçá virar para o campo. O que resta é torcer calado. Mesmo depois de um ano e oito meses, Erick ainda não acostumou-se à função. “É angustiante. A gente se baseia pela torcida, ela é o nosso reflexo”, ressalta. Quando os torcedores se animam, batem palmas, xingam e até calam, é inevitável a espiada pelo telão. As unhas são roídas, as mãos se unem e fazem movimentos para cima e para baixo, estica-se as pernas e depois volta-se a encolhê-las, entre uma bocejada e outra. Uma espiada pelo telão é o máximo que consegue fazer. “Tu sabe que tudo está acontecendo atrás de ti. E tu não pode ver, nem olhar para trás. Se o torcedor sente uma emoção assistindo ao jogo, imagina de costas, que tu ainda precisa imaginar o que está acontecendo dentro de campo.”


Mesmo distante dos colorados do Beira-Rio, Andréia Pulz, 44 anos, vive a mesma angústia. Todos os dias, entre 5h30min e 11h30min, passam pilotos de avião, aeromoças e passageiros rumo às aeronaves dispostas na pista do Aeroporto Internacional Salgado Filho. Mas o mais próximo que Andréia chegou de um avião foi no Raio-X de passageiros, que antecede o embarque, onde trabalha. “As borboletas começam a voar aqui dentro quando penso na possibilidade de eu mesma voar”, ela brinca. A falta de oportunidades e as questões financeiras impedem de ser a próxima a fazer um check in, despachar as malas, passar bolsas e objetos pelo equipamento de Raio-X. “A gente fica bem curioso. É tudo tão pertinho, mas não é pra ti", lamenta. “Acho que deve ser estranho aquela coisa, daquele tamanho, voar tão alto e se tornar tão pequenininho depois”, imagina Andreia. Usando calça e blazer preto, camisa azul clara e crachá de identificação, a agente faz questão de chamar todos pelo nome, desejar um bom trabalho ou boa viagem. Uma das histórias de viagem que mais a empolgou foi a do comandante que presenteou os passageiros contornando a lua cheia. “Imagina um presente desses. Fiquei sonhando como seria ver a lua cheia bem de pertinho na janela. Imagina como é ver o sol nascer ali de dentro?”, suspira. De suspiros também vive o funcionário de um hotel cinco estrelas da Capital, Vanderlei Santos, 40. "O sonho de todo mundo é a suíte presidencial. Quem sabe um dia", brinca ele sobre dormir no quarto com a diária mais cara do

estabelecimento.

No hotel Santos é o homem que fica próximo das celebridades. Supervisor da segurança há um ano e meio, ele já fez escoltas da cantora Ivete Sangalo, do rei Roberto Carlos, da cantora Madonna, por exemplo. Apesar de admirá-los, não pode pedir uma selfie com os ídolos. A empresa não permite tietagem. "Tornou-se corriqueiro, para mim, são pessoas normais como qualquer outra", conta, tentando esconder uma ponta de vontade de estar mais próximo dos famosos. Tão perto e ainda assim tão longe são os poucos degraus que impedem os trabalhadores colorados do Beira-Rio de assistirem aos jogos, o telão que Erick espia a partida, a imaginação de Andréia, que a deixa tão mais próxima de voar até Salvador (BA), e o desejo de Santos de hospedar-se na suíte


presidencial ou apenas tirar uma selfie com quem admira. Para eles, o inalcançável está bem ao lado.


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