Por quem os bumbos batem

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Por quem os bumbos batem Maria Eugenia Bofill É difícil pensar no Brasil e não remeter ao país do futebol. Mais difícil ainda seria imaginar o futebol sem torcida. Sem uma massa apaixonada que lota os estádios, que em conjunto, canta, bate palmas e vaia. Como se tivesse ensaiado, a massa alenta com as mãos, inclina os corpos e tira os pés do chão. Um dos maiores estudiosos do futebol no país, o sociólogo Maurício Murad entende que o esporte já faz parte de uma identidade brasileira, é uma paixão coletiva. Porém, o mesmo leva a extremos, tanto para o bem, como para o mal. “Nos estádios, as pessoas sentem que a vida foi cancelada por aquele tempo, e que não existem fatores além dali. E pelo futebol envolver paixão - tudo que acentua -, e multidões - que as permite o anonimato -, as fazem agir de maneira que não agiriam em outras circunstâncias”, explica. O fenômeno pode ser identificado em qualquer estádio. Dos campos de várzea ao futebol profissional. Seja na Arena do Grêmio ou no Beira-Rio. Na arquibancada inferior sul do estádio Colorado encontra-se a Guarda Popular, munida de bandeiras, instrumentos e faixas. A maior torcida organizada do Internacional completa 11 anos em 2015. Desde 2005 - um ano depois do surgimento -, músicas latino-americanas, clássicos do rock, folclore nacional e músicas populares brasileiras inspiram os cantos para a torcida embalar o time no momento do jogo. Coordenador da banda da Popular, Diego Abrahão diz que a torcida pertence ao grupo de organizadas barra brava, conhecidas por incentivar os times com cantos intermináveis - inclusive quando estão perdendo e no momento em que sofrem um gol -, e sinalizadores. Costumam-se localizar nas arquibancadas e atrás dos gols, acompanhando as partidas sempre em pé. Porém, são consideradas muito perigosas. A barra brava mais famosa e mais violenta da América Latina é a torcida do Boca Juniors da Argentina, denominada La Doce. Os atos de vandalismo e a violência que parte das torcidas organizadas leva a questionamentos sobre a importância da presença das mesmas nos estádios. Para o


jornalista esportivo Diogo Oliver, os grupos são desnecessários. “O preço que os times e torcedores que não fazem parte destas torcidas acabam pagando é muito maior. Em grandes títulos dos times gaúchos, como o Mundial do Grêmio em 1983, nem existiam as torcidas, e o Inter em 2006, estavam recém no início. Os times já venciam sem a presença delas”, justifica. Em uma pesquisa da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e do mestrado da Universidade Salgado de Oliveira (Universo), de 2009/2010, apurou que a violência entre os torcedores no Brasil é praticado por uma minoria de vândalos que oscila entre 5% e 7% das torcidas organizadas. Além disto, dentro destes grupos há quem nem mesmo goste de futebol e estão ali apenas para praticar atos de intolerância, ofensas e violência. São os denominados infiltrados. As batidas do bumbo da Guarda Popular iniciam 15 minutos antes da partida. O jogo é um clássico brasileiro. Pela 26ª rodada do Campeonato Brasileiro, em 16 de setembro, o Inter enfrenta o Corinthians, então líder do campeonato. Cada bumbo tem a imagem de um ídolo do time. De Falcão, Fernandão e D‟Alessandro. “Eu sou desde pequeno Colorado/ Levo a bandeira pro estádio/ Pra ver o Rolo Compressor/ Vamos ser Campeões do Brasileiro/ E conquistar o mundo inteiro/ Porque nós vamos te apoiar/ Inteeer.” Já nos primeiros minutos do primeiro tempo, a torcida canta alto no Beira-rio. Há quem se incomode com quem só assiste ao jogo e grita “Canta, quem tá aqui é para cantar.” Dezoito minutos depois, o primeiro gol do jogo. Do Corinthians. O torcedor com a camiseta que traz os ídolos Manga, Figueroa, Falcão, Ferndandão e D‟Alessandro leva as mãos ao rosto. O Beira-Rio preocupa-se. Os bumbos batem com mais intensidade. As vozes, que cantavam incessantemente desde o primeiro minuto do jogo, se elevam. “As torcidas organizadas se estruturam para liderar um estádio. As músicas que se espalham, ou as ondas de „Ola‟, é tudo espontâneo. É um dado artístico das multidões que parecem ter ensaiado. Nem se ensaiássemos por meses os coros ficariam tão perfeitos como as torcidas nos estádios”, acrescenta Murad. “Nós viemos aqui para cantar. Independente do resultado. Seja derrota por 1x0 ou de goleada, nem por um minuto, de qualquer jogo, a torcida cala”, salienta Abrahão. Aos 37


minutos, ainda do primeiro tempo, o Inter chega ao empate. O Beira-Rio explode. Os torcedores se abraçam. Abraça-se qualquer um que esteja perto. Comemora-se com o desconhecido. Naquele momento, todos ali nutrem o mesmo sentimento. Todos vibram. Todos pulam. A banda ergue os bumbos e para de tocar. A torcida canta por si só, “Dale dale dale dale dale oooooo/ Dale dale oooooo/ Colorado eu sou ooo.” Inicia o segundo tempo. Só de escutar os instrumentos de sopros a torcida identifica a próxima música. Sabe-se a hora das palmas e do assobio. “É algo inexplicável [por que cantar]. Acredito que leva o time para frente, mostra aos jogadores que estamos aqui, torcendo por eles e apoiando-os”, diz o torcedor Cleber Araújo. Em conjunto, a massa xinga o juiz, brada palavrões e elogia jogadores. A jogada que prendeu a respiração termina em palmas pela defesa do goleiro do time colorado. Aos 27 minutos do segundo tempo, quase a virada. Porém, gol impedido. Mesmo sabendo que o árbitro pode estar certo, a torcida xinga. “Eles [torcida organizada] acabam pautando o comportamento de pessoas que estão na volta, que não necessariamente fazem parte desse grupo, mas que num momento coletivo acabam virando. Seja no cantar uma música ou seja numa reclamação para o árbitro”, ressalta o psicólogo esportivo, Maurício Marques. Os ânimos se exaltam e a música se dissemina por todo o estádio. Já é tradição, mesmo sem querer, cantar aos 30 minutos do segundo tempo Minha Camisa Vermelha, adaptação de Pelados em Santos dos Mamonas Assassinas. A música virou uma identidade para o time. Quem assistia ao jogo sentado levanta-se. Os braços alentam, as vozes cantam, gol e 2x1. O Inter vira o jogo. Novamente, erguem-se os bumbos e a torcida canta, sem os instrumentos da banda. A música muda automaticamente: “O o o/Internaciona/ Ole, Ole/Internacional Ole, Ole/ Internacionaaal.” O fenômeno, típico das multidões, denomina-se Rastilho de Pólvora. “A multidão está suspensa, basta um ato para desencadeá-la. Seja para vibrar, para xingar. Basta o time estar em um momento ruim para o rastilho espalhar-se e a pólvora explodir pelo estádio. É uma orquestra que obedece a um maestro invisível”, esclarece Murad. Em seu livro, A violência no Futebol o sociólogo explica o fenômeno “mesmo quando esses


indivíduos não se conhecem, quando juntos ficam elétricos, barulhentos, arruaceiros, e podem, até mesmo, cometer atos de infração. Para que isto aconteça, basta liberar uma faísca de paixão, que corre pela massa como rastilho de pólvora, algo explosivo, descontrolado.” Naquele momento, a música pode ser identificada como um rastilho. Inicia, aos poucos entre a torcida organizada e em momentos cruciais, espalha-se pelo estádio. A troca das músicas na hora da partida depende de diversos fatores. O coordenador da banda explica que se obedece o momento em que está o jogo. “Se estiver embalando o time e a torcida estiver cantando, podemos continuar por 10 minutos a mesma. Depende muito do espírito que está, tanto o canto quanto o time. A torcida joga junto com os jogadores”. Se o time está mal, se escolhe músicas de incentivo, que levam o time para cima, como Pelo Nosso Amor “Haja o que houver/ Passe o que passar/ Onde for jogar/ Também vou estar/ Sempre a te apoiar” e Vamo vamo inter. Caso o time esteja em um momento bom, não se deixa para trás a corneta ao Grêmio. O

sociólogo

considera

que

o futebol

é um

esporte

democrático,

pois,

momentaneamente as pessoas que estão naquele ambiente são iguais. Em momentos de empolgação, ao comemorar com a pessoa que está ao lado não leva-se em conta sua classe, cor e outros fatores, mas sim, a paixão que compartilham pelo time. “As pessoas vibram, ficam felizes, abraçam quem elas nunca falaram e nunca mais irão ver na vida. É a disseminação do conhecimento através da disseminação da paixão. O futebol é uma grande escola para a sociedade. Em questões de espetáculos de torcida e de democracia”, destaca.

Mas

com

a

modernização

dos

estádios,

os

ingressos

aumentaram

significativamente e houve a elitização. Para Olivier, há um contraponto na democratização. O que teoricamente seria a classe alta ao lado da baixa, atualmente é apenas o rico, pois as classes mais baixas não têm condições de pagarem entre R$ 50 e R$ 100 para assistirem a um jogo. “Houve uma elitização dos estádios e com isso uma segregação econômica. Os torcedores que carregavam os times, independente de vitória ou derrota, antes pagando entre R$ 1 e R$ 3 para assistir a uma partida, não podem mais ir aos jogos com os


ingressos a um preço até 100 vezes maior. Há infinitas pessoas que moram no entorno da Arena e do Beira-Rio e nunca entram nos estádios”, pondera. O jogo termina com a virada do time Colorado. Independente das segregações, o sentimento de dever cumprido se espalha entre os torcedores. Um pai abraço o filho. O outro coloca a filha na garupa. Um segundo abraça o desconhecido. A Popular continua a tocar e cantar “Eu, nunca me esquecerei/ Dos dias que passei/ Contigo Inter!/ Colorado é coração/ Trago, amor e paixão/ Pra sempre Inter.” Marques afirma que os grandes feitos pelas equipes não seriam concretizados se não houvesse as torcidas apoiando. “Quando o time tem viradas, resultados épicos, geralmente foi com a torcida junto. Nunca poderemos dizer que se conseguiria se não tivesse a torcida. A torcida consegue dar esse „algo a mais‟. Justamente essa sensação de que se fez a diferença dentro do campo, mas sem jogar, é o que faz a torcida existir, que faz a torcida cantar, que se motiva dentro do jogo.”


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