Cheio de silêncio mas com muitas palavras, é apresentado como um retrato das transformações das comunidades que habitam um bairro, a partir do olhar de um emigrante cabo‐verdiano, que presencia a destruição do seu antigo bairro e, posteriormente, o realojamento num novo. O princípio de uma nova vida, mas o fim de uma comunidade que tinha criado nessa precariedade laços de solidariedade. O filme começa com uma imagem muito forte que expressa um lado negro da vida dos velhos bairros. É uma cena teatral, parecendo filmada num cenário a uma pequena escala, mas muito expressiva. Indica uma expulsão e um estrondo, representando a saída de Clotilde da vida de Ventura e a saída dele da vida do bairro, ainda presente entre escombros. Ventura, último resistente da vida do bairro das Fontaínhas, é uma personagem principal do filme, que vai aparecendo em dois cenários diferentes com o objectivo de comparar duas formas de vida que despertam sentimentos opostos. A obscuridade das ruelas, casas e ruínas do velho bairro em processo de desaparecimento das Fontaínhas contrastam com a brancura dos prédios e do interior das novas casas recém construídas do novo bairro de realojamento social. As cenas, por vezes parecem pinturas esquecidas mas que vão permanecendo ao longo do tempo. É quase tudo filmado em tempo real, cenas exaustivamente ensaiadas e com textos visivelmente estudados por actores amadores, sendo ao mesmo tempo as personagens que desempenham. O tempo neste filme é um elemento muito importante pois permite‐nos entrar no mundo destas personagens, como se dele fizéssemos parte, assim como o facto de a câmara nunca se mexer. Ventura vai circulando entre os vários espaços, mostrando o que sente em cada um deles, encontrando os seus filhos entre os amigos e vizinhos com que se vai cruzando. Entre eles há sempre uma relação, a de querer uma vida melhor, de seguir um sonho antigo mas que não desaparece. O sonho de Ventura é de querer regressar a Cabo Verde e lá morrer, mas temendo que não se concretize, dita e reedita o texto de uma carta, a Lento, um dos seus filhos, para que possa decorá‐la – à falta de caneta – e enviá‐la à sua mulher. Esta carta, que vai marcando um compasso ao longo do filme, é repetida várias vezes com diferenças de entoação: “Nha cretcheu, meu amor, o nosso encontro vai tornar a nossa vida mais bonita por mais trinta anos. Pela minha parte, volto mais novo e cheio de força. Eu gostava de te oferecer 100 000 cigarros, uma dúzia de vestidos daqueles mais modernos, um automóvel, uma casinha de lava que tu tanto querias, um ramalhete de flores de quatro tostões. Mas antes de todas as coisas bebe uma garrafa de vinho do bom, e pensa em mim. Aqui o trabalho nunca pára. Agora somos mais de cem. Anteontem, no meu aniversário foi altura de um longo pensamento para ti. A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera. Todos os dias, todos os minutos, todos os dias, aprendo umas palavras novas, bonitas, só para nós dois mesmo assim à nossa medida, como um pijama de seda fina. Não queres? Só te posso chegar uma carta por mês. Ainda sempre nada da tua mão. Fica para a próxima. Às vezes tenho medo de construir estas paredes eu com a picareta e o cimento e tu, com o teu silêncio. Uma vala tão funda que te empurra para um longo esquecimento. Até dói cá dentro ver essas coisas más que não queria ver. O teu cabelo tão lindo cai‐me nas mãos como erva seca. Às vezes perco as forças e julgo que vou esquecer‐me”. É um filme que tem muito mais haver com sentimos do que com histórias ou pessoas. Surgem as cenas que expressam sentimentos vazios e frios as quais são passadas nos novos bairros brancos, duros e artificiais; e as cenas com personalidade, alma e poética no antigo bairro das Fontaínhas. Há um enorme contraste entre as cores, a luz, os materiais e os sentimentos. Existe uma cena que mostra a necessidade de queimar as novas habitações para que perca a imensa frieza e brancura existente. Não existe qualquer preocupação na criação de novos espaços para habitar, que tornem melhor a vida dos realojados. Ventura não era capaz de estar na nova casa pois sempre que lá entrava ficava distante, sem vida, sendo muito marcante o contraste entre a sua cor de pele e da sua roupa com a brancura das paredes e do tecto. Pode‐se considerar que se trata de um filme sobre a falta de arquitectura em que as novas casas não apresentam qualquer intencionalidade, tudo é ocasional desde a cor, às janelas, até à própria luz que entra naquele espaço. Juventude em marcha, um filme de Pedro Costa com Ventura, Vanda Duarte, Alberto “Lento” Barros, Cila Cardoso e Isabel Cardoso. Ciclo com o tema “O Lugar dos ricos e dos pobres no cinema e na arquitectura em Portugal (I)”, at Cinemateca portuguesa – Museu do Cinema, Lisboa.
Mariana Fartaria . Outubro 2007