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Pedra Natural de Origem Vulcânica Aplicada na Sé do Funchal

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Introdução

Introdução

PEDRA NATURAL DE ORIGEM VULCÂNICA APLICADA NA SÉ DO FUNCHAL

JOÃO BAPTISTA PEREIRA SILVA

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1 - Edificação da Sé

A Sé do Funchal foi mandada construir em 1485 e as suas obras ficaram concluídas em 1517. A construção ocupando uma área de implantação de 1.540 m2 foi feita sobre depósitos aluvionares, isto é, em cima de antigas cascalheiras marinhas e fluviais, representados por materiais vulcânicos muito heterométricos: blocos, calhaus e areão, que estão envolvidos por materiais de granulometria mais fina dos tipos: areia grossa, areia média, areias fina e muito fina, e material silto-argiloso, Silveira et al., 2010 (Figura 1). Os referidos depósitos de idade Quaternária (Plistocénico) são pouco coesos e apresentam porosidade e permeabilidade média a elevada.

2 — Estilo Arquitectónico

O edifício, que possui caraterísticas próprias do estilo gótico enquadrado num estilo manuelino continental, foi por diversas vezes, até ao início do século XIX, objeto de obras de ampliação e remodelação (Figura 2).

A Sé do Funchal apresenta planta em cruz latina com uma orientação litúrgica este-oeste. É constituída por três naves – sendo a central mais alta – ligadas entre si por dez arcos góticos, com a cabeceira cortando o transepto, por meio de dois arcos mais largos e mais altos do que os restantes. As naves e o transepto são cobertos por um teto em madeira, muito notável no que respeita à sua conceção e decoração.

A torre sineira tem 52 metros de altura e apresenta secção quadrada com panos de alvenaria caiada de branco e fortes cunhais de cantaria. O piso das ventanas sineiras, em cantaria descoberta, é encimado por um terraço rematado por merlões com coroamento pontiagudo e um coruchéu piramidal decorado com azulejos sevilhanos, assente em arcaria (Carita, 1983).

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Figura 1 – Vala aberta no alçado Norte da Sé do Funchal onde é possível observar a heterogeneidade e a fraca coesão dos materiais geológicos aluvionares. © João Baptista, 2004

Figura 2 – Vista geral da Sé do Funchal. © João Baptista, 2014

3 — Origem, Tipologia e Classificação da Pedra Natural Vulcânica 3.1 — Origem e Tipologia

A maioria das formações geológicas constituintes da ilha da Madeira, cujas rochas de tipo vulcânico extrusivo são utilizadas como pedra natural, distribuem-se em dois conjuntos bem distintos. O primeiro compreende rochas resultantes de atividade efusiva ou lávica, de caráter básico, compactas e/ ou porosas e vacuolares, representadas por escoadas de composição basáltica, emitidas essencialmente por aparelhos vulcânicos do tipo havaiano. O segundo compreende rochas resultantes de atividade explosiva, ditas piroclásticas ou tefra, emitidas por aparelhos vulcânicos do tipo estromboliano e/ ou misto (estromboliano/havaiano), abundantes nas zonas centrais da Ilha onde são mais grosseiras e caóticas. De facto, existe uma grande variedade de materiais, ditos de projeção, desde enormes blocos a cinzas muito finas, passando por termos intermédios denominados “feijoco”, “lapilli” ou “areão”, de aspeto vesicular e esponjoso, entre os quais são frequentes as características bombas. No entanto, estes materiais por vezes pouco consolidados, assumem em certos casos o aspeto de brechas mais ou menos grosseiras e heterométricas, enquanto, noutros casos apresentam-se como tufos (Carvalho & Brandão, 1991).

Na ilha do Porto Santo são explorados dois tipos de pedra natural em dois maciços vulcânicos distintos. No maciço nordeste, de topografia mais acentuada, constituído por rochas de composição ácida, resultante de domos vulcânicos, explora-se o traquito, enquanto no maciço sudoeste constituído por rochas piroclásticas, explora-se essencialmente o tufo lapilli.

As rochas efusivas apresentam tons de preto e de cinzento mais escuro ou mais claro e, são predominantemente constituídas por: tefrito, traquibasalto, traquiandesito basáltico e traquito.

A textura das rochas está relacionada com os factores seguintes: número e o modo como se distribuem os

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minerais de maiores dimensões no seio duma matriz onde os minerais são mais finos e que pode ser mais ou menos abundante; pequenas fraturas; alteração dos minerais constituintes da rocha; e ainda com o número e o tamanho dos vacúolos ou poros. As rochas extrusivas apresentam de um modo geral, textura afanítica ou microcristalina (Gomes & Silva, 1997).

3.2 — Classificação da Pedra Natural Vulcânica

Na tabela 2 estão representadas as classificações científicas e técnico-comerciais, bem como as abreviaturas - símbolos utilizados no levantamento e caracterização das rochas efusivas aplicadas na Sé do Funchal (Silva et al., 2006).

As cantarias “moles” distinguem-se das cantarias “rijas” por apresentarem menor resistência ao corte, maior porosidade e uma grande gama de tonalidades cromáticas.

A tonalidade apresentada pela pedra natural, em larga medida, está associada à cor básica dos minerais dominantes, à granularidade dos mesmos e, ao respetivo grau de alteração.

As rochas efusivas apresentam tons de preto e cinzento mais escuro ou mais claro (Figura 3), enquanto as rochas piroclásticas apresentam uma grande gama de tonalidades, sendo as mais comuns: castanho, vermelho, laranja, amarela, preto, verde, roxo e rosa (Figura 3).

Classificação Científica

Classificação Técnico Comercial

Traquibasalto Cantaria Rija Cinzenta TQTefrito Cantaria Rija Cinzenta TFTraquito Cantaria Rija Branco Sujo TR

Abreviaturas Utilizadas

Tabela 2 - Classificações científica e técnicacomercial e abreviaturas - símbolos utilizados no levantamento e caracterização das rochas efusivas aplicadas na Sé do Funchal.

Figura 3 – Catálogo da pedra natural do arquipélago da Madeira (Gomes & Silva, 2003). © João Baptista, 2014

As rochas piroclásticas apresentam textura porosa a muito porosa, vesicular a muito vesicular e, raramente, amigdalar e brechóide.

Na tabela 3 constam as classificações científicas e técnico-comerciais e as abreviaturas - símbolos utilizados no levantamento e caracterização das rochas piroclásticas aplicadas na Sé do Funchal (Silva et al., 2006).

Classificação Científica

Classificação Técnico Comercial

Tufo Lapilli Cantaria Mole TLTufo Brecha Cantaria Mole TBBrecha Piroclástica Cantaria Mole BP

Abreviaturas Utilizadas

Tabela 3 - Classificação científica, classificação técnico-comercial e correspondentes abreviaturas -símbolos utilizados no levantamento e caracterização das rochas piroclásticas aplicadas na Sé do Funchal.

Figura 4 – Carta número 3 de 35, referente ao alçado principal da Sé do Funchal, onde estão representadas as várias litologias, cor das cantarias e das argamassas e os diferentes tipos de patologias que afectam a pedra natural. © Silva et al., 2006.

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É de salientar que a cor observada em alguns blocos face à vista, nos trabalhos de campo por vezes não corresponde à cor original do tipo litológico. Segundo Silva et al., 2006, esta diferença normalmente está associada às patologias (enfarinhamento e crostas negras), remoção de argamassas das juntas entre blocos, desagregação e remoção de material fino de blocos subjacentes, aplicação de argamassa sobre o bloco, escorrência de materiais finos provenientes de intervenções (por exemplo, abertura de furos para colocação de tubos de drenagem), desenvolvimento de líquenes, humidade, aplicação de pátinas de ocre vermelho e/ou tintas de tonalidade amarela, beije e cinzenta (Figura 4).

A Sé do Funchal atualmente apresenta milhares de blocos de pedra natural face à vista, devido à remoção das argamassas, das tintas e dos ocres, que foram sendo tirados nas diversas obras realizadas ao longo do tempo. Na sua construção foram utilizadas rochas vulcânicas de natureza lávica: traquibasalto, traquiandesito, traquito, tefrito (de tonalidade cinza) e de natureza piroclástica litificada e/ou soldada: tufo cinza, tufo de lapili e tufo de brecha (de tonalidade preta, vermelha, castanha, amarela, rosa, lilás, etc.).

Nos trabalhos de realizados pelos investigadores (Gomes & Silva, 2003 e Silva et al., 1999, 2000, 2006, 2017) foi possível identificar no conjunto das cantarias “rija” e “mole” aplicadas, sete variedades litológicas e pelo menos vinte e cinco tonalidades cromáticas (Figura 4). A diversidade de rochas e as diferentes tonalidades cromáticas exibidas pela pedra natural são uma característica peculiar deste monumento nacional.

Os factos referidos constituem duas características de referência e de imagem do monumento, quando comparado com outros monumentos religiosos a nível regional, nacional e mundial, que normalmente foram construídos por um, dois ou três tipos de pedra natural diferente.

Outro motivo de interesse é saber que as cantarias aplicadas na Sé, foram provenientes maioritariamente das antigas pedreiras localizadas na arriba do Cabo Girão. Muitos blocos apresentam símbolos gravados em baixo relevo, como é o caso dos aplicados, na fachada principal e na torre sineira, e que correspondem à marca de canteiro e/ou do fornecedor da pedreira. Podemos dizer que os blocos de cantarias aplicadas na Sé, são por um lado, o “espelho” das formações geológicas que ocorrem na base arriba do Cabo Girão, e por outro, exigem a marca de vários canteiros e fornecedores, anónimos (Figuras 5 a 8).

4. Estado de Conservação

As patologias da pedra natural observáveis na Sé do Funchal são consequência direta da ação de processos físicos, químicos, físico-químicos e biológicos, muitas vezes associados. Estes processos de alteração são condicionados por fatores internos ou intrínsecos da pedra natural, tais como, estrutura, textura e composição mineralógica, mas podem ser agravados por fatores externos, tais como:

i) os relacionados com as condições de exposição (orientação e posicionamento da pedra no monumento) particularmente à água de precipitação, de circulação de aerossóis ou de ascensão capilar a partir do pavimento, água que transporta em si sais dissolvidos; a exposição determina a possibilidade da pedra permanecer seca, pouco embebida ou muito embebida (diretamente pela água da chuva ou indiretamente pela água de ascensão capilar); efetivamente, a água constitui o principal fator externo de alteração da pedra natural, podendo atuar direta ou indiretamente;

ii) o intenso tráfego de veículos automóveis produz vibrações no subsolo e desencadeiam atividade microssísmica; considera-se que, ao longo do tempo, as cargas e vibrações inerentes ao tráfego automóvel favoreceram assentamentos nos terrenos aluvionares (Figura 9) sobre os quais o monumento tem as suas fundações;

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Figuras 5 a 8 – Símbolos gravados em baixo relevo correspondentes às marcas de canteiro ou do fornecedor da pedreira. © João Baptista, 2014

Figura 9 – Assentamentos nos terrenos aluvionares onde se encontram as fundações do edifício. © João Baptista, 2014

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iii) A poluição atmosférica devido aos gases (dióxido de carbono e monóxido de enxofre) emitidos pelas centenas e/ou milhares de automóveis que circulam diariamente junto ao monumento, quando combinados com a água da chuva produzem fenómenos de alteração na cantaria mole e produzem novos minerais, como é o caso do gesso (Figura 10) e argila esmectite (Figura 11);

iv) a variação do nível freático e a alteração dos fluxos de água subterrânea motivada por construções implantadas nas zonas envolventes e que promovem condições favoráveis à ocorrência de assentamentos;

v) os processos biológicos da alteração da pedra natural ou biodegradação resultam, por exemplo, da presença e ação de bactérias, fungos, algas e líquenes; comparativamente com os outros processos da alteração os efeitos da biodegradação são menos intensos (Figura 12);

vi) os factores externos podem ser mais agressivos na pedra natural que faz parte de património construído, do que no mesmo tipo de pedra quando na sua ocorrência e ambiente natural.

Figura 10 – Fenómenos de alteração na cantaria mole - produção de novos minerais: gesso. © João Baptista, 2014

Figura 11 – Fenómenos de alteração na cantaria mole - produção de novos minerais: argila esmectite. © João Baptista, 2014

Em 1998 e 2001 foram desenvolvidos vários trabalhos de carácter técnico-científico no Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro e no Instituto Geológico e Mineiro – Porto, respetivamente, tendo em vista a caracterização física, química e propriedades geomecânicas de seis variedades de pedra natural do arquipélago da Madeira (Ferraz, et al., 1998), que revelaram-se muito importantes para os trabalhos de diagnóstico das cantarias aplicadas na Sé do Funchal.

Em 2004, foi feita à EnGeoMad – Planeamento e Gestão de Recursos Naturais pela World Monuments Fund - Portugal e à Direção Regional dos Assuntos Culturais da Região Autónoma da Madeira, a apresentação de uma proposta de trabalhos para a realização do levantamento, caracterização e classificação das litologias e das patologias da pedra natural aplicada na Sé do Funchal, tendo em vista a reabilitação e restauro.

Figura 12 – Processos biológicos da alteração da pedra natural (biodegradação). © João Baptista, 2014

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Os resultados dos trabalhos de campo, de gabinete e de laboratório, correspondentes ao Alçado Principal, à Torre Sineira, aos Transeptos, à Nave Principal, à Capela de Nossa Senhora do Amparo, à Capela Mor e à Capela do Santíssimo Sacramento, fazem parte de um dossier técnico, propriedade da World Monuments Fund - Portugal e da Direção Regional dos Assuntos Culturais da Região Autónoma da Madeira (Silva et al., 2006).

Foram inúmeras as intervenções de restauro verificadas na Sé do Funchal desde a sua construção há 521 anos até à atualidade. O último restauro da cantaria degradada teve lugar em 2016/2017, de acordo com a documentação facultada pela Direcção Regional dos Assuntos Culturais e Diva Freitas (2014). Segundo dados fornecidos pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGMEN), pela Direção Regional de Cultura (DRC), pela Fábrica da Sé do Funchal e por mestres canteiros e pedreiros, nem todas as intervenções foram antecedidas de estudos técnicos/ científicos, não existindo relatórios nem registos fotográficos da maioria das obras realizadas, à exceção dos últimos restauros realizado em 2008 e 2016/2017, nas cantarias do arco exterior do portal e da rosácea da fachada principal e nos vários panos da torre sineira. Segundo a DGEMN e a DRC, a partir de 1948 tiveram lugar diversas intervenções de restauro e conservação das cantarias da Sé para além das referidas, merecendo destaque as seguintes:

i) 1948/1949 – Demolição de casa encostada à Torre; Consolidação do cunhal da Torre Sineira que ameaçava ruína e substituição das cantarias;

ii) 1956/1961 – Obras de conservação e substituição das cantarias nos exteriores e anexos;

iii) 1965/1967 – Pequenos trabalhos de substituição e limpeza de cantarias nas zonas exteriores;

iv) 1972/1973 – Diversas obras de reparação e conservação realizadas nas Capelas Lateral Direita e Esquerda e Nave Lateral Esquerda;

v) 1986 - Obras de beneficiação e conservação das fachadas da Torre;

vi) 1987 – Conservação dos azulejos do pináculo da Torre;

vii) 1999 – Restauro do teto da Capela-Mor, com injeção de resinas nas fendas e entre juntas dos blocos de pedra, seguida de pintura (Silveira, A., 2003);

viii) 2004 – Renovação do sistema de canalização das águas pluviais e das coberturas planas da cabeceira;

ix) 2007 – Renovação das coberturas;

x) 2008 – Estudos realizados sobre a estabilidade da Torre Sineira;

xi) 2011 – Preparação do restauro do retábulo;

xii) 2016/2017 – Obras de conservação e substituição das cantarias na Torre Sineira.

A maioria das intervenções não obedeceu à ética de conservação e restauro da pedra natural que deve ser praticada em edifícios classificados como Monumentos Nacionais (Aires-Barros, 2001), havendo-se substituído géneros ou tipos litológicos por outros totalmente diferentes e, por vezes, até por enchimentos à base de argamassas de cal e areia e/ou mistura de argamassa de cimento, com areia e ocre vermelho (Silva et al., 1999, 2006).

5. Proteção de Pedreiras com interesse para o Património Edificado

As atividades humanas relacionadas com a pedra natural do património construído assentam em três pilares fundamentais:

1) O peso económico das atividades extrativa, transformadora e comercial; 2) O valor social, cultural e turístico do património construído; 3) A importância das criações arquiteturais, artísticas e artesanais.

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A fileira da pedra natural compreende uma série de atividades industriais, artesanais e comerciais, todas elas dependentes da acessibilidade ao recurso - pedra natural, situação que tantas vezes entra em conflito com a preservação do ambiente paisagístico e ecológico que é de todos, porque nem os métodos extrativos adotados, nem os trabalhos para recuperação das pedreiras satisfazem tão só os requisitos constantes da legislação aplicável em vigor.

Para poder transmitir a gerações futuras o património construído e classificado, que é igualmente de todos, todavia degradável e, consequentemente, perecível, importa que, com equilíbrio e compromisso, se possa aceder à pedra natural essencial para as necessárias intervenções de restauro.

Decorrido mais dum século de desenvolvimento industrial, a poluição derivada das atividades industriais tem modificado o ambiente em torno dos monumentos e de outro património construído e, como consequência disso, tem acelerado os processos de degradação da pedra natural nela empregada, particularmente a que está exposta. A pedra, para além das agressões climáticas fica também sujeita a agressões ambientais motivadas por chuvas ácidas, poeiras, gases poluentes, etc.

Tendo em conta o envolvimento cultural e económico, que representa o restauro dos monumentos degradados, é indispensável continuar a desenvolver novas investigações no sentido de determinar os métodos e produtos mais adaptados e eficientes para proteção e conservação do património arquitetural, passando pela caracterização da pedra natural empregada.

O restauro do património edificado com pedra natural, particularmente o classificado como Monumento Nacional, como é o caso da Sé do Funchal, exige o acesso às pedreiras donde teria sido extraída a pedra originalmente empregada, tantas vezes já descativadas, ou o acesso a pedreiras ou locais onde ocorra pedra semelhante (no que respeita às propriedades físicas, composição mineral, textura, cor e resistência mecânica). É oportuno referir que desde 2011, todas as pedreiras de rocha ornamental do arquipélago da Madeira estão desativas, isto é, sem trabalhos de extração e transformação.

Em regra, tal situação entra em conflito com outras utilizações do solo ou subsolo e com a preservação de outros patrimónios ou do ambiente. Importa, por isso, transpor racionalmente os conflitos entre a preservação dos valores ambientais e a preservação dos valores do património construído.

A pedra natural do património edificado, sendo tantas vezes a parte mais visível do mesmo, pertence como outros valores da sociedade a cada um dos seus cidadãos. Assim sendo, a proteção legítima das paisagens não pode estar em conflito com a proteção do património edificado. Por isso, o local que possua a pedra natural original utilizada num monumento classificado deve ser preservado e qualificado de geótopo do monumento (Féraud, 2004). O geótopo representará o substrato do monumento, tal como o biótopo o é, por exemplo, para um determinado vegetal.

A identificação o mais fina possível dos materiais de construção, pedra natural incluída, utilizados na construção dum edifício, permite muitas vezes identificar as pedreiras, regra geral já descativadas, de onde a pedra teria sido extraída e que passam a constituir sítios a proteger, de seguir as vias e os meios utilizados para o transporte, de pôr em evidência a escolha judiciosa dos locais e da pedra a substituir. Tal já vai sendo preocupação e prática corrente nalguns países europeus.

Na ilha da Madeira do arquipélago da Madeira, onde temos efetuado trabalhos relativos ao restauro do património construído Ferraz et al., (1998), (Silva & Gomes, 1997, 2003) e Silva et al., 1999, 2000, 2006) a pedra natural local tem vindo ao longo dos tempos a ser aplicada profusa e sabiamente em edificações, algumas seculares e classificadas. Gomes (2004) considera ser importante efetuar o levantamento sistemático dos tipos litológicos utilizados (traquibasalto, tefrito, traquito, tufo de lapilli, tufo brecha, brecha piroclástica,…), bem como a identificação dos sítios de onde a pedra desses mesmos tipos teria sido extraída, para que eles possam vir a ser protegidos, de modo a garantir, apropriadamente, as necessárias intervenções de restauro.

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Para cada edificação devem ser elaboradas fichas técnicas contendo as funções, o posicionamento, e as características petrográficas, químicas e físicas relevantes determinadas em cada tipo de pedra natural incorporado na edificação, bem como informação sobre a localização da pedreira, ainda ativa ou já descativada, onde a pedra teria sido extraída, e ainda sobre outros locais da região onde ocorra o mesmo tipo litológico.

Figura 14 – Pedreira onde se fazia extração de cantaria “mole” do Cabo Girão e que foi desativada nos anos 80 do século passado. © João Baptista, 2014

A título de exemplo, a figura 2 mostra a fachada principal da Sé ou Catedral do Funchal onde são evidentes as cantarias de rocha vulcânica nela aplicadas, enquanto as figuras 13 e 14 mostram a pedreira do Cabo Girão, atualmente descativada, geótopo da chamada cantaria mole (tufo de lapilli, tufo brecha e brecha piroclástica) aplicada na referida fachada.

Se for de todo em todo inviável proteger os geótopos da edificação, seria interessante, antes de mais, considerar a constituição duma litoteca, onde pelo menos os tipos litológicos mais utilizados no património classificado, em blocos ou em peças dimensionadas, estivessem depositados, classificados e resguardados, de modo a poderem estar disponíveis para serem reutilizáveis em eventuais intervenções de restauro.

Figura 13 – Fajãs das Bebras e dos Anos e a arriba do Cabo Girão. © João Baptista, 2014

A litoteca, seguramente um investimento reprodutivo, também poderia integrar um espaço para depósito de pedra natural de qualidade, aparelhada ou não, proveniente da demolição de edifícios urbanos ou rurais.

No caso de monumentos classificados um restauro bem-sucedido deve ser antecedido de investigações pluridisciplinares nas quais intervenham geólogos, engenheiros, arquitetos, arqueólogos e historiadores. Para além da ocorrência geológica, importará investigar também os processos de extração, os meios de transporte e difusão da pedra, e os modos de conformação, aparelhamento e assentamento.

Em jeito de remate, restaurar ou simplesmente preservar um monumento ou uma simples casa necessita duma prévia identificação dos materiais utilizados na sua construção e uma correta utilização dos materiais de substituição a fim de se respeitar o aspeto original da construção. Como refere o artigo 3 da Carta de Veneza (1967): “A conservação e o restauro dos monumentos têm como objetivo salvaguardar tanto a obra de arte como as respetivas evidências históricas”.

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Agradecimentos O autor em representação dos vários investigadores envolvidos nos trabalhos realizados na Sé do Funchal agradece à Fábrica de Extração de Pedra e Brita da Palmeira Lda , na pessoa do seu ex-sócio gerente, Sr. João Manuel Barradas, e à empresa Geocantarias Lda , nas pessoas do Sr. Duarte Martins e do Sr. Victor Martins, pelas informações prestadas e pela preparação e oferta dos provetes de pedra natural utilizados nos estudos realizados. O autor agradece, ainda, à World Monuments Fund – Portugal, à Direção Regional dos Assuntos Culturais da Região Autónoma da Madeira e à Fábrica da Sé do Funchal, o apoio logístico e financeiro prestado, que foi fundamental para concretização dos vários estudos e trabalho técnico científicos realizados. Finalmente, o autor exprime muita satisfação pela oportunidade de cooperação técnico-científica entre o Departamento de Geociências da Universidade de Aveiro e o antigo Laboratório do Instituto Geológico e Mineiro, São Mamede Infesta, Porto, inserida no quadro de um adequado intercâmbio de competências e de meios laboratoriais.

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