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O Contributo Pastoral do P.e Pita Ferreira na Diocese do Funchal

O CONTRIBUTO PASTORAL DO P.e PITA FERREIRA (1912-1963) NA DIOCESE DO FUNCHAL

CÓNEGO VÍTOR GOMES

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O Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira nasceu na freguesia de Câmara de Lobos a 16 de Abril de 1912, tendo falecido a 9 de Outubro de 1963. Era filho de Francisco Ferreira e de Filomena Celeste Pita Ferreira. Fez o curso filosófico e teológico no Seminário da Encarnação, tendo sido ordenado sacerdote a 25 de Agosto de 1935. A 29 de Setembro do mesmo ano foi nomeado Capelão da Sé, escrivão do Juízo Eclesiástico e professor do Seminário. A 5 de Agosto de 1936 passou a exercer o cargo de Secretário interino da Câmara Eclesiástica. Foi também capelão da Capela de Nossa Senhora da Conceição e do Asilo da Mendicidade, desempenhando, a partir de 5 de Abril de 1938, o ministério de coadjutor da Ribeira Brava, sendo, em 26 de Outubro de 1940 transferido para idêntico cargo na freguesia de São Vicente. Um ano depois, a 1 de Setembro de 1941, foi colocado como pároco do Porto Santo onde permaneceu nessas funções até Fevereiro de 1945, altura em que foi nomeado pároco de São Gonçalo. Exerceu também o cargo de membro da Comissão Conservadora do Museu de Arte Sacra da Diocese do Funchal. Foi o inspirador, orientador e até arquiteto de algumas Igrejas madeirenses, sobretudo nas novas Paróquias criadas pelo Bispo D. David.

Para além da história, seu tema de predileção, ele interessou-se pela catequese das crianças, para quem editou alguns modelos de catecismos. Graças às qualidades que revelou neste campo, foi nomeado Diretor do Secretariado Diocesano de Catequese, secretariado que iniciou as suas funções em 1960. Entre as obras mais pertinentes do ponto de vista do seu trabalho pastoral destacam-se: Leão XIII e a questão social, conferência de 1941. “A época atual e o ideal vicentino” publicada no Jornal da Madeira

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1 - O amor à terra e a sede de Deus

entre 14 e 21 de dezembro de 1945; A Santa Missa: Diálogo para formar as crianças da catequese no espírito com que hão de assistir ao santo sacrifício da missa, 1955; “A oração dos simples” na Revista das Artes e da história da Madeira nº 16, (1953, pp. 21- 26); O Natal na Madeira: Estudo folclórico, 1956. A Santa Missa, 1961; Curso de iniciação catequística (3 fascículos) 1962; “A ordem seráfica da Madeira” para a Revista das artes e da história da Madeira, nº 32, (1962, pp. 12-21). A Sé do Funchal, 1963.

Fez também, mas sem a publicar, uma recolha de orações populares, um claro testemunho de como estava à escuta da religiosidade popular e do sentido profundo da fé do povo que nos instrui e nos envolve. Em dois cadernos manuscritos, encontrámos também algumas peças de teatro de carácter histórico: S. Isabel. D. Nuno Álvares Pereira e dois textos interessantes que revelam a formação do Pe. Pita Ferreira no Seminário: O meu primeiro discurso, um panegírico da ação do Papa Pio XI e o seu primeiro Sermão sobre a Apresentação de Jesus no Templo.

Num caderno manuscrito do Pe. Pita Ferreira que data dos anos trinta e que contém vários poemas e pequenas peças de teatro, incluindo um primeiro sermão e um primeiro discurso, o Pe. Pita Ferreira justifica logo na primeira página a razão de ser daqueles textos intitulados Ensaios literários: “São pedacinhos da minha alma que passei para este caderno, a fim de poder reviver, nas horas de tédio, os saudosos momentos em que os escrevi” (Manuscrito 1, p. 1). Num primeiro poema de seis versos e várias estrofes, o P. Pita Ferreira deixa perceber o amor à sua terra, Câmara de Lobos, e a saudade a que ele se refere é a da sua casa e do seu lar, nos tempos em que, como seminarista, (o texto data de 1932 e ele só é ordenado em 1935) os seus estudos não permitiam um contato mais frequente com a sua terra natal. O poema a que o P. Pita Ferreira intitula Devaneios, canta a saudade da sua terra (manuscrito 1, pp. 3-4):

São saudades desses pradosVerdejantes, matizados.Eu gozava de felicidadeNessa quadra de saudade

1 - O amor à terra e a sede de Deus.

2 - A formação no Seminário: O meu primeiro Sermão, o meu primeiro discurso.

3 - A Catequese e os Manuais de iniciação catequética. O secretariado da catequese.

4 - Uma sensibilidade litúrgica. Honrar a grandeza do mistério da salvação. Arquiteto de Igrejas. A defesa do património de arte sacra.

5 - A sensibilidade social a partir do Evangelho

6 - A religiosidade popular como meio de evangelização. Recolha de orações, o Natal na

Madeira.

Nessa alvorada ridenteEra a terra um paraísoA vida meigo sorrisoAndava sempre contente.

Num outro texto em que evoca a saída dos pescadores para o mar e que tem como título Quadro camaralobense, ele fala da sua terra, da partida dos pescadores, da saudade dos que ficam, da esperança, da oração confiante para que voltem depois do desafio do mar:

E lá vão, deslizando suavemente a caminho dohorizonte, onde ao cair da tarde o saudosoalvejar das velas se transforma em chamas de

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oiro que traduzem, quem sabe?... o amor e asaudade que abrasam os corações dos pobrespescadores. Em terra, há olhos e coraçõesque seguem as velas de arminho e as esteirasde prata. Nos arredores da praia, as esposasrodeadas pela turba infantil que brincainconsciente, alongam os olhares e seguem asvelas que, ao longe, parecem sorrir, à sombradas quais os maridos partiram à busca do pão decada dia.

Numa pequena peça de teatro, intitulada Dilatando a fé representada na Ribeira Brava em Agosto de 1940 e em que um padre missionário procura catequizar umas crianças índias – o que supõe a cena passada no Brasil – o Pe. Luís, a pedido duma criança, evoca a sua terra com a ternura própria de quem é ilhéu e nós descobrimos a mesma saudade:

Eu nasci, além dos mares, numa terra sem igual,onde o céu é sempre azul e os campos estãosempre em festa… Numa terra abençoada, onde osrouxinóis cantam em noites de lua cheia e osarroios murmuram canções que a música não podetraduzir. Terra bendita, que deixei tão longepor Deus e pela pátria, que guarda no seu seioas cinzas dos meus avós e onde rezam por mimos meus irmãos, crianças como vós, e uma santavelhinha a quem tenho a dita de chamar mãe(manuscrito I, p. 71).

O Pe Pita Ferreira mostra aqui um traço típico da alma madeirense. A saudade é a marca do infinito, como um apelo de Deus presente no mais fundo de cada

pessoa e das próprias coisas, o pressentimento de que a eternidade permeia o tempo e torna a memória sempre actual.

A saudade da origem, por humilde que seja, é, na realidade, a busca permanente das razões de viver e de sentido para a vida. A marca de Deus em nós manifestase numa busca interminável, na inquietação que S. Agostinho sentia quando andava à procura do Deus mais íntimo do que o seu íntimo. Como dizia o Papa Bento XVI, “a sede de infinito está presente no homem de tal forma que não se a pode desenraizar. O homem foi criado para a relação com Deus e tem necessidade dele” (discurso de Bento XVI de 23.09.2011 em Erfurt). Numa pequena peça de teatro que não sabemos se foi realmente apresentada ou se ficou apenas no manuscrito, mas que, em todo o caso, como um conjunto de outras peças, foram escritas para serem apresentadas nas festas da Ribeira Brava em 1940, o Pe. Pita Ferreira referese à importância de ter um ideal. A peça é intitulada precisamente: À busca dum ideal e destina-se aos jovens, uma vez que consiste num diálogo entre dois jovens e um religioso chamado Frei Nuno. Ambos são estudantes mas um deles queixa-se de modo particular duma certa desmotivação na sua vida: “Não sei que peso trago em mim. Tudo me aborrece. Os amigos que outrora me distraíam desgostam-me… os livros enfastiam-me…. Tenho um horror que não posso exprimir ao trabalho. Sinto o coração vazio de amor e de fé. Afinal, anseio por uma felicidade que nunca encontro” (manuscrito II, p. 46). A análise justa do Pe. Pita Ferreira diagnostica um cansaço de viver que é de todos os tempos e pode surgir em qualquer fase da vida. O outro jovem com quem confidencia o estudante indicalhe o gozo da vida de cada dia como resposta a esse cansaço. “Aprende a gozar a vida e deixa-te dessas ladainhas [….] anda para o mundo e nele encontrarás o amor e a felicidade”, diz ele acrescentando que não é preciso preocupar-se com essas inúteis inquietações. O estudante continua, no entanto, insatisfeito: “A mim, diz ele, é exatamente esse vazio, essa sede de alma que me preocupa”. Logo chega Frei Nuno que confirma a validade das suas perguntas: “Bendita hora em que sentiste essa sede de alma. Meu filho, esse vazio é

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causado pela falta dum ideal. Logo que o encontrares serás feliz”. O estudante pergunta: “Que ideal?” E Frei Nuno responde: “Meu filho, a vida humana está cheia de ilusões e o mundo cheio de espinhos. Se deixamos o nosso coração roçar na terra, dilacerase nos espinhos e a amargura entra-nos em casa. Levanta os teus olhos (e aponta para o céu) Para além daquelas estrelas e junto ao seio de Deus encontrarás a felicidade”. O estudante insiste com Frei Nuno: “Por favor indique-me o ideal que devo seguir?” E este responde-lhe: “Ama a Deus que te criou e por quem o Teu coração anseia e a pátria onde pela primeira vez viste a luz do dia”. Os dois jovens agradecem a Frei Nuno porque ambos aprenderam com as suas palavras e assim termina a cena.

É a alma de pastor do Pe. Pita Ferreira, preocupada com a evangelização dos jovens e capaz de perscrutar as crises do coração humano em busca de sentido e plenitude para a vida que se encontra aqui presente. Aliás a expressão teatral com que escreveu várias peças, algumas de cariz histórico, designa uma forma de educar, de inculcar nos jovens numa maneira acessível e, de alguma forma, lúdica acontecimentos fundamentais da vida da nação portuguesa e da vivência da fé. Duas constatações estão presentes nesta peça sobre a busca dum ideal: por um lado, a monotonia da vida, as derivas dum certo tédio de viver que levam à distração e ao divertimento, como já dizia Pascal no século XVII, mas que são maneira de fugir ao vazio da vida, à confrontação consigo mesmo e à culpabilidade pessoal que tritura a consciência. Gozar a vida pode ser precisamente uma fuga às questões fundamentais, o sinal duma certa surdez ao clamor do coração que não encontra nas coisas do mundo plena satisfação. Os ídolos do mundo distraem, mas não saciam e finalmente dececionam. Por outro lado, há uma aspiração interior que não pode ser calada e que, aliás, Frei Nuno dá conta valorizando a inquietação existencial do estudante: “Bendita hora, diz ele, em que sentiste essa sede de alma”. É verdade que muitos fazem tudo para disfarçá-la, para não confrontar-se com ela e não correrem o risco de terem de sair de si mesmos. A busca dum ideal faz-nos sair de nós mesmos,

impulsiona para dar o melhor de si. As sociedades da abundância põem o ideal em crise e tentam calar a sede da alma pelo fascínio dos objetos que, no fim, deixam uma insatisfação muito grande. O estudante pede a Frei Nuno que lhe indique o ideal a seguir e este apontalhe uma meta que está acima do ideal mas também passa por ele: “Ama a Deus que te criou e por quem o Teu coração anseia e a pátria onde pela primeira vez viste a luz do dia”. Feitos à imagem de Deus é por Ele que o nosso coração anseia, como já dizia S. Agostinho e este grito da alma ninguém o pode fazer calar sem pôr em causa a humanidade de cada pessoa. É ele que revigora a confiança e que, paradoxalmente, faz amar a terra em que se vive. O “ama a Deus e a pátria” não é apenas um ideal de patriotismo. Quem ama a Deus não deixa de amar a terra onde vive. É o contrário que acontece. Aprende a amá-la duma maneira não idolátrica, vigilante, atenta às aspirações mais profundas dos homens de cada tempo, crítica das derivas que se insinuam muitas vezes até nas boas intenções. Viver sem ideal é, para o Pe. Pita Ferreira, querer calar a sede de alma. O resultado é o cansaço de viver tão frequente no nosso tempo. Evangelizar é, como diz S. Paulo, “aspirar às coisas do alto” que são também profundamente humanas.

2 - A formação no Seminário: «O meu primeiro discurso», «O meu primeiro Sermão».

Num caderno manuscrito a que já fiz referência, junto a diversas peças de teatro e alguns poemas, encontramos dois textos da sua juventude a que o P. Pita Ferreira deu como título, O meu primeiro discurso e O meu primeiro sermão. Estes textos, pelo seu conteúdo e pela sua arte oratória são um exemplo concreto da sua formação no Seminário. Podemos constatar o rigor no método que é certamente um traço do temperamento do Pe. Pita Ferreira e que será bem notório nas suas investigações históricas. Ele segue uma ordem de exposição do assunto anunciada previamente. O seu texto tem uma sequência bastante clara, sem repetições. Este primeiro discurso foi proferido a 11 de Fevereiro de 1934, antes mesmo da sua ordenação sacerdotal, na

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sede da juventude católica do Funchal e na presença do Bispo do Funchal e de outras autoridades, para celebrar os doze anos do pontificado do Papa Pio XI. Trata-se duma apologia do pensamento e da ação do Papa Pio XI como se esperava no aniversário do seu pontificado. O Papa, diz Pita, tem uma personalidade e ação decisivas no seu tempo e em todos os campos da vida humana e social. Ele constata os conflitos do tempo que fazem entrever uma guerra próxima e destaca a missão do Papa: “Fazer reinar a paz no mundo, unificar as nações num só amor, alargar o reino de Cristo”. Para isso, o Papa estudou, orou e agiu segundo a sua missão. No campo do estudo, exerceram notórias influências as suas diversas encíclicas, em especial as encíclicas Quadragesimo anno, Casti conubii e Rerum Ecclesiae, a primeira destas, publicada nos quarenta anos da Encíclica Rerum Novarum, a grande encíclica social de Leão XIII. O Pe. Pita Ferreira descreve a sua importância como “um protesto forte contra o capitalismo materialista, ‘um compadecer-se sobre as multidões’ parecido ao de Jesus, uma carta de defesa em prol dos pobres e oprimidos, dos operários; enfim o caminho seguro que os grandes estadistas têm que trilhar para a solução da crise atual” (manuscrito I, p. 16). Foi um Papa com alma de missionário, pelo seu desejo de dilatar o Reino de Cristo, objeto da encíclica Rerum Ecclesiae, um diplomata pelas diversas concordatas que concluiu e por ter resolvido a questão romana com o Tratado de Latrão. Foi ainda o Papa das canonizações e o Pe. Pita Ferreira cita três exemplos: o Cura d’Ars, D. Bosco, Gabriel Dolorata. É significativa ainda a referência a outros grandes pontífices da história que foram “luz do mundo” e “baluartes da fé”: Leão Magno pela sua resistência à invasão bárbara, Gregório I por ter enviado missionários à Inglaterra, Leão X, pelo seu amor às letras e às artes, Leão XIII, pai dedicado dos operários. O Pe. Pita Ferreira mostra já aqui a sua predileção pela história. Para compreender a fundo a ação de um pontífice é preciso inseri-lo na história mais vasta da Igreja, aonde brilham pela sua ação outros grandes Papas que marcaram a sua época. Ele insiste assim na continuidade da ação da Igreja e na tradição que inspira o pensamento e a ação do Papa.

Enfim, o Pe. Pita mostra que a ação do Papa abrangeu todas as áreas humanas. “Ele deu impulso aos estudos, com as suas encíclicas e instituições, socorreu os milhares de famintos que vagueiam na Rússia vermelha, transformou o Vaticano num museu onde se admiram as grandes invenções modernas e fez refulgir o primado” (manuscrito I, p. 20). Na Pessoa do Papa, o pensamento e a ação da fé cristã tem a ver com tudo o que é humano. Tal é o alcance da sua missão pastoral.

Na sequência deste escrito do Pe. Pita Ferreira está um outro do seu tempo de seminário e a que deu o título: O meu primeiro sermão. No final temos a indicação de que este primeiro sermão foi proferido no refeitório do Seminário da Encarnação no mês de Maio de 1933. O tema é a apresentação de Jesus no Templo cuja referência encontramos em S. Lucas (2, 22). O Pe. Pita Ferreira transcreve o versículo do Evangelho em latim. O texto que ele escreve é revelador da sua própria formação de seminário. Ele recorda em primeiro lugar a infidelidade de Adão e Eva e cita o que a tradição chamou o proto-Evangelho, o anúncio da vitória de Deus sobre o mistério do mal representado na serpente do Génesis. Deus sai vitorioso do primeiro pecado e, na sua generosidade, faz a Abraão a promessa duma Aliança e estabelece-a para sempre, apesar das infidelidades de Israel. Depois introduz a referência à purificação de Nossa Senhora e à apresentação no Templo como sinais de obediência de Maria à lei. “De Maria aprendamos a humildade, de Jesus a obediência e do Velho Simeão o amor de Deus” (manuscrito I, p. 26). O Pe. Pita Ferreira segue de uma forma metódica estes três temas sugeridos no início: a humildade de Maria, a obediência de Jesus, o amor a Deus do Velho Simeão. A propósito da humildade profunda de Maria, ele afirma: “Apesar de ser a Mãe de Deus não reconheceu privilégio algum, confundiu-se com as humildes filhas de Israel” e ofereceu o sacrifício prescrito pela lei para a sua purificação, ela que não precisava de purificação porque era sem pecado” (Manuscrito I, p. 28). Aprender a humildade de Maria é deixar as pretensões da glória que passa e ir ao encontro de Deus que dá a verdadeira felicidade.

Caderno manuscrito – Ensaios literários 1932-1940 Coleção particular — Familiares do Pe. Pita Ferreira

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No centro do Evangelho está a obediência de Jesus: “A obediência santifica o homem – diz o Pe. Ferreira – amou-a Jesus, amaram-na os santos e havemos nós de amá-la se quisermos entrar no reino dos Céus” (Manuscrito I, p. 30). “Trémulo, com o coração a transbordar de alegria e de reconhecimento, estreita Jesus ao peito e enquanto as lágrimas ainda palpitantes se desprendem das faces e vão cair sobre o Deus menino, Simeão exclama: «Agora Senhor, segundo a vossa palavra deixareis ir em paz o vosso servo»” (p. 36). Esta atitude de Simeão pode ser a de todo o cristão na celebração da Eucaristia: “Abeiraivos, caros fiéis, da mesa santa; comungai o pão dos anjos, estreitai-o ao vosso peito com os sentimentos do velho Simeão. Contai-lhe as vossas mágoas e ele as abençoará, vos consolará; as vossas alegrias e Ele as abençoará, os vossos desejos e Ele os fecundará com a sua graça” (Man. I, p. 36).

Apreciemos a ordem e o método que o Pe. Pita Ferreira guarda quando constrói os seus textos, o que se reflete no seu trabalho de historiador. Ele anuncia os temas a tratar, desenvolve-os e resume-os quando é necessário. A humildade e a obediência que ele encontra no gesto de Simeão inspiram uma forma de ser cristão. Aqui está a sua preocupação de pastor. As disposições de Simeão ao acolher Jesus nos seus braços interpelam todo o cristão que, na Eucaristia, recebe Jesus no coração. Quando as trevas do mundo parecem impor o declínio, Simeão, como todo o cristão digno deste nome, aprende a discernir a luz das nações que brilha e vence as escuridões.

3 — A Catequese — Manuais de iniciação catequética. O secretariado da catequese.

O Pe. Pita Ferreira foi encarregado pelo bispo de então, D. David de criar o primeiro secretariado da catequese. Uma notícia do Jornal da Madeira de 12 de dezembro de 1959 dá conta da primeira reunião com o Bispo do Funchal dos delegados do clero e dos religiosos. No artigo pede-se que os delegados deem resposta a um inquérito que tinha sido lançado sobre a catequese na diocese. Entretanto, nos finais dos anos cinquenta o P. Pita Ferreira compôs um curso de iniciação catequística, a que a sua morte em 1963 veio pôr bruscamente um termo. Este curso de iniciação catequística foi publicado pelo recémcriado Secretariado Diocesano da Catequese em 3 pequenos fascículos: a primeira parte em 1959-1960; a segunda parte em 1960-1961; a terceira parte em 1961- 1962. Como é notório, a sequência desta iniciação catequética dirigida sobretudo aos catequistas, segue um método de exposição claramente definido e apoiase também nos vários volumes do catecismo nacional referenciados no decorrer do texto. O autor define logo na primeira parte o que é a catequese e a missão de ser catequista, assim como a ordem duma lição de catequese: “1º Ideia a infundir, 2º Concretização, 3º Estudo, 4º Sentimentos a despertar; 5º Fórmula, 6º Frase do Evangelho; 7º Prova, 8º Cântico” (Ferreira, 1960). Observa ainda que o catequista deve guardar dez mandamentos: “1º Não dê explicações às crianças, que apenas estejam à altura dos adultos, porque são inúteis; 2º Não empregue palavras, cujo significado as crianças desconheçam. Deve ter presente que elas apenas conhecem cerca de 900 palavras; 3º Não vá à frente das crianças no estudo e sobretudo nas conclusões. Deixe-as pensar; 4º Esforce-se por concretizar dalguma maneira tudo o que é abstrato; 5ºPonha Nosso Senhor Jesus Cristo no centro da sua catequese; 6º Deite mão dos factos e parábolas do Evangelho e não conte às crianças casos e histórias, que elas, um dia, venham a concluir que são falsos; 7º Nunca despreze a fórmula; 8º Aplique sempre que seja possível uma frase do Evangelho à lição que dá; 9º Lute para levar as crianças à prática do que aprenderam; 10º Na prova encontrará o resultado da sua lição” (Ferreira, 1960, p. 11).

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Cada uma das lições tem um tema apresentado com a ajuda de várias referências bíblicas e no fim o que o Pe. Pita Ferreira chama a prova, isto é, várias perguntas feitas ao catequizando que visam assegurar a assimilação do conteúdo. O manual de iniciação catequética contém ainda várias ilustrações que visam a melhor compreensão de cada tema de catequese. No final de cada tema encontra-se uma pequena bibliografia. Seria bom verificar de que modo o conteúdo bibliográfico proposto determina a elaboração do texto. Por exemplo, os dez mandamentos do catequista foram retirados da própria experiência pastoral do Pe. Pita Ferreira ou resultam da sua leitura doutros manuais de catequética?

Quanto aos conteúdos de fé que são abordados, isto é a doutrina, a primeira parte do curso de iniciação catequética refere-se aos temas da existência de Deus, a sua revelação como Santíssima Trindade e a identidade do Homem como criatura feita à imagem de Deus, consciente e livre, capaz de receber e deixar-se transformar pelo dom divino que é a graça.

A segunda parte (Ferreira, 1961) - que é central - apresenta Jesus Cristo centro da história, o seu anúncio pelos profetas e João Batista, as fontes históricas da sua existência, a sua pregação do reino de Deus, a sua Páscoa. São abundantes as referências às passagens do Evangelho, o que mostra já a renovação bíblica da catequese. A finalidade da catequese é dar a conhecer e assimilar o Evangelho.

Com o título de Cristo continuado, o Pe. Pita Ferreira começa a falar da Igreja já no final do segundo fascículo do seu curso. Evoca-a segundo os termos, então comuns, de sociedade e de Corpo de Cristo. É, no entanto, no terceiro fascículo que a doutrina sobre a Igreja é desenvolvida. Ela é ao mesmo tempo sociedade e corpo místico de Cristo, mensageira da reconciliação entre Deus e o homem em Cristo. A missão da Igreja é a de incorporar Cristo em cada cristão. Os sacramentos e em especial a Eucaristia assimilam-nos a Cristo. O Pe. Pita Ferreira explica a importância da Eucaristia na vida cristã a apresenta mesmo vários testemunhos da vivência da Eucaristia entre os primeiros cristãos.

No final do III fascículo (1962) Ferreira refere-se às diversas partes da Missa que devem ser detalhadas às crianças. Finalmente, revela a importância duma explicação dos diversos tempos litúrgicos aos catequizandos e da simbólica da Igreja enquanto edifício – casa de Deus.

Toda a casa de Deus prega-nos a doutrina doCorpo místico de Cristo. Assim, a pia batismalrecorda-nos a nossa incorporação em Cristo.A capela-mor prega-nos Cristo que é a nossacabeça. A Nave, onde todos se juntam semolhar a distinção de raças ou sexos, preganosque todos os fiéis são membros do corpomístico de Cristo. O confessionário convidanosa despojarmo-nos do homem velho «para nosrevestirmos do homem novo, criado segundo Deusna justiça e santidade verdadeira». O púlpitolembra-nos que a Palavra de Deus ouvida emeditada e posta em prática é alimento parasustentar a vida da graça em nós. A mesa dacomunhão recorda-nos que a sagrada Eucaristiaé também alimento para sustentar a vida dagraça, para que Cristo viva em nós e nós n’Ele.O altar-mor recorda-nos o preço da nossaincorporação em Cristo. As imagens pregamnosa glorificação de Cristo nos seus membros(Ferreira, 1962, p. 49-50).

Estas palavras revelam a sensibilidade litúrgica e pastoral do Pe. Pita Ferreira e a finalidade da catequese ligada à prática da vida cristã.

Curso de Iniciação Catequística, 2ª parte1962Arquivo Histórico Diocesano do Funchal

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4 — Uma sensibilidade litúrgica. O louvor a Deus, fonte da dignidade humana.

As palavras que acabámos de citar manifestam a sensibilidade litúrgica do Pe. Pita Ferreira e o seu modo de considerar a liturgia, como toda a arte sacra, como um ato de louvor e adoração a Deus. Um exemplo desta sensibilidade é o pequeno livro que publicou com a tradução da missa do latim para o português intitulado: A Santa Missa, 1955 ou ainda A Santa Missa: diálogo para formar as crianças da catequese no espírito com que hão de assistir ao santo sacrifício da missa, 1945. Para além disso, o Pe. Pita Ferreira foi pioneiro na construção das primeiras Igrejas nas paróquias criadas por David em 1960. Lembro-me de ter visto, quando fui pároco de S. Gonçalo, os projetos de arquitetura das Igrejas do Garachico e das Achadas de Gaula mas, se não me engano, o projeto da Igreja de S. Gonçalo tem a sua inspiração.

O Pe. Pita Ferreira mostra a sua dedicação à Igreja e à liturgia da Igreja nos seus trabalhos históricos, como é o caso no seu livro de referência sobre a Sé do Funchal (1963). Na introdução ao capítulo sobre a arte sacra da Sé, ele faz referência às “muitas e preciosas peças de ourivesaria sacra que a Sé do Funchal possuiu e possui ainda. Dádivas de reis, de bispos, de confrarias e de fiéis piedosos, constituem ainda hoje um património de altíssimo valor estimativo e artístico” (1963, p. 157). Dando conta no entanto de que muitas das peças de ourivesaria sacra foram fundidas em várias épocas para dar lugar a outras, o Pe. Pita Ferreira sente a necessidade de explicar as razões desta prática para evitar todo o juízo precipitado de muitos contemporâneos, acusando os antigos de falta de sensibilidade artística. Esta defesa duma forma de proceder que na sensibilidade de hoje seria certamente reprovável – hoje restaura-se, não se fundem as peças de ourivesaria sacra para fazer outras – deve entender-se tendo em conta a finalidade

do culto e do louvor a Deus que eram – e devem ser - as finalidades primeiras da arte sacra. A Igreja não é um museu mas o espaço do encontro, da adoração e do louvor a Deus. As peças de ourivesaria sacra não foram feitas – diz o Pe. Pita Ferreira – para serem postas “dentro duma vitrina de museu para gozo dos curiosos, que muitas vezes só as apreciam pelo seu valor artístico. Se, para isso, tivessem sido encomendadas e oferecidas à nossa Catedral, é possível que muitas ou quase todas existissem atualmente. Mas as cruzes, as navetas e os turíbulos, os lampadários, os cálices e as caldeirinhas tiveram fim diverso. Foram executadas e oferecidas para o serviço de Deus e eram preciosas apenas porque os seus oferentes assim as desejaram, para em primeiro lugar serem dignas de Deus e, em segundo lugar, aos olhos de quem as apreciasse (…) tendo, portanto, as peças de ourivesaria como fim primário o serviço do culto, não admira que, passados alguns séculos depois da sua execução e oferta, muitas delas se estragassem, estivessem fora de uso e fossem fundidas. (…) Fundir, portanto, nessa época um cálice partido ou um turíbulo estragado não era um crime ou um vandalismo tão grande, como se tal acontecesse agora” (Ferreira, 1963, p. 158). A justificação desta prática de fundição de peças é ditada pela sensibilidade do autor pela liturgia e pelo louvor da glória de Deus que constitui a sua finalidade. O valor artístico não é um fim em si mesmo mas aponta para o fim definitivo que é a glória de Deus. No entanto, continua o Pe. Pita Ferreira (1963, p. 158), “muitas graças demos à Igreja, por ter conservado através dos séculos tantas preciosidades, enquanto os seculares se desfaziam quase por completo das pratas, mobiliário, cerâmica, pinturas e esculturas, que os antepassados lhe legaram”.

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5 — A sensibilidade social a partir do Evangelho

sede do oiro faz com que o homem ande numaluta contínua, titânica com o próximo, peito

O Pe Pita Ferreira compreendeu a sua missão de pastor, tendo em conta a realidade social do seu tempo e a necessidade de ir ao encontro dos mais pobres. Como pároco de S. Gonçalo desde 1945, ele deparou-se com a realidade dum bairro social na sua Paróquia e com as questões sociais, humanas e religiosas que suscitava esta nova implantação dos bairros sociais.

Num discurso proferido na Assembleia geral das Conferências de S. Vicente de Paulo a 8 de dezembro de 1945 e publicado no Jornal da Madeira a 14 do mesmo mês e nos dias seguintes (15, 16, 18 e 21), o nosso autor tem ocasião de abordar os desafios que os problemas sociais colocam à fé e a forma como lidar com tais desafios. Ele começa por fazer referência ao testemunho de S. Francisco que escolheu a pobreza para estar próximo dos pobres. Referindo-se a uma obra do franciscano Pe. Gemelli, ele observa:

O nosso século eivado de materialismo terá deinspirar-se no espírito que animou S. Franciscode Assis, isto é, terá de pôr em prática adoutrina do Evangelho e de realizar os seusdesponsórios com a Dama pobreza se quiserencontrar a paz e trilhar o caminho da verdadee da justiça” (Ferreira, 14 dez 1945, p. 2).

Na verdade, diz ainda, “a nossa época […] precisa de mais espírito cristão, maior desapego aos bens do mundo, de ser mais caridosa para com os infelizes” (14 dez 1945, p. 2). O Pe. Pita Ferreira escreve no fim da segunda guerra mundial e constata o caos social, a injustiça provocada pela ganância do ter e pelo culto das aparências”. Com efeito, diz ele:

O desprezo da velha moral encaminhou o nossoséculo para o ateísmo, [que] o egoísmo e a

a peito, como inimigo contra inimigo, [que] oindividualismo desagrega dia a dia a sociedade,favorece os monopólios e os grandes e destróios negócios pequenos e particulares, [que] odeus dos materialistas é o dinheiro adquiridode toda a maneira – a religião, o gozo, o luxo,o conforto – o fim da vida é o bem-estar (14dez 1945, p. 2).

Para ele, o mundo melhorará se os homens melhorarem moralmente. Por isso, há necessidade de encontrar a fonte e a luz do Evangelho. “É necessário luz, para que os espíritos encontrem e sigam a senda do bem; caridade, para que os homens deem as mãos uns aos outros e vivam unidos, como irmãos. Onde encontrarão essa luz? No Evangelho, como Francisco de Assis a encontrou, porque só Cristo é caminho, verdade e vida” (Ferreira, 15 dez 1945, p. 1). Trata-se de mostrar a caridade de Cristo e isso só é possível, diz o Pe. Pita Ferreira, “se os homens desposarem a Dona pobreza (…) se possuírem e usarem os bens da terra sem a eles ter apego e se, com o supérfluo desses mesmos bens, minorarem a miséria dos deserdados da sorte” (15 dez 1945, p. 2). Os membros da sociedade de S. Vicente de Paulo a quem se dirige conhecem as múltiplas formas da pobreza material e espiritual na Madeira e o Pe. Pita Ferreira tem a consciência do “muito que se tem feito para melhorar a classe pobre e miserável. Levantaramse escolas, abriram-se creches, albergues, centros de sanidade, patronatos, bairros económicos, organizou-se a assistência” (16 dez 1945, p. 1). No entanto, ele é de opinião que se pensou “mais no animal homem, animal racional. Esqueceu-se que a miséria material é quase sempre uma consequência da miséria espiritual e moral. Esqueceu-se que a miséria espiritual dos nossos dias é maior do que a material” (15 dez 1945, p. 1). Se é bom tudo o que se faz para melhorar as condições materiais da vida dos pobres, não se pode esquecer a educação moral e religiosa. Estas questões levantaram-se

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especialmente com as construções dos primeiros bairros sociais no Funchal. Alguns pensavam que dando habitação aos mais pobres, resolvia-se o problema da pobreza. “Puro engano” diz o Pe. Pita. “No bairro económico, os pobres encontram melhor casa, mas também às vezes encontram um ambiente moral e religioso muito pior do que aquele em que viviam antes” (18 dez 1945, p. 1). Em 1945 havia no Funchal três bairros sociais com um total de 981 pessoas vindas de todas as freguesias da Madeira.

O Pe. Pita Ferreira constata que a maior parte dos habitantes dos bairros deixou os seus deveres religiosos. Faltam aí instalações para a catequese e catequistas. Não há escolas nem creches. É grande a miséria moral. Por isso, “os confrades das conferências de S. Vicente de Paulo têm também nos bairros um grande espaço de ação (…) Como veem, todos, a saber: o padre, a professora, a religiosa e o confrade de S. Vicente de Paulo têm uma grande obra a realizar” (18 de dez. 1945, p. 1). O Pe. Pita defende que não importa só construir o bairro económico. É preciso dotá-lo de estruturas para a formação religiosa e humana, capela, escola, assim como de condições sanitárias. Em conclusão apela uma vez mais os membros das Conferências vicentinas a levar, além da esmola, a luz do Evangelho, pão da alma. Resume assim a sua missão: “Moralizar, pois, educar, levar Cristo às almas – o Cristo pobre que prometestes servir e amar e que deveis levar no vosso coração – eis a missão do vicentino”, sem esquecer que já é a de todo o cristão” (18 de dez. 1945, p. 1).

A sensibilidade social do Pe. Pita Ferreira vinha do Evangelho. Em nada se deixava influenciar por quaisquer ideologias, às quais podia reconhecer um papel para evidenciar certos problemas sociais mais prementes mas não para os resolver. Para ele, o que conta é o Evangelho e o Evangelho levado à prática. Não basta só falar dos pobres. É preciso estar com eles para ajudar a tirá-los da miséria que não é só material. O espírito de pobreza que S. Francisco escolheu para seguir Jesus é uma proposta feita a cada cristão. Para estar com os pobres é preciso aceitar uma forma sóbria de viver.

6 — A religiosidade popular como meio de evangelização. Recolha de orações, o Natal na

Madeira.

O Pe. Pita Ferreira interessava-se também com a religiosidade popular. É a forma como o Evangelho se exprime na vida do nosso povo. Foi esse o clima em que tinha sido educado pelos seus pais, na simplicidade e na profundidade da relação com Cristo. Por isso, não admira que o seu livro, publicado em 1956, com o título: O Natal na Madeira. Estudo folclórico tenha, no exemplar que consultei, a seguinte dedicatória manuscrita:

“Aos meus pais. Foi a saudade dos natais passados junto de vós que me levou a escrever este livro, por isso o ofereço com todo o meu coração” S. Gonçalo 25.12.1956.

A introdução mostra que o autor deseja escutar a alma do povo nesta época tão festiva como a do Natal na Madeira. Por isso, ele quis que os testemunhos que recolhia e apresentava no seu livro tivessem a marca da oralidade. Ele apela a que o leitor não procure “enredos apaixonantes” ou “estilo burilado”, mas que “encontre encanto nas coisas simples do nosso povo, no seu viver e sentir, nas suas rezas e festas, nas suas cantigas e músicas, nos seus jogos e costumes” (1956, p. 7).

Não se pode descrever exteriormente a religiosidade popular. É preciso vivê-la porque ela tem a marca da Encarnação do Filho de Deus. Por isso, para escrever sobre o Natal madeirense, diz o P. Pita Ferreira, “fui primeiramente em romaria, às diversas freguesias da nossa ilha apreciar o ‘modus vivendi’ do nosso povo, durante a quadra de Natal. Depois, entrei na minha própria alma, reli páginas antigas do livro da minha vida, revivi momentos e dias passados e, ditando-me a saudade, escrevi estas páginas. Não minto, se afirmo que as escrevi com o coração a pular” (1956, p. 7). A religiosidade popular sente-se e vive-se. Recorda-se com saudade porque nela se dá uma resposta permanente à pergunta pelo sentido da vida. A religiosidade à

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volta do Natal fala do que move o coração dum povo, lhe dá alegria e esperança para fazer frente aos combates do dia-a-dia.

A motivação profunda do Pe. Pita Ferreira em nada prejudica o rigor dos dados que coletou por os ter ouvido da boca dos fiéis. Como ele mesmo diz, não constrói enredos mas transcreve o que foi ouvindo: “Os diálogos não são fruto da minha imaginação. Colhi-os, com todo o cuidado, da boca do nosso povo, para que, neste trabalho, tudo fosse verdadeiro” (1956, p. 8).

O Pe. Pita Ferreira tem o cuidado de nunca separar a parte religiosa das suas tradições festivas à volta do Natal. A alegria é antes de mais um dom acolhido e vivido com criatividade. Sendo assim, ele adverte o leitor:

Não te admires também de que eu estudasse tantoa parte religiosa. O madeirense é crente e,como tal, embalsamou a sua vida com o perfumeda sua crença. Se, escrevendo sobre a quadrado Natal, fosse possível separar o profano doreligioso, para só tratar daquele, o presentetrabalho perderia todo o encanto.Estudando e escrevendo sobre ambos, vê quebeleza… Vê como têm colorido as ‘Missas doparto’, a fornada da ‘festa’, a ‘Missa do galo’e a dos ‘Pastores’, o ‘Jantar de Natal’, ocanto dos ‘Reis’ (1956, p. 8).

A fé e a vida não se podem separar. Já era essa a convicção dos primeiros cristãos. A fé dá um dinamismo novo à vida. Abre-a à alegria que vem de dentro e à esperança:

O Natal tem para o madeirense, sobretudo parao norte da ilha, um encanto especial, únicono mundo. Dia de festa em todo o sentido dapalavra, está adornado com costumes e tradiçõesque muito honram o nosso folclore e dãoelevação à vida do nosso povo. Profundamentecrente, o madeirense não se contentou comcelebrar o Natal, reunindo a família em alegree farta consoada, envergando fato domingueiro,descansando pacatamente em casa das lidesquotidianas […] Foi mais além. Deu largas à suafé e acrescentou, desde tempos recuados, aosofícios litúrgicos do dia, um folclore cristão,cheio de piedade e beleza que muito honra ailha e, bem compreendido, a própria fé. Oestudo da celebração do Natal em Ponta Delgada,Porto Moniz, Boaventura e Ribeira Brava, deu oseguinte trabalho (1956, p. 133).

A devoção ao menino Jesus é o traço fundamental da religião popular. É testemunha este invitatório cantado no Porto Moniz (Ferreira, 1956):

Em vós do presépio Ponde olhos de amor Esposo das almas Salvai-nos Senhor

Nascei já, nascei Meu bem, meu menino Nascei já, nascei Amor pequenino

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O ritual da pensação do Menino Jesus na Missa do galo é mais um traço do amor do cristão pelo seu salvador:

Conclusão

Uma das coisas que mais impressionava a almamadeirense, ao meditar sobre o nascimento deJesus, era a extrema pobreza em que nasceu oFilho de Deus: sentimental e crente comovia-sediante da imagem de Jesus, nua e deitada sobreas palhas da manjedoura, e cantava essa pobrezaem suas cantigas e rimances (…) Na Madeira, osdias do Natal, com as suas festas e folguedos,são dias passados em união com Deus. Neles,anda bem presente, no espírito de todos, onascimento de Cristo, a sua pobreza e amor pelahumanidade (Ferreira, 1956, p. 205 e 229).

No Natal, o povo cristão vive a oferta que Deus faz do seu Filho e responde-lhe com devoção e alegria. O Evangelho fecunda a cultura, eleva-a, como diz o Pe. Pita Ferreira, dá sentido, preenche o vazio do coração e a sua permanente inquietação.

Um dos traços que dominam a alma de pastor do P. Pita Ferreira é o amor à sua terra e à Igreja. A formação que recebeu no Seminário não foi a de historiador mas a que prepara a ser pastor. A predilecção pela história foi em grande parte a de curioso pelas coisas do passado e de autodidacta. Como pastor, o P. Pita Ferreira era sobretudo um educador. Mostram-no as diversas peças de teatro que fez para uso de jovens, na catequese e no escutismo, os seus escritos de iniciação catequética. A história tinha sempre a ver com a fé. Nos seus artigos, como na sua obra sobre a Sé do Funchal, a fé é sempre promotora de história e de cultura. O rigor histórico e o temperamento metódico que o caracterizava nas suas investigações eram interiormente animados pela defesa do património secular da Igreja e a sua transmissão ao longo das gerações. Não bastava registar as evoluções, inventariar o património. Era preciso explicar o sentido que tinha, na medida em que era a marca cristã de cada época. O Pe Pita Ferreira sabe reconhecer a diferença das mentalidades de cada tempo. Aprecia-a ou aponta os seus limites mas evita em todo o caso juízos generalizados que seriam anacrónicos. Sabe respeitar a singularidade dos acontecimentos e das obras, das intenções que presidiram à sua realização.

Para ele, o grande desafio era o de transmitir a fé recebida e incorporada numa cultura. É dessa pedagogia pastoral que testemunham os seus escritos sobre a catequese, as suas peças de teatro, as suas recolhas das tradições madeirenses sobre o Natal. A fé não pode ser um acrescento, uma espécie de verniz. Ela deve entrar nas fibras mais profundas da nossa alma, o que acontece por exemplo com a religiosidade popular à volta do Natal madeirense, para renovar a nossa maneira de olhar o presente, para tornar-nos criativos e abrir-nos à esperança.

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