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Contributos do P.e Pita Ferreira para a História de Arte na Madeira
CONTRIBUTOS DO P. E PITA FERREIRA PARA A HISTÓRIA DA ARTE NA MADEIRA
ISABEL SANTA CLARA
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O labor de investigação do P.e Pita Ferreira (1912-1963) no campo da história da arte decorreu a partir de 1951, para tomarmos como ponto de partida a data da sua mais antiga publicação nesta área. Foi sobretudo a partir de 1945, durante a sua função de pároco de S. Gonçalo – Funchal, que teve ocasião de aprofundar o interesse pela arte sacra, publicando um artigo acerca da ourivesaria sacra da igreja desta paróquia. Nele chama a atenção para a existência de obras valiosas, mesmo em freguesias pobres
Inventariar essas peças de ourivesaria, historiá-las, descrevê-las e classificá-las, o melhor que se puder, não é tarefa fácil, pois exige de quem a ela se dedica, muita paciência e tempo para rebuscar arquivos, manusear alfarrábios, visitar os lugares onde se encontram, compará-las, etc., etc. Contudo, a satisfação que se sente com as descobertas que se vai fazendo e com a certeza de que com o seu trabalho desvenda ao público um capítulo novo na história da arte da nossa terra — capítulo em que se exalta a fé dos nossos maiores, o amor a Deus, à Igreja e à arte, que animavam os Irmãos das Confrarias, a dedicação e a piedade de muitos fiéis — já é uma grande recompensa (Ferreira, 1951, p. 11).
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Sentem-se já neste texto, por um lado, os pressupostos que norteavam a sua pesquisa — inventariação, descrição, comparação e classificação com base em trabalho de arquivo — e, por outro, a vontade de divulgação de uma arte vocacionada para o serviço da fé. As suas investigações abrangeram temáticas como o retábulo da capela do Senhor Jesus na Ribeira Brava, a ourivesaria sacra e os ourives, bem como a Sé do Funchal, edifício a que consagrará estudo mais aprofundado (ver bibliografia ativa).
As suas Notas para a História da Freguesia de Santa Cruz, ainda que veiculando maioritariamente dados acerca do povoamento e colonização, da construção da igreja, da criação e funcionamento das Confrarias e da Misericórdia, bem como da organização eclesiástica, avançam com informação relevante para a história da arte. Salienta as principais obras de arquitetura, de pintura, de imaginária e de talha, merecendo-lhe especial destaque o convento da Piedade e o turíbulo de Água de Pena. Distingue também importantes figuras da freguesia — João de Freitas, Jordão de Freitas e a família Lomelino (Ferreira 1951-1955).
Foi divulgando os seus trabalhos na imprensa local, como a Voz da Madeira, o Jornal da Madeira, a Revista das Artes e da História da Madeira, em artigos avulsos, lançando-se depois numa extensa monografia que constitui a sua obra de fundo. Nela expõe exaustivamente dados sobre a Sé do Funchal (1963) e este livro continua a ser uma obra de referência, embora muito já tenha sido, entretanto, investigado sobre o assunto, à luz de novas perspetivas e de novos dados. Na primeira parte aborda, sempre com apoio documental que transcreve e anexa, a arquitetura e construção, mas também a história da criação da paróquia e da diocese, a relação dos bispos e capitulares ilustres, as confrarias, as festas e acrescenta referências literárias e históricas acerca da catedral. Passa depois aos capítulos sobre arte, que versam a ourivesaria sacra, as pratas da Confraria do Santíssimo Sacramento da Sé, a obra de talha, a pintura, a escultura, a paramentaria, a cerâmica, a serralharia, a marcenaria e a vidraria. Inclui ainda os órgãos e os sinos, bem como as sepulturas existentes na catedral.
As alterações de que foi alvo a talha do retábulo do altar-mor levam-no a sugerir um restauro que só veio a ser efetivado em 2014:
Comparada toda esta talha com os dois frisos erendilhados do andar inferior do retábulo, coma talha do sacrário e do rebordo do sobrecéu,que cobre o altar, avaliamos muito bem ainfelicidade da adaptação e ficamos com pena,muita pena, de que tivesse sido adulterada tãopreciosa obra de arte. Não poderia a DirecçãoGeral dos Edifícios e Monumento Nacionaisrealizar o milagre de fazer voltar à primitivaa talha do retábulo da nossa Sé? Se o fizer,ficar-lhe-emos muito gratos. (Ferreira, 1962,abr. 14).
Para além do abundante apoio documental, encontramos em A Sé do Funchal citações de autores que eram, efetivamente, aqueles que, ao tempo, pontuavam na história da arte nacional. São mencionadas as obras de síntese de Reynaldo dos Santos, de João Barreira e de Aarão de Lacerda, bem como as de Albrecht Haupt, sobre arquitetura da Renascença, de Luís Reis-Santos sobre pintura e de Pedro Vitorino acerca das lâminas sepulcrais.
O interesse de Pita Ferreira pelo património artístico insular fá-lo expressar, por diversas vezes, a necessidade da sua inventariação e estudo, atitude particularmente explícita no seu artigo acerca de ourives madeirenses:
Do valor artístico duma grande parte [dasobras de arte] ajuizámos bem nas Exposiçõesde Santa Clara; da sua história, porém, poucoou nada sabe o público, por que para sabê-loé necessário consultar alfarrábios, livros de
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tombo, de Confrarias e de Fábricas, testamentose doações e tudo isto é tarefa espinhosa emaçadora, que rouba tempo e paciência. […]Todas elas fazem, portanto, parte do patrimónioartístico do país e da sua história cultural.Por elas ficamos a saber o grau de cultura e aarte das várias épocas.Estudá-las, pois, identificar os seus autores,localizar umas e outros no tempo é umanecessidade, para se poder escrever a históriadum país ou duma região.Na Madeira, já alguma coisa se fez nessesentido. Eu julgo que a maior parte das nossasobras de arte já se encontram catalogadas eregistadas, graças aos esforços do Dr. Manuelde Almeida Zagalo, ilustre Conservador doPalácio da Ajuda e grande amigo da Madeira,do Rev.º P.e Eduardo Clemente Nunes Pereira,do Engenheiro Luís Peter Clode, com quemintimamente colaborei nas Exposições deOurivesaria e Escultura Religiosas, realizadasem Santa Clara, e de outros. (Ferreira, 1960pp. 53-54).e de outros.” (Ferreira, 1960 pp. 53-54).
Cabe aqui lembrar, sumariamente, o contributo das figuras acima mencionadas para o estudo do nosso património, para termos um panorama da atividade destes intervenientes. Cayola Zagallo (1905?-1970) deixou-nos uma inventariação da pintura dos séculos XV e XVI da Ilha da Madeira, divulgada em diversos artigos e monografias, base de trabalho para a conservação e restauro destas pinturas então dispersas por igrejas e capelas. Desempenhou um papel fulcral
na criação do Museu de Arte no Funchal, inaugurado em 1955, que vem coroar um longo labor de investigação e uma congregação de vontades tanto como da Diocese e das instâncias governamentais como de estudiosos, entre os quais Pita Ferreira, que foi também membro da Comissão Conservadora deste Museu, e Luiz Peter Clode.
A obra mais abrangente de P.e Eduardo Nunes Pereira (1887-1976) foi Ilhas de Zargo, onde inclui um capítulo destacado para a arte que constitui uma primeira achega para uma síntese da história da arte na Madeira. Subdivide-o em arquitetura, pintura, arte decorativa, escultura e ourivesaria sacra e profana. À data da sua morte, tinha no prelo uma 4.ª edição desta obra, revista e aumentada. Publicou ainda, entre 1948 e 1971, diversos artigos acerca de estampas devocionais e azulejaria, entre outros, reunidos numa separata da Revista Das Artes e da História da Madeira (Pereira, 1972). O seu arquivo pessoal encontrase devidamente conservado e catalogado no Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira - ABM.
Quanto ao Eng. Luiz Peter Clode (1904-1990), impulsionador do ensino artístico através da Academia de Música e Belas Artes da Madeira e da criação da Sociedade de Concertos da Madeira e da Revista das Artes e da História da Madeira (publicada primeiro como suplemento de O Jornal, em 1948 e 1949 e depois como revista autónoma de 1950 a 1971), teve uma porfiada ação no estudo do património artístico. Foi membro da comissão directiva do Museu Diocesano de Arte Sacra e organizou muitas exposições entre 1949 e 1973, estudando e dando a ver peças não só pertencentes à Diocese, mas também a coleções particulares: lampadários, ourivesaria sacra, esculturas religiosas, porcelana da Companhia das Índias, cobres e latões, cadeiras inglesas, pintura do século XIX, românticos e impressionistas do século XX, bem como obras de Max Römer. Nas exposições de arte religiosa — Ourivesaria Sacra, em 1951, e Esculturas Religiosas, em 1954, o Eng. Luiz Peter Clode encontra no P.e Pita Ferreira um precioso colaborador. O seu rico e diversificado espólio também está disponível no ABM. Ficaram como testemunhos desta parceria os catálogos com textos introdutórios, listagem das peças e algumas fotografias.
Aspetos da Exposição de Ourivesaria Sacra no Convento de Santa Clara 1951 Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM) – Fundo Luiz Peter Clode
Inauguração da exposição de Ourivesaria Sacra 1951 Foto Perestrellos
Exposição de Ouriversaria Sacra no Convento de Santa Clara Padre Pita Ferreira junto à Cruz Processional Manuelina Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira (ABM) – Fundo Luiz Peter Clode
Capa do catálogo da exposição Ourivesaria Sacra no Convento de Santa 1951
A Exposição de Ourivesaria Sacra em Santa Clara In Revista das Artes e da História da Madeira nº 8 1951 Museu de Arte Sacra do Funchal
Convento de Santa Clara: Exposição de Esculturas Religiosas – Catálogo 1954 Museu de Arte Sacra do Funchal
A Capela do Senhor Jesus e o seu Retábulo In Revista das Artes e da História da Madeira nº6 1951 Museu de Arte Sacra do Funchal
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Ainda que não mencionado por P.e Pita Ferreira, é importante lembrar também o contributo de Cabral do Nascimento (1897-1978) para o estudo do nosso património. Foi Director do Arquivo Distrital do Funchal e publicou diversos artigos na revista Arquivo Histórico da Madeira, entre 1933 e 1951, versando assuntos como: a exposição de ourivesaria sacra; a criação e funcionamento da Aula de Desenho e Pintura no Funchal; o pintor Leonardo da Rocha; o Museu de Arte Sacra; os cemitérios do Funchal; o retábulo da Ribeira Brava; a restauração de monumentos; as sepulturas da Sé e outras brasonadas; o Museu de Arte no Funchal; pedras, azulejos e tectos armoriados; prata e ornamentos da Sé do Funchal; recantos artísticos da cidade; tesouro de arte sacra. Deve-selhe ainda o catálogo da exposição Estampas Antigas da Madeira. Paisagem—Costumes—Traje—Edifícios—Marinhas, Funchal, editado pelo Clube Rotário do Funchal em 1935, bem como a edição e tradução do Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853-1854) de Isabella de França que, em 1970, deu a conhecer um fascinante testemunho da vida na ilha em meados do século XIX.
Retomando a reflexão acerca do contributo do P.e Pita Ferreira para o conhecimento do nosso património artístico, o seu apreço, plenamente justificado, aliás, pela fidelidade à documentação escrita, levou-o, no entanto, a atribuir erroneamente a Fernão Gomes uma Descida da Cruz, cópia de Van der Weyden, de princípios do século XVI, hoje no Museu de Arte Sacra do Funchal (MASF 43).
A tábua veio da matriz da Ribeira Brava, e o testemunho oral do pároco de então dá-a como proveniente da capela do Senhor Jesus. Esta ermida é mencionada por Henrique Henriques de Noronha, em 1822, como do Senhor Bom Jesus (1996, p. 220), no entanto, nem o Elucidário Madeirense nem as notas de Álvaro Rodrigues de Azevedo às Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso mencionam a sua existência.
A proveniência da pintura acima mencionada é posta em dúvida por Cayolla Zagallo: “Apesar da informação do pároco da Vila da Ribeira Brava, que dá este quadro como tendo transitado da capela do Bom Jesus,
a data da construção desta em 1581, a estar certa, representa sério obstáculo a que se trate do mesmo tríptico, porque o que se regista neste trabalho, evidencia data anterior àquela” (Zagallo, 1943, p. 74). O outro obstáculo invocado por Zagallo (1934, p. 35) é a discrepância temática entre a Descida da Cruz, cópia de Van der Weyden, e a descrição feita por Alberto Artur Sarmento, em 1930 ou 1931, do painel existente na capela do Senhor Jesus, próximo do sítio do Calvário: “possuia um tríptico, tendo na taboa central Jesus Crucificado e nas laterais N.ª S.ª e St.ª Maria Madalena” (Sarmento, 1953, p.162). Ora o tríptico hoje no MASF apresenta no painel central uma Descida da Cruz, no volante direito Maria Madalena e no volante esquerdo Nicodemos. Parece-nos, pois, que Alberto Artur Sarmento se está a referir a um tríptico entretanto desaparecido e não à tábua do Museu de Arte Sacra do Funchal.
A referida tradição oral relativa à proveniência foi aceite pelo P.e Eduardo Nunes Pereira, que ignora as reservas de Cayola Zagallo e dá até por certo ter este autor atribuído a tábua a uma escola portuguesa (Pereira, 1968, pp. 739-740). Respaldado também na informação oral do pároco e, sobretudo, apoiado na documentação que encontrou acerca de uma encomenda feita a Fernão Gomes para a Capela do Senhor Jesus na Ribeira Brava, caso raro nas lacunares fontes
Descida da Cruz, Nicodemos e Maria Madalena c. 1515-1520 óleo sobre madeira de carvalho painel central 97x77cm, volantes 97x32cm. Arquivo MASF
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documentais acerca de encomendas para a ilha da Madeira, o P.e Pita Ferreira publicou um artigo onde a transcreve. A documentação é omissa em relação ao tema do desaparecido retábulo, mas indica autorias:
No ano de 1590 já o retábulo estava no altar doSenhor Jesus pois na despeza do ano anterior seencontram lançadas as verbas seguintes:«Levou P.º Mendez, marceneiro morador em Lx.ª defazer o Retabolo de madeira trinta e sinquo mil Rs.«Levou Fernão Gomez de pintar e dourar o Retaboloquarenta e quatro mil Rs.«Fez de custo de carreto ao navio, quaixoens,embarcuação sinquo mil Rs.«De seguro seis mil e trezentos Rs. Segurou-se emsetenta mil Rs.«De frete de Lx.ª p.ª esta Ilha trezentos mil equinbentos Rs.«De descarregua e carretos no Funchal trezentos esessenta Rs.«De frete do Funchal à R.ª Brava quatrocentos Rs.«Dez alqueires de qual p.ª consertar o degrao doaltar quatrocentos Rs.«Levou Pascoal de paiva de conserto do degrao doaltar e Manoel Miz de assentar o Retabolo mil Rs.«Ao barquo q’os trouxe do Funchal com a suferrament.ª oitenta Rs.(Ferreira, 1951, p. 21)
Cayolla Zagallo afirmara acerca da peça hoje no MASF: “O autor do painél central conheceu, sem dúvida, as obras de Van der Weyden. O arranjo, e as esculpturais figuras
que o compõem, parecem importados dos antigos modelos deste pintor” (Zagallo, 1934, p. 35). O mesmo autor declara que se trata de uma cópia de obra deste pintor datada de inícios do século XVI (Zagallo, 1943, p. 73). A justa referência a Van der Weyden (1400-1464), pertencente à geração dos ditos primitivos flamengos, bem como as objeções quanto à questão da proveniência, bem conhecidas de Pita Ferreira, não pesaram, no entanto, na sua conclusão, pois não hesita em atribuir a Fernão Gomes a cópia de Van der Weyden:
Nada mais diz o livro acerca da aquisição doRetábulo. Contudo, pelo que fica dito, podemosconcluir, com toda a certeza, que o trípticopertenceu à Ermida do Bom Jesus e que foipintado por Fernão Gomes, pintor português,discípulo do flamengo Blockland, que, em1594, foi nomeado pintor real por Filipe I dePortugal, em substituição de Cristovão Lopes(Ferreira, 1951, p. 22).
Consoante a referida documentação, o retábulo foi, efetivamente, encomendado para a capela do Senhor Jesus na Ribeira Brava, instituída em 1581 pelo Padre Jorge Afonso, também responsável pela criação da Confraria do Senhor Jesus. Por sua morte, recebeu D. Guiomar de Bettencourt trinta mil reis para dar andamento a este encargo, o que só veio a ser feito em 1588, por mandado do Bispo D. Luis Figueiredo de Lemos. Estava já colocado em 1590 e, com transportes, seguro e demais despesas, custou cerca de cem mil reis, tendo levado o marceneiro Pero Mendes por fazer o retábulo trinta e cinco mil réis, e Fernão Gomes, por pintá-lo e dourá-lo, 34 000 réis. A quantia, que até é modesta para um retábulo de boa mão, foi considerada exagerada por alguns mordomos desta, decerto pequena, Confraria.
O marceneiro Pero Mendes, morador em Lisboa, que executou a talha deste retábulo deve ser o mesmo que
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Sousa Viterbo referencia como tendo sido nomeado para o cargo de Mestre dos Reparos do Armazém do Reino, em 28 de abril de 1605 (Viterbo, 1904 , p. 167).
Julgamos que o equívoco em relação à atribuição desta cópia de Van de Weyden a Fernão Gomes ficou esclarecido por Dagoberto Markl (Markl, 1973, pp. 66-70) e, mais exaustivamente, por Luiza Clode e Fernando António Baptista Pereira no catálogo da Arte Flamenga do Museu de Arte Sacra do Funchal (Pereira e Clode, 1997, pp. 30-33). Nelson Veríssimo, no entanto, após ter verificado a leitura documental de Pita Ferreira, retomou a interpretação deste (Veríssimo, 1997, pp. 13-14). É significativo refletir sobre esta divergência de opiniões, pois remete para uma questão recorrente e fundamental da história da arte, que é a da conciliação do documento escrito com a observação da obra. Do ponto de vista da história da arte a obra é, em última instância, o principal documento. É altamente improvável que Fernão Gomes tenha executado esta cópia de Van der Weyden para a Madeira, já que não se lhe conhece outro trabalho deste género, que está bem distante, em termos estilísticos, da sua obra — um século de evolução do gosto os separa. Este pintor estava já claramente imbuído de valores maneiristas, que assimilou na sua passagem por Delft, através da aprendizagem com o maneirista italianizado Anthonis Blocklandt. A encomenda para a Ribeira Brava (1588) é posterior a encomendas de vulto em Lisboa, como o retábulo da capela de S. Tiago na igreja de S. Julião, pelo qual o pintor cobrou 110 000 rs. Seguiu-se a empreitada de frescos para o Mosteiro da Anunciada, entretanto desaparecidos, mas de que subsiste um desenho preparatório, O Triunfo da Obediência no Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa (MNAA, inv. 461). Trata-se de um desenho de conteúdo fortemente imbuído da ortodoxia contrarreformista na sua defesa da submissão dos sentidos e da vontade aos valores morais da Fé católica, e representa bem a desenvoltura de traço e de composição que caracterizava o pintor. A encomenda documentada para a capela do Senhor Jesus é de uma fase do seu percurso em que estavam claramente definidas as suas opções estéticas, bem afastadas das que apresenta a arcaizante tábua que lhe foi atribuída. Se comparararmos, por exemplo este
tríptico com a Ascensão de Cristo proveniente do altar da Confraria da Ascensão da Sé do Funchal (MASF48), datável de cerca de 1583 (Serrão, 2017, p.236 e Santa Clara, 2004, pp. 242-246), podemos comprovar as flagrantes divergências: no primeiro a fragilidade das figuras, o tratamento anguloso das vestes, o colorido vivo, a luminosidade predominantemente homogénea, a atenção aos pormenores e à descrição da paisagem de fundos; no segundo, a largueza no traçado das volumosas figuras serpentinatas, cujos traços fisionómicos são bem caraterísticos de Gomes, os panejamentos largos e esvoaçantes, a composição que desvaloriza pormenores cenográficos e acessórios e esvazia a zona central para melhor isolar a figura de Cristo num espaço celestial com fortes contrastes de luz, onde revolteiam os anjos, o jogo cromático com gradações e misturas nuanceadas de cor.
Existem na Madeira outras peças atribuídas a Fernão Gomes, ainda que desprovidas de apoio documental escrito, por estarem estilísticamente ligadas à sua oficina: Nossa Senhora dos Remédios (igreja da Quinta Grande), Procissão de Nossa Senhora das Neves (capela das Neves), Assunção e Coroação da Virgem (Convento de Santa Clara), S. Lourenço (capela do Corpo Santo), Aparição de Cristo a S. Pedro (MASF), Lamentação sobre o Corpo de Cristo (igreja de Santa Luzia), Santa Ana, S. Joaquim e a Imaculada Conceição e Padre Eterno (capela da Quinta do Faial) (Santa Clara, 2004, pp. 246-261).
O reconhecimento da qualidade do trabalho de Fernão Gomes levou à sua nomeação para o cargo de pintor régio de Filipe I, que se deu em 1594, e a importantes encomendas entre as quais se destacam pinturas para o Mosteiro dos Jerónimos e o teto do Hospital Real de Todos os Santos.
A vida de Pita Ferreira não lhe concedeu tempo para desenvolver algumas ideias a que se tinha proposto dar corpo, deixando inacabadas, pelo menos, duas grandes tarefas: uma relação de artistas madeirenses e outra, mais arrojada, que seria uma história da arte na Madeira. Da primeira dá conta num artigo intitulado genericamente “Artistas madeirenses” (Ferreira, 1960, pp. 53-59), que se destinava a ser
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o primeiro de muitos, pois nele Pita Ferreira afirma ter identificado 34 ourives ativos na ilha entre os séculos XVI a XIX, embora apenas refira neste primeiro artigo oito nomes. Da segunda tarefa dá notícia num artigo acerca do cadeirado da Sé onde adianta que este é um estudo inédito que faz parte de um novo livro seu sobre a História da Arte na Madeira (Ferreira, 1962 mai 1). Afirma que o livro está no prelo, mas nunca foi publicado, nem foram localizados os apontamentos que teria já coligido para este fim. Este trabalho, que continua por fazer é, como ele próprio reconhece, umatarefa para muitos:
A história e o estudo da maior parte dessasobras, porém ainda está por fazer. Dalgumas émesmo impossível fazê-los, em razão da faltade dados e de documentação. Além disso, temosainda a considerar a vastidão do assunto eos conhecimentos técnicos, que actualmente otrabalho exige. Não é uma tarefa para um, maspara muitos. (Ferreira, 1960, pp. 53-59).
As balizas cronológicas da sua investigação vão apenas até meados do século XIX, como ele explicitamente afirma: “No meu estudo ficarei em 1859, deixando, por isso, a outros mais competentes o estudo e a apreciação dos artistas contemporâneos” (Ferreira, 1960, p. 54). Deste período até à atualidade fica, pois, um vasto campo por explorar. Podemos concluir que Pita Ferreira deu, com empenho e rigor, um inestimável contributo para a inventariação, estudo e divulgação do nosso património religioso, o que faz do seu trabalho uma referência obrigatória para os estudiosos deste temas. Sente-se, na sua ação e nos seus escritos, a consciência da inseparabilidade entre o valor patrimonial e o valor devocional da arte sacra, como se pode constatar na seguinte observação: “nela [Exposição de Esculturas Religiosas] serão expostas algumas dezenas de esculturas religiosas de templos e capelas desta ilha, com o fim de dar
ao público uma lição de arte, mostrando-lhe, ao mesmo tempo, o valor da fé dos nossos antepassados” (Ferreira & Clode, 1954, p. 9). Outro aspeto a sublinhar é o seu sentido estético, que o leva a salientar a importância da qualidade estética para o cabal cumprimento da função devocional: “É sem dúvida uma exposição oportuna e necessária, pois, actualmente, o mau gosto fez da maior parte das nossas imagens religiosas um objecto sem valor, que raras vezes fala à alma e a eleva para Deus” (Ferreira & Clode, 1954, p. 9). É igualmente este sentido estético que se manifesta na sua defesa do papel das exposições e dos museus e no deslumbramento que proporcionam as obras de arte:
Isoladas, muitas destas peças são umdeslumbramento; agrupadas num museu ou numaesposição, são um sonho. […]Idêntica sensação sentimos ainda hoje, quando,em tarde de inspiração, visitamos o Museu deArte Sacra do Funchal ou o das Cruzes, parapassar algumas horas em companhia das pinturasmaravilhosas e da ourivesaria do primeiro e daspeças de mobiliário e de cerâmica do segundo,ou quando entramos com olhos de ver na SéCatedral, no Colégio, na igreja de S. Pedro e,em digressão pela ilha, entre outras, na Matrizde Santa Cruz e na paroquial de S. Jorge”(Ferreira, 1960, Das Artes e da História daMadeira nº 30, p. 53).
A iniciativa do Museu de Arte Sacra do Funchal de associar à celebração dos 500 anos da Dedicação da Sé do Funchal o relembrar da obra do P.e Pita Ferreira e o aprofundamento da reflexão sobre ela, dedicandolhe uma exposição, é justa e oportuna. Teria decerto agradado a este estudioso a conexão de conceitos contida no título da mostra: Fé, Arte e Património.
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