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Padre Pita Ferreira, Apóstolo na Catequese e na Cultura
PADRE PITA FERREIRA, APÓSTOLO NA CATEQUESE E NA CULTURA
MARIA FAVILA VIEIRA DA CUNHA PAREDES (ARQUIVO REGIONAL E BIBLIOTECA PÚBLICA DA MADEIRA)
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Este artigo comenta livros e documentos do Padre Pita Ferreira emprestados pelo Arquivo Histórico da Diocese do Funchal para a exposição comemorativa dos 500 anos da dedicação da Sé do Funchal. Nos documentos disponibilizados, procurámos salientar aspetos de interesse e atualidade, bem como tentámos reconstituir alguma parte do “mapa” das influências e interferências espirituais e intelectuais que desaguaram na obra do Pe. Pita Ferreira e a explicam. Assim esperamos ter contribuído para incentivar à (re) leitura dos livros e artigos do Padre Pita Ferreira e a prosseguir a investigação dos temas que ele tratou. Alegramo-nos de participar numa iniciativa que põe em evidência simultaneamente o relevantíssimo contributo cultural da Igreja Católica e o apostolado multiforme do benemérito sacerdote – tão empenhado em ensinar a Doutrina Católica com transparência e rigor no púlpito e na aula de Catequese, como em assinalar o valor divino e a função didática da Arte Sacra.
1. Retrato
A inclusão de documentos do Arquivo Histórico da Diocese do Funchal em exposição comemorativa dos 500 Anos da Dedicação da Sé do Funchal é bem oportuna, naturalmente porque a efeméride apela a um balanço do devir cumprido – o que pressupõe reconhecer, observar e interrogar factos, pessoas, vivências que constituem marcos e referências do seu tempo e no Tempo, as suas razões e motivações; mas não menos porque o próprio padre Pita Ferreira demonstrou sobejamente a importância de pesquisar, analisar e relacionar documentos credíveis de diversas proveniências para bem interpretar a história, os monumentos e os objetos de arte. Dizia ele, na Introdução à monografia A Sé do Funchal (1963, s.p.) – templo que ele considerava “o monumento de maior valor que a Madeira possui” –, que escrevia para quem desejasse entrar “na alma das coisas” e “na sua razão de ser”.
Para contemplar “com olhos de ver” a catedral, dedicada a Nossa Senhora da Assunção, ouçamos a prece de quantos nela rezaram e rezam com fé: Sub tuum praesidium confugimos, o Virgo! Era este movimento íntimo que transportava o padre Pita Ferreira e se manifesta na sua obra, por isso a modelar monografia em apreço é roteiro de consciencioso detalhe, que a par de muitas maravilhas aponta o modesto painel de Nossa Senhora do Amparo (de cuja localização o padre Pita Ferreira aliás discordava) ostentando a sentida invocação que os cristãos têm repetido incansavelmente ao longo de séculos: À tua proteção nos acolhemos, ó Virgem! Cotejar belas peças de arte relacionadas com a catedral funchalense e documentos do espólio do padre Pita Ferreira – uns conservados no Arquivo Diocesano, outros existentes na posse da família do distinto historiador – é uma forma de celebrar a espiritualidade e a história de que os objetos, os documentos e a própria catedral são sinais, ao mesmo tempo que permite evidenciar a função deste património artístico ao serviço da Catequese da Igreja e a inspiração que o Padre Pita Ferreira dele recebeu.
Nascido em 16-4-1912, Manuel Juvenal Pita Ferreira, filho de Francisco Ferreira e de Filomena Celeste Pita Ferreira, ordenou-se a 25 de agosto de 1935. Os testemunhos de quantos lamentaram a sua morte precoce (9 de outubro de 1963), oferecem vislumbres da sua personalidade ornada de muitos talentos, eminentemente simpática e completa, de intelectual, esteta, homem de ação e sobretudo sacerdote imolado à sua missão de pastor de almas. Um seu contemporâneo do Seminário recordava “o seu feitio insofrido”, apressando-se a reconhecer: “a sua laboriosidade intelectual, na busca e pesquisa da verdade, a ânsia sempre renovada de enriquecer o seu espírito sedento, insaciável de mais e melhor, levaram o Padre Pita Ferreira a uma atividade que sempre admirei e ainda hoje me causa admiração” (Abreu, 1966, p. 7). Ainda outro depoimento enaltece as invulgares capacidades de trabalho e determinação do Padre Pita Ferreira: “Há pois que fazer justiça ao trabalhador incansável, ao espírito dinâmico, à vontade férrea do Pe. Pita Ferreira em realizar obra já vultosa em prol da terra onde nasceu” (Diário de Notícias, 1963, p. 5). Cativava pela sinceridade despida de arrogância: “O Padre Pita Ferreira era um sincero … Tinha as suas opiniões, mas era leal, franco e caritativo com quem não dividisse o seu modo de pensar” (Diogeneto, 1963, p. [3]). Apaixonava-o a doutrina do Corpo Místico de Cristo que, como escreveu na nota introdutória do seu Curso de Iniciação Catequística, “foi a doutrina que cristianizou o mundo pagão, e é a única que pode salvar o mundo atual. Nenhuma eleva e dignifica o homem como ela” (Ferreira, 1962, s.p.). Obras e escritos seus tão diversos como A Sé do Funchal, o Curso de Iniciação Catequística ou as pequenas pastas onde conservava os seus apontamentos de pesquisa – ilustram, não obstante a encadernação modesta, a estatura moral do seu autor, “Apóstolo da pena, da arte religiosa e da catequese” (Diogeneto, 1963, p. [3]). Em 26 de agosto de 1966, foi atribuído a uma rua o nome do Pe. Pita Ferreira, em homenagem à sua memória, sendo no mesmo dia igualmente homenageados os prestigiados camaralobenses Dr. Januário Figueira da Silva (médico) e Dr. Eduardo Antonino Pestana (professor e advogado).
Grupo de sacerdotes e bispo, D. António Manuel Pereira Ribeiro, no Seminário da Encarnação, Freguesia de Santa Luzia, Concelho do Funchal, Photographia Vicente 1935-08-10 negativo em vidro ABM, VIC/21495
Curso de Iniciação Catequística — 3ª Parte 1961 Arquivo Histórico Diocesano do Funchal
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2. Construindo na Cidade dos Homens a Cidade de Deus
2.1. Padre Pita Ferreira, Cónego Agostinho Gomes e D. David de Sousa: três rostos da Igreja perante a política
Um exemplar de A Sé do Funchal conservado na Biblioteca da Cúria Diocesana é penhor da estima que o Autor nutria por um eclesiástico madeirense de assinalável atividade política e periodística, conforme atesta o autógrafo constante da folha de guarda: “Ao seu amigo Dr. Agostinho Gomes, ilustre Deputado da Nação e Diretor do “Jornal da Madeira” com um abraço oferece o Autor Padre Pita Ferreira” (Ferreira, 1963). Doutor em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, professor do ensino liceal e particular, provedor da Santa Casa da Misericórdia e reitor da igreja do Colégio, vigáriogeral da Diocese (18-01-1971) e diretor do Jornal da Madeira, o Cónego Agostinho Gonçalves Gomes (1912- 1998) foi deputado da Assembleia Nacional pelo círculo do Funchal na VII Legislatura (1957-1961) e na VIII Legislatura (1961-1965). Como tal, pugnou pelo aprofundamento da autonomia administrativa e pelo progresso do arquipélago da Madeira, quer exigindo para este serviços próprios de identificação, quer discutindo alterações à Constituição ou as Contas Gerais do Estado, a cooperação das instituições de previdência e das Casas do Povo na construção de habitações económicas, a reorganização da indústria de Lacticínios da Madeira, a legislação sobre saúde mental, o Plano Intercalar de Fomento para 1965-1967. Dava aliás continuidade a uma já longa tradição de intervenção eclesiástica na arena política, desde logo do próprio cabido diocesano: “Os membros do cabido da Sé integraram quase sempre as listas concorrentes às várias eleições madeirenses a partir da segunda metade do séc. XIX, como as de 1879, onde foi eleito o Cón. Alfredo César de Oliveira (1840-1908), fundador e diretor do Diário de Notícias, pelo círculo do Funchal, e o Cón. Feliciano João Teixeira (1842-1896), pelo da Ponta do Sol, tendo a Madeira ficado a dever a este último a recuperação da cruz processional da Sé, que estava para integrar o Museu Nacional de Belas Artes. Já nos inícios do séc. XX, uma nova figura do cabido da Sé, onde fora escrivão da câmara eclesiástica, viria
a ter uma larga projeção: o Cón. António Homem de Gouveia (1869-1961), tal como, no Estado Novo, o Cón. Agostinho Gonçalves Gomes” (Carita, 2016) 1 .
Recordar a amizade do padre Pita Ferreira e do cónego Agostinho Gomes traz à mente a delicada questão da intervenção dos católicos (nomeadamente padres) na política, como pano de fundo do respetivo aporte na Igreja do seu tempo. Nascidos com escassos dias de diferença, ambos iniciaram o seu ministério sacerdotal num meio permeado por diversas expressões Nacionalistas, entre 1928 e 1936”. Emanuel Janes constatou a existência nessa época de tensões entre católicos madeirenses, em razão da vinda para esta ilha do movimento nacional-sindicalista, e refere que perante a “acesa polémica alimentada no órgão da Diocese do Funchal, O Jornal, e ridicularizada pel’O Povo e pelo Re-nhau-nhau”, o advogado Fernão Favila Vieira, que se demitira da Comissão Distrital do Funchal da União Nacional para dirigir o referido movimento, em 1933, esclareceu:
O Nacional-Sindicalismo é nosso, porque énacional, é estruturalmente português. Ehá nele uma característica inconfundível,mais do que o Fascismo que tem a sua pontade paganismo; - mais do que o Hitlerismo– que é bastante luterano – o Nacional-Sindicalismo, bebendo religiosamente as suasenergias na história do nosso povo, que écatólico, tem em si e nas suas intenções,como não podia deixar de ser, o espírito damoral cristã que os outros movimentos porvezes esquecem. Somos latinos de sangue, masportugueses pela filiação e pelo ideário.E isso basta para que não nos possamconfundir, senão exteriormente, com osfascistas e os hitlerianos (Vieira, cit. porJanes, pp. 183-184).
1 Não cabe aqui, a propósito da amizade que ligava o cónego Agostinho Gonçalves Gomes e o padre Pita Ferreira, detalhar a ação política do primeiro, e muito menos as cambiantes, opções e resultados do envolvimento eclesiástico no processo de construção/ restauração/ reforma da ordem económica e social portuguesa, entre o bom combate de D. Manuel Agostinho Barreto, bispo do Funchal (1877-1911) e o de D. António Ferreira Gomes, bispo do Porto (1952- 1982). Apenas assinalar que em tantos e diversos tempos e lugares a atuação política dos católicos (nomeadamente de sacerdotes católicos) em defesa da Igreja almejou em última instância preservar, na expressão do bispo de Coimbra D. Manuel de Bastos Pina, a “… influência social com que ela poderá produzir a felicidade comum e concorrer para a prosperidade da Pátria” (cit. por Cruz, 2001, p. 382). No filme O Leopardo, o jesuíta padre Pirrone, em diálogo com o príncipe Fabrizio di Salina denuncia o conluio de interesses e grupos antagónicos para fazer a Revolução à custa da Igreja: “Porque é evidente que todos os nossos bens, que são património dos pobres, serão roubados e depois divididos entre os novos chefes mais desavergonhados. E depois? Quem matará a fome dos infelizes que hoje a Igreja sustenta e guia? Como poderemos aplacar aquelas massas desesperadas?… Nosso Senhor curava os cegos de corpo, mas os cegos de espírito, para onde irão?”. Fonte comum onde beberam eclesiásticos e leigos militantes na política, tal como o fizeram o cónego Agostinho Gomes e os capitulares seus antecessores, a Doutrina Social da Igreja reúne “o conjunto dos ensinamentos contidos na doutrina da Igreja Católica e no Magistério da Igreja Católica constante de numerosas encíclicas e pronunciamentos dos papas inseridos na tradição multissecular, e que tem as suas origens nos primórdios do cristianismo. Tem por finalidade fixar princípios, critérios e diretrizes gerais a respeito da organização social e política dos povos e das nações. É um convite à ação. A (sua) finalidade é “levar os homens a corresponderem, com o auxílio também da reflexão social e das ciências humanas, à sua vocação de construtores da sociedade terrena”” (Economia e Fé, 2013).
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Acrescenta que se (a Igreja) condenar o Nacional- Sindicalismo, aceitará essa condenação: “não serei eu católico, apostólico, romano, que se levante contra a opinião expressa e autorizada”. E (…) sublinhava: “SEMPRE SUBORDINEI AS MINHAS CONVICÇÕES POLÍTICAS AO MEU CREDO RELIGIOSO. Como deixei de assinar e subscrever a Ação Francesa abandonarei então o Nacional-Sindicalismo” (Janes, 1997, pp. 183-184). Pita Ferreira e Agostinho Gomes viram evoluir o ambiente intelectual e social português sob o regime salazarista, tal como Manuel Braga da Cruz descreve:
A grande maioria dos católicos aderiu aosalazarismo, e a maioria dos políticoscatólicos à União Nacional, numa claratentativa de conformar as estruturas e asinstituições do novo regime à doutrina e aoespírito cristão (…) Com o tempo, porém, adeceção e o descontentamento foram minando oapoio dos católicos a Salazar. No final daSegunda Guerra Mundial, o aparecimento degrandes partidos democratas-cristãos onde osautoritarismos foram derrotados, apoiadospela rádio-mensagem de Pio XII do Natal de1944, suscitaria também em Portugal renovadosentusiasmos pela ideia da democracia cristã(…) E, ao longo da década de 50, a ideia de umpartido democrata-cristão foi agitada, não sóentre católicos, sobretudo entre organismos daAção Católica, mas até na opinião pública. Arepressão soviética da revolta na Hungria, em1956, (…) a reivindicação da liberdade para a“Igreja do silêncio” (…) a atuação da políciapolítica do regime e da censura, por um lado,e o agravamento de alguns problemas sociais,por outro, motivavam desejos de demarcação e
de intervenção (…) acompanhados pela crescentevontade de participação política. Por issoalguns católicos apoiaram a candidatura deHumberto Delgado à Presidência da República, em1958, na sequência da qual, em carta dirigidaa Salazar (…) e que lhe valeria o exílio, obispo do Porto perguntava se tinha o Estadoobjeções a que a Igreja ensine livremente asua doutrina social, e a que os católicosdefinam um programa político, e se dotem de umaorganização política para se apresentarem empróximas eleições com candidatos próprios. Foina sequência deste “caso do bispo do Porto” quealgumas candidaturas de católicos em listas deoposição se apresentaram em 1961 (…) e que umgrupo de católicos, cada vez mais numeroso, secomeçou a pronunciar politicamente, sobretudopor ocasião de atos eleitorais, mas sem vira constituir qualquer organização políticaprópria (Cruz, 2001, p. 384).
Os primeiros anos da carreira dos padres Pita Ferreira e Agostinho Gomes foram marcados pela assinatura da Concordata e do Acordo Missionário (1940), que “permitiu repor “todos os direitos e privilégios que a Igreja possuía” (artigos I-VIII), incluindo o reconhecimento da “propriedade dos bens que anteriormente lhe pertenciam e estavam ainda “na posse do Estado” (artigo VI), bem como garantir “todas as liberdades no exercício do culto, isentando os sacerdotes de qualquer tipo de impostos, nomeação ou mobilização (artigos XI-XVII)”. A concordata marcou o auge das boas relações da hierarquia da Igreja Católica e o regime do Estado Novo (…) permitiu a reabertura dos seminários, a implementação da Ação Católica, a criação dos instrumentos para a Catequese e ação pastoral da Igreja como também a missão no Ultramar”
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(Sousa, 2015, pp. 9-10). Os padres Pita Ferreira e Agostinho Gomes vivenciaram o clima de apaziguamento nas relações externas e na administração interna, participaram do consenso nacional que o Estado Novo quis promover: “Nascemos já como nação independente no seio do Catolicismo; acolher-se à proteção da Igreja foi sem dúvida ato de alcance político, mas alicerçado no sentimento popular. Tem havido através da história incidentes e lutas entre os reis e os bispos, os governos e o clero, o Estado e a Cúria, nunca entre a Nação e a Igreja; quer dizer: lutas de interesses temporais ou de influências e paixões políticas, nunca rebelião da consciência contra a fé. Não há em toda a história apostasia coletiva da Nação nem conflitos religiosos que dividissem espiritualmente os portugueses. Com maior ou menor fervor, cultura mais ou menos vasta e profunda, maior ou menor esplendor do culto, podemos apresentar perante o mundo, ao lado da identidade de fronteiras históricas, o exemplo raro da identidade religiosa: benefício extraordinário em cuja consecução se empenhou uma política previdente” (Oliveira Salazar, cit. por Oliveira, 1968, nota introdutória). Cada qual segundo os seus dons e talentos, os dois sacerdotes amigos cooperaram na concretização do “plano de atualização” da diocese gizado por D. David de Sousa – bispo do Funchal (1957- 1965) e padre conciliar – que o Pe. Pita Ferreira homenageou dedicando-lhe A Sé do Funchal.
Pouco mais velho que o Cónego Agostinho Gomes e o Padre Pita Ferreira, D. David de Sousa, nascido a 25 de setembro de 1957, ocupou a cátedra episcopal do Funchal bastante novo (aos 46 anos) – proximidade que terá avivado nos três homens a chama comum do ímpeto reformador que D. David desejou imprimir ao seu episcopado, dado o estado da diocese:
A Igreja funchalense no início da década de50 confronta-se com inúmeros problemas quederivam em muito do ambiente social e políticoque se vivia. D. Frei David de Sousa vaiherdar uma pesada herança de D. António ManuelPereira Ribeiro, nomeadamente a problemáticadas vocações e dos seminários, da pobreza, da
paroquialidade, da densidade populacional,da formação cristã, entre outras (Boletim deInformação Pastoral setembro-outubro 1962, cit.por Sousa, p. 19).
O Cónego Agostinho Gomes teve intervenção direta em dois importantes teatros de poder, quer levando à Assembleia Nacional (ao longo de dez anos) a visão cristã da condução dos assuntos públicos e o conhecimento próximo que a Igreja tinha da alma e do quotidiano dos madeirenses, quer como diretor de jornal concorrendo para a sua formação cultural e cívica, para a evangelização da opinião pública.
A grande renovação do Jornal da Madeira vaiacontecer meses antes da chegada de D. FreiDavid de Sousa à diocese do Funchal (...)começa com o Padre Agostinho Jardim Gonçalvesque em Agosto de 1957 é nomeado chefe deredação do Jornal. Em Dezembro de 1957 (…) D.Frei David (…) «tomou uma atitude em relaçãoao Jornal da Madeira: mudar o diretor e atrairleigos. Era um primeiro passo de encontro aoobjetivo traçado escassos quatro anos depois,com o Papa João XXIII e o aggiornamento: areforma da liturgia, a defesa da liberdadereligiosa, o favorecimento do ecumenismoe do apostolado dos leigos. Objetivos queconheceriam resultados práticos com Paquete deOliveira, quando assume a chefia de redaçãodo jornal, em 1960, na altura dirigido porAgostinho Gonçalves Gomes». Segundo testemunhaPaquete de Oliveira, o bispo D. Frei David deSousa reformou o Jornal da Madeira promovendo o
apetrechamento técnico e tecnológico; muniu ojornal com novas máquinas de composição gráficalinotypes e de impressão (…) facilitou o ritmode alteração de conteúdo iniciado pelo padreJardim Gonçalves a que Paquete de Oliveira deucontinuidade” (Sousa, 2015, pp. 111-112).
2.2. O bom combate de D. António Ferreira Gomes e de D. David de Sousa
Os padres Agostinho Gomes e Pita Ferreira puderam testemunhar, desde o íntimo das almas, a evolução no juízo que os portugueses formavam da situação e avaliar a angústia expressa, na carta de D. António Ferreira Gomes a Salazar, face às fissuras que se multiplicavam nesse cimento patriótico – a antiga coesão espiritual: “Está-se perdendo a causa da Igreja na alma do povo, dos operários e da juventude; se esta se perde, que podemos esperar nós da sorte da Nação?” (Gomes, 1958, s.p.). O bispo do Porto assumiu só o ónus da sua iniciativa:
A fim de que o episcopado português sejainteiramente livre de aceitar ou repudiarestes atos e quaisquer consequências, resolvinão ouvir qualquer dos bispos responsáveispor as nossas dioceses, a quem apenas postfactum comunicarei o caso. Nem sequer faleia Sua Eminência o Senhor Cardeal Patriarca,pela mesma razão e por me parecer que a SuaEminência pertence a última palavra quemoralmente compromete a Igreja portuguesa, enormalmente não a primeira, que responde aoestado de consciência e às circunstâncias decada um na sua esfera de responsabilidades”(Gomes, 1958, s.p.).
Porém a tomada de posição do prelado portuense sinalizou clamorosamente e logo no seio da elite católica uma divisão e um ponto de viragem nas relações com o Estado Novo, tanto mais acentuado quanto se estribava em evidências: “pela sua atualidade, permito-me juntar cópia de alguns documentos relativos aos Centros paroquiais de Assistências e formação social, que deixam ao menos ver como os erros aqui denunciados não ficam no domínio do abstrato” (Gomes, 1958, s.p.). Afirmava uma vontade de demarcação fundada na certeza de que a desafeição à Igreja provinha do comprometimento desta com o Estado corporativo – supostamente incapaz de assegurar “a máxima promoção humana (do operariado) e permitir o progresso dum autêntico, são e autodirigido sindicalismo, em ordem à integração social, progressiva e voluntária”, hostil à “liberdade de formação da opinião pública” e à “possibilidade de chamar o povo à consciência da sua idoneidade para a condução da coisa comum” (Gomes, 1958, s.p.). Propondo ao Presidente do Conselho a possibilidade de participação política dos católicos, a formar na doutrina social da Igreja e na consciência dos problemas nacionais, rejeitando “as águas mansas e falazes de uma paz exterior” (Gomes, 1958, s.p.), D. António Ferreira Gomes revisitava a inspiração democrata-cristã e as tensões políticas das últimas décadas do século XIX e primeiras do século XX; predispunha-se a romper os laços fragilizados da unidade de espírito nacional. Bem diferentes eram a personalidade e a atitude de D. David de Sousa; prelado moderno, entendia e valorizava o potencial dos meios de comunicação social. Era porém, segundo o Pe. Agostinho Jardim Gonçalves, “um bispo prudente e discreto, mesmo quando (…) reconhecendo que nem tudo estava bem (…) as poucas referências que lhe ouvi foram de cautela e defesa do regime vigente, atitude coerente com as suas convicções. Mas (…) em momento algum o vi tomar qualquer atitude que significasse um enfeudamento público da Igreja ao Estado” (Sousa, 2015, p. 146). Já o padre Pita Ferreira, arredado das ribaltas da política e da Boa Imprensa, campo de ação do deputado cónego Agostinho Gomes, entregou-se de corpo e alma à obra de fundo que era a formação catequética e cultural do povo diocesano no âmbito do projeto reformador de D. David de Sousa – “um plano de atualização da própria diocese que se iniciaria mesmo antes do (…) segundo concílio ecuménico do Vaticano” (Sousa, 2015, p. 32). Tratava-se de edificar, no segredo dos corações, “uma Diocese sempre renovada,
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3. Apóstolo da Catequese com D. David de Sousa
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disciplinada e vitalizada” (Sousa, 1957, p. 12). Para tanto, D. David contava sobretudo com o clero:
Manifestou especial empenho em valorizar osMovimentos de leigos da diocese em termosque o Vaticano II viria a confirmar. Mas (…)algumas das suas decisões deixavam entenderque a sua confiança ia predominantemente paraa clerezia substituindo leigos por padres, emfunções que encontrara já confiadas a leigos.A título de exemplo os cargos de diretor eadministrador do Jornal da Madeira, o ecónomoda diocese e a formação de sacerdotes paradocentes de ciências civis, com grau superior,na ideia de que o seminário não precisasse desocorrer-se, mais tarde, de leigos conhecedoresdessas matérias. Ter padres, bastantes e bempreparados foi uma das preocupações maiores deD. David” (Pe. Agostinho Jardim Gonçalves, cit.por Sousa, 2015, p. 144).
Outro depoimento confirma: “Os colaboradores de D. David eram padres. Não me recordo de ter visto leigos, com frequência, à sua volta” (Pe. Rafael Andrade, cit. por Sousa, 2015, p. 151). Era natural que o padre Pita Ferreira, pelas suas qualidades e experiência (ordenara-se em 1935 tal como o cónego Agostinho Gomes), se fizesse notado entre esse “clero bem formado (que) tinha ideias e … queria progredir” (cit. por Sousa, 2015, p. 137), mas não é nomeado, nas entrevistas citadas, pelo hoje bispo emérito do Funchal D. Teodoro de Faria, pelos padres Agostinho Jardim Gonçalves e Rafael Andrade – talvez por serem então bem mais novos (os dois primeiros tinham-se ordenado em 1956 e o último em 1959) e terem deixado o Funchal no início do episcopado de D. David. O Padre Rafael Andrade recorda sobretudo que “D. David deu grande impulso à catequese, às visitas pastorais realizadas regularmente, às pregações quaresmais, aos retiros” (Sousa, 2015, p. 150).
3.1. Christus urget nos
O P. Agostinho Jardim Gonçalves lembra que ao assumir a mitra funchalense em 1957, D. David de Sousa gerou uma “onda de curiosidade positiva do clero em geral e da sociedade madeirense, cansada da rotina em que a igreja madeirense há muito se instalara” (cit. por Sousa, 2015, pp. 131-132). Já para D. Teodoro de Faria, esta “era uma diocese que tinha bastante vida, tinha uma Ação Católica extraordinária, (…) cursos de cristandade (…) Não era uma diocese em decadência (…o) laicado (…) era muito importante (…) D. David quando chegou cá tinha uma diocese muitíssimo viva “, cujo clero “era um clero bem formado (…) tinha ideias e (…) queria progredir” (cit. por Sousa, 2015, pp. 131-132 e 137). Ainda novo, sem experiência anterior de administração episcopal, D. David não apresentou um programa pastoral estruturado, antes “os seus planos se foram revelando no seu trabalho apostólico, continuado e tenaz” (Sousa, 2015, p. 142). Anunciou que o propósito do seu episcopado seria a “reconquista da vida cristã individual, familiar e social” (Sousa, 1957, p. 14). Determinado a preceder e a amparar os seus diocesanos na imitação de Cristo, exortou reiteradamente à santidade seguindo esse Modelo Divino: “… na vida coletiva e na vida privada, nos pensamentos e nas obras. Santificai-vos, interior e exteriormente. Transformai-vos em Cristo” (Sousa, 1957, p. 13). A santificação era o programa por excelência, a solução para as interrogações e anseios que surgiam também na Igreja do Funchal como sinal e alimento de um novo espirito que a seu tempo originaria o que D. David descreveria como “o purificador, renovador e transfigurante Pentecostes de 1962, 1963, 1964 e 1965, que foi o Concilio Vaticano II” (Sousa, 1966, p. 8). D. David afirmava desconhecer
(…) as opiniões, sentenças, conselhos e votosdos excelentíssimos bispos e prelados acercadas coisas que devem ser tratadas no ConcilioEcuménico (…) a Diocese está a grande distânciadas grandes cidades quer da Europa, quer daÁfrica, quer da América. Trata-se (…) de umailha perdida no meio do mar (cit. por Sousa,2015, pp. 127-128).
Mas as propostas da diocese do Funchal para o Concílio, por ele apresentadas (27-08-1959) revelam consciência dos sinais dos tempos e a ambição de “profunda restauração e reforma da Igreja Católica, tanto no corpo como na alma”, bem como de “uma participação viva” (Sousa, 2015, pp. 127-128) dos fiéis pela intensificação da sua vida sacramental.
Alma de pastor e de missionário em quem o bom prelado se podia rever, o Pe. Pita Ferreira foi por ele encarregado de atualizar e vivificar a Catequese na diocese funchalense. Um e outro estariam a par das inquietações e polémicas que agitaram a Igreja Católica na década de 1950 e de que é exemplo a comunicação de George W. Shea na 12ª Convenção da Catholic Theological Society of America (Philadelphia, Pennsylvania, Junho 24-26, 1957), sobre as relações entre a Sagrada Teologia e o Magistério da Igreja 2 . Quanto à progressão da reflexão teológica, importa salientar o que estava em debate, na Igreja, no tempo em que D. David de Sousa (bispo e padre conciliar), e o Pe. Pita Ferreira (Secretário Diocesano da Catequese) cumpriam a sua missão evangelizadora. Discutia-se, como explicou Emmanuel Bohler, a problemática da transmissão da verdade revelada por Deus, em resposta às tendências de questionamento da cientificidade da Escritura e de contestação do Magistério enquanto lugar de transmissão atual da mesma Revelação divina. Estava em causa o que João XXIII diria ser uma questão gravíssima, determinante para a salvação do homem: “la RÉVÉLATION. Ce qu’elle est, et son rapport avec la raison humaine” (Bohler, 2012, s.p.). Para E. Bohler, não existia oposição de fundo entre os dois papas a respeito do tema, apenas divergências de método e de perspetiva; se Pio XII “travara” os jovens representantes da “nova teologia”, João XXIII desejava que o concilio reafirmasse a doutrina da verdade revelada (Bohler, 2012), mas o seu temperamento conciliador e otimista fê-lo interpretar os sintomas de crise intelectual e moral que, tal como o seu antecessor, reconhecia, como sinais da necessidade para a Igreja de adotar uma nova pedagogia:
O que mais importa ao Concílio Ecumênico é (…)que o depósito sagrado da doutrina cristã sejaguardado e ensinado de forma mais eficaz (…)
2 Comentando vários documentos do papa Pio XII, o então presidente (1956- 1957) da CTSA enfatizara o predomínio do Magistério, mandatado por Cristo para dar a conhecer aos homens a verdade revelada, bem como a natureza eclesiástica da Sagrada Teologia, cujos princípios objetivos e objeto próprio são os dogmas – verdades reveladas propostas como tais pelo Magistério. Reafirmando a lealdade da CTSA ao Santo Padre, admitira a existência de tensões em torno da autoridade da e na Igreja para o anúncio da Revelação Divina, a crescente irreverência e insubmissão relativamente ao Sagrado Magistério; apontara na rejeição deste Magistério vivo, constituído por Deus e beneficiando da Sua assistência, a razão decisiva da impossibilidade de florescimento da teologia genuína entre os não católicos. A asserção do predomínio do Magistério estará implícita no esquema De fontibus revelationis debatido em Vaticano II pelos padres conciliares – controvérsia esta de que resultará, por intervenção direta do papa Joao XXIII, a constituição Dei verbum, claramente distante da conceção explicitada por Shea. Sendo um dos quatro documentos que, no âmbito de Vaticano II, define o que os católicos devem celebrar e acreditar, ela reformula a relação entre a sagrada Tradição e a Sagrada Escritura bem como de uma e outra com a Igreja e com o Magistério eclesiástico; reconhece a este o exclusivo da interpretação autêntica da Palavra de Deus e um poder que é serviço: “o encargo de interpretar autenticamente a palavra de Deus escrita ou contida na Tradição foi confiado só ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério não está acima da palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido, enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente, haurindo deste depósito único da fé tudo quanto propõe à fé como divinamente revelado” (Paulo VI, 1965, cap. II, § 9 e 10), afirmando a equipendência da Escritura, da Tradição e do Magistério: “É claro, portanto, que a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de tal maneira se unem e se associam que um sem os outros não se mantém, e todos juntos, cada um a seu modo, sob a ação do mesmo Espírito Santo, contribuem eficazmente para a salvação das almas” (Paulo VI, 1965, cap. II, § 10).
da renovada, serena e tranquila adesão a todo oensino da Igreja, na sua integridade e exatidão,como ainda brilha nas Atas Conciliares desdeTrento até ao Vaticano I, o espírito cristão,católico e apostólico do mundo inteiro espera umprogresso na penetração doutrinal e na formaçãodas consciências; é necessário que esta doutrinacerta e imutável, que deve ser fielmenterespeitada, seja aprofundada e exposta de formaa responder às exigências do nosso tempo. Umacoisa é a substância do «depositum fidei», istoé, as verdades contidas na nossa doutrina, eoutra é a formulação com que são enunciadas,conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e omesmo alcance (João XXIII, 1962, cap. V e cap.VI).
3.2. Convidados a percorrer trilhos de santidade
O desafio de harmonizar fidelidade à integridade e exatidão de uma doutrina certa e imutável com progresso na penetração doutrinal e na formação das consciências de tal modo excede a atualização da formulação das verdades da doutrina para o anúncio mais eficaz destas, que só pode ser superado pela santificação da Igreja e dos seus membros, vivendo estes de olhos postos em
Cristo sempre a brilhar no centro da história eda vida; os homens ou estão com ele e com a suaIgreja, e então gozam da luz, da bondade, daordem e da paz; ou estão sem ele, ou contra ele,e deliberadamente contra a sua Igreja: tornamsemotivo de confusão, causando aspereza nasrelações humanas, e perigos contínuos de guerrasfratricidas (João XXIII, 1962, cap. II, § 5).
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O Papa todos convocava à santidade:Todos os homens, tanto consideradosindividualmente como reunidos em sociedade, têmo dever de tender sem descanso, durante toda avida, para a consecução dos bens celestiais,e de usarem só para este fim os bens terrenossem que seu uso prejudique a eterna felicidade”(João XXIII, 1962, cap. V, § 3)
Apelava expressamente aos próprios padres conciliares: “para que o trabalho comum corresponda às esperanças e às necessidades dos vários povos. Isto requer da vossa parte serenidade de espírito, concórdia fraterna, moderação nos projetos, dignidade nas discussões e prudência nas deliberações” (João XXIII, 1962, Conclusão, §3).
Era convicção de alguns que o Pe. Pita Ferreira trilhou a rota da eterna felicidade: “Bastaria a sua obra sacerdotal no campo pastoral, pedagógico e artístico para imortalizar-lhe a memória e propor o seu exemplo” (Jornal da Madeira, 1963, p.8). Que a santidade não é mera possibilidade mas anelo inato da alma humana, é de resto a primeira lição de Doutrina do seu Curso para catequistas:
A nossa alma foi feita para Deus (…) anda àbusca duma verdade, duma beleza, duma justiça,dum amor e duma felicidade sem imperfeiçõese sem fim (…) Neste mundo nunca poderá sersaciada (…) A alma humana leva o corpo asuportar ações que lhe repugnam e o homem apraticar atos, que não tem recompensa (…) nestemundo, por ex.: (…) o martírio (…) a mortepela Pátria ou por um ideal (…) Procede assimporque está certa de que há outra vida (…) Amorte repugna à alma, porque esta é imortal(Ferreira, [1960], p. 20).
3.3 Documentos da reforma da Catequese diocesana em 1959-1962
3.3.1. O espírito de uma nova pedagogia
A reforma do ensino da catequese sob o báculo de D. David de Sousa, um dos importantes desenvolvimentos na história contemporânea da Igreja madeirense – a par do incremento da piedade popular e de uma esplêndida floração mística, com Madre Mary Jane Wilson, Madre Virgínia da Paixão, Irmã Maria do Monte, Beato Carlos de Habsburgo (Sousa, 2015, p. 17), bem como de movimentos e obras laicais (Sousa, 2015, p. 14, n. 38, 39, 40) –, foi influenciada por conceções laicistas e um novo ideal educativo (Figueira, 2016). A médica e pedagoga católica Maria Montessori propunha a autoeducação e o desenvolvimento do potencial da criança com recurso a material didático, agindo o professor como um “guia” empenhado em levála a descobrir, pela observação, as relações entre objetos; acima de tudo, acreditava no poder criativo e transformador do amor: “de todas as coisas, o amor é a mais poderosa” (cit. por Duarte, 2018, p.). A efervescência intelectual oitocentista e uma nova mundividência punham a Igreja à prova:
O século XIX sofre grandes mudanças napolítica e nos movimentos literários eteológicos. A Igreja perde o poder temporale o sentido do sagrado apaga-se em favorda moral utilitarista. A Igreja percebe aproblemática mas tem dificuldade na adequaçãodas soluções pastorais e catequéticas. Há umfecundo despertar missionário com figuras eobras atuantes em todo o globo. Na catequeseprocura-se a continuidade. A inovação éexceção. São duas as principais correntescatequéticas deste século: a históricoteológica,inovadora, que é suplantadapela orientação neoescolástica. As missões
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populares e as conferências religiosas para opúblico culto, além da catequese paroquial,são outros meios de catequização, mas adescristianização progride (Cristóvão, 2000, pp.302-310).
Embora pouco conhecido aquando da sua nomeação para bispo do Funchal, D. David era um intelectual de mérito, professor de Sagrada Escritura e línguas bíblicas – “Na Igreja o seu nome ganhara, entretanto, especial relevo pelo valor doutrinário e retórico das conferências que recentemente proferira na igreja de São Domingos do Rossio, em Lisboa” (Sousa, 2015, p. 24, n. 82). D. David intuiu que o Pe. Pita Ferreira saberia prestar-lhe valiosa colaboração no campo do apostolado catequético, nomeadamente pela atenção à criança de que se mostrou capaz:
Nos problemas pastorais [o Pe. Pita Ferreira]tinha sempre uma visão objetiva e atual, dum modomuito particular no capítulo da catequese dascrianças. Mercê das qualidades que revelou nestecampo foi nomeado [pelo] Bispo para Diretor doSecretariado Diocesano da Catequese, que com elese fundou (Jornal da Madeira, 1963, p. 8).
É de crer que o talento de catequista do Pe. Pita Ferreira muito deve ao ambiente formativo de que ele próprio beneficiou – quer no Seminário diocesano reformado por D. Manuel Agostinho Barreto, onde conheceu a vida “de acentuada piedade, de rigorosa disciplina e de amor ao estudo” que fez dessa escola “um dos primeiros estabelecimentos eclesiásticos do país” (Pereira, 1957, vol. II, p. 1036), quer antes: “cedo nele se manifestou o gosto pelo estudo, indo beber as primeiras luzes intelectuais na escola dirigida pela Exma. Sra. Professora D. Eugénia Maria Clara de Nóbrega que, durante várias décadas foi a alma, como sói dizerse de todos quantos tiveram a ventura de frequentar a sua escola” (Abreu, 1966, p. 7). É facto que nas pequenas peças de teatro que escreveu ou adaptou para crianças e jovens do Movimento Escutista o Pe. Pita
Ferreira assume um estilo de ensino/aprendizagem de cariz lúdico: “o escutismo é um jogo (…) jogando-o bem, aprendemos a ser úteis a Deus, à Pátria e à Familia (…) aprendemos a ser homens” (Ferreira, 1952, Ato IV, Cena 3ª); deixa transparecer uma visão encantada da juventude:
Meu irmão, quando a neve dos anos cai sobrea nossa cabeça, o coração transforma-se numjardim, onde florescem as saudades do passado(…) numa espécie de oásis, onde descansamospara respirar o perfume que, dos dias felizesde outrora, nos ficou (Ferreira, 1948, Ato IV,Cena 1ª).
3.3.2. Diretrizes da Igreja
A Missão Catequística do Pe. Pita Ferreira obedeceu a diretrizes dos papas (Pio X, Pio XI), do Código de Direito Canónico (1917) e dos bispos portugueses:
Na primeira metade deste século (XX) aIgreja é perseguida em vários países, mashá uma renovação notável no catolicismo. Asprofundas, rápidas e universais transformaçõessocioculturais, as várias correntes depensamento, as inovações das ciências daeducação e as novas perspetivas teológicasincentivam a catequese a debruçar-se sobrea metodologia, linguagem, destinatários efinalidade. A catequese rejuvenescida tornaseuma instância de charneira na pastoral daIgreja (…) funda-se o Secretariado Nacionalde Catequese (1950) e estabelecem-se ossecretariados diocesanos que, com a publicação
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das Bases da catequese elementar em Portugal (1961) pelo episcopado, marcam o passo mais decisivo e mais eficaz para o incremento do apostolado catequístico do nosso país. Aparece o Catecismo nacional (1953-1956) de método indutivo; nos seminários frequenta-se uma cadeira de Catequética; cuida-se mais da formação religiosa nas escolas; publicam-se revistas e outros textos, em 1962 faz-se um inquérito catequístico nacional (Cristóvão, 2000, p. 310; Jorge, pp. 4-5).
com programa bem definido a celebrar em âmbito paroquial, vicarial e diocesano. Recomenda-se ainda que os Bispos se esforcem por ajudar os párocos com catequistas idóneos, de ambos os sexos, para ministrarem a instrução religiosa tanto nas escolas paroquiais como nas públicas. Para estas sejam aprovados professores de doutrina cristã (…) pede-se aos Bispos que “relatem escrupulosamente” em cada quinquénio, o estado da Catequese nas suas dioceses à Sagrada Congregação do Concílio.” (Jorge,[2010], p. 4).
3.3.2.1 Normativas de Pio XI
Pio XI, na “Divini illius Magistri” (31.12.1929) e no Decreto da Sagrada Congregação do Concilio, “Provido sane consilio” (12.01.1935) concretizou e urgiu normas de caráter preceptivo e diretivo que levaram à instituição do chamado “Ofício Catequístico Geral”, ao estabelecimento da Associação da Doutrina Cristã, à criação de escolas catequísticas paroquiais que deveriam explicar o catecismo também aos fiéis adultos “na linguagem acomodada à sua capacidade”. Recomendava-se aos Ordinários do lugar a criação do Ofício Catequístico Diocesano que, tendo eles próprios por presidentes, dirija todo o movimento catequístico da diocese, com sacerdotes visitadores idóneos das escolas e catequeses paroquiais. Estabelece-se o “Dia Catequístico” como festa da doutrina cristã,
3.3.2.2 Renovação da Catequese na diocese do Portonos anos 1950
Na diocese do Porto, em 10-05-1953 D. António Ferreira Gomes criou o Secretariado Diocesano da Educação Cristã, que reuniu formalmente a 17-03-1955, tendo deliberado que a Congregação da Doutrina Cristã integraria o Secretariado Diocesano e Secretariados Regionais, o Conselho Diocesano e a Assembleia Geral; o Secretariado Diocesano, “órgão impulsionador e de concretização (…) constituído por representantes do Seminário, dos organismos da Ação Católica (…) ligados à Juventude, ao Noelismo, das Obras de Caridade, pelos visitadores e outros sacerdotes (estudiosos) do problema da catequese”, reuniria bimensalmente “afim de estudar (…) a situação da Catequese (…) e pronunciar-se sobre os relatórios (…) (dos) Visitadores”, cabendo-lhe “estudar a regulamentação dos estatutos, vigiar pelo seu cumprimento nas paróquias, constituir os Secretariados Regionais, dotando-os de meios técnicos apropriados, preparar e promover o Dia diocesano da Catequese e as Jornadas Pastorais para o Clero, desenvolver cursos diocesanos, regionais e paroquiais de preparação catequística e criar um órgão de divulgação e informação”; acima do Secretariado Diocesano como “órgão coordenador”, o Conselho diocesano “formado pelo Presidente do Cabido
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da Sé Catedral, pelo Cónego Teologal, pelo Reitor do Seminário de Teologia, pelo Assistente Diocesano da Ação Católica e pelos Vigários da Vara” deveria reunir anualmente “para apreciar as atividades desenvolvidas e fazer sugestões para o futuro”; também anualmente, no Dia Catequístico Diocesano, haveria uma reunião de todos os membros da Congregação da Doutrina Cristã; o bispo criou ainda uma Equipa Diocesana para a formação de Catequistas, composta por uma religiosa Missionária do Sagrado Coração de Jesus e três associadas da União Noelista, a que depois se agregaram outras religiosas, sacerdotes e catequistas seculares (Jorge, [2010], p. 3).
Na Madeira, a formação cristã participava do “grande processo de revitalização da diocese do Funchal iniciado com a reforma da rede paroquial diocesana por D. Frei David de Sousa” (Sousa, 2015, p. 106). Não foi por isso menos notório o contributo pessoal do Secretário Diocesano da Catequese: “deve-se em grande parte ao Padre Pita Ferreira o salutar rejuvenescimento do ensino da catequese verificado atualmente nas paróquias madeirenses” (Jornal da Madeira, 1963, p. 8). Analisaremos de seguida dois importantes documentos da reforma da Catequese Funchalense – Legislação sobre Catequese e o Curso de Iniciação Catequística do Padre Pita Ferreira –, editados pelo Secretariado Diocesano criado a 6 de agosto de 1959 (seis anos depois do Secretariado Diocesano do Porto, que foi criado a 10 de maio de 1953 e reuniu a primeira vez em 17-03-1955).
3.3.3 Nova Legislação sobre Catequese de D. David deSousa (1960)
A Legislação promulgada por D. David consistia em um Decreto de Aprovação das BASES e REGULAMENTO do Ensino e Formação Catequística e dos ESTATUTOS da Associação da Doutrina Cristã, datado de 28 de Abril de 1960: delineava a estrutura diocesana encarregada, sob orientação do prelado, de catequizar crianças e adultos e de formar catequistas, com o objetivo de “renovar e intensificar a transmissão e vivência da Mensagem de Jesus”. Assumindo como salvífica a doutrina a transmitir, acentuava simultaneamente o sentido ecuménico e comunitário de “tão vasta como urgente campanha de salvação”, chamando todos à glória de filhos
de Deus “qualquer que seja a sua idade, cor e cultura” (Secretariado Diocesano de Catequese, Legislação sobre Catequese, 1960, pp. 4 e 3) – em colóquio sobre o Concílio Vaticano II no Centro Académico do Funchal, em 22-02-1964, D. David de Sousa salientaria que os obstáculos à unidade dos cristãos provinham das diferenças culturais, políticas e psicológicas dos povos, distinguindo a liberdade de religião e de consciência do “indiferentismo religioso ou pessimismo diletante sobre o esforço a empregar acerca do conhecimento da verdadeira religião” (Sousa, 2015, pp. 60-61). D. David destacou o trabalho cumprido para “estudar, preparar e apresentar propostas em relação às Bases do ensino e Formação Catequística, ao regulamento do ensino e formação catequística e aos estatutos da Associação da Doutrina Cristã” (cit. por Sousa, 2015, pp. 107-108).
3.3.3.1. Bases e Regulamento do Ensino e Formação Catequística
As BASES reafirmavam a prioridade da Missão Catequética: “O ensino do Catecismo e a formação religiosa das crianças e dos adultos é o primeiro dever dos pastores de almas” (Sousa, 2015, p. 5). Definiam a relação hierárquica e as competências dos órgãos e agentes da Catequese diocesana: Prelado, Secretariado Diocesano e Delegados Regionais formando o Conselho Diocesano da Catequese, Centros de Catequese das paróquias. Ao Secretário Diocesano cabia tomar conhecimento dos problemas apresentados pelos Delegados regionais; assistir aos encontros de esclarecimento do clero realizados na sede dos arciprestados; orientar os párocos na organização da catequese nas respetivas paróquias e receber deles o recenseamento das crianças em idade de frequentar a 2ª secção do Catecismo. Percebe-se a chama que devia inflamar o Padre Pita Ferreira:
Apóstolo incansável da instrução religiosa naobra da catequese (…) tendo percorrido todosos arciprestados (…) não se poupando a fadigaspromovendo reuniões para uma sólida formação decatequistas, e presidindo, para exemplificar
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a pedagogia catequística, a várias secções decatequese em diversas paróquias da nossa Ilha(Diogeneto, 1963, p. [3]).
As Atas do Secretariado Diocesano da Catequese atestam os seus muitos trabalhos:
Além de se criar o Secretariado e, a 21 denovembro de 1959, as regiões, nomearamseos delegados destas, fez-se um inquéritoacerca do estado da catequese, foi aprovadalegislação concernente à catequese, a 28 deabril de 1960, realizaram-se 17 cursos (paraos delegados, nas regiões e nas paróquias parareligiosas e professoras), 10 reuniões (metadepara delegados, as restantes para a equipa deestudos) e 13 visitas do responsável diocesanoa escolas de religiosas (Figueira, 2016, s.p.).
Para garantir a uniformidade da Doutrina ensinada em toda a diocese, existiam os delegados do SDC junto das ordens e congregações religiosas, dos colégios e escolas (Lisbonense, Nuno Álvares, Bom Jesus, Escola Industrial e Comercial, Magistério, Liceu Nacional do Funchal) e da Liga Escolar Católica do Funchal, bem como dos delegados das 10 regiões (Sé, Santo António do Funchal, Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Calheta, Porto Moniz, Ponta Delgada, Santana e Santa Cruz). Pessoas consagradas e presbíteros, competia-lhes estudar dúvidas e dificuldades do ensino catequístico com os párocos, apresentálos ao bispo e comunicar as devidas soluções aos interessados (Figueira, 2016). Tal esforço de diálogo e de esclarecimento tendia para conciliar a lufada de ar fresco trazida pelo Catecismo Nacional,focado em uma “nova pedagogia da fé, apoiada pela psicologia da criança” (Velosa, 2005, p. 21) com o melhor da tradição do Catecismo diocesano, que ambicionava “combater da maneira mais eficaz o grande mal da ignorância religiosa” (Catecismo da Doutrina Cristã da Diocese do Funchal, cit. por Velosa, 2005, pp. 18-19).
As BASES promoviam a articulação entre escolas públicas e paroquiais para ensino da Doutrina, o fornecimento de material catequístico e a fundação de bibliotecas paroquiais – prova de apreço pela boa leitura e de fé na harmonia possível entre mente culta e alma crente. Tratava-se de alimentar a inteligência dos fiéis – crianças e adultos, incluindo os catequistas, cuja preparação não dispensava uma espiritualidade conquistada e testemunhada:
Para o bom desempenho da sua missão, estáo catequista obrigado a conhecer, além daMensagem de Deus, um pouco de Liturgia,de Teologia e da História da Igreja. Deveter presente que a “Religião é uma vida,que se vive, e não uma teoria que seaprende”. Deve enriquecer a sua formaçãopela leitura bem orientada, por meio dereuniões sérias e regulares e em Cursos eEncontros especializados. Deve prepararsesobrenaturalmente por meio de um programade vida espiritual, do qual não pode faltara meditação do Evangelho, uma boa direçãoespiritual, as recoleções e um retiro anual”(Ferreira, [1960], pp. 9-10).
A par da reflexão e autoavaliação e do diálogo entre órgãos e agentes da Catequese, as BASES salientavam o magistério, o dever de vigilância e o papel regulador do bispo – exercidos através dos visitadores (cap. X) encarregados de inspecionar os centros de catequese e de informar sobre os respetivos “resultados, progressos ou deficiências” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 12) bem como dos párocos, em reuniões periódicas de catequistas e ainda por meio do Secretário Diocesano, obrigatoriamente presente nos Encontros do Clero dos arciprestados (cap. VI), designadamente para “esclarecer pontos obscuros de doutrina” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 8). Assim respondia D. David de Sousa ao repto
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do Cónego Manuel Camacho: “os tempos atuais reclamam pastores que defendam a grei cristã e católica, com ardor e firmeza, com fé ardente, contra os Golias que ameaçam conspurcar, com ensinamentos nefastos, a doutrina pura e santa do Evangelho” (cit. por Sousa, 2005, p. 30). Tendo falecido em 1963, o Pe. Pita Ferreira não viu evoluir o discurso evangelizador, de focado na exigência de prossecução do bem comum para centrado no respeito da consciência individual. No já mencionado colóquio sobre Vaticano II, D. David afirmou: “o objetivo do concilio é exclusivamente espiritual, porém, nele a mensagem cristã não será nem aprofundada nem defendida, e nunca alterada, apenas se procura fazer uma reforma de métodos de apresentação dessa mensagem aos fiéis” (cit. por P. Vítor Baeta de Sousa, ob. cit., p. 59). O novo sistema teria de firmar-se num esforço coletivo:
A (…) transmissão e vivência [da Mensagemdivina] pedem, para serem mais eficazes, quecooperem e trabalhem em equipa todos quantos têmo múnus de educadores: pais, padrinhos, membrosda Associação da Doutrina Cristã, catequistas,
periodicidade das aulas à composição dos grupos (8 a 10 crianças por catequista e respetivo auxiliar) distribuídos por 3 níveis ou secções – Pré-Catecismo para menores de 6 anos, 4 classes de Catecismo preparatório para a Profissão de Fé, Curso de Religião e Formação Cristã nos 3 anos subsequentes à Profissão de Fé –, com clara opção pela homogeneidade dos grupos e pela educação diferenciada, de modo a eliminar distrações e outros obstáculos à aprendizagem, potenciando o êxito desta. Como para qualquer disciplina, era obrigatório o controlo de faltas e do aproveitamento (cap. VI); sobretudo procurava-se levar as crianças a viver cristãmente (cap. VII, cap. VIII, cap. XIII). Valorizava-se a excelência e o bom exemplo (cap. V, § 5): “Os grupos (de catequese) poderão ser designados por nomes de Santos Padroeiros, escolhidos entre os mais conhecidos, de preferência com festa no Missal, durante o ano catequístico, e cujas biografias se darão a conhecer às crianças” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 15).
3.3.3.2. Estatutos da Associação da Doutrina Cristã
professores, Seminaristas, Religiosos,Sacerdotes, Párocos, etc. (SecretariadoDiocesano de Catequese, 1960, p. 3).
A boa comunicação com os párocos, pastores de almas à imagem do bispo e diretores natos da Associação da Doutrina Cristã nas respetivas paróquias, era vital para a inteligibilidade e coerência tanto da doutrina transmitida como da prática docente; a exigência de acompanhamento e coordenação por parte do Secretário Diocesano era tanto maior quanto era ampla a entrega do Padre Pita Ferreira: “Nem lhe desmerecia uma atenção solícita o apostolado da Ação Católica que desde os primeiros anos do seu ministério promoveu no Porto Santo, tendo-o continuado sempre mais tarde, sobretudo em S. Gonçalo” (Diogeneto, 1963, p. [3]). O REGULAMENTO do Ensino e Formação Catequística regia o funcionamento dos Centros de Catequese paroquiais – desde o recenseamento e matrícula das crianças até aos critérios de passagem de classe e de admissão à Primeira Comunhão e à Profissão de Fé, desde a
Se as BASES definiam o conteúdo da Missão Catequística e identificavam os seus órgãos e agentes, atribuindo papel fulcral ao pároco, e o REGULAMENTO estruturava o funcionamento dos Centros de Catequese, os ESTATUTOS da Associação da Doutrina Cristã, a fundar em cada paróquia sob a proteção de Cristo-Rei, almejavam “recrutar e preparar catequistas em numero suficiente” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 24), aptos a “cooperar com o pároco em organizar, difundir e intensificar a formação catequística” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 23). Deviam os catequistas, pelo testemunho de “conhecimento, cada vez mais profundo, das verdades cristãs, digna receção dos sacramentos, leitura da Sagrada Escritura, recoleções e oferecimento das suas orações e boas obras” – Cap. I, 2.º, b) (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 23), incrementar o ambiente catequístico na paróquia. Os ESTATUTOS apostavam no trabalho em equipa, na aprendizagem participativa e na vida espiritual, para gerar sinergias propícias à evangelização de crianças
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e adolescentes (1ª secção) e de adultos (2ª secção), quer ao “promover a cooperação de todas as obras paroquiais, especialmente da infância e adolescência (…) reunir periodicamente os responsáveis delas, com o fim de as interessar em comum pela catequese, e procurar (…) que as crianças se filiem nas mesmas obras” – Cap. I, 2.º, d) (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 23), ao agregar à Associação as crianças frequentadoras da Catequese (simples sócios isentos do pagamento de quotas), ao valorizar tarefas simples e não obstante importantíssimas dos sócios cooperadores, como “acompanhar as crianças antes e depois das lições” – Cap. II, 12.º, a) (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 25), ao promover o diálogo com professores e pais dos catecúmenos, convidados para a Festa da Doutrina Cristã e para o Dia Catequístico (cap. XIII), ou ao determinar que os sócios catequistas (auxiliares, efetivos e formadores), devidamente diplomados e mandatados pela Hierarquia, participassem em “reuniões próprias, pelo menos quinzenais, de estudo e formação, e bem assim de preparação prática das lições, normalmente presididas pelo Diretor (o pároco)” – Cap. II, 17.º (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 26); enfim ao estimular a vida sacramental, as boas obras e o apostolado dos associados pela concessão de privilégios e indulgências aos que devidamente se confessassem e comungassem. As indulgências eram plenárias (por ocasião da entrada na Associação e na hora da morte; aos que rezassem pelas intenções do papa) ou parciais, nomeadamente de:
7 anos a) se confessados comungarem no dia elugar onde se acha estabelecida a Associação;b) se percorrem o lugar para atrair à catequesehomens, mulheres ou crianças; c) se acompanhamo Santíssimo Sacramento, levado aos enfermos;d) (se) uma vez por mês (…) comungam havendoseconfessado; e) para os sacerdotes inscritosque façam qualquer prática em igreja ouoratório da Associação. 3 anos se acompanhamao cemitério os irmãos defuntos, ou assistem
aos seus funerais, rezando pelas suas almas.100 dias, a) se procuram que as crianças efamílias assistam à catequese; b) se visitam osirmãos enfermos, c) se assistem aos ofícios eàs reuniões da Associação e procissões por elaorganizadas. 100 dias, se ensinam em públicoou particular, a catequese, nos dias de semana(Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p.34).
3.3.4. Curso de Iniciação Catequística do Padre Pita Ferreira (1959-1962)
3.3.4.1. A Catequese, arte e missão
No enquadramento normativo descrito, Centros de Catequese e Associações da Doutrina Cristã fariam o “recrutamento, formação e mobilização de catequistas” (cit. por Sousa, 2015, p. 109), tarefa que D. David de Sousa assumiu como urgente, sem embargo de reafirmar o direito/dever dos pais de educar os filhos na fé; face “(ao) comunismo ateu, (ao) protestantismo e (…) todo o género de bruxedos” (cit. por Sousa, 2015, p. 111), reivindicava para a Igreja “o segredo da formação integral dos jovens (…) o espirito e a matéria, as faculdades da alma e as faculdades do corpo, a inteligência, a vontade, o coração e os afetos” (cit. por Sousa, 2015, p. 110). Na prossecução desta prioridade pastoral, o Pe. Pita Ferreira, primeiro Secretário Diocesano da Catequese, advertia contra uma tentação: “Não se improvisa o catequista. Improvisá-lo seria comprometer a sua missão, colocar mal a Igreja e pôr em perigo a salvação das crianças.” (Ferreira, [1960], p. 9). Arte “de ensinar e fazer viver a Mensagem de Deus aos homens” (Ferreira, [1960], p. 7), a Catequese é maior que o catequista, “é a mais sublime das missões, porque é a missão de Cristo” (Ferreira, [1960], p. 9) e deve cumprir-se com humildade, sabendo que:
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Deus é o Grande Catequista da Humanidade.Deus encarregou do ensino da sua Mensagem aospatriarcas, profetas e homens inspirados, noAntigo Testamento, e a Seu Filho Jesus Cristo,no Novo. A missão de Jesus, o nosso catequistapor excelência, foi continuada pelos apóstolose atualmente é realizada pela Igreja. Osencarregados do ensino da Mensagem de Deus nomundo são, portanto, os seguintes: Patriarcas,Profetas e Homens Inspirados, NOSSO SENHORJESUS CRISTO, o Papa em toda a Igreja, osBispos nas Dioceses, os Párocos nas paróquias,os Pais nas famílias. A catequista é apenasuma auxiliar do Pároco e dos Pais” (Ferreira,[1960], p. 7).
Num boletim paroquial coevo tendo como mote “Educar sem Deus é criar vidas sem rumo”, citava-se a advertência de Pio X (Acerbo nimis): “Um sacerdote, quem quer que seja, não tem nenhum outro dever mais grave nem está ligado por outro laço mais estreito do que o de fazer Catequese” (A família paroquial de Santa Maria Maior de Viana do Castelo, 1961, p. 3). Cristo delegou na Igreja o anúncio salvífico: “Jesus transmitiu o poder de ensinar a Mensagem de Deus à sua Igreja” (Ferreira, [1960], p. 8), e o catequista é mandatado para transmitir uma doutrina que não lhe pertence: “recebe missão canónica, quando é chamado pela Igreja, por meio do Pároco ou de quem o representa” (Ferreira, [1960], p. 9). No “sistema” da Catequese, é fundamental a vida de fé, pelo que o catequista “deve preparar-se sobrenaturalmente por meio de um programa de vida espiritual, do qual não pode faltar a meditação do Evangelho, uma boa direção espiritual, as recoleções e um retiro anual” (Ferreira, [1960], p. 10).
3.3.4.2 Catecismo diocesano sim ou não? Retrospetiva do Cónego Tomé Velosa, descobertas do Abade Jean- Pierre Putois
O Cónego Tomé Velosa, que em 1966 assumiu a direção do Secretariado Diocesano da Catequese, explica que a formação de catequistas se tornou indispensável com a difusão do Catecismo Nacional em quatro volumes (publicados entre 1953 e 1956), com os respetivos cadernos de trabalhos práticos e Guias do catequista. Estes manuais vieram substituir o Catecismo da Doutrina Cristã da Diocese do Funchal do tempo de D. Manuel Agostinho Barreto e um modo de ensinar “insuficiente como caminhada (…as) crianças repetiam e repisavam nas catequeses as mesmas fórmulas, sem qualquer metodologia” e a qualidade da doutrinação dependia “da cultura e da vida espiritual das catequistas” (Velosa, 2005, p. 24). A nova geração de catequistas teria de ser diferente: “Tínhamos de preparar mentalidades para que aceitassem a evolução e, sobretudo, os catequistas teriam de abrir-se às novas formas – uma nova aprendizagem, por meio de cursos e manuseamento dos catecismos e respetivos guias” (Velosa, 2005, p. 22).
Os fiéis mais eruditos não resistiram menos à transição para conteúdos que consideravam triviais, mas o aggiornamento catequético não recuou perante
o desdém, a indiferença, o desprezo de muitospelos novos catecismos. Era coisa mesmo parapequenos, segundo eles. O catecismo “sério”desses homens importantes e, alguns deles,pastores de grandes paróquias, era o catecismode fórmulas, sempre preferido obstinadamente.Era preciso entender que a pedagogia religiosateria de percorrer outros caminhos (…) Maistarde alguns desses pastores voltaram a editaro antigo catecismo de fórmulas, como possívelforça concorrencial ao Catecismo Nacional eao catecismo atual. Alguns anos mais tarde,
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o Concílio Vaticano II veio dar razão e
publicou “um sumário de lições administradasjustificar toda a renovação catequética que
nos Cursos de Catequese a partir de 1960-61 e
já se pretendia nos anos 50 (Velosa, 2005, p.
14) 3 .Atualmente, porém, questionam-se as vantagens da unificação e da “escolarização” da catequese, do método “global” do ensino da catequese: o Abade Jean-Pierre Putois, no Petit trésor des catéchismes diocésains editado pela Via Romana em 2009, narra a história (sécs. XVII-XX) dos catecismos diocesanos franceses, substituídos em 1937/1947 por um único Catéchisme à l’usage des dioceses de France, e constata que neles a diversidade de expressões e argumentos, paráfrases das Escrituras ou citações dos Padres da Igreja, coincide com o ensinamento de uma mesma e única verdade católica – de sempre e para todos –, sem embargo de refletir não só o temperamento dos bispos seus autores mas sobretudo a preocupação destes de “adapter le catéchisme non aux mentalités de l’époque, mais au langage courant et aux habitudes locales, conformément à l’axiome non nova sed nove” (Bernet, 2017, p. 15) 4 .
3.3.4.3 Plano e ideias mestras do Curso de Iniciação Catequística
Reportando-se à génese do Curso e do Secretariado, o Cónego Tomé Velosa recorda um Padre Pita Ferreira em sintonia com a nova visão da catequese:
Sem menosprezo para ninguém, o Pe. Pita
Ferreira era um sacerdote evoluído e dedicouseà formação de catequistas, preparando-ospara os novos catecismos (…) preparou doiscadernos com ensaios de pedagogia catequética(…) A sua atividade foi intensa, fez cursosinterparoquiais e teve o grande mérito depoder falar numa catequese diferente. E comoressonância desses trabalhos, o Secretariado3 Numa retrospetiva esclarecedora, este autor, que bem cedo (1954) adotou na sua paróquia de S. Vicente o Catecismo Nacional, conta: A reação dos catequistas não foi muito agradável, porque se estava perante uma nova estrutura organizativa, e os catequistas estavam embalados na metodologia do Catecismo Diocesano de perguntas e respostas. Tratava-se de mudar mentalidades habituadas a fortes hábitos e, em certos casos, difíceis, para não dizer impossíveis, pois tínhamos alguns catequistas que não sabiam ler (Velosa, 2005, p. 24).
4 O Abade Putois anima atualmente um sítio internet destinado ao Catecismo, propondo “un enseignement assez ample pour tous les âges, et qui, entre les mains du catéchiste, lui permettra premièrement de nourrir son discours, puis de le mesurer à son auditoire” (Bernet, 2017, p. 14): propõe a revivescência do Catecismo diocesano, previamente a qualquer método pedagógico.
1961-1962. Essas eram feitas sobre alguns temas
do Catecismo Nacional e, também, inspiradas nacatequese do Cónego Quinet” (Velosa, 2005, p.25-26).No Curso de iniciação Catequística o Pe. Pita Ferreira dá a medida da sua “alma de Pastor que sabia conduzir, com segurança de doutrina e método, as almas para Deus” (Abreu, 1966, p. 7). O Curso consta de três partes distribuídas por três opúsculos correspondendo aos anos catequísticos de 1959/1960, 1960/1961 e 1961/1962, contendo o primeiro “um sumário das lições administradas nos Cursos de Catequese no ano passado – 1959-1960” (Ferreira, [1960], nota introdutória). O plano, simples, aloca à Pedagogia Catequética um espaço menor que à Doutrina (ocupando respetivamente, na 1ª parte, as pp. 7-17 e 17-41; na 2ª parte, as pp. 7-12 e 15-47), concedendo à Cristologia a parte de leão (22 páginas da 2ª parte e 30 da 3ª, totalizando 52 páginas): mais do dobro de páginas dedicadas à Catequética (14 no total) e à Liturgia (pp. 39-51 da 3ª parte, totalizando 12 páginas). Este equilíbrio reflete os objetivos e prioridades do Curso: “Para o bom desempenho da sua missão, está o catequista obrigado a conhecer, além da Mensagem de Deus, um pouco de Liturgia, de Teologia e da História da Igreja” (Ferreira, [1960], p. 9). Nas secções Pedagogia, Doutrina, Liturgia do Curso, a matéria apresenta-se organizada em torno de ideias mestras. Por exemplo, quanto à Catequética, o Curso propõe um plano para Uma lição de catecismo (1ª parte, III): “Uma boa LIÇÃO DE CATECISMO compõe-se das seguintes partes: 1ª Ideia a infundir, 2ª Concretização, 3ª Estudo, 4ª Sentimentos a despertar, 5ª Fórmula, 6ª Frase do Evangelho, 7ª Prova, 8ª Cântico” (Ferreira, [1960], p. 11), cujo uso demonstra na lição seguinte, Como orientar uma lição de catecismo (IV), enunciando a “Ideia a infundir” nas crianças e sugerindo os modos de o fazer; quanto à Doutrina, sintetiza o corpus de ideias a transmitir – o conteúdo da fé em Deus e na Santíssima Trindade bem como conceitos referentes ao homem e à sua criação, à consciência e à vida da graça (1ª parte) 5 , a doutrina
5 Tenha-se em conta que na lição II Deus, onde se trata da Existência de Deus, “escapou” uma gralha, que prejudica a correta compreensão do 3º Argumento: onde está – A Casualidade, deve entenderse – “A Causalidade” (Curso de Iniciação Catequística: 1ª parte: 1959-1960, ed. cit., p. 27).
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da pessoa e obra de Jesus a partir da narrativa bíblica (Antigo e Novo Testamento) e do Catecismo Nacional (2ª e 3ª partes). O uso do método indutivo que leva as crianças a observar, refletir e tirar conclusões, a organização dos conteúdos em torno de ideias principais, a definição de objetivos de aprendizagem (por ex., a Prova destina-se a verificar a assimilação da Ideia a infundir) compõem uma estratégia de ensino assumidamente orientada para o êxito:
Para que haja bom aproveitamento da parte dascrianças, observe o catequista os seguintesMandamentos: 1º Não dê explicações às crianças,que apenas estejam à altura dos adultos, porquesão inúteis. 2º Não empregue palavras, cujosignificado as crianças desconheçam. Deve terpresente que elas apenas conhecem cerca de900 palavras. 3º Não vá à frente das criançasno estudo e sobretudo nas conclusões. Deixeaspensar. 4º Esforce-se por concretizardalguma maneira tudo o que é abstrato. 5º PonhaNosso Senhor Jesus Cristo no centro da suacatequese. 6º Deite mão dos factos e parábolasdo Evangelho e não conte às crianças casos ehistórias, que elas, um dia, venham a concluirque são falsos. 7º Nunca despreze a fórmula. 8ºAplique sempre que seja possível uma frase doEvangelho à lição que dá. 9º Lute para levaras crianças à prática do que aprenderam. 10ºNa Prova encontrará o resultado da sua lição(Ferreira, [1960], p. 11).
Verifica-se que sem embargo de adaptar a catequese ao desenvolvimento infantil para torná-la mais atrativa e eficaz (2ª parte do Curso, lições de Pedagogia Catequética), o Curso do Pe. Pita Ferreira não rejeita totalmente a catequese “antiga” em que
“dominava a preocupação da ortodoxia” (Velosa, 2005, p. 13), não prescinde de incutir nos futuros catequistas a determinação de construir conhecimento nos catecúmenos – franqueando-lhes o texto bíblico, adotando a catequese (parábolas e vida) do próprio Cristo, e recorrendo a fórmulas para transmitir a doutrina ortodoxa. Porém os certames catequísticos, nos termos do REGULAMENTO (cap. XI e cap. XII) não deviam premiar apenas nem sobretudo o sucesso: “Na concessão dos prémios atenda-se mais ao mérito do que ao êxito, e usem-se de preferência recompensas coletivas e de vantagem espiritual” (Secretariado Diocesano de Catequese, 1960, p. 21). Tratava-se de formar consciências retas e livres: “A consciência deve substituir a vara, o elogio, a vaidade e o interesse na educação das crianças” (Ferreira, 1960, p. 29). Estando em causa salvar almas, o catequista deveria lutar para levar as crianças à prática do que aprenderam, despertando a sua inteligência, conquistando a sua confiança e cativando-as sobretudo pelo ideal (2ª parte do Curso, Terceira lição de Pedagogia Catequética). O cântico, a oração associada à aula falavam ao coração para dispor as crianças ao diálogo íntimo com Deus. Se a chave do êxito da catequese “à antiga” “era o ambiente cristão, o clima de religiosidade ou, até, a atmosfera de bons costumes que se respirava nas famílias e na sociedade” (Velosa, 2005, p. 12), a catequese na década de 1960 pretendeu tornar-se atrativa e cooperar com a Escola e a Família, co-responsabilizando os pais. Pensada para seduzir a imaginação e a inteligência e despertar os afetos, a catequese do Pe. Pita Ferreira permanece atual no propósito de motivar para o bem fazer, fonte de alegria genuína: “La meilleure des récompenses devrait être la joie d’avoir bien fait, en comprenant pourquoi” (Pierre, 2018, p. 49). Na linha da catequese tradicional, forceja por dar as razões da esperança cristã e apresenta na cruz de Cristo o sentido do destino humano: “Jesus é um sinal de contradição. Junto da sua cruz, a humanidade divide-se em duas partes, a saber: a dos que o amam e a dos que o odeiam e desprezam” (Ferreira, [1960], p. 40) – lição tanto mais impactante quanto se agudiza a perceção da urgência de educar para valores, e do estilo de vida cristão como alternativa a outros modelos propostos no mundo global.
Catecismo Pequeno da Doutrina Cristã da Diocese do Funchal Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira
Curso de Iniciação Catequística — 1ª Parte 1960 Arquivo Histórico Diocesano do Funchal
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3.3.4.4 Fontes do Curso de Iniciação Catequística
A bibliografia referenciada no Curso denota a sólida preparação intelectual e espiritual do Pe. Pita Ferreira. Além da Bíblia (em especial as Epístolas de S. Paulo) e dos manuais nacionais – o Catecismo Nacional e respetivos Guias e Cadernos de Trabalhos, a Catequese de D. António de Campos 6 –, estudara mestres espirituais conceituados: - Apontamentos do Catequista e Lições Catequéticas, do Cónego Camille Quinet (1879-1961), inspetor do ensino religioso na diocese de Paris (em 1928 e 1935) e Secretário da Comissão Nacional do Ensino Religioso a partir de 1942; - Manual de Apologética, do Abade Auguste Boulenger (1868-19?), na linha do combate contra o modernismo, publicado em 1937; - O problema da vida, do belga Fernand Lelotte, SJ (1902-1979), escritor e diretor do Foyer Notre Dame (Bruxelas), autor de uma bela Oração por todos os doentes do mundo; - Teologia de San Pablo, do teólogo castelhano José María Bover y Oliver, SJ (1877-1954); - Deus em nós, Cristo em nossos irmãos e Em Cristo Jesus, do francês Raoul Plus, SJ (1882-1958), capelão do exército francês na I Grande Guerra, condecorado com a Cruz de Guerra, professor universitário em Lille e no Institut Catholique de Paris, que escreveu sobre o valor da oração na vida espiritual e sobre a incorporação em Cristo (a exemplo do seu mestre Germain Foch, SJ); - El cuerpo místico de Cristo, do teólogo aragonês Emílio Sauras García, OP (1908- ), capelão do exército espanhol em 1937, consultor do bispo de Valencia e do episcopado espanhol no concilio Vaticano II e perito da Santa Sé no sínodo dos bispos de 1967; - A origem do mundo e do homem, de Luis Arnaldich (1909-1974), OFM, erudito comentador da Bíblia, diplomado em Arquivística pela Escola Arquivística do Vaticano, professor da faculdade de Teologia da Universidade de Salamanca e diretor da Biblioteca Geral; - Vivei a vida, de M. Arami, monge premonstratense (ramo da Ordem dos Cónegos de Santo Agostinho, empenhado na conversão contínua dos costumes pelos
6 “Bispo auxiliar do patriarcado de Lisboa (n. Alcobaça, 9-4-1904). Estudou no Seminário de S. Sulpício de Paris. Vice-reitor do Seminário de Almada (1935), cónego da Sé Patriarcal e prior da freguesia da Lapa, com sede na Basílica da Estrela (1944) onde desenvolveu notável atividade pastoral, foi eleito bispo titular de Febiana a 28-08-1954 e sagrado a 28-10- 1954. Obras- Catequese – Notas de pastoral catequística, Lisboa, s.d. e A Plenitude do Sacerdócio. O Bispo, Lisboa, s.d.” (Oliveira, 1966, 4.º vol, pp. 706-707).
votos de caridade, pobreza e obediência); nesta obra acerca da vida sobrenatural do cristão, ensina a conservar a graça santificante, tratando entre outros temas: a indigência do filho pródigo, a contrição perfeita, o estado de graça, a intenção reta, a santidade ao alcance de todos, a oração, o apostolado pela oração e pela mortificação, pela palavra e pelo exemplo, pela paciência, pela doçura e pelas obras; - Jesus Cristo vida da alma e Jesus Cristo em seus mistérios, do beato D. Columba Marmion (1858-1923), professor, diretor espiritual e pregador inspirado pela espiritualidade da “Imitação de Cristo”; foi abade da comunidade beneditina de Maredsous onde ingressou seduzido pela vida contemplativa e pelo ideal de retorno às fontes bíblicas, litúrgicas, patrísticas e ecuménicas difundido pelo mosteiro alemão de Beuron.
4. Construtor de castelos e de catedrais4.1. O Padre Pita Ferreira e o Movimento Escutista
4.1.1. Base religiosa e espírito cívico do escutismo
Se a alma humana, como imaginava Teresa de Ávila, é comparável a um castelo formosíssimo, cuja porta é a oração (Jesus, 1582), pode dizer-se que o Pe. Pita Ferreira, docente e sacerdote, tinha vocação de construtor de castelos, ainda que tivesse passado muitas horas – provavelmente das mais felizes da sua vida –, em rústicos acampamentos ao ar livre, junto dos rapazes que ajudou a formar pelo método de desenvolvimento pessoal do Escutismo, escrevendo peças de teatro para serem por eles representadas, ou ainda rezando com eles. “O método escutista, elemento pedagógico original e identitário do escutismo, criado por Lord Baden-Powell of Gilwell, é um sistema de auto-educação progressiva, baseado em sete elementos igualmente relevantes: Lei e Promessa, Mística e Simbologia, Vida na Natureza, Aprender Fazendo, Sistema de Patrulhas, Sistema de Progresso e Relação Educativa” (Corpo Nacional de Escutas-Junta Regional de Viseu, 2018). Este sistema educativo foi concebido especificamente para rapazes e com o objetivo expresso de formar bons cidadãos, como se depreende
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do título da versão revista do manual original Aids to scouting (1899): Scouting for boys: A handbook for instruction in good citizenship (Baden-Powell, 1908). Da vintena de pequenas pastas de Apontamentos que o Pe. Pita Ferreira coligiu para alimentar a sua própria reflexão e os seus escritos históricos e literários, foram apresentadas na exposição: a pasta 6, referente à confraria do Santíssimo Sacramento da Sé, a pasta 7, referente à construção desta igreja, e a pasta 21, referente às pratas da Sé e do Colégio; a pasta 11, sobre folclore; enfim, a pasta 8, contendo nomeadamente pensamentos de Baden Powell, criador do Escutismo, que afirmou enfaticamente a base religiosa deste Movimento: “O primeiro termo da promessa que o jovem presta no escutismo é este: servir a Deus” 7 . Baden-Powell não hesitou em esclarecer que “o ateísmo é por conseguinte incompatível com a qualidade de membro da associação. Ninguém dos que negam a existência de DEUS pode fazer a promessa e tornar-se membro da Fraternidade escutista. Não deve tão pouco esperar que em seu proveito a fraternidade altere a sua vida religiosa. É chegado o tempo em que devemos ser claros sobre esta questão e compreender a sua importância e aplicações” 8 . A pedagogia escutista socorre-se do respeito de Deus para incutir o gosto de servir, valendo-se da propensão inata do jovem para a ação. O espírito do Escutismo legitima a liberdade religiosa: “O modo de exprimir a reverência para com Deus varia conforme a seita ou denominação religiosa. Geralmente são os desejos dos pais que determinam a forma religiosa dos filhos. A eles pertence determinar. A vós cabe (…) respeitar a sua decisão e (…) ajudar os seus esforços, no sentido de precisar cada vez mais a reverência para com Deus, qualquer que seja a forma de religião professada pelo jovem” 9 . Tolerante por natureza, o escutismo nega que a religião seja causa de dissensão: “A base religiosa subjacente a estes sentimentos é comum a todas as religiões, e por estes factos, nós não criamos atrito com nenhuma delas” 10 .
7 In Aids to Scoutmastership, 1914, cit. pelo Pe. Pita Ferreira (AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 45)
8 B. Powell, Instruções emanadas do Campo de Gilwell, cit. pelo Pe. P. Ferreira (AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 41).
9 Idem, p. 44
10 Idem, p. 42
4.1.2. Educação pela Expressão Dramática e pela
LeituraPersonalidade imaginativa e comunicativa, o Pe. Pita Ferreira criou para os seus escutas dramatizações à maneira de parábolas, imbuídas de ideal cristão: “Amar a Deus e à Pátria … auxiliar o próximo em todas as circunstâncias (…) levar uma vida pura e bondosa, não pode haver glória maior!” 11 . Nelas enaltece os heróis nacionais, as virtudes heroicas de um povo próximo dos seus próceres: “O povo!!!... Como o recordo com amor (…) O povo humilde, que salvou a independência de Portugal (…) o povo sofredor, que suportou os horrores do cerco de Lisboa (…) O povo que, nas ocasiões duvidosas, nunca perdeu a fé na causa do Mestre (de Avis) e lutou pela liberdade, dando generosamente o seu sangue e a sua vida” 12/13 . As pequenas peças de teatro do Pe. Pita Ferreira apontam também o caminho para restaurar a antiga harmonia cósmica – harmonia entre Deus e a alma, entre o corpo e a alma dentro do próprio homem, e em redor do homem (Plus, 2013): “Vivendo em contacto com a natureza para mais nos unirmos a Deus e fugindo para o campo para que a vida das cidades não nos corrompa. Aqui divertimo-nos bem, robustecemos as forças do corpo e da alma, e (…) rezamos melhor” 14 . Parece-nos também que nestas peças o Pe. Pita Ferreira se retrata a si mesmo, como irmão mais velho dos rapazes, ou como pai que se alegra com o fruto dos próprios ensinamentos: “Um coração de pai tem sempre para os seus filhos palavras que são bênção (…) Palavras que eles jamais esquecem (…) Que as minhas caiam nas vossas almas como o orvalho da manhã que fecunda as flores (…) como a chuva que faz germinar a semente” 15 . O gosto do Padre Pita Ferreira pelo teatro e a sua vocação de evangelizador encontravam na figura e na obra de Gil Vicente critério seguro de juízo e de ação, patente nos Apontamentos, trechos e apreciações de vários autores sobre Gil Vicente que coligiu, entre os quais versos em que o dramaturgo admoesta tanto os poderosos “o rei que é bom juiz,/ como a lei feita é,/ faz aquilo que ela diz” 16 como a gente comum – “toda a glória de viver/ das gentes é ter dinheiro,/ e quem muito quiser ter/ cumpre-lhe de ser primeiro o mais ruim que puder” 17 . Nos Autos vicentinos o Pe. Pita Ferreira encontrava o são princípio de reforma:
11 Fala de Nuno Álvares, in O Nosso Lema: Quadro Escutista para ser representado em “Fogos de Conselho” (05-06- 1950), Cena 4ª. (AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, pt. 8, f. 3v.).
12 Fala de Nuno Álvares, in O Voto de Valverde: Drama Histórico, Acto IV, Cena 1ª (AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, pt. 8, p. 11v).
13 É de notar que ainda em 1972, a “pedagogia do herói” tinha boa aceitação: “No dia 28 de Setembro, realizou-se a reunião dos professores de Moral do Ciclo Preparatório, compreendendo todos os docentes – sacerdotes e leigos. O tema pedagógico tratado na reunião foi a “pedagogia do herói”. Esta está de acordo com a pedagogia dos préadolescentes” (Velosa, 2005, 2005, p. 48).
14 Fala de Daniel, in Os sonhos do Chico: Peça escutista em cinco atos, (AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, pt. 8, p. 24)
15 Fala de Nuno Álvares, in O Nosso Lema…, ob. cit., Cena 4ª, p. 4.
16 AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 32
17 Idem, p. 29
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O Poeta defendeu a doutrina ortodoxa do
livre arbítrio e da independência da vontadehumana. Essa foi também, enquanto à doutrinada predestinação, a posição em que se colocouErasmo (De libero arbítrio, 1524), contestaçãoaos Loci communes de Melancthon. No seureformismo moderado, que em modo algum excluia fé e o respeito para as doutrinas e para ainstituição da Igreja Católica, Gil Vicentee a génese do Escutismo e com a realidade nacional e local, confirmam-no os títulos da sua Biblioteca do Lobito: Catecismo – Missa das Crianças; Bíblia da Infância; O Evangelho de uma avó; Florinhas de S. Francisco; Foi aos pastorinhos que a Virgem falou; O sonho do Joãozinho; Vida familiar de Jesus; História Bíblica para os meus afilhados; História Sagrada contada às crianças 21 .
Um pensamento de Eça de Queiroz, colhido numa das pastas de Apontamentos do Padre Pita Ferreira permite conceber o apreço que ele tinha pela boa leitura – o remanso de paz e de elevação, os prazeres do espírito (mas também do corpo) que nela procurava:
21 AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 46
encontra-se perto de Erasmo e longe de Lutero.
Esta expressão “Leitura”, há cem anos, sugeriaComo o sábio ilustre de Roterdão o Poeta
logo a imagem de uma livraria silenciosa, comportuguês nunca combateu a religião: atacou
bustos de Platão e Séneca, uma ampla poltronasim, inexoravelmente, desde os frades até aos
almofadada, uma janela aberta sobre os aromasPapas, os homens que serviam mal” 18 .
Para o Padre Pita Ferreira como para Gil Vicente, para quem, segundo Aubrey Bell, eram “fontes (…) de infalível inspiração: o Livro da natureza, o livro das tradições populares e a Bíblia” 19 e delas soube deduzir um virtuoso programa de vida Nacional:
18 Júlio Dantas, In O Espírito da Reforma religiosa na obra de Gil Vicente: conferencia publicada no jornal El Sol de Madrid, 08- 12-1955, cit. pelo Pe. Pita Ferreira (AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 34)
de um jardim: e neste retiro austero de paz
estudiosa, um homem fino, erudito, saboreandolinha a linha o seu livro, num recolhimentoquase amoroso. A ideia de Leitura, hoje, lembraapenas uma turba folheando páginas à pressa, noGil Vicente nunca perdeu de vista que a força
da Nação não residia nas residia nas riquezasimportadas, embora fabulosas e cobiçadas, masno bom emprego do seu próprio solo e capacidade19 In Estudos vicentinos, cit. pelo Pe. Pita Ferreira (AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 35).
rumor de uma praça. 22
4.1.3. Rezando com os escutas
22 Idem, p. 60
e no vigor, energia e disciplina dos seus
habitantes; em seus autos constantemente seaconselha a seguir a antiga simplicidadesubvertida pela onda de luxo, ambição e ânsiade gozar” 20 .Que a atividade do Pe. Pita Ferreira no Movimento Escutista foi uma das expressões que assumiu o seu apostolado catequético, em harmonia com o espírito
20 AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 36
Para os rapazes que instruiu nos princípios do Escutismo e da Fé Católica, o Pe. Pita Ferreira retratou Nun’Álvares rezando. Com eles agradeceu a Deus o dom do “irmão fogo” e do pálio glorioso do céu, e cantou a alegria de viver. Das orações escutistas que com eles rezava e que conservava com outros apontamentos sobre escutismo, continuam a fazer parte do reportório dos escuteiros católicos portugueses a Oração do Lobito e a Oração do escuta, talvez a mais bela: “Senhor Jesus ensinaime: a ser generoso. A servir-vos como mereceis, a dar
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sem conta, a combater sem me importar com as feridas, a trabalhar sem procurar repouso, a dar-me sem atender a outra recompensa que a de saber que faço a vossa vontade. Assim seja” 23 .
4.2. Reestruturação das paróquias na diocese do Funchal, nos anos 1950
A atualização das paróquias foi um aspeto impactante da “pastoral de proximidade e de ação” de D. David de Sousa (2015, p. 97), pelo que é útil rememorar alguns factos mencionados pelo Pe. Vítor B. de Sousa. A reestruturação das paróquias foi iniciada por D. António Manuel Pereira Ribeiro com demorado estudo, exame e discussão, sendo aprovados, por unanimidade, a 3 de fevereiro de 1956, os novos limites das freguesias do concelho do Funchal. Com o seu decreto de 24 de novembro de 1960, D. David assumiu a concretização do processo, mantendo os referidos limites; foram de sua iniciativa apenas a criação e delimitação da paróquia do Sagrado Coração de Jesus. A dinamização paroquial almejava disponibilizar os serviços espirituais à população dispersa na paisagem acidentada do arquipélago, e que aumentara bastante nas décadas precedentes. Pretendia favorecer o apostolado de famílias e indivíduos, para promover um catolicismo genuíno. Os desafios em perspetiva incluíam obter a adesão do clero à nova estrutura paroquial, entenderse com as autoridades civis sobre a divisão do território, “evitando a distribuição da população de uma paróquia por várias freguesias civis” (Sousa, 2015, pp. 84-85), acompanhar a construção das novas igrejas paroquiais e a ampliação das antigas, angariar fundos para as obras. D. David procurou mobilizar o clero diocesano em sucessivas conferências eclesiásticas, em 1959 e 1960. Deu orientações para o desmembramento das paróquias e a edificação das igrejas paroquiais, que deveriam situar-se “a menos de 10 minutos de caminho a pé” (cit. por Sousa, 2015, p. 85) e ser complementadas por centros paroquiais, formando “uma igreja em escala humana e cristã, centro de acolhimento dos que chegam, comunidade fraterna dos que estão, lar comum de fé e de caridade” (D. Manuel Gonçalves Cerejeira, cit. por Sousa, 2015, p. 84). O plano gerou entusiasmo mas também resistências, sendo a maior dificuldade a
23 AHDF, Arquivo do Pe. Pita Ferreira, Apontamentos de pesquisa histórica e outros, Pt. 8, p. 47. Também falas do Zé e do Daniel, in Os sonhos do Chico …, ob. cit., Ato IV, Cena 3ª, p. 24. Também http:// www.agr683.cne-escutismo. pt/tecnica/animacao-da-fe/ oracao-do-escuta (consultado em 16-11-2018).
escassez de sacerdotes: o próprio prelado “reconheceu que a principal lacuna da diocese do Funchal era a obra das vocações e seminários” (Sousa, 2015, p. 69). Para D. David, sem padre, não subsiste a igrejacomunidade: “a paróquia engloba igreja, sacerdote e fiéis. Constitui a comunidade elementar, que vive da fé, da esperança e da caridade cristãs. Quem diz comunidade, supõe unidade de direção, comunhão de ideias, união de corações, reunião de esforços” (cit. por Sousa, 2015, p. 83); o bispo apelava à união da família paroquial em torno do pároco e do projeto de edificação da “casa do pai comum” (cit. por Sousa, 2015, p. 102). O projeto de reestruturação das paróquias concebido no episcopado de D. António Ribeiro foi continuado: “se bem que tenha sido (D. David de Sousa) a decretar as novas paróquias, coube a D. João António da Silva Saraiva, seu sucessor, a missão de continuar a implementar, orientar e dedicar novas igrejas. D. Teodoro de Faria (bispo entre 1982 e 2007) e D. António Carrilho (bispo a partir de 2007) também viriam a inaugurar e dedicar novos templos para essas Paróquias, que haviam sido criadas em 1960” (Gomes, 2016).
4.3. A vocação de arquiteto do Padre Pita Ferreira4.3.1. Alma enamorada do Bem e do Belo
“Alma enamorada do Bem e do Belo” (Abreu, 1966, p. 7), o Pe. Pita Ferreira entusiasmou-se pela valorização do património artístico: “colaborou, com muita dedicação, nas grandes exposições de Ourivesaria Sacra e Esculturas Religiosas que se realizaram no Funchal nos anos 1951, 1954, tendo subscrito, juntamente com o Eng.º Luiz Peter Clode, os catálogos então editados pela Junta Geral” (Clode, 1966, p. 39). Como pároco e como historiador, era natural que se interessasse tanto pela arte sacra como pela arquitetura das igrejas, e os seus conhecimentos foram bem-vindos na Comissão de Conservação do Museu de Arte Sacra:
Conhecedor profundo de arte eclesiástica foiconvidado a presidir à respetiva comissãodiocesana, tendo sido o inspirador, orientador
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e até arquiteto de algumas belas igrejasmadeirenses que ficam, na elegância das suaslinhas, alevantando hinos ao céu e perpetuandoa sua memória e pendor artístico (Clode, 1966,p. 39).
As páginas, ilustradas com belas fotografias, sobre a arte de A Sé do Funchal, coadunam-se com o estilo didático e a sensibilidade do Pe. Pita Ferreira, que admirava na beleza dos objetos de culto um reflexo de Deus:
A ideia do belo anda estreitamente unida àideia de Deus […na Sé do Funchal] a beleza (…)canta um hino a Deus por meio da arquitetura,da talha, da escultura, da pintura, daourivesaria, da cerâmica, da serralharia, damarcenaria e da vidraria (Ferreira, 1963, p.[153]).
Sendo reconhecidamente “um grande entusiasta pela conservação do nosso património artístico” (Clode, 1964, p. 39), via a arte sacra como sacerdote, mediador entre o homem e Deus (Conegero, 2018) incumbido de oferecer sacrifícios pelos pecados e de ensinar o povo a adorar e louvar: “À inteligência arguta com que era dotado, aliou sempre um fino gosto estético, que procurou pôr sempre ao serviço de Deus, através da liturgia sagrada” (Jornal da Madeira, 1963, p. 8). Daí a autoridade que deve ser reconhecida a esta sua reflexão:
Muitas e preciosas foram as peças deOurivesaria Sacra, que a Sé do Funchal possuiue possui ainda. Dádivas de Reis, de Bispos,de confrarias e de fiéis piedosos, constituemainda hoje um património de altíssimo valorestimativo e artístico. Algumas delas, comoa Cruz Manuelina e o frontal do altar de
S. José, são das melhores obras-primas de ourivesaria sacra, que a Nação possui, pois além de nos revelarem o esplendor das épocas em que foram executadas e a fé e o amor à arte de quem as encomendou e ofereceu, testemunham a sensibilidade e o valor do artista, que as idealizou e fez. Não admira, pois, que muitas delas tenham figurado nas grandes exposições de arte, realizadas no país e na ilha e até tenham sido cobiçadas para aparecerem nos Museus ao lado do que de melhor neles se expõe. Nesta contingência esteve a Cruz Manuelina, de 1882 a 1887. Graças aos esforços do cónego Feliciano João Teixeira voltou a ocupar o lugar a que a destinou El-Rei D. Manuel, deixando, por isso, de figurar ao lado da Custódia de Gil Vicente e da Cruz de Alcobaça, no Museu das Janelas Verdes (…) Porque, no decorrer deste trabalho se concluirá que muitas foram fundidas ou desapareceram sem deixar rasto, poderá muita gente ser levada à revolta, contra quem as fez fundir ou deu azo a que desaparecessem. Tal (…) será injust[o], atendendo a que as peças de Ourivesaria Sacra, oferecidas à nossa Sé, não se destinaram a aparecer mortas e deslocadas dentro de uma vitrine de museu, para gozo dos curiosos, que muitas vezes só as apreciam pelo seu valor artístico (…) Mas as cruzes, as navetas e turíbulos, os lampadários, as banquetas, os cálices e as caldeirinhas (…) Foram executadas e oferecidas para o serviço de Deus e eram preciosas apenas porque os
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seus oferentes assim as desejaram, para em primeiro lugar serem dignas de Deus e, em segundo, agradáveis aos olhos (…) Algumas delas, os cálices, por exemplo, apareciam nas mãos dos sacerdotes que celebravam na Capelamor, a distância tão grande que a sua arte não podia chamar a atenção nem deslumbrar o povo, que assistia aos atos religiosos na nave. Tendo, portanto, as peças de arte sacra como fim primário o serviço do culto, não admira que, passados alguns séculos depois da sua execução e oferta, muitas delas se estragassem, estivessem fora de uso e fossem fundidas (…) os turíbulos, as cruzes e os cálices góticos, por exemplo, (…) Eram peças vulgares naquele tempo (…) Diferenciavam-se mais pelo seu peso e arte que pelo seu estilo. Não eram raros nem falavam de tempos idos. Fundir, portanto, nessa época um cálice partido ou um turíbulo estragado não era um crime ou um vandalismo tão grande como se tal acontecesse agora. Muitas graças demos à Igreja, por ter conservado através dos séculos tantas preciosidades, enquanto os seculares se desfaziam quase por completo das pratas, mobiliário, cerâmica, pinturas e esculturas, que os seus antepassados lhes legaram (Ferreira, 1963, pp. 157-158).
4.3.2. A Catedral ideal do Padre Pita Ferreira
No âmbito da atualização paroquial, D. David convocou a comissão de arte sacra e apelou à “coresponsabilidade de todos os diocesanos” (Sousa, 2015, p. 85). Assim, também no domínio da construção das igrejas das novas paróquias, o Padre Pita Ferreira veio a colaborar com D. David. Este prelado, que “dedicou as igrejas do Campanário, Ilha, S. Paulo, Preces; presidiu à bênção da primeira pedra de outras tantas futuras igrejas que estavam em processo de construção como as igrejas do Sagrado Coração de Jesus, Assomada, Achada de Gaula, Carvalhal, Garachico, Raposeira, Visitação, Álamos, Carmo, Lameiros, Feiteiras, Ribeira Seca, Piquinho, Amparo, Faial e Imaculado Coração de Maria” (Sousa, 2015, p. 115) idealizava uma igreja “clara, alegre, acolhedora, transparente de verdade” (cit. por Sousa, 2015, p. 85) – nos antípodas de um templo icónico do Movimento de Renovação da Arte Religiosa que veio a dominar em Portugal como é a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de inspiração brutalista e da autoria dos arquitetos Nuno Teotónio Pereira, Nuno Portas e outros. O gosto do Padre Pita Ferreira, que foi considerado “um autêntico mestre de arte religiosa não só patente na arquitetura da sua igreja mas em algumas outras das novas paróquias cujas linhas traçou e cuja construção dirigiu” (Diogeneto, 1963, p. [3]), harmonizava-se com a visão de D. David, inserindose, ao mesmo tempo, na tradição estética regional, tal como a descreve o autor de Ilhas de Zargo: “As igrejas de traça primitiva revelam vestígios de estilo românico conjugado com o estilo ogival, o que deixou mais arte, mais grandiosidade e mais monumentos (…) Embora de interior sóbrio e modesto, são no entanto bem proporcionadas e harmónicas no seu todo. As fachadas, geralmente pobres, não deixam nalguns templos (…) de oferecer grandeza e harmonia” (Pereira, 1957, p. 1216). Estas são características observáveis na “bela igreja de S. Gonçalo e respetivo presbitério, cujo traçado, como por mais duma vez mo afirmou [o Pe. Pita Ferreira], foi quase totalmente da sua lavra” (Abreu, 1966, p. 7): feita de pedra basáltica e cantaria, “apresenta-se com uma planta retangular simples e no seu interior existem vários arcos em ogivas. As paredes interiores são revestidas a mármore rosa até cerca de 1,50m de altura, sendo o Altar-mor revestido
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de mármore preto e o chão é revestido a pedra” (Abreu, 1966, p. 7). A construção desta igreja em basalto e cantaria, cujo lançamento da primeira pedra ocorreu a 7 de junho de 1947, fez-se com a generosidade do Sr. Blandy, proprietário na freguesia de Câmara de Lobos, que ofereceu toda a pedra necessária, bem como dos romeiros e paroquianos cujas ofertas foram sendo recolhidas pelos párocos Padre Porfírio e Padre Pita Ferreira (a partir de fevereiro de 1945). As obras, iniciadas em julho de 1946 (residência paroquial) e em 1947 (igreja matriz) foram arrematadas pelo construtor Jacinto Fernandes de Gouveia e concluídas em 1958 (Gonçalves, 2017). Outro exemplo da conceção do Padre Pita Ferreira é a igreja do Carvalhal, de fachada quadriculada e parede do altar-mor em cantaria vermelha, que o seu criador, precocemente falecido, não chegou a ver concluída:
Mede 32 metros de comprimento, 12 de largura e11 de altura. O teto não tem madeiras. A torremede 18 metros de altura. A igreja tem apenasuma capela que se destinava, inicialmente,à veneração de Santo André Avelino, seuprimeiro padroeiro (hoje é Nossa Senhora deFátima) (Gonçalves, 2017, s.p.)
Neste artigo se diz que as respetivas obras começaram a 6 de fevereiro de 1962, sendo o relógio e a pavimentação do caminho de acesso à igreja inaugurados a 28 de maio de 1967. O Pe. Pita Ferreira interveio igualmente no processo de reconstrução da igreja de S. Roque do Faial, no rescaldo do violento incêndio que na década de 1960 consumiu inteiramente o templo construído sob D. João V.
É também desmaterializando criticamente a arquitetura da Sé do Funchal, com sólido conhecimento da história da sua construção, segurança de sentido estético e imaginação, que o Padre Pita Ferreira revela o arquétipo de igreja que preferia:
Tem a Sé a orientação litúrgica – esteoeste–, a forma de uma cruz latina e, se a
quisermos dividir em partes, tem as seguintes: a cabeceira, o transepto, as naves, a torre, o exterior e os anexos (…) eu preferiria ver a nossa Catedral tal e qual como foi, no tempo de El-Rei D. Manuel, - sem os altares das naves laterais e os retábulos barrocos do transepto, sem o coro sobre a porta principal, sem a talha artística e bela da Capela do Santíssimo Sacramento, sem o altar empoleirado, as escadas das ilhargas, a talha, os quadros e a porta da Capela do Amparo, sem os painéis que estão sobre o cadeiral da capela-mor e sobre os arcos góticos dos absidíolos, sem os lustres doirados, sem o janelão sudoeste do transepto e com uma fresta em seu lugar, sem os lajeados e os corrimões das naves laterais, sem a Mesa e Sala dos irmãos do Santíssimo, sem as tintas, que cobrem as abobadas, os arcos e as colunas, e com as portas norte e sul substituídas por pórticos góticos, como primitivamente, com dois altares simples na Capela do Amparo e na do Santíssimo, com a sacristia desta última capela melhorada exteriormente e com a Casa do Cabido e Sacristia transferidas para o outro lado da rua de João Gago ou da Sé e ligadas à Catedral por um corredor subterrâneo (…) a torre sem o relógio (…) Se todos estes aleijões, acrescentados através dos séculos, desaparecessem, ressuscitaríamos uma Catedral gótica, grave, bela e harmónica. As Cruzes de Cristo, as esferas armilares, as armas reais e
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algumas cordas e frestas, que nela aparecem,seriam então, na obra, a assinatura do monarcaque, com tanto amor e generosidade, a ajudou aedificar” (Ferreira, 1957, pp. [3] e 29).
Note-se que ao assumir a preferência por uma catedral despida de todos os elementos posteriores à época da sua construção, ainda que de notória qualidade artística, o Pe. Pita Ferreira alinhava com os critérios de conservação e restauro dos engenheiros civis e arquitetos da Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais:
O nacionalismo do Estado Novo comungava deuma perspetiva triunfalista da História dePortugal. A memória histórica “exigia” otestemunho palpável dos monumentos que surgiam,aos olhos dos portugueses, reintegrados na suasuposta forma primitiva, a fim de cumprir amissão de creditar o passado (Neto, cit. porRemonatto, 2012, p.7).
Era clara a analogia entre a estratégia de recuperação e valorização do património arquitectónico e a (re) construção da Alma Portuguesa, dois vetores da psicologia voluntarista que o Estado Novo promovia para projetar no futuro o destino nacional, solidamente enraizado no terreiro histórico-cultural da Nação:
(…) As bases da renovação da Nação sãoexpressas por Salazar através do termoempregado na arquitectura: Restaurar, o aspectomaterial, moral e nacional (…) Esta atitudeacaba por influenciar a filosofia empregue norestauro dos monumentos neste período. “Destaforma, é feito o apanágio da reintegraçãoestilística dos monumentos na sua concepçãoprimitiva, contribuindo para que os preceitos
da unidade de estilo encontrem, com base nestesuporte ideológico, um incentivo para seinstalarem e desenvolverem (Neto, 2001, p.142)(Remonatto, 2012, p. 7).
O Pe. Pita Ferreira não foi o único a contestar a aplicação de relógios e outros acrescentos nas igrejas madeirenses:
Um errado e arbitrário critério estético,porém, vem de há anos destruindo a harmonia dostemplos primitivos e novos , desfigurando assuas torres numa afronta ao estilo e proporçõesarquitetónicas dos mesmos, pela aposição decorpos pesados e relógios inadaptáveis (…)as nossas sineiras, em que se engaiolaramrelógios, a gosto e peso de benfeitoresendinheirados ou satisfazendo basófias ecaprichos populares, deram a algumas das nossasigrejas o aspeto de pagodes e mesquitas comminaretes sem senso estético nem arte. Tem-sedesfigurado assim o aspeto de severidade dosedifícios filiados na traça românica que deuà casa de Deus a verdadeira expressão da artecristã (Pereira, 1957, vol. II, pp. 1216-1217).
Igrejas como as de S. Gonçalo e do Carvalhal marcam a transição entre a tradicional arte construtiva madeirense e o que Emanuel Gaspar de Freitas (2010, s.p.) sintetiza como “a modernização da arquitetura religiosa em Portugal, desafiando códigos tradicionais historicistas”, com a incursão de “um vocabulário canonicamente moderno” (Freitas, 2010) no campo da arquitetura religiosa. Assumidamente simples e despojadas, fazem parte de um conjunto que não sofre comparação com as igrejas de arquitetos contemporâneos que se atreveram a inovar num campo tão sensível como é o da arte religiosa. Esses templos de transição,
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erguidos entre finais da década de 1930 e meados da década de 1950, são objeto de crítica por vezes áspera:
A generalidade das igrejas que (…) seconstruíram por todo o país seria servida porum desenho historicista caricatural, numaapropriação redutora da tradição, recusandodeliberadamente as conquistas da modernidade.São disso exemplo, em Lisboa, Santo Condestável(1946-1951), São João de Brito (1951-1955) eSão João de Deus (1949-1953). Com a intençãode reagir a este estado de coisas, um pequenonúcleo de artistas católicos fundava em 1953 oMovimento de Renovação da Arte Religiosa (MRAR)(Martins, 2000, p. 116).
E. G. Freitas (2010) desenvolve uma elucidativa análise de projetos do arquiteto Chorão Ramalho expressivos desta tendência desenvolvidos na Madeira entre 1949 e 1957: a Capela-Ossário do Cemitério de Nª Srª das Angústias, a Igreja do Imaculado Coração de Maria, a Igreja do Porto da Cruz (com o arquiteto Alberto Pessoa) e o arranjo do adro da Igreja Matriz da Ribeira Brava. Atribui a Chorão Ramalho “um novo entendimento do projeto, que sem deixar de ser contemporâneo anunciava pioneiramente preocupações de contextualização, de ligação ao envolvimento natural. Chorão Ramalho utiliza de um modo crítico, isto é, valorizando a pré-existência ambiental e cultural, a linguagem filiada no movimento brutalista dos anos 60 recuperando os materiais tradicionais, bem como a colaboração de pintores e escultores contemporâneos” (2010, s.p.). Põe em destaque a mediação do arquiteto:
Chorão Ramalho evidencia valores vernáculos de
racionalismo e o funcionalismo modernista,patente no uso de materiais locais de umaforma expressiva e prática, como é o caso daaplicação das cantarias regionais, dos tapasóismadeirenses ou do calhau rolado (Freitas,2010, s.p.).
Confirmando que o templo católico permanece como lugar privilegiado de expressão das Artes Plásticas, o comentador salienta a sensibilidade de Chorão Ramalho:
Estas obras religiosas, projetadas nocumprimento da fidelidade ao movimento moderno,mas absorvendo as lições da arquiteturatradicional, resultam em intervenções delinguagem secamente pura, limpa e silenciosa,marcos da modernização arquitetónica religiosae propostas de uma espacialidade nova, mascapaz de nos transmitir a real dimensão dacondição humana e o sentido do sobrenatural(Freitas, 2010, s.p.).
Não obstante, E. G. de Freitas (2010, s.p.) dá conta de tensões ocorridas entre o projetista e o Presidente da Câmara (António Bettencourt Sardinha) sobre a Capela-Ossário das Angústias, entre o projetista e “a conservadora Diocese do Funchal” sobre as igrejas do Imaculado Coração de Maria e do Porto da Cruz. Importa salientar que mais recentemente, nomeadamente no episcopado de D. Teodoro de Faria, houve a determinação de garantir a contextualização eclesiástica das novas igrejas, construídas em conformidade com as normas litúrgicas de Vaticano II.
tradição local, dentro da linha de pesquisa e entendimento da arquitetura moderna portuguesa levada a efeito pelo “Inquérito à Arquitetura Regional”, numa atitude dialogante com o
Notas para a história da ilha da Madeira: Descoberta e início do povoamento In Revista das Artes e da História da Madeira nº23 1956 Museu de Arte Sacra do Funchal
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5. O Padre Pita Ferreira historiador
[O] nosso colaborador e amigo Rev.º Pe. Manuel5.1. A ambição da veracidade do relato histórico
Juvenal Pita Ferreira (…) foi um colaborador
assíduo da revista “Das Artes e da História da
Se a atividade apostólica constituiu o âmago da carreira eclesiástica do Pe. Pita Ferreira, os estudos históricos terão sido porventura para ele um espaço de lazer, permitindo-lhe empregar prazerosamente os recursos da sua
Inteligência aberta para a investigação, para o
trabalho de pesquisa que tanto apaixonava o seuespírito ansioso de cultura. É que o talento donotável sacerdote correspondia à tendência paraesquadrinhar os arquivos, forragear deles asnotas necessárias para construir em linguagemdidática edifícios de história nacional. Masnão era preocupação do Pe. Pita Ferreira fazerhistória simplesmente. Não! Ele ia em busca daverdade, procurando dar novas interpretações afactos que já estavam consumados. E socorriasedos documentos que encontrava, compulsandotodos os que já haviam sido compulsados parade novo os submeter à sua exegese (Diário deNotícias, 1963, p. 1).Madeira” e dela se serviu para publicar, em
separata, muitos dos seus livros. Dotado dumainteligência arguta e possuindo verdadeiroespírito de investigador, deixou (…) uma obravaliosa sobre a história da Madeira. A suamaior preocupação era documentar todos os seusestudos, citando, na íntegra, as fontes quejulgava fidedignas. Por vezes foi um tantoousado nas suas conclusões; mas isso em nadao desmerece, porque o seu objetivo não eraatingir ninguém. Apenas (…) publicar algumasachegas sobre a história da Madeira a fim deesclarecer pontos que para ele eram obscuros.Nunca teve a preocupação de ser a últimapalavra em matéria histórica madeirense. Dizianos:“o meu desejo é que me rebatam franca elealmente, pois não me considero infalível.Pretendo apenas esclarecer factos que julgoerrados” (…) foi um escritor honesto e se errouAo mesmo tempo, é possível encontrar expressões do que Jorge Freitas Branco designou como “catequese indireta” nesta e nas outras ocupações de cariz cultural a que o Pe. Pita Ferreira se dedicou. Iniciou o seu percurso de investigador na revista Das Artes e da História da Madeira, fundada e dirigida pelo Eng.º Luiz Peter Clode 24 . Nas páginas dessa autêntica revista de cultura, o Pe. Pita Ferreira encontrou o lugar que mereciam a sua prosa concisa e simples mas cuidada, os seus dotes interpretativos, o seu respeito pelos factos, pelos documentos, enfim por “aqueles que gostam verdadeiramente destes assuntos e (…) são tão poucos” (Ferreira, 1959, p. [I]). Foi admitido como amigo no grémio dos intelectuais madeirenses:
24 Este facto foi-nos recentemente recordado por uma das suas filhas – a Dr.ª Inês Clode de Freitas, distinta professora de Ciências Musicais que presidiu a Comissão Instaladora do Conservatório de Música da Madeira, irmã da prestigiada diretora que foi do Museu de Arte Sacra do Funchal, Drª Luiza Clode.
foi no bom sentido de ser útil (L. P. Clode,
1964, p. 39) 25 .Não obstante as reticências de quantos se incomodavam com a sua franqueza e originalidade de perspetiva, o Pe. Pita Ferreira ousava pensar livremente: “Bem que alguma vez a lógica do seu raciocínio estivesse em desacordo com os mestres da historiografia, o certo é que ele apresentava o seu ponto de vista, revelando assim a independência e o desassombro do seu espírito crítico” (Diario de Noticias, 1963, p. 1). Não se eximia de aprofundar questões supostamente encerradas, de questionar conclusões tidas como definitivas e
25 Esta notícia referente ao falecimento do Pe. P. Ferreira contém uma interessante foto de perfil do sacerdote.
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confrontá-las com novos documentos: “Ninguém (…) pode dizer que, em história, esgotou o assunto” (Ferreira, [1959], p. XIII). Acreditava que o historiador podia aproximar-se da verdade e rejeitava sem rebuço versões dos factos fundadas unicamente no próprio dogmatismo:
A história do nosso Arquipélago tem aindapontos muito confusos e outros erradamenteapresentados. Porventura não se põe TristãoVaz, indultado por El-Rei a 17 de Fevereirode 1452, a cumprir pena de degredo na ilha doPríncipe, descoberta por Pero Escobar e Joãode Santarém, no dia 17 de Janeiro de 1471?Não se põe o Infante D. Henrique à frente dopovoamento do Arquipélago de 1420 a 1425 eEl-Rei D. Afonso V a criar a Vila do Funchale a lhe dar Forais?... E tudo isto cai porterra à face dos documentos, apesar de serapresentado como verdade dogmática por tantosque escreveram sobre a Madeira (Ferreira,[1959], p. XII).
Fiel a esta forma de ser, o Pe. Pita Ferreira gerou algumas suscetibilidades mas granjeou a consideração de quantos compreenderam o seu espirito inconformista:
Tenha-se em conta Notas para a história da ilhada Madeira e O arquipélago da Madeira Terrado Senhor Infante. Em qualquer dos volumes sedepara esta faceta de originalidade, uma ideiadiferente no exame dos acontecimentos. É que oPe. Pita Ferreira no desejo de expor a verdadecom a probidade mental que o caracterizava,descobria maneira de encarar este ou aqueleaspeto com base nos cronistas, por um prismaainda não observado (Diario de Noticias, 1963,p. 1).
Obteve o apoio da boa imprensa e o do prelado:Aguardavam-se com interesse e expectativa osseus livros anunciados para cuja publicaçãoafanosamente trabalhava: “O Infante D.Fernando, Terceiro Senhor do Arquipélago daMadeira”; “Notas para a História de SantaCruz”; “Diocese do Funchal”, e ainda “Achegaspara a História do Arquipélago da Madeira”,estudo aliás a que vinha dando publicidadeem vários artigos no nosso diário. Preparavatambém um estudo muito importante, para apublicação duma obra de grande vulto: “AHistória da Diocese do Funchal” para o quetinha sido encarregado por S. Excª. Revª.o Senhor bispo da Diocese, que o nomearahistoriador da Diocese (Jornal da Madeira,1963, p. 8).
A Junta Geral do Distrito publicou em 1959 O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante (sob a presidência do Engenheiro António de Sousa) e em 1963 A Sé do Funchal (sob a presidência do Coronel Fernando Homem Costa).
5.2. Metodologia do Padre Pita Ferreira e seu contributo para a história da Madeira
Para deixar clara a intenção que o levava a escrutinar temas que julgava mal estudados, o Pe. Pita Ferreira sinalizou vícios que o historiador deve repudiar. Desde logo a adulteração de factos e/ou documentos:
Expressarão os documentos sempre a verdade?É difícil dizer que sim (…) muitas vezes(o historiador) é obrigado a acreditar emescritores que diminuíram ou exageraram osfactos, que erraram e até mentiram, iludindo a
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posteridade com tanta habilidade, que é difícilperceber. E o historiador vê-se na tristesituação de acreditar neles até descobrir novosdocumentos, que façam luz sobre os factos(Ferreira, [1959], p. XII).
Considerava não menos grave omitir hipóteses credíveis: “Absolutamente condenável é não usar do “se”, do “provável” e do “possível” e apresentar ao público mentiras com foros de verdade, factos, que estão no âmbito da discussão, como se fossem indiscutíveis” (Ferreira, [1959], p. XIV). Inevitavelmente, a omissão de fontes trará vexame ao plumitivo negligente:
Nem toda a gente está disposta a aceitar,como dogmas, factos contados sem citação defontes ou baseados apenas na afirmação de queos historiadores os “leram algures” ou “nummanuscrito antigo” (…) E a ninguém é concedidoo direito de se admirar, de se queixar emuito menos de se revoltar, se, depois de terescrito sobre qualquer assunto histórico, semestudo prévio das fontes ou depois de se terbaseado em autores, que as não citam alguém,apresentando documentação merecedora deconfiança deite por terra tudo ou parte do quefoi escrito (Ferreira, [1959], p. XV).
Incapaz de descartar o rigor por desejo de agradar, o Pe. Pita Ferreira mais temia produzir um relato de insustentável leveza que ser considerado maçador:
A crítica moderna exige (…) que se consulteme citem as fontes, que se tomem precauçõescontra aqueles que escreveram sem indicaros documentos de que deitaram mão, que setranscrevam, muitas vezes na íntegra, os
documentos citados, que as hipóteses sejamfundadas em factos verdadeiros, que asconclusões sejam lógicas, porque doutramaneira, os trabalhos apresentados, emborasejam muito leves e agradáveis de ler, levammuitas vezes o leitor incauto a erros depalmatória (Ferreira, [1959], p. XIV).
O recurso a transcrições documentais parece-nos ser um dos pontos fortes da arte historiográfica do Pe. Pita Ferreira, já que a edição de fontes permite “incentivar a o estudo de temas menos frequentemente abordados [e] associar[-se] à informação e debate de temas de atualidade (possibilitando o melhor entendimento do presente através do confronto direto com factos e realidades de outrora)” (Paredes, 2005, p. 13).
O Pe. Pita Ferreira sintetiza no livro Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante a sua metodologia:
Só escrever à face dos documentos (…) coligir,comparar, estudar conscienciosamente o maiornúmero de documentos que pode encontrar sobreo facto ou período que deseja historiar, etirar as suas conclusões (…) Deve ser leal.Não deve adulterar ou pôr de parte documentosque não estão conforme a sua maneira de vere, quando não encontra documentos que venhamprovar o que pretende historiar, baseado emfactos verdadeiros, deve entrar no campodas hipóteses, dando sempre a perceber aoleitor que nele entrou, por meio do “se”, do“provável” e do “possível” (Ferreira, [1959],pp. [XI] e XIII-XIV).
Apurar a verdade dos factos comparando documentos fidedignos:
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Deitar mão dos documentos que tratam dosfactos que pretende historiar (…) estudá-los ecompará-los e (…) baseado nos que julga maisseguros (…) tirar conclusões. Se os documentos(…) apenas tiverem aparência de verdade, asconclusões estarão sujeitas a cair por terra,um dia, perante outros documentos de maiorautoridade” Ferreira, [1959], p. XIII); aclareza na exposição de hipóteses e a lógicadas conclusões falarão por si: “acreditará nasua opinião quem quiser e, diante de tantaclareza e da lógica das conclusões, ninguém temo direito de o censurar (Ferreira, 1959, p.XIV).
5.2.1. A Sé do Funchal, cabeça e modelo das igrejas paroquiais
O Pe. Pita Ferreira escalpelizou os tempos mais remotos da vida na Madeira e Porto Santo em estudos como O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante (1959), Notas para a história da Ilha da Madeira (Descoberta e início do povoamento) (1956) O Infante D. Fernando, terceiro senhor do arquipélago da Madeira 1460-1470 (1963) – estes dois últimos publicados na revista Das Artes e da História da Madeira). Em A Sé do Funchal, abordou acontecimentos que remontam aos séculos XV e XVI, tão momentosos como a construção da Sé, a criação da diocese do Funchal e a elevação da Sé a metropolitana ou a invasão dos corsários franceses em 1566; apresentou notas biográficas de capitulares da Sé “que se destacaram pelos seus bons costumes, inteligência e obras” (Ferreira, 1963, pp. 95-101) – cónegos que foram teólogos ilustrados, humanistas, escritores, oradores distintos, governadores do bispado, fundadores de conventos ou recolhimentos, professores, jornalistas, parlamentares, como o cronista dos capitães da ilha, Jerónimo Dias Leite; o teólogo e visitador Gonçalo Gomes, que legou
a sua biblioteca ao convento de S. Francisco; o governador do bispado Manuel Ribeiro Neto, escritor mencionado por Barbosa Machado; o teólogo António Veloso de Lira, autor do inédito Antiguidades da Ilha da Madeira; António Joaquim Gonçalves Andrade, que compilou documentos para a história da Madeira, infelizmente extraviados; Fernando de Menezes Vaz, autor de artigos sobre diversas freguesias da ilha e genealogista respeitável. A bibliografia citada pelo Pe. Pita Ferreira, incluindo A Sé Catedral do Funchal (1936), do Pe. Fernando Augusto da Silva e as narrativas examinadas no capítulo Como foi vista a Sé através dos séculos (Ferreira, 1963, pp. 129-149); a antiguidade e variedade dos muitos documentos citados ou transcritos, provenientes da Torre do Tombo, do então Arquivo Distrital do Funchal, da Biblioteca Municipal e do escritório da Sé, traduções de bulas do bispado e do arcebispado do Funchal e transcrições de importantes manuscritos manuelinos, a Relação das Cartas, Alvarás, Provisões Régias e Mandados do conselho da Fazenda apresentada no final do volume, fazem deste livro um repositório de interesse perene. Por outro lado, o índice reflete a exaustividade da investigação, bem estruturada em temas que se aplicam a qualquer igreja paroquial: DESCRIÇÃO DA IGREJA / CONSTRUÇÃO DA IGREJA/ CABIDO /CONFRARIAS/ LIMITES DA PARÓQUIA / FESTAS/ A IGREJA COMO FOI VISTA ATRAVÉS DOS SÉCULOS/ A IGREJA E A ARTE – OURIVESARIA SACRA/PRATAS DA CONFRARIA DO SANTISSIMO/ - OBRA DE TALHA/ PINTURA/ ESCULTURAS/ PARAMENTARIA/ CERÂMICA, SERRALHARIA, MARCENARIA E VIDRARIA DA CATEDRAL/ ÓRGÃO(S) DA IGREJA/ SINOS DA IGREJA/ SEPULTURAS DA IGREJA/ DATAS MEMORÁVEIS/ DOCUMENTOS HISTÓRICOS. Tal estrutura pode pois servir de modelo para a descrição e a história de outras igrejas.
5.2.2. Reabilitar a história: A figura de Bartolomeu Perestrelo n’O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante
O Arquipélago da Madeira Terra do Senhor Infante [1959] é livro digno de especial menção não só por assinalar a comemoração do centenário da morte do Infante D. Henrique, mas também porque sendo o “período decorrido entre 1420 e 1460, em que El-Rei D. João I e o dito
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Infante foram senhores das ilhas (…) espaço de tempo (…) não muito grande nem muito afastado, (…) a escassez de documentação torna o escrever sobre ele muito difícil ao investigador” (Ferreira, 1959, p. [XI]); por realçar o papel de D. João I na concretização do povoamento do Porto Santo, e ainda por “relembrar a vida e ação” de Bartolomeu Perestrelo, “o fidalgo que acompanhou Zargo e Tristão Vaz nas viagens de 1419 e 1420 e dirigiu, primeiro sob as ordens de El-Rei D. João I e depois sob as do Infante D. Henrique, o povoamento da ilha do Porto Santo, cuja capitania lhe foi concedida por Carta do mesmo Infante, datada de 1 de Novembro de 1446” (Ferreira, 1959, p. 55), em reconhecimento dos muitos serviços por ele prestados. Citando documentos coevos, o Pe. Pita Ferreira refuta mitos subsistentes em torno da figura de Perestrelo, referentes à filiação de sua mulher D. Isabel Moniz, à relação de Perestrelo com Zargo e à suposta miséria em que teria caído. Comprova com o relato de Cadamosto o “grau de prosperidade atingido pela capitania de Perestrelo:
É Governador um Bartolomeu Perestrelo, criadodo mesmo Senhor (Infante). Esta ilha produztrigo e cevada para si; é abundante de carnede vaca, porcos selvagens e infinitos coelhos,acha-se também nela sangue-de-drago, que secria em algumas árvores, e é uma goma, que elasestilam em certo tempo do ano, e se colhe (…)Esta árvore produz um certo fruto que no mêsde Março está maduro, e é muito bom para comerà semelhança de cerejas mas amarelo (…) e àroda da marinha se acham grandes pescarias dedentais, dourados, e outros peixes saborosos.Esta ilha não tem porto, mas sim uma grandeenseada, ao abrigo de todos os ventos, salvoo Les-Sueste e Su-Sueste; pois com eles seestaria ali em segurança mas assim mesmo tembom ancoradouro (…) Nela se produz o melhor
mel, que creio haja no mundo, e também cera,mas em pouca quantidade (Ferreira, [1959], pp.79-80).
Um manuscrito seiscentista de autor anónimo descoberto no arquivo da Familia Torre Bela atesta que esse quadro idílico de uma ilha de pão e mel perdurou na memória dos portosantenses:
Com ho fauor de Deus comesaram (os moradores)ha samear pam e pramtar figeiras uinhasamoreiras romeiras e fazer ortalisas e meloise muitas frutas muita casa muito pescado emarisquo de toda a sorte e muito gado de todaa sorte em abumdamsia que em nehuma parte domundo podia ser mais e pela beira mar herauma gramde alegria de aruores de fruto assimde figeiras como de amoreiras e uinhas [e]espinheiros que tapauam tudo isto (cit. porParedes, 2005, pp. 72-73).
Outro tema “apaixonante”, no ver do Pe. Pita Ferreira, a criação dos primeiros municípios do Arquipélago (Funchal, Machico e Porto Santo), levou-o a comparar os regimentos de D. João I, do Infante D. Henrique e do Infante D. Fernando, as cartas, forais e apontamentos que documentam o diálogo entre o povo e a Coroa – concluindo que “foi o Infante D. Fernando o primeiro, que apoiou os moradores do Arquipélago da Madeira, na sua ânsia de emancipação, e aliviou a gente humilde dos pesados encargos impostos pelo Infante D. Henrique” (Ferreira, 1959, p. 306). Quanto à organização administrativa e económica do Arquipélago, o Pe. Pita Ferreira atribui a Zargo, Tristão Vaz e Perestrelo a ideia da criação das capitanias, que admite terem-lhes sido cedidas gratuitamente, já que não detinham
O direito de propriedade sobre as terras(…) mas apenas o direito de administração edistribuição da justiça, tendo como pagamento
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a participação nas rendas do Senhor Infante evárias concessões” (…) O Infante nunca visitouo Arquipélago e, vivendo longe, é possível quesó estivesse ao facto dos assuntos das ilhaspor meio das informações dos seus feitores.Ninguém melhor do que eles via o que eranecessário fazer para o engrandecimento daMadeira e Porto Santo e, por isso, não admiraque a ideia da criação das capitanias delestivesse partido. Era a lição das coisas e dosfactos, que ensinava que o Arquipélago nãopodia continuar a ser “uma horta do SenhorInfante” e que era necessário o dinheiro e ainiciativa particulares, para que o próprioInfante com menos canseiras e gastos pudessetirar maiores frutos e as ilhas se povoasseme desenvolvessem rapidamente. A capitania doPorto Santo, por exemplo, foi concedida apedido de Bartolomeu Perestrelo. É o InfanteD. Henrique quem no-lo afirma, na Carta deConfirmação da venda da dita Capitania a PeroCorreia (Ferreira, 1959, p. 261).
5.2.3. Historiador Poeta
Como historiador, o Pe. Pita Ferreira cativa pela exposição acessível e pela consistência no tratamento de temas controvertidos. Nesta medida, pode aplicar-se às suas narrativas o comentário de Jacques Zeiller ao tratado Histoire Générale de l’Église do Abade Auguste Boulenger:
L’exposition est facile, les divisions comodeset judicieuses. Les questions qui prêtent à
la discussion sont abordées avec franchise etles solutions présentées toujours défendables(…) L’essentiel est dit (…) avec l’exactitude,la précision, la clarté et la simplicitéagréable de présentation qui restent lescaractéristiques très dignes d’éloges de toutl’ouvrage (Zeiller, 1932, p. 198).
Seduz também pelo talento revelado na interpretação dos documentos e na recriação do ambiente da epopeia madeirense:
Terras bastantes havia no Reino, cuja densidadede população era ainda muito pequena. Nãoexistia portanto a necessidade de sair docontinente para tomar parte em tão grandeaventura, como era o povoamento das ilhas,sem uma compensação. Na mira dela veio JoãoGonçalves Zargo, que não era rico, “non multumdives”, Tristão Vaz e Bartolomeu Perestrelo;por ela “deixaram suas terras e pátrias” osprimeiros cabouqueiros e os povoadores, quedepois deles vieram; para ajudar a alcançálagastou a Coroa, ao princípio, e a Ordem deCristo, depois, grandes somas. O amanhecerdo povoamento foi difícil. As ilhas foramregadas pelas gotas do orvalho e da chuva,caídas do céu, e pelas bagas do suor, quedeslizaram abundantes pelas faces dos primeiroscabouqueiros; o arvoredo foi devastado pelofogo e pela força humana; as terras foramcortadas e arroteadas ao som dos gemidos dasenxadas e dos peitos; as searas foram semeadaspelas mãos calejadas dos moços de gleba e
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fecundadas pelo doce embalar dos ventos e pelosbeijos puríssimos do sol. E desta amálgama dechuva e de orvalho, de suores e de gemidos, defogo e de força humana, de sementes, ventose sol nasceu a compensação tão ansiosamenteesperada por todos, o oiro. Apareceu espalhado,em fins de primavera e princípios de verão, nostrigais que douravam grande parte das ilhase que transformados em pão, eram fartura,alegria e riqueza para todos e, vindo de forado Arquipélago, em paga das madeiras, do gado,do vinho, do açúcar, do trigo, do mel, da cera,das conservas de frutas e doces exportados(Ferreira, 1959, p. 355-356).
Para o Pe. Pita Ferreira, a fé foi determinante para o êxito de empreendimento tão desafiante, porque os povoadores
Puseram em Deus toda a sua esperança e, emsua honra, em louvor de sua Mãe e dos seusSantos, construíram os primeiros altares dailha em capelas pobrezinhas e rústicas, feitasde madeira e cobertas de colmo, semeadas emqualquer parte da Madeira, onde havia terraspara esmoutar, casas a edificar e povoaçõesa fundar. Nelas se uniam ao Senhor não sópara adorá-lo mas também para alcançar aforça necessária para dominar os elementos danatureza tão madrasta nos primeiros anos dopovoamento, o desânimo das almas, o cansaçodos corpos e o número sem conta das privações.Todos esses santuários (…) têm a sua história(…) e todos estão perfumados pela piedade
daqueles que os fundaram e pela fé e orações dopovo simples e crente, que, em dias de romaria,os visitava, depois de calcorrear carreiros,alegrando os campos e animando as serras, aindavirgens, com seus cantares e tocares (Ferreira,1959, pp. 309-310).
Atento à cronologia dos factos e às relações de causa/ efeito entre estes, enquadrando a história regional na odisseia da Expansão Portuguesa, o Pe. Pita Ferreira realça os aspetos épicos do destino coletivo dos madeirenses, na linha da teoria de “Desafio e resposta” de um historiador e filósofo muito lido e comentado nas décadas de 1940 e 1950: “man achieves civilization, not as a result of superior biological endowment or geographical environment, but as a response to a challenge in a situation of special difficulty which rouses him to make a hitherto unprecedented effort” (Toynbee, 1987, p. 570).
5.2.3. A questão dos manuscritos oferecidos por Nunode Freitas Lomelino da Câmara
No seu afã de consultar o maior número de documentos possível, o Pe. Pita Ferreira frequentava assiduamente o então Arquivo Distrital e a Biblioteca Municipal; beneficiou da colaboração benemérita de Nuno de Freitas Lomelino da Câmara, que copiou manuscritos originais conservados no Arquivo Nacional:
Na ânsia de fazer um trabalho conscienciosoe útil aos que se dedicam a assuntos destanatureza, fiz quanto esteve ao meu alcancepara só escrever à face dos documentos. Paraisso vi-me obrigado a passar horas e horas aconsultar alfarrábios no Arquivo Distrital evolumes na Biblioteca Municipal, a manusearos livros dos Arquivos paroquiais e aproveitei
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elementos colhidos na Torre do Tombo por mim epelo Exm.º Senhor Nuno de Freitas Lomelino daFonseca e Câmara, que com paciência beneditinacopiou preciosos documentos sobre o Arquipélagoe, com toda a gentileza, os pôs à minhadisposição (Ferreira, [1959], p. [XI]).
O Pe. Pita Ferreira agradeceu publicamente ao seu amigo a inestimável oferta de “cadernos recheados de documentação” (Ferreira, [1959], p. [XVI]). Estes preciosos cadernos estiveram na origem de acesa celeuma nos jornais a respeito da propriedade dos mesmos, tendo Nuno Câmara confirmado a oferta que fizera e ficando claro que o Pe. Pita Ferreira estava acima de qualquer suspeita. 26 Fazem parte do seu Arquivo as pastas de Apontamentos históricos já referidas e também um grosso volume de bela letra manuscrita, com a seguinte dedicatória na folha de guarda: “Ao distinto historiador madeirense, Exm.º Snr. Pe. Manuel Juvenal Pita Ferreira com muito apreço oferece Nuno de Freitas Lomelino da Câmara” 27 . No entanto, não constam do mencionado espólio quaisquer cadernos.
Conclusão
Cumpre realçar que desenvolvemos este trabalho para corresponder ao honroso convite do Museu de Arte Sacra, na pessoa do Dr. Martinho Mendes, e ainda ao abrigo do protocolo de colaboração assinado a 19 de abril de 2017 entre a Direção Regional da Cultura / Arquivo Regional e Biblioteca Pública da Madeira e a Diocese do Funchal, no âmbito do projeto de apoio técnico ao Arquivo Histórico da Diocese do Funchal. O protocolo visa
O desenvolvimento e execução do projeto deelaboração de instrumentos de descriçãoconformes à norma internacional de descriçãoarquivística, sistematizadores dos diversos
26 AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, recortes do Eco do Funchal, de 01-10-1961 e 09-10-1961
27 AHDF, Arquivo do Padre Pita Ferreira, Lv. 460 (cota provisória).
fundos que constituem o grupo de arquivos daIgreja Católica do Funchal, bem como o apoio aoserviço de Referência de Informação do ArquivoHistórico da Diocese do Funchal (AHDF).
Este artigo de comentário a diversos livros e manuscritos emprestados pelo Arquivo Histórico diocesano ao Museu de Arte Sacra do Funchal para a exposição celebrativa do 5º Centenário da dedicação da Sé Catedral é fruto da colaboração institucional (entre o MASF, o AHDF e o ABM) com vista ao melhor êxito da comemoração desse 5º Centenário e do 6º Centenário do (re)descobrimento do nosso arquipélago. Procurámos salientar aspetos de interesse e atualidade na maioria dos documentos disponibilizados, bem como tentámos reconstituir alguma parte do “mapa” das influências e interferências espirituais e intelectuais que desaguaram na obra do Pe. Pita Ferreira e a explicam. Assim esperamos ter contribuído para incentivar à (re) leitura dos livros e artigos do Padre Pita Ferreira e a prosseguir a investigação dos temas que ele tratou. Alegramo-nos de participar numa iniciativa que põe em evidência simultaneamente o relevantíssimo contributo cultural da Igreja Católica e o apostolado multiforme do benemérito sacerdote – tão empenhado em ensinar a Doutrina Católica com transparência e rigor no púlpito e na aula de Catequese, como em assinalar o valor divino e a função didática da Arte Sacra e em investigar a verdade histórica. Por feliz coincidência, hoje, dia em que terminamos este artigo, o património documental da Igreja está em foco nos meios de comunicação social: a visita do Papa Francisco à Biblioteca Apostólica do Vaticano, onde foi recebido pelo arcebispo madeirense D. José Tolentino Mendonça, atrai a atenção para esta e outras instituições da Igreja que servem “o desenvolvimento, a conservação e a divulgação da cultura”, oferecendo “tesouros riquíssimos de ciência e de arte aos estudiosos que investigam a verdade” (Diário de Noticias, 04-12-2018).
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FICHA TÉCNICACATÁLOGO
EXPOSIÇÃO
Produção: Museu de Arte Sacra do Funchal
Direção: João Henrique Silva
Comissário: Martinho Mendes
Investigação e Textos: Elisa Vasconcelos (Coord.), Martinho Mendes, João Henrique Silva
Conservação: Carolina Ferreira (Coord.), Teresa Correia, Sara Lambeau
Museografia: Elisa Vasconcelos, Martinho Mendes
Design de Comunicação: Ana Antunes
Impressão e montagem: Manica Soluções, Publinsular
Moldagem: Hélder Folgado
Coordenação: Museu de Arte Sacra do Funchal
Investigação e Textos: Elisa Vasconcelos, Martinho Mendes, Maria Paredes, Vítor Gomes, Isabel Santa Clara, João Baptista
Revisão de textos: Elisa Vasconcelos, Martinho Mendes
Design Gráfico: Ana Antunes
Tipos de letra: Tahoma Bold Anonymous Pro © Mark Simonson
Créditos de imagem: Arquivo MASF Arquivo e Biblioteca Regional da Madeira (p. 33, 46, 68 (1) , 109 ) Casa-Estúdio Carlos Relvas (p. 22) Casa-Museu Frederico de Freitas (p. 68 (2) ) Jéssica Silva (p. 76, 77) João Baptista Pereira Silva (p. 111-119) Direção-Geral do Património Cultural / Arquivo de Documentação Fotográfica (DGPC/ADF) — obras MNAA: Carlos Monteiro (p. 87 (1) , 96 (2) ) José Pessoa (p.81 (1) , 83 (2) , 85, 90, 91, 98 (1) )
Modelação 3D: Jéssica Silva
Arquitetura e Design expositivo: Samuel Freitas, João Almeida
Carpintaria: Ludgero R. Freitas, Lda; Sérgio Tito Silva, Lda
Montagem da Exposição: André Faria, Ana Pestana, Filipe Campos, Fátima Jardim, Isabel Santos, Luís Oliveira, Nuno Figueira, Samuel Freitas
Secretariado: Edmundo Freitas
Fotografias da exposição: Joana Sousa
Local de edição: Funchal
Ano: 2020
ISBN: 978-989-33-1121-9
LICENÇA Este trabalho está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.
Serviço Educativo:Martinho Mendes (Coord.), Elisa Vasconcelos
Tradução: Teresa Freitas, Sara Lambeau
Fotografia e Digitalização: Flávio Nuno Joaquim
Agradecimentos: Biblioteca Municipal do Funchal, Arquivo Histórico Diocesano do Funchal, Arquivo e Biblioteca Regional da Madeira, Casa da Cultura de Santa Cruz - Quinta do Revoredo, Casa-Museu Frederico de Freitas, Direção Regional de Cultura, Casa-Estúdio Carlos Relvas, Museu Nacional de Arte Antiga, Familiares Padre Pita Ferreira, António Rodrigues, Edward Kassab, João Baptista, Paulo Olim, Fábrica de Extração de Pedra e Brita da Palmeira, Melim Mendes
Museu de Arte Sacra do Funchal 2020
Apoio institucional:
CONTACTOS Rua do Bispo, 21, 9000-073 Funchal +351 291 228 900 info@masf.pt
http://www.masf.pt