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ViVer, morrer e sobreViVer na terra das coisas mortas

Seis meses depois da tragédia em que morreram 17 pessoas, soterradas numa montanha de lixo, a E&M regressou ao Hulene para ver o que mudou. E lançar um olhar sobre o lixo, questionando o que fazer com ele. Da reciclagem ainda residual, aos novos aterros sanitários projectados para a capital do país

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o desperdício de muitos garante a so-

brevivência de alguns. Na lixeira de Hulene, que acolhe as sobras geradas pelos bairros da Cidade de Maputo, mais de mil pessoas dedicam-se, todos os dias, a recolher o que houver de aproveitável – papel, plástico e metal – para reciclar. O lixo garante-lhes renda. Embora demasiado escassa, talvez, para os riscos que correm. E escassa é também a parte do lixo que resgatam. Mais escasso ainda é o lixo que Moçambique consegue reciclar. Apesar do potencial do negócio, falta-lhe uma indústria capaz de o fazer Maputo é uma cidade suja, maculada pela incúria dos que ali habitam e trabalham, deixando nas ruas o lixo da sua passagem. No Verão, com os canais de escoamento entulhados pelo cúmulo dos dias, a Baixa, por exemplo, fica inundada pelas águas impedidas de correr para o mar. E já foi muito pior. No início deste milénio, por exemplo, havia pirâmides de lixo, com altura apreciável e cheiro proporcional, instaladas nos separadores centrais de algumas das avenidas da cidade. Hoje, já não. O Município implantou, entretanto, um sistema de recolha que articula duas soluções, cada qual adaptada à natureza da vizinhança a que respeita. “A Cidade de Maputo tem um sistema de gestão de resíduos que consiste na divisão em duas grandes áreas – a área urbana (Maputo Cimento) e a suburbana (Maputo Caniço)”, diz João Mucavele. O Director Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos e Salubridade explica como é que se procurou resolver o problema: “Tal como em qualquer cidade da Europa, a recolha do lixo na área de Maputo Cimento foi adjudicada a uma empresa de capitais moçambicanos e portugueses, a Ecolife”, cuja logística e processo envolve “700 contentores de 1100 litros espalhados pela cidade, com a recolha a fazer-se até duas vezes por dia, embora a principal seja feita no horário nocturno”. Mas este sistema não tem condições para se desenvolver em outras áreas, muito mais vastas e densas do que a cimentada, de Maputo. Condicionantes estruturais que obrigaram a encontrar soluções mais criativas. E inclusivas. “Na zona suburbana (Caniço) há, muitas vezes, o problema do acesso de camiões”, reconhece Mucavele. Por isso, “a estratégia é diferente: sendo composta por 44 bairros, cada um tem uma micro-empresa que faz a recolha do lixo”. Tais micro-empresas, contratadas pelo Conselho Municipal após concurso público e pagas pela taxa inclusa na factura do consumo de energia emitida pela Electricidade de Moçambique (EDM), “são formadas por elementos do próprio bairro”, diz Mucavele. Trata-se de um expediente que, para lá de resolver o problema do acesso, também “é uma maneira de o Conselho Municipal estar mais perto dos munícipes, da população.” Gente activa que, na impossibilidade do recurso a veículos motorizados no rendilhado anárquico das ruas estreitas, “usa os txovas – carros de mão –, que vão de casa em casa tirar o lixo para depositá-lo num dos 180 contentores, de 12 metros cúbicos, espalhados pela zona suburbana”.

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o fim... do fim da linha: dentro de meses, esta será apenas uma (má) imagem do passado, quando abrir o novo aterro da cidade de Maputo

Depois, os camiões de uma outra empresa, a Enviro Service, levam-nos para o Hulene, a lixeira a céu aberto nas proximidades do Aeroporto Internacional de Maputo, que acolhe desde 1972 todos os desperdícios produzidos pela capital do país e pelos seus pouco mais de 1,1 milhões de habitantes. Gente que, segundo a contabilidade da Direcção Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos e Salubridade de Maputo, produz diariamente entre 1200 a 1400 toneladas de carga fétida que, depois de descarregada na lixeira, acrescentará altura à montanha de desperdícios. Preciosos, no entanto, para milhares de pessoas que deles dependem.

Fazer vida das coisas mortas Bairro do Hulene. Por entre o fedor azedo da mixórdia em fermentação, escalando a montanha de lixo que recobre uma área de 20 hectares, uma pequena multidão coberta de andrajos e fuligem, tão incrustada que é já segunda pele, evolui entre máquinas pesadas e os fumos permanentes da combustão. Gente que garimpa o sustento no que os outros rejeitaram. Vistos à distância, os recolectores de Hulene, que o Conselho Municipal de Maputo estima em cerca de um “Moçambique não tem fábricas de vidro, papel ou metal para reciclar em quantidade, pelo que sai mais barato comprar as embalagens fora do país e trazê-las para cá”

ProDução DE lixo não Pára DE Subir

Aumento da população e do consumo alimentam o crescimento da produção de resíduos

em milhares de toneladas

400

300

200

100

2009 2013 2017 1 200 toneladas por dia

É a quantidade de lixo que diariamente aterra na lixeira do Hulene

fonte Município de Maputo milhar, evocam um exército de espectros garantindo a vida difícil num campo cheio de coisas mortas. E, por vezes, também mortais. “Tem ferro com ferrugem, tem garrafa partida, tem ratazana, tem mosquito, tem fumo, tem doença...”, enumera Luís Adriano. São os perigos que espreitam o quotidiano de todos os recolectores de Hulene. Não obstante, como ele, regressam todos e todos os dias, porque “não tem como ficar em casa. Há filhos para criar – três, mais a mulher – e não posso dar-lhes fome”, refere o pragmático Adriano, catador de 32 anos, natural e residente ali mesmo, no sopé do monte repelente. Como ele, são pelo menos 550 famílias em convivência estreita com a precaridade do lixo empilhado, cuja armadilha se revelou fatal para 17 pessoas quando as chuvadas de Fevereiro provocaram uma derrocada sobre as casas rudimentares. Adriano voltou. Os vizinhos também. Porque “não há como”. Foi, precisamente, a falta de alternativa que levou Ernesto Carlos Nbila a Hulene,

onde cata o lixo há meia década, depois de um emprego fugaz. “A vida trouxe-me aqui. E a fome”, confessa o homem, tão seco de carnes que o colete reflector lhe resvala pelo corpo. “Faço dois turnos, dia e noite. Por isso, uso o colete”, justifica, referindo o período nocturno em que é aconselhável assinalar a presença aos maquinistas de camiões e retroescavadoras em manobras. Aos 29 anos, Ernesto, provindo da Manhiça, não vislumbra outra ocupação: “Dependendo da sorte, posso ganhar até 500 meticais num dia”, assegura, orgulhoso do seu esforço. O apuro laboral vê-se ali, nos ajuntamentos de mulheres que têm o lixo à sua guarda, acondicionado em grandes sacos e dividido por categorias: latas, papelão, plástico e o que houver que seja transaccionável. Quando cheios, são elas que os transportam à cabeça até à empresa de reciclagem que fica ao lado, a Recicla, e que lhes compra os materiais. Para triturar, fundir e dar nova vida aos dejectos. Perto dali, Milagrosa de baptismo, mulher de Hulene e mãe precoce de sete crianças cujo marido se limitou a engendrar, após refoçilar nos despojos alheios que uma retroescavadora trouxe à superfície, descansa as costas antes de partir com a carga imensa. A safra do dia não deu sustento: “Tenho muitas garrafas de plástico, mas só pagam 5 meticais por quilo”, diz algo desalentada, sacudindo uma barata da perna fina. “O plástico dá pouco: se for de embalagem (película transparente, de boa espessura e densidade), pagam 7 meticais por quilo; se for de bacia, já pagam 10”. No saco transbordante, Milagrosa não tem de um nem de outro. Há-de dar para o pão, todavia. Para algo mais, chegará a carga deixada por Raimundo aos cuidados da irmã. A primeira saca do dia, que mais haverá até que a noite sobrevenha porque Ricardo, vestindo uma camisola encardida do Barcelona, com 13 anos é já o campeão dos recolectores de Hulene. Em treino quotidiano desde os 10. “De manhã, vou à Escola do Povo”, garante – embora ninguém acredite, dado o tempo que por ali passa a remexer na porcaria –, explicando como a matemática o tornou selectivo: “Só apanho latas, que são mais pesadas e dão mais por quilo: 40 meticais se vender aqui mas, se for lá (à Recicla) pagam 50”.

reciclagem de vidas Para a Recicla, converge a maioria dos resgates da lixeira; mas, não raro, vêm compradores que fazem as transacções ali mesmo, no recinto. “Alguns são artistas, que vêm comprar ferro para fazer máscaras, mas a maioria são chineses. Esses, compram tudo, mas pagam pouco”, queixa-se Maria, mãe solteira de olhos irrequietos, varrendo o chão em busca de algo que lhe aumente o pecúlio. Onde nada vê, descobre Adriano uma mina: computadores. Exultante, retira-lhes a placa verde de circuitos integrados, incrédulo ainda por terem escapado à cobiça da concorrência. Não só a local, mas outra pior, desleal: “Os próprios condutores dos camiões já põem para o lado o que tem valor”, alega Adriano. Não obstante os ganhos potenciais – não só ambientais, mas também financeiros –, a reciclagem é ainda insignificante em Moçambique, como admite João Mucavele. “Temos 20 ecopontos e estimamos em 50 toneladas por dia o material que vai para reciclagem”, afirma. “Está muito longe do desejável, mas Moçambique não tem fábricas de vidro, papel ou metal para reciclar em quantidade, pelo que sai mais barato comprar as embalagens fora do país e trazê-las para cá”, lamenta o Director Municipal de Gestão de Resíduos Sólidos Urbanos. No entanto, há alguns mecanismos para inverter a situação. Começou com o Decreto n.º 16/2015, no qual o saco de plástico deixou de ser gratuito para o consumidor, levando à sua diminuição nas ruas da cidade; e, mais recente, a publicação do Decreto nº 79/2017, que aprova o Regulamento sobre a Responsabilidade Alargada do Produtor e Importador de Embalagens (RAP). “Com a introdução do RAP, que diz que quem produz e compra embalagens é responsável pelo seu tratamento, a pessoa já pondera nas consequências”, diz Mucavele. E há outras medidas já em curso. E que implicam o encerramento da lixeira de Hulene. “Está em construção um aterro intermunicipal de Mathlemele, no município da Matola”, indica Mucavele, explicando que terá cerca de 100 hectares para acolher os resíduos da grande Maputo, “prevendo-se que possa reciclar, por dia, cerca de 200 toneladas de resíduos”. O projecto está orçado em mais de 60 milhões de dólares, e, segundo Mucavele, fica concluído em 2019. Nessa altura, as lixeiras de Hulene e de Malhampsene, ambas em estado de saturação, fecham portas. Deixando os catadores que por ali andam aos milhares, sem meio de sustento. Mas eles são gente pragmática. “Se o lixo sair daqui, vamos atrás”, garante Adriano. “Não sabemos fazer mais nada e ninguém nos quer em lado nenhum. Mas temos de comer”. Nem que seja lixo. Reciclado.

texto Elmano madaíl fotogrAfiA RicaRdo FRanco

OPINIÃO

Transformação digital como uma realidade incontornável na banca

Salim Cripton Valá • PCA da Bolsa de Valores de Moçambique

vivemos hoje num mundo com forte pendor digital e as novas tecnologias de informação e comunicação ganharam espaço, mudando a nossa visão do mundo, os mercados e a forma como vivemos e trabalhamos. A nova era é marcada por uma revolução onde internet, smartphones, redes sociais, internet das coisas, blockchain, inteligência artificial, entre outras, assumem um papel primordial na vida das pessoas, no funcionamento das instituições e no desenvolvimento económico e social das Nações. Nessa esteira, a banca não é nem pode ser uma excepção, pelo contrário, ela lidera uma transformação digital sem precedentes, dominada por uma geração de clientes que exigem novas experiências na sua relação com os produtos e serviços oferecidos pelos bancos. Esta nova e inovadora onda trouxe à banca uma realidade peculiar que veio para ficar e os bancos – no seu formato tradicional – não têm como não operar mudanças profundas para sobreviver, competir com vantagem e assegurar a sua plena integração no mundo digital. Entende-se por banca digital o fornecimento, distribuição e venda de serviços financeiros através de canais digitais, explorando tecnologias para conhecer melhor os clientes e antecipar as suas necessidades de forma rápida e adequada, através de multicanais e com automação de serviços e tem as seguintes características principais: (i) processo não presencial de acesso aos serviços (ii) acesso a canais electrónicos para contratações de produtos, e; (iii) resolução de problemas por múltiplos canais online. No relacionamento entre os bancos e os seus clientes, os canais de acesso aos serviços bancários representam um grande diferencial e com a transformação digital os clientes que agora são activos consumidores digitais, mudaram os seus hábitos e referências. De acordo com uma Pesquisa da Federação Brasileira de Bancos (2018), no Brasil o volume médio de transacções por conta caiu 53,7% no Internet Banking, enquanto no Mobile Banking cresceu 436%. No caso de Moçambique, observa-se um comportamento semelhante nas preferências dos consumidores pelo canal Mobile Banking e esta evidência é registada nas estatísticas do Banco de Moçambique (2017) para a banca electrónica, que regista uma quantidade de subscritores no Mobile cinco vezes superior à do Internet Banking. Por outro lado, o surgimento de novas tendências não deve ser negligenciado, e as FinTech são um exemplo disso. A mais recente pesquisa sobre a banca, Global Banking Outlook (2018), conduzida pela EY, refere que a adopção de provedores FinTech para transferência de dinheiro e serviços de pagamento aumentou de 18% em 2015 para 50% em 2017. Este crescimento revela que as FinTech são actores estratégicos no sector bancário e estão a provocar mudanças profundas no sistema financeiro. O The Economist (2018) destaca que na China o sistema de pagamento Alipay, baseado em smartphone, espalhou-se rapidamente para o exterior e, no Quénia, o M-PESA, com cerca de 30 milhões de contas móveis e mais de 148 mil agentes, tornou-se o sistema de transferência mais popular. Esse cenário já é uma realidade em Moçambique, onde o M-Pesa, M-Kesh e o E-Mola já se afirmaram no contexto das finanças digitais no País. A questão da banca digital não é um assunto isolado e muito menos um fenómeno passageiro. Para assegurar o sucesso deste processo é necessário definir um conjunto de acções e opções, com destaque para o desenho de estratégias integradas de transformação digital, adequação dos cursos secundários e universitários à nova realidade digital, promoção de programas de educação financeira, introdução de reformas legais para acomodar as mudanças nos mercados e canalização de maior investimento para o desenvolvimento do capital humano. Garantir maior abrangência, impacto e sustentabilidade do sistema financeiro moçambicano vai exigir transformações profundas na forma de conceber a nova banca e transformá-la para responder às novas exigências do mercado. A bancarização da economia e a extensão dos serviços financeiros para as áreas rurais e para os clientes de baixa e média renda, vai exigir uma banca inclusiva e de proximidade, e isso só pode ser sinónimo de banca digital em Moçambique.

A questão da banca digital não é um assunto isolado e muito menos um fenómeno passageiro. E para assegurar o sucesso deste processo é necessário definir um conjunto de acções

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