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LÁ Fora
A históriA de um sAque
Depois de posto em liberdade, em Março, o antigo presidente do Fundo Soberano de Angola (FSDEA), José Filomeno dos Santos, deve mesmo comparecer em tribunal, de acordo com a Procuradoria-Geral da República
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Sob termo de identidade e residência, e
depois de a PGR já ter entregue o processo ao tribunal, o filho do antigo Presidente José Eduardo dos Santos terá de explicar uma série de burlas efectuadas por Jean-Claude Bastos de Morais, proprietário e presidente da Quantum Global, que geria, desde Novembro de 2013, os activos do FSDEA. Apesar de o contrato de gestão ter sido anulado em Junho passado, meses depois da exoneração da administração dessa instituição financeira, as empresas de Jean-Claude Bastos de Morais já tinham obtido, em cobranças, cerca de 500 milhões de dólares, em menos de quatro anos, sob a forma de honorários e comissões, para a gestão dos cinco mil milhões que esta entidade tinha sob sua guarda. O empresário suíço-angolano, que se encontrava em prisão preventiva, em Luanda, desde 24 de Setembro, foi colocado em liberdade no dia 22 de Março. Jean-Claude Bastos de Morais vinha acusado de crimes de associação criminosa, tráfi-
500
milhões de dólares é quanto se estima que Jean-Claude Bastos de morais tenha oBtido em CoBranças pela gestão dos aCtivos do Fundo soBerano de angola
co de influência, burla e branqueamento de capitais pela PGR, que justifica que a Quantum Global chegou a acordo com o Fundo Soberano de Angola, colocando um fim ao processo que tinha sido movido pela Procuradoria-Geral da República. De acordo com a directora nacional dos Serviços de Recuperação de Activos da PGR, Eduarda Rodrigues, o país teve de negociar com Jean-Claude de Morais, proprietário da Quantum Global, para evitar mais gastos no processo de custódia judicial. Entretanto, apesar de o Estado revelar ter recuperado os 3,3 mil milhões de dólares, nomeadamente, 2.350 milhões em activos financeiros recuperados de bancos no Reino Unido e Ilhas Maurícias, e mil milhões em património imobiliário, a decisão de libertar Jean-Claude Bastos de Morais não colheu consenso da sociedade. O que parece ser simples levanta, afinal, contornos jurídicos sem precedentes. Com uma aparente reparação do dano causado ao Estado angolano, a PGR mandou-o em liberdade e desistiu do procedimento criminal contra o empresário. Para esclarecer a polémica, a directora do Serviço Nacional de Recuperação de Activos da PGR, Eduarda Rodrigues, disse à Rádio Nacional de Angola que a PGR não celebrou acordo algum com Jean-Claude Bastos de Morais no processo dos referidos crimes em que era indiciado. A responsável reforçou que os factos enfraqueceram “porque todas as actuações da Quantum Global, de Jean-Claude Bastos de Morais, estavam na base de um documento-contrato no qual o Estado angolano, representado pelo FSDEA, o legitimava a praticar actos”. “Os indícios inicialmente existentes foram enfraquecendo com a investigação que a PGR fez”, disse Eduarda Rodrigues. O advogado Jaime Azulay considera que “a Justiça angolana, através da PGR, tomou uma decisão histórica que representa uma inequívoca aproximação às tendências da doutrina do Direito Penal moderno, ao mandar em liberdade e desistir do procedimento criminal contra o empresário suíço-angolano”. Exemplificando aquilo que os brasileiros chamam de “delação premiada”, o jurista sublinha que a presente decisão das autoridades pode ser enquadrada legalmente. “Existe no sentido do legislador a intenção de permitir, através da mediação penal, o mecanismo de transacção em determinados crimes de natureza patrimonial, uma vez existindo o consentimento do lesado”, defende.
Em sentido contrário opina o advogado Albano Pedro, para quem a decisão é, até prova em contrário, uma “inexplicável” e “absurda” violação da ordem jurídica angolana. “Os que defendem a delação premiada esquecem que isso não existe na nossa ordem jurídica. É coisa de brasileiros e outros países avançados nisso de colocar o Estado a negociar com criminosos”, diz o docente universitário.
A batalha que (não) resta a Zenu Se Bastos de Morais beneficiou de um acordo que lhe permitiu abandonar o país, tal não se poderá, ainda, dizer de José Filomeno dos Santos. O filho do ex-Presidente de Angola beneficiou da alteração da medida de coacção penal, ou seja, deixou de ser preso preventivo e passou a estar sob Termo de Identidade e Residência (TIR). O que quer dizer que, segundo a PGR, aguarda o julgamento em casa, caso venha a ser acusado. Em relação aos crimes de que é suspeito, nada muda. O processo-crime continua em marcha até ser marcado o julgamento. José Filomeno dos Santos é acusado pelo FSDEA de ter efectivado, de forma ilegal e sem concurso público, o contrato com o seu amigo Jean-Claude Bastos de Morais. Do mesmo modo, é acusado de não ter manifestado qualquer interesse em procurar entidades qualificadas, reputadas e com as credenciais de experiência que poderiam ter assegurado uma administração do Fundo mais eficaz. Até à saída de Zenu, a Quantum era a única gestora dos activos do FSDEA, apesar de a política de investimentos do Fundo estabelecer que não podiam ser alocados mais de 30% dos activos do mesmo a um único gestor externo. Na mesma altura em que o contrato foi assinado, o FSDEA assinou o Acordo de Custódia com o banco inglês Northern Trust. De seguida, transferiu os cinco mil milhões do Fundo Soberano de Angola para essa instituição em Londres, sob total controlo da Quantum Global Investment Management, que, já se sabe, pertence a Jean-Claude Bastos de Morais. De acordo com a queixa, a transferência dos 5 mil milhões para Londres “foi ilegal” e fez “parte da conspiração” para defraudar o FSDEA. O banco também é denunciado como responsável na conspiração. Dos 5 mil milhões de dólares depositados no Northern Trust, apenas 1,5 mil milhões permaneciam em nome do FSDEA, sob a designação de “liquid portfolio”. José Filomeno dos Santos, que garantia, em Setembro de 2014 em entrevista ao
Lições dos Fundos
Com um valor de quase 1 bilião de dólares, o Fundo Soberano da Noruega é o maior do mundo. Nele são aplicados os retornos que obtém com a exploração e produção de petróleo. Criado há mais de 20 anos, acumulava, até final de 2015, uma riqueza de 824,9 mil milhões de dólares, segundo os dados do Sovereign Wealth Fund Institute (SWFI), instituição que lhe dá nota 10 no ranking da transparência. Sabe-se que o Fundo investe, por exemplo, em 9 158 empresas em todo mundo, desde a Apple, Nestlé, Microsoft e Samsung, detendo, pelo menos, em média, 1,4% das empresas em que está envolvido. Conhecido como o “Fundo do Futuro”, a versão australiana é igualmente uma lição de transparência. O seu relatório de 2017-2018 já está disponível desde Setembro do ano passado e lá pode ler-se que o Fundo Soberano da Austrália, com um valor de 145 mil milhões de dólares, reforça os seus investimentos em pesquisa médica e na chamada “economia azul”. Nos últimos dez anos, o Fundo obteve um retorno de 8,7% por ano.
“Jornal de Angola”, que o Fundo Soberano de Angola estava “totalmente comprometido com a transparência e a boa governança”, terá assim muito a explicar. Por outro lado, a fragilidade do caso poderá, como se viu na situação de Jean-Claude Bastos de Morais, residir no facto de toda a gestão do Fundo ter sido possível graças a contratos celebrados com validade legal. É, de resto, por esta razão que o advogado Inglês Pinto considera que este processo prejudicou a imagem do sistema de justiça angolano, sugerindo outras forma de resolução do conflito, e não exclusivamente a judicial.
Como Bastos de morais fez uma fortuna Quando se oficializou o Fundo Soberano de Angola (FSDEA), em 2012, já muitos especialistas levantavam receios quanto aos objectivos a que se propunha: promover o crescimento, a prosperidade e o desenvolvimento económico e social de toda a Angola, com uma dotação de 5 mil milhões de dólares. Apesar de em Fevereiro de 2015 ter sido reconhecido como transparente pelo Sovereign Wealth Fund Institute, com uma classificação de 8 em 10, o Fundo era tudo menos transparente. Presidido por José Filomeno do Santos, assinou, em 2013, um acordo de gestão de investimento com a Quantum Global Group, pertencente a Jean-Claude Bastos de Morais, a quem entregou a gestão de 5 mil milhões de dólares por um mínimo de três anos e com extensão automática, sem qualquer supervisão. Com base nesse contrato, perto de 3 mil milhões foram investidos em sete fundos criados pelo QGIM, também pertencente a Bastos de Morais, e administrados pela Quantum Global, com sede nas Maurícias. Jean-Claude de Morais era remunerado pelos seus serviços a uma taxa de 2% a 2,5% do capital por ano, o que representava um rendimento anual de 60 a 70 milhões de dólares desde 2015. O jornalista Rafael Marques, que se dedica à investigação do caso, acredita que, em menos de quatro anos, as empresas de Bastos de Morais cobraram cerca de 500 milhões de dólares ao Fundo Soberano de Angola, sob a forma de honorários e comissões, para a gestão dos 5 mil milhões, quando muitos destes investimentos eram, afinal, feitos nas suas próprias empresas e empreitadas.
textO Adão Gil FOtOgrAFIA iStock photo