4 minute read
Culturas Regenerativas – O Caminho, as Perguntas e a Teia
de outros mundos. Sempre achei absurda a segregação entre sectores empresarial, público e social e mantive sempre relação com todos, enquanto consultora e enquanto fundadora da Kutsaca, mas sempre com reserva e atenção aos perigos de perseguir os fundos em vez dos sonhos.
Hoje, enquanto líder de uma pequena ONGD, reconheço e assumo com orgulho e discrição que trilhar um caminho diferente exige coragem, humildade e perseverança. Mas a minha grande aliada, nesta que é uma jornada de quase dez anos, é a curiosidade experimental. É a fazer perguntas e a habitá-las que eu vou encontrando caminhos. As respostas raramente me chegam.
Advertisement
dora, pela qualidade dos oradores e das reflexões geradas nas quatro sessões subordinadas a diferentes temas.
E é precisamente sobre o tema de uma das sessões “INGOs and Localization” que eu gostava de gerar uma reflexão. Nada melhor do que começar com a pergunta de Themrise Khan, investigadora independente e analista de políticas, baseada no Paquistão e consultora com vasta experiência em desenvolvimento internacional:
“A quem nos referimos quando falamos em Organizações Internacionais? Porque é que uma organização no Paquistão é considerada local e uma Organização no Reino Unido é considerada Internacional?”
E não há dúvida de que esta pergunta é poderosa. Reflecte, por si só, o tema da descolonização da ajuda e a emergência da localização. Isto não é novo. Tem que ver com a desigualdade de poder – e dinheiro, claro – que é absorvido pelos gigantes que todos conhecemos e depois distribuído pelos “parceiros qualificados”, chegando muitas vezes à linha da frente valores residuais (fixados em pelo menos 20% em 2016), deixando antever que:
Não se tratam apenas de questões monetárias, trata-se da forma como vemos os outros, como muito bem referiu a investigadora.
O que chega são sensações de paz ou de alerta, impulsos de vontade ou de fuga. São sensações viscerais de abertura ou fechamento. E, claro, é a voz que fala baixinho, que só se ouve no silêncio – há quem lhe chame intuição. Para mim, é uma espécie de bússola que me vai mostrando por onde é o caminho, a cada momento.
Num destes impulsos imediatos de vontade, inscrevi-me, no mês passado, no International Development Summer Course organizado pela Plataforma Portuguesa das ONGD, em parceria com a Fundação Calouste Gulbenkian, o ISEG e o Instituto Pedro Nunes. Não sendo novos os temas, está de parabéns a equipa organiza-
O sentimento de superioridade é notório nesta e noutras classificações. E a semântica patente no mainstream social - “beneficiário”, “parceiro de implementação”, “problemas a resolver”, “impacto”, “escalar” – levam-me logo para as histórias de Heróis-Salvadores que abordei ao de leve no artigo passado.
Alguns dos autores, entre os quais Keeanga Yamahttha Taylor, uma académica, autora e activista da NorthWestern University, questiona até com muito sentido: quem criou o conceito? De onde vem? Serve a toda(o)s? Ainda se mantém?
Ou a própria semântica já precisa de ser ajustada, de acordo com a transformação vivida? As organizações são todas locais!
O que acontece é que as Organizações do Sul, em particular as baseadas nestes territórios descredibilizados, não são consideradas capazes pelos doadores internacionais (ou serão locais?).
Khan acrescenta que termos como ‘descolonização’ ou ‘localização’ não nos levam a lado nenhum. É retórica para politizar a discussão.
Assim como considera que devemos distanciar-nos dos termos ‘Norte Global’ e ‘Sul Global’, que criam mais divisões, salientando que houve mudanças geopolíticas e que há países do Sul que mudaram/ aumentaram o seu poder. A investigadora sugere que, estas organizações “internacionais” devem simplesmente questionar-se com frontalidade sobre se faz sentido continuarem a existir. Talvez há 15 anos fizessem sentido, mas o mundo mudou.
Deborah Doane, directora da Funder’s Initiative for Civil Society, considera também importante sairmos da dicotomia Norte-Sul e trabalhar para o que chama de “Shift the Power”, pensar colectivamente para conseguir a mudança social em cada contexto, promovendo a liderança local e a subsidiariedade, o que pressupõe que as grandes ONGDs devem abrir mão do poder e criar novas redes focadas em relações de interdependência e num caminho mais equilibrado e con- junto. Ora, isto não é naturalmente fácil. Dylan Mathews da Making Peace sublinhou, sem filtros, a “hipocrisia do sistema humanitário” e a “dificuldade em falar nas questões basilares: desigualdade de poder e racismo estrutural. É preciso mudar, primeiro, a mentalidade e, só depois, as práticas.”
As políticas e práticas revelam que a mentalidade se mantém colonial: a forma como estão configurados os processos de financiamento, a linguagem complexa e obsoleta e até a língua. A que propósito é que uma organização local tem de concorrer em inglês para um fundo que se diz nacional?
É verdade que os sistemas se retroalimentam, o macro influencia o micro, mas o contrário também acontece. E, por isso, pequenas práticas quotidianas num pequeno lugar ou sistema, criam realidades, outros modos de fazer e de viver. E já dizia o Buckminster Fuller: “nunca se mudam as coisas lutando contra a realidade existente. Para mudar alguma coisa, construa um novo modelo que torne o modelo existente obsoleto”.
Continuamos, sem dúvida, com um trabalho de fundo por fazer nas questões basilares (difíceis de ver e assumir) e a forma como os sectores social, empresarial e público se relacionam, pede mudanças profundas. Mas a busca de culpa- dos, a desvalorização gratuita dos caminhos percorridos e o combate (face a outros e aos problemas), deixa-nos nas mesmas espirais degenerativas.
A verdade é que sinto que as coisas estão realmente a mudar. Há cada vez mais abertura e vontade genuína em escutar, em incluir outras vozes, em experimentar novos caminhos. O caminho é muito mais importante do que a forma/organização. A forma/organização pode, no entanto, ajudar ou prejudicar o caminho. É preciso estar atenta(o).
O que agora sinto mais evidente vem de longe, foi semeado há muito, em conjunto, por muitas vozes distintas. Já dizia o nosso querido senhor Domingos, secretário do régulo e nosso braço direito: “mana, a sua igreja são as crianças e o Deus está a ver”. Não tenho Igreja, não tenho pretensão de tornar algo obsoleto e tenho cada vez menos convicções. Mas continuo com muita vontade de continuar a fazer perguntas. De escutar diferentes vozes. E de criar pontes. Podem ser pequenas, daqui prali. De vez em quando afasto-me e vou vendo uma teia já jeitosa. E vou-me perguntando: a quem serve esta teia? Conecta ou exclui? Vivifica e regenera ou desgasta e degenera? Liberta ou prende? Acima de tudo, que ela sirva ao Lugar, aos que o Habitam e aos que hão-de vir. E à Vida.